MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da República no Estado da Bahia
EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA __ VARA DA SEÇÃO
JUDICIÁRIA DO ESTADO DA BAHIA
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL vem, por intermédio do
Procurador da República in fine assinado, no uso de suas atribuições constitucionais
e legais, propor, com fulcro nos arts. 127, caput, e 129, III, da Constituição da
República, na Lei Complementar nº 75/93 e na Lei nº 7.347/85, a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM
PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA
em face da ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL (OMB
Conselho Federal), autarquia corporativa federal, instituída pela Lei n.º 3.857/60,
com sede em Brasília/DF, na SCS, Quadra 4, nº 230, 3º andar, edifício Israel
Pinheiro, CEP n.º 70300-500, representada pelo seu Presidente Wilson Sandoli e da
ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL - CONSELHO REGIONAL DO ESTADO DA
BAHIA (OMB/BA), autarquia corporativa federal, com sede na Rua Chile, nº 05,
edifício Antônio Ferreira, sala 203, Centro, Salvador/BA, representada pelo seu
Presidente Emídio José dos Santos, em razão dos fatos e fundamentos que a seguir
aduz.
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I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No âmbito da Procuradoria da República no Estado da Bahia,
em virtude de representação formulada por terceiros, foi instaurado o Procedimento
Administrativo nº 1.14.000.000891/2004-95, cujas peças principais seguem anexo
(DOCS. I a XIV), com o escopo de averiguar irregularidades perpetradas no âmbito da
Ordem dos Músicos do Brasil Conselho Regional do Estado da Bahia (OMB/BA).
Conforme restou apurado, as irregularidades promovidas pela
OMB/BA circunscrevem-se a duas situações. A primeira delas, concernente à
cobrança irregular de taxas de inscrição e anuidade dos profissionais de música,
para que seja permitido o exercício da profissão. A segunda, que também envolve a
autarquia regional, refere-se ao processo eleitoral para a escolha de seus dirigentes
e a duração dos seus mandatos.
A OMB/Conselho Federal e a OMB/BA constituem-se em
autarquias corporativas federais, criadas pela Lei nº 3.857/60, verbis (DOC. I):
Art. 1º - Fica criada a Ordem dos Músicos do Brasil com a finalidade
de exercer , em todo o país, a seleção, a disciplina, a defesa da
classe e a fiscalização do exercício da profissão do músico, mantidas
as atribuições específicas do Sindicato respectivo.
Art. 2º - A Ordem dos Músicos do Brasil, com forma federativa,
compõe-se do Conselho Federal dos Músicos e de Conselhos
Regionais, dotados de personalidade jurídica de direito público e
autonomia administrativa e patrimonial.
Como tal, estão sob o regime jurídico especial, a exemplo dos
Conselhos profissionais de Medicina e de Engenharia, os quais têm sua existência
justificada pela prestação de serviços públicos, uma vez que realizam o controle e a
fiscalização de profissões regulamentadas por lei, cujo exercício produz reflexos
diretos na sociedade, sendo, por conseguinte, de interesse público.
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Essas autarquias, que têm dentre as suas atribuições a
fiscalização e o controle de determinados ofícios, são compostas exclusivamente
por membros da mesma profissão e possuem, em tese, melhores condições para
apreciação da habilidade técnica e da conduta ética dos seus inscritos. Por outro
lado, a fiscalização e o controle da atuação profissional por seus pares permite
proteção à independência técnica da carreira, que não será avaliada por grupos
estranhos à realidade do seu trabalho.
Conquanto a Lei 3.857/60 tenha criado a OMB/Conselho
Federal e a OMB/BA com a finalidade de fiscalizar e controlar a profissão de músico,
não se vislumbra, no presente caso, interesse público a justificar a limitação imposta
ao exercício desse trabalho pelos arts. 16, 17, 18, 28 da mesma norma, inclusive
mediante reconhecimento do poder de polícia e de tributação, verbis (DOC. I):
Art. 16 - Os músicos só poderão exercer a profissão depois de
regularmente registrados no órgão competente do Ministério da
Educação e Cultura e no Conselho Regional dos Músicos sob cuja
jurisdição estiver compreendido o local de sua atividade.
Art. 17 - Aos profissionais registrados de acordo com esta lei, serão
entregues as carteiras profissionais que os habilitarão ao exercício
da profissão de músico em todo o país.
Art. 18 - Todo aquele que, mediante anúncios, cartazes, placas,
cartões comerciais ou quaisquer outros meios de propaganda se
propuser ao exercício da profissão de músico, em qualquer de seus
gêneros e especialidades, fica sujeito às penalidades aplicáveis ao
exercício ilegal da profissão, se não tiver devidamente registrado.
O art. 28, do mencionado diploma, ao reconhecer a condição
de músico somente àqueles que cursaram escolas específicas, inclusive de nível
superior, bem assim aos que se submeteram a exames de aprovação, que já
tenham experiência internacional, ou que, em 1960, estivessem na atividade
profissional, também limita a expressão artística musical como profissão, nesses
termos:
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Art. 28 - É livre o exercício da profissão de músico, em todo o
território nacional, observados os requisitos da capacidade técnica e
demais condições estipuladas em lei:
a) aos diplomados pela Escola Nacional de Música da Universidade
do Brasil ou por estabelecimentos equiparados ou reconhecidos;
b) aos diplomados pelo Conservatório Nacional de Canto Orfeônico;
c) aos diplomados por conservatórios, escolas ou institutos
estrangeiros de ensino superior de música, legalmente
reconhecidos, desde que tenham revalidados os seus diplomas no
país na forma da lei;
d) aos professores catedráticos e aos maestros de renome
internacional que dirijam ou tenham dirigido orquestras ou coros
oficiais;
e) aos alunos dos dois últimos anos dos cursos de composição,
regência ou de qualquer instrumento da Escola Nacional de Música
ou estabelecimentos equiparados ou reconhecidos;
f) aos músicos de qualquer gênero ou especialidade que estejam em
atividade profissional devidamente comprovada, na data da
publicação da presente lei;
g) aos músicos que forem aprovados em exame prestado perante
banca examinadora, constituída de três especialistas, no mínimo,
indicados pela Ordem e pelos sindicatos de músicos do local e
nomeados pela autoridade competente do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio.
§ 1º - Aos músicos a que se referem as alíneas "f" e "g" deste artigo
será concedido certificado que os habilite ao exercício da profissão.
§ 2º - Os músicos estrangeiros ficam dispensados das exigências
deste artigo, desde que sua permanência no território nacional não
ultrapasse o período de 90 (noventa) dias e sejam:
a) compositores de música erudita ou popular;
b) regentes de orquestra sinfônica, ópera, bailado ou coro, de
comprovada competência;
c) integrantes de conjuntos orquestrais, operísticos, folclóricos,
populares ou típicos;
d) pianistas, violinistas, violoncelistas, cantores ou instrumentistas
virtuoses de outra especialidade, a critério do órgão instituído pelo
Art. 27 desta lei.
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Ocorre que a segunda Ré, OMB/BA, com base na Lei
3.857/60, e orientações firmadas pela OMB/Conselho Federal, primeira Ré, vem
condicionando o exercício da profissão de músico ao pagamento de tributos.
São exigidas pela autarquia baiana, além de taxas de
inscrição (Cf, nesse sentido, cópia disponibilizada pela segunda Ré, de sentença
mandamental, prolatada pelo Juízo da 10 ª vara Federal da Seção da Bahia, o qual
decidiu sobre a ilegalidade da exigência de inscrição na OMB/BA, para o exercício
da atividade de músico, DOC. II), o pagamento de anuidade pelos profissionais,
sendo este valor de R$ 96,30 (noventa e seis reais e trinta centavos), segundo
declarações do Presidente do órgão baiano (DOC. III).
No entanto, como será demonstrado, essas limitações
impostas ao exercício profissional dos músicos não se coadunam com o
ordenamento constitucional vigente, que consagra como direito fundamental, em
seus arts. 5º, XIII, e 215, respectivamente, a liberdade de exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão e a de expressão artística.
Noutro passo, observa-se que a OMB/BA vem promovendo
eleições a cada três anos, conforme declarações do Presidente da segunda Ré
(DOC. IV), em flagrante descumprimento às disposições contidas no art. 12, § 2º, da
Lei 3.857/60, que determina a realização anual de eleições para renovação de 1/3
dos seus membros, ad litteris:
Art. 12 – Os membros dos Conselhos Regionais dos Músicos serão
eleitos em escrutínio secreto, em assembléia dos inscritos de cada
região que estejam em pleno gozo de seus direitos.
[...]
§ 2º - O mandato dos membros dos Conselhos Regionais será
honorífico, privativo de brasileiro nato ou naturalizado e durará 3
(três) anos, renovando-se o terço anualmente, a partir do 4º ano da
primeira gestão. (grifos nossos).
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A OMB/BA engendrou, ainda, outra irregularidade referente ao
seu procedimento eleitoral. A segunda Ré antecipou, por duas vezes, nos anos de
2002 e 2005, as eleições para o mês de julho, não observando, portanto, os ditames
do art. 1º, § único, do próprio Código Eleitoral da Ordem dos Músicos do Brasil,
Resolução OMB/Conselho Federal nº 1.291/90, o qual aduz que o procedimento
eleitoral deve se realizar no mês de novembro (DOC. I):
Art. 1º - Os membros efetivos e suplentes dos Conselhos Regionais,
o Delegado Eleitor e respectivo suplente serão eleitos por escrutínio
secreto, em Assembléia dos músicos inscritos em cada região e por
maioria dos votos, observado o disposto nos artigos 11 e 12 da Lei
3.857, de 22 de dezembro de 1960 e na presente Resolução.
Parágrafo Único - A Assembléia que trata este artigo será realizada
no decorrer do mês de novembro de cada exercício e a posse e
investidura dos eleitos dar-se-á na primeira reunião ordinária, de
cada ano, dos respectivos Conselhos. (grifos nossos).
As irregularidades eleitorais promovidas pela segunda Ré e a
falta de transparência com que tem sido administrada a OMB/BA, motivo, inclusive,
de moção de repúdio subscrita por inúmeros músicos (DOC. V), concorrem para a
perpetuação dos seus dirigentes no poder, a exemplo de Emídio José dos Santos,
que permanece há vinte anos na presidência da autarquia baiana (DOC. VI).
II. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
Como é cediço, o § 8º, do art. 58, da Lei 9.649/98, o qual foi
declarado inconstitucional juntamente com os §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e caput do
mesmo artigo, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717-DF, previa
a competência da Justiça Federal para a apreciação das controvérsias que
envolvessem os Conselhos de Fiscalização, que, segundo o caput do art. 58,
detinham personalidade jurídica de direito privado, no exercício delegado do Poder
Público.
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Com a declaração de inconstitucionalidade dos mencionados
dispositivos, ficou patente que o art. 2º da Lei 3.857/60 está em consonância com o
texto da Carta Magna, o que, novamente, atrai a competência da Justiça Federal
para o exame e julgamento das questões em que os Conselhos estejam envolvidos,
por força do art. 109, inciso I, da Constituição Federal.
Esse é o entendimento sufragado pelo Superior Tribunal de
Justiça, verbis:
RECURSO
ESPECIAL.
CONSELHO
REGIONAL
DE
CONTABILIDADE. NATUREZA JURÍDICA. AUTARQUIA FEDERAL.
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. RESOLUÇÃO DO
CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE. APROVAÇÃO EM
EXAME DE SUFICIÊNCIA PROFISSIONAL PARA REGISTRO NOS
CONSELHOS REGIONAIS DE CONTABILIDADE. EXIGÊNCIA NÃO
PREVISTA EM LEI. NÃO CABIMENTO.
O Superior Tribunal de Justiça entende que os Conselhos
Regionais de fiscalização do exercício profissional têm natureza
jurídica de autarquia federal e, como tal, atraem a competência
da Justiça Federal nos feitos de que participem (CF/88, Art. 109,
IV). (AGREsp n. 314.237/DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros,
DJ de 09.06.2003).
(...)
Recurso especial não conhecido. (STJ, 2a Turma, RESP 503918MT, Proc. 200201688412, Rel. Min. Franciulli Netto, j. 24/6/2003,
v.u., DJU 8/9/2003, p. 311). (grifos nossos).
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE
SEGURANÇA. CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE.
AUTARQUIA FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL.
DECADÊNCIA. TERMO A QUO. LESÃO AO DIREITO.
IMPETRANTE.
OMISSÃO.
JULGADO
A
QUO.
IMPOSSIBILIDADE
DE
AVERIGUAÇÃO. NÃO-INDICAÇÃO DE OFENSA AO ART. 535 DO
CPC. RAZÕES RECURSO ESPECIAL.
I - Por se tratarem os conselhos de fiscalização de profissão de
autarquias federais, a competência para o processamento e
julgamento da presente lide é da Justiça Federal, com esteio no art.
109, I, da CF.
II – (...)
III – (...)
(Agrg no Resp 479025/DF, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira
Turma, julgado em 04.09.2003, DJ 20.10.2003 p. 189).
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Desta feita, é a Justiça Federal competente para processar e
julgar a presente Ação Civil Pública.
III. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
O primeiro objetivo da presente Ação Civil Pública é garantir à
coletividade composta pelos músicos que atuam, ou que vierem eventualmente a
atuar, no Estado da Bahia, o direito ao livre exercício profissional e à expressão
artística, que têm sido cerceado em decorrência das limitações impostas pela Lei nº
3.857/60, em seus arts. 16, 17, 18 e 28, os quais conferem, indevidamente, à OMB/
BA poder de polícia e de tributação.
O segundo objetivo é a anulação das eleições da OMB/BA,
ocorridas neste Estado, em 12/07/2005, tendo em vista a sua realização fora dos
moldes determinados pelo art. 12, § 2º, da Lei 3.857/60 e ao arrepio do art. 1º, §
único, da Resolução nº 1.291/90, que determina que as eleições ocorram, sempre,
no mês de novembro de cada ano.
Cuida-se, pois, da tutela de interesse transindividual de
natureza indivisível, de que é titular uma classe de pessoas, no caso, os músicos,
ligados por uma mesma relação jurídica base: restrição ao livre exercício
profissional e à expressão artística e promoção de eleições irregulares pela
OMB/BA, autarquia representativa da classe.
José Marcelo Menezes Vigliar entende que a principal
característica dos interesses coletivos é a indivisibilidade, pois todos os membros do
grupo merecem idêntico tratamento, uma vez que “não se conceberia mesmo um
tratamento diversificado entre membros de uma mesma categoria, principalmente
quanto àquilo que constituísse a essência da categoria”.1
1
VIGLIAR , José Marcelo Menezes, Ação Civil Pública, 3. ed. , São Paulo: Atlas, 1999, p. 52/53.
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
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A indivisibilidade do interesse significa, portanto, que uma
vez garantido o direito de um indivíduo pertencente a determinado grupo, no qual
impera o interesse coletivo, os outros membros, por estarem sob a mesma relação
jurídica base, devem receber um tratamento unificado.
Tratam-se, portanto, in casu, de interesses coletivos, estando o
Ministério Público Federal autorizado a propor Ação Civil Pública em sua defesa,
seja por expressa previsão constitucional, arts. 127, caput e art. 129, II, seja pelas
diversas normas infra-legais, a exemplo dos arts. 1º, IV, art. 5º da Lei 7.347/85 c/c
art. 81, § único, I, II e art. 82, I, do CDC.
IV. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DA OMB/CONSELHO FEDERAL E OMB/BA
Conforme já explicitado, as Rés foram criadas pela Lei
3.857/60 e possuem natureza jurídica de autarquias corporativas federais.
Tendo em vista que a presente ação tem por objeto a
cessação de atos ilegais praticados pela OMB/BA, decorrentes dos arts. 16, 17, 18 e
28 da Lei 3.857/60, e de determinações da OMB/Conselho Federal (Doc. I), e a
anulabilidade da eleição da autarquia baiana ocorrida em 12/07/2005, a qual foi
homologada pelo Conselho Federal, exsurge a legitimidade passiva das Rés, como
entidades responsáveis pela cobrança indevida de tributos e pelas irregularidades
ocorridas em referido procedimento eleitoral.
V. DO DIREITO
1. Do livre exercício da profissão e da liberdade de expressão da atividade
artística
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MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
O art. 16 da Lei 3.857/60, vincula a inscrição do músico no
Conselho Regional ao exercício da profissão, cuja habilitação, segundo o art. 17 do
mesmo diploma, se dá com a carteira profissional, verbis (DOC. I):
Art. 16 - Os músicos só poderão exercer a profissão depois de
regularmente registrados no órgão competente do Ministério da
Educação e Cultura e no Conselho Regional dos Músicos sob cuja
jurisdição estiver compreendido o local de sua atividade.
Art. 17 - Aos profissionais registrados de acordo com esta lei, serão
entregues as carteiras profissionais que os habilitarão ao exercício
da profissão de músico em todo o país.
No mesmo passo, o art. 18, da Lei em referência, indo um
pouco mais além, prevê sujeição à penalidades para aqueles que exercerem a
profissão sem o devido registro na autarquia, ad litteris:
Art. 18 - Todo aquele que, mediante anúncios, cartazes, placas,
cartões comerciais ou quaisquer outros meios de propaganda se
propuser ao exercício da profissão de músico, em qualquer de seus
gêneros e especialidades, fica sujeito às penalidades aplicáveis ao
exercício ilegal da profissão, se não tiver devidamente registrado.
Já o art. 28, como antes dito, busca limitar a expressão e o
exercício musical de várias formas.
Partindo-se de uma interpretação literal do art. 5º, XIII da
Constituição Federal, o qual estabelece que é livre o exercício de qualquer trabalho,
emprego ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer,
poder-se-ia imaginar que os arts. 16, 17, 18 e 28, da Lei 3.857/60, integram o
sistema das normas jurídicas em total conformidade com a Constituição.
Os
artigos
antes
mencionados,
entretanto,
não
foram
recepcionados pela Constituição Federal de 1988.
Conquanto o art. 5º, XIII, da Carta Magna, estabelecer que o
livre exercício de trabalho, profissão ou emprego pode ser restringido por
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
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qualificações profissionais estabelecidas em lei, não se pode afirmar que o
legislador tem ampla e total liberdade para definir quais profissões são passíveis de
limitação, sob pena de chegarmos à situação de se exigir, para o exercício de toda e
qualquer profissão, o atendimento de exigências as mais desarrazoadas
possíveis.
O legislador infraconstitucional, portanto, ao dispor sobre as
limitações das normas constitucionais de eficácia contida, deve se pautar,
sobretudo, nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade das normas
jurídicas, permitindo a análise da congruência do mérito dos atos normativos com a
pauta de valores consagrados na Constituição Federal. É o que defende, o Ministro
do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes, verbis:
A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando
de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar
não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição
eventualmente
fixada (reserva legal), mas também sobre a
compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da
proporcionalidade essa nova orientação, que permitiu converter o
princípio da reserva legal no princípio da reserva legal proporcional,
pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins
perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses
meios para a consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade
de sua utilização. Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou
razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre
o significado da intervenção para o atingido e os objetivos
perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em
sentido estrito). 2
O princípio da razoabilidade não é mera construção dos
adeptos do direito natural, uma vez que a doutrina e a jurisprudência identificam a
sua existência implícita na cláusula do devido processo legal substantivo.
O Supremo Tribunal Federal, em várias oportunidades, admitiu
a tese do desvio de poder legislativo ou a falta de razoabilidade como causa de
A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Repertório IOB de Jurisprudência n.
23/94, p. 475.
2
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
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inconstitucionalidade material, como em decisão proferida ao apreciar pedido liminar
na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 8852-2, in verbis:
Gás liqüefeito de petróleo: lei estadual que determina a pesagem de
botijões entregues ou recebidos para substituição à vista do
consumidor, com pagamento imediato da eventual diferença a
menor; argüição de inconstitucionalidade fundada nos arts. 22, IV e
V, energia e metrologia), 24 e parágrafos, 25, parágrafo 2º, e 238,
além de violação do princípio da proporcionalidade e razoabilidade
das leis restritivas de direitos: suspensão cautelar da lei impugnada,
a fim de evitar danos irreparáveis à economia do setor, no caso de
vir a declarar-se a inconstitucionalidade. Liminar deferida. (DJU de 1º
de outubro de 1993).
A aplicação do princípio do devido processo legal substantivo
demonstra, pois, que o Poder Legislativo não pode, sem razoabilidade, por meio de
edição de leis ordinárias, manipular o cerne do direito fundamental assegurado na
Constituição Federal, ainda que tal norma seja de eficácia contida.
E quais seriam as limitações cabíveis à liberdade de profissão
por intermédio de lei ordinária? Entende-se que somente aquelas indispensáveis à
garantia do interesse social e do interesse público.
De fato, não há direitos absolutos, devendo até mesmo os
direitos fundamentais individuais ceder diante de interesse social de maior
relevância.
Assim, poderá a lei restringir o exercício de profissão, desde
que se vislumbre a existência de um interesse público primário.
Entretanto não se observa, in casu, qual o dano individual ou
coletivo que o exercício da profissão de músico, ante a falta de inscrição na
OMB/BA ou o recolhimento de tributos respectivos em favor da segunda Ré, possa
causar à coletividade.
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13
Há de se considerar, ainda, que outros direitos fundamentais
estão sendo violados pela limitação imposta pelas Rés à atuação profissional dos
músicos. Trata-se do direito à liberdade de expressão da atividade artística,
consagrado no inciso IX do art. 5º da Carta Republicana:
Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e a propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XIII - é livre a expressão artística da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença.
Ao permitir a atividade profissional de músico apenas àqueles
inscritos na OMB e com as taxas e anuidades quitadas, o diploma legal
referenciado, impede a plena liberdade de expressão artística, assegurada na
Constituição.
A produção artística e cultural não se compatibiliza com essa
forma de controle, fiscalização e regulamentação, eis que a criação musical e a sua
interpretação dependem da liberdade e da criatividade.
Deve ser ressaltado, que não raro se verifica o surgimento de
grandes talentos musicais sem nenhum conhecimento teórico ou formação
acadêmica.
Isso não significa que a liberdade e a criatividade não devem
ser passíveis de controle, mesmo porque, há dispositivos legais, a exemplo do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que atendem a essa
finalidade.
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
14
A legitimidade para o exercício do controle sobre a
expressão artística e punição de eventuais infratores não pertence às Rés,
mas sim ao Poder Público! A quem cabe, por exemplo, a punição dos músicos que
utilizam as letras das suas músicas para fazerem apologia às drogas? Com toda
certeza não cabe aos Conselhos de Música.
Outrossim, não se tem notícia de que a Ordem dos Músicos
tenha instaurado, alguma vez, procedimento administrativo para punir qualquer
profissional por ter, v.g., produzido música de má qualidade. A punição do músico,
ao revés, será proveniente, nesse exemplo, do próprio público, que deixará de
prestigiar os espetáculos do artista e não irá adquirir as suas obras. Faz-se mister
ressaltar que, mesmo que a música não seja considerada de qualidade, sempre
haverá aquele que a aprecia, sendo ilícito, portanto, restringir e impedir sua
reprodução.
O art. 215 da Constituição Federal consagra a liberdade da
expressão artística musical ao aduzir que o Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
À luz da Carta Magna, portanto, o Estado não está apenas
impedido de impor limitações à expressão artística (limite negativo), como deve
estimular essa manifestação (prestação positiva).
Esse foi o entendimento sufragado pelo juízo da 3ª Vara
Federal da Seção Judiciária do Acre, por meio de sentença proferida em Ação
Civil Pública (Proc. nº 2001.30.00.586-5), interposta pelo MPF/PR/AC contra a
Ordem dos Músicos de referido Estado, ad litteris:
[...] ocorre que o legislador não está livre para disciplinar todas as
profissões. Toda lei é ditada em resguardo do interesse público e
esse é o fundamento legitimador de todo ato legislativo, pois toda
restrição estatal implica redução do âmbito de liberdade do indivíduo,
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
15
daquilo que ele pode fazer ou não fazer sem autorização do Estado.
Somente se admite limitação à liberdade das pessoas mediante um
juízo de razoabilidade que demonstre que aquela limitação
protegerá, de algum modo e em alguma medida, o interesse público,
a comunidade.
Assim, o exercício de qualquer profissão somente deve submeter-se
a qualificações verificáveis mediante critérios objetivos (capazes
de apontar a suficiência ou a insuficiência de quem pretende exercêla) e necessárias, que efetivamente protejam a sociedade de danos
que possam ser causados por pessoa não qualificada (o edifício que
desmorona, a cirurgia que mata, o remédio que intoxica, o causídico
que perde o prazo e permite a privação da liberdade de alguém etc),
uma vez que o constituinte originário não autorizou o legislador
ordinário a estabelecer requisitos impertinentes ou desarrazoados,
pois que não lhe entregou um cheque em branco, mas um título para
ser usado em benefício da sociedade.
Enfatize-se que há incontroverso interesse público na
regulamentação e fiscalização das profissões de médico,
engenheiro, arquiteto, enfermeiro, químicos, advogados etc, pois são
profissões que lidam diretamente com a saúde das pessoas, com a
segurança das ruas, casas e edifícios, com a alimentação, a
liberdade, impondo-se que somente profissionais habilitados
minimamente a exerçam.
A música consiste em expressão pura do talento que, apesar de
poder ser aprimorado em estabelecimentos oficiais, jamais, em
tempo algum, somente se verificou em pessoas deles egressos.
Nem mesmo é privilégio da humanidade, pois do uirapuru à
jubarte, da jaçanã ao bem-te-vi, todos cantam.
É interessante que aceitar o rigor da lei seria impedir que
ouvíssemos por reprodução ou ao vivo, Dilermando Reis, Poly,
Carlota, Pinxinguinha, Milton Nascimento, dentre outros virtuosos da
música brasileira. A música é o índice da liberdade, expressão do
povo, de sua alegria, espontaneidade e cultura: é manifestação de
vida presente na modesta serenata, nos bares, boates, lupanares,
retretas, corais, nos chorinhos, onde se canta e se toca a vida, sua
tristeza e alegria, as vitórias e as derrotas, ora lembrando uma
paixão arrebatadora, ora convidando de modo irrecusável à defesa
da pátria como os franceses e sua Merselhesa.
A música e os músicos não precisam de autorização do Estado para
se expressar: devem fazê-lo livremente, nas praças, nos bares, nas
festas, nos bailes, como só um povo alegre é capaz.
Os critérios fixados pela Lei 3857/60, por serem objetivos , são
desnecessários, porquanto clara e indiscutivelmente a música não
ofende, nem nunca ofendeu à vida, à saúde, à segurança, à
liberdade etc. , não havendo interesse público a ser protegido.
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
16
[...]
Em síntese, a música é um Dom cujo exercício a ordem
constitucional não limitou. (grifos nossos).
Nessa esteira, o juízo da 1ª Vara Federal de Florianópolis da
Seção Judiciária de Santa Catarina, em data recente (11/11/2005), proferiu
sentença em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a
União e os Conselhos Federal e Regional da OMB, pleiteando a suspensão da
exigibilidade de inscrição dos profissionais de Música, bem como da cobrança de
tributos para o regular exercício da profissão (Proc. nº 2005.72.00.003846-9).
Nesse último caso, entendeu o Magistrado a quo que a
Constituição Federal não recepcionou os artigos da Lei 3.857/60, que versam sobre
o registro obrigatório, uma vez que está assegurado a todos a liberdade artística
independente de censura ou licença. Segundo o que foi decidido, tal exigência não
se justifica quando a atividade não é capaz de causar danos em função da
imprudência, negligência ou imperícia ou falta de ética dos profissionais, e, por isso,
foi determinado à OMB local suspender todas as penalidades de advertência,
censura ou multa por falta de registro profissional ou de pagamento de anuidade no
Conselho catarinense.
Nesse diapasão, o controle, pela OMB/Conselho Federal e
OMB/BA, do exercício da profissão de músico, se configura como verdadeira
intromissão na produção artística e limitação ao direito à cultura, institutos tão
festejados pelo art. 215 do texto constitucional.
Infere-se, por fim, que a regulamentação da profissão de
músico, nos moldes do previsto nos arts. 16, 17, 18 e 28 da Lei nº 3.857/60, não foi
recepcionada pela Constituição Federal de 1988, uma vez que implicaria em
indevido cerceamento ao direito de exercício profissional, bem como restrição à
plena liberdade de expressão artística, além de limitar o acesso à cultura, devendo,
portanto, ser declarada inconstitucional.
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
17
O próprio Supremo Tribunal Federal caminha nesse sentido,
ao considerar que a exigência de inscrição na OMB e a que obriga o afiliado estar
em dia com o pagamento da anuidade para o livre exercício da profissão são
inconstitucionais, sendo despropositada a exigência de comprovação de pagamento
da anuidade, em afronta ao art. 5º, IX, da CF, ad litteris:
A Turma iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto
contra acórdão do TRF da 4ª Região que, com base no art. 5º,
incisos IX e XIII, da CF, entendera que a atividade de músico não
depende de registro ou licença e que a sua livre expressão não
pode ser impedida por interesses do órgão de classe, haja vista
que este dispõe de meios próprios para executar anuidades
devidas, sem vincular sua cobrança à proibição do exercício da
profissão. A recorrente, Ordem dos Músicos do Brasil/OMB Conselho Regional de Santa Catarina, sustenta, na espécie, a
inadequação do mandamus contra lei em tese e a afronta aos arts.
5º, IX, XIII, e 170, parágrafo único, ambos da CF, sob a alegação
de que o livre exercício de qualquer profissão ou trabalho está
condicionado pelas referidas normas constitucionais às
qualificações específicas de cada profissão e que, no caso dos
músicos, a Lei 3.857/60 estabelece essas restrições. Aduz, ainda,
que possui poder de polícia. A Min. Ellen Gracie, relatora, negou
provimento ao recurso, no que foi acompanhada pelo Min. Joaquim
Barbosa. Inicialmente, considerou adequada a via do mandado de
segurança, porquanto os recorridos insurgem-se contra ato
concreto de fiscalização emanado da OMB, e que afronta ao art.
170 da CF não fora prequestionada (Súmulas 282 e 356 do STF).
No tocante à alegada ofensa aos incisos IX e XIII do art. 5º da CF,
asseverando que a liberdade do exercício de profissão neles
assegurada pode sofrer limitações com vistas ao interesse público,
entendera que as exigências de inscrição na OMB e de o
afiliado estar em dia com o pagamento de anuidade ferem o
livre exercício da profissão. Afirmou que, na hipótese da música,
a livre expressão artística é de sua essência e, por conseguinte, a
obrigatoriedade de inscrição na OMB para que os profissionais da
música se apresentem profissionalmente equivale à exigência de
licença expressamente proibida pelo art. 5º, IX, da CF. Ademais,
salientou que a exigência de comprovação de pagamento de
anuidade é despropositada, visto que, conforme acentuara o
acórdão impugnado, a recorrente possui outros meios legais para
efetuar a cobrança. Após, o julgamento foi adiado em virtude do
pedido de vista do Min. Gilmar Mendes. (RE 414426/SC, rel. Min.
Ellen Gracie, 18.10.2005 - Cf. Informativo 406/STF). (grifos
nossos).
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
18
2. Dos Princípios da Administração Pública
2.1 Do Princípio da Legalidade e do Princípio da Transparência
O art. 12, § 2º, da Lei 3.857/60, determina a realização anual
de eleições para a mudança de 1/3 dos membros dos Conselhos Regionais de
Música, vejamos:
Art. 12 – Os membros dos Conselhos Regionais dos Músicos serão
eleitos em escrutínio secreto, em assembléia dos inscritos de cada
região que estejam em pleno gozo de seus direitos.
[...]
§ 2º - O mandato dos membros dos Conselhos Regionais será
honorífico, privativo de brasileiro nato ou naturalizado e durará 3
(três) anos, renovando-se o terço anualmente, a partir do 4º ano
da primeira gestão. (grifos nossos).
Ao revés da determinação legal retroassinalada, a OMB/BA
tem promovido eleições no interstício de 3 anos, conforme declarações do próprio
Presidente da autarquia baiana (DOC. VI).
O princípio da legalidade, radicado nos arts. 5º, II e 37, caput,
da Constituição Federal, e assentado na própria estrutura do Estado de Direito,
impõe à Administração Pública a total observância da lei, independente do ato
praticado.
Observemos os artigos acima mencionados:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
19
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude da lei.
[...]
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência [...]
Conclui-se, após a leitura do texto constitucional, que a
Administração Pública, na qual se incluem as autarquias, não está livre para fazer
ou deixar de fazer algo de acordo com a vontade pessoal do seu dirigente, mas sim,
que deve se circunscrever aos mandamentos legais para a prática de qualquer ato.
Faz-se mister trazer à baila os ensinamentos de Celso Antônio
Bandeira de Melo sobre o assunto:
[...] o princípio da legalidade é o da completa submissão da
Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumprilas, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes,
desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República,
até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis,
serventes obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas
pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no
Direito brasileiro. 3
Diante do exposto, percebe-se que a OMB/BA, como
integrante da Administração Pública, ao promover eleições a cada três anos, com as
duas últimas eleições realizadas nos anos de 2002 e 2005, infringe de forma cabal
os dizeres do art. 12 da Lei 3.857/60, em desrespeito, por conseguinte, ao princípio
da legalidade.
A promoção de eleições trienais não decorre de mera
displicência dos membros da OMB/BA, mas tem como finalidade a
perpetuação dos seus dirigentes no poder, o que de fato tem surtido
Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 14. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p.
84.
3
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
20
resultado, uma vez que o Presidente da autarquia tem se mantido no cargo há
20 anos ininterruptos, como ele próprio reconhece (DOC. IV).
Além de macular o princípio da legalidade, Emídio José dos
Santos, Presidente da OMB/BA, tem utilizado outro artifício para a sua manutenção
no poder: a não observância do princípio da transparência.
Carlos Ari Sundfeld ressalta a importância do princípio da
transparência para a Administração Pública:
[...] a Administração jamais maneja interesses, poderes ou direitos
pessoais seus, surge o dever da absoluta transparência. É óbvio,
então, que o povo, titular do poder, tem direito de conhecer tudo o
que concerne à Administração, de controlar passo a passo o
exercício do poder [...] 4
Observe-se que no transcorrer de todas as investigações
conduzidas pelo autor, as quais deram ensejo a presente actio, buscando verificar a
legalidade dos atos praticados pela OMB/BA, não se conseguiu extrair da segunda
Ré, respostas claras, objetivas, capazes de afastar a pecha de ilegalidade com
relação ao procedimento eleitoral adotado, desde o seu início até a verificação dos
vencedores (Cf. Docs. II, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI, XIII, XIV).
Nesse sentido, a intransparência do processo eleitoral
promovido pela OMB/BA fica evidente, por exemplo, quando a segunda Ré informa
que não possuía número exato dos inscritos aptos a votar (DOC. VII), declaração que
foi modificada posteriormente, ao informar que o número de músicos com direito a
voto nas eleições era de 206 (DOC. VIII).
E mais. Requisitada a prestar esclarecimentos sobre o motivo
pelo qual as eleições do ano de 2002 ocorreram somente no mês de julho, ao
arrepio da Lei 3.857/60 (que dispõe que as eleições devem ocorrer no mês de
SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da publicidade administrativa. Direito de certidão, vista e intimação.
Revista de Direito Público. 82, p. 54.
4
21
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
novembro), e o motivo pelo qual foram definidas eleições subsequentes para o ano
de 2007 (uma vez que o mandato dos Conselheiros é de três anos), a segunda Ré
restringiu-se a apresentar documentos do arquivo da autarquia, referentes à última
eleição ocorrida, a qual contou, apenas, vale ressaltar, com chapa única (DOC. IX).
Nada obstante, instada novamente a se manifestar a respeito
da mudança da data das eleições de 2002, a segunda Ré apresentou como
fundamento para a referida antecipação do procedimento eleitoral, a prolação de
decisum no bojo de ADIN, a qual, segundo afirmou, reconheceu os Conselhos
Profissionais como autarquias federais, passando estes, então, a possuir natureza
jurídica de direito público. Justificativa, portanto, totalmente desconexa com a
mudança da data eleitoral em comento (DOC. XII).
Por meio ainda do mesmo documento (DOC. XII), a autarquia
baiana reconheceu que não houvera eleições desde do ano de 2002 e retificou a
declaração prestada anteriormente, em que afirmara que as próximas eleições para
o Conselho Regional ocorreriam em 2007 (DOC. II), para, agora, aduzir que essas
seriam realizadas em novembro de 2005 (!?). Vale observar que a mudança
(antecipação) da data das eleições ocorreu, não por coincidência, após o MPF
inquirir, novamente, a primeira Ré sobre o assunto (vide data do DOC. VII e DOC. IX).
Posteriormente, verificou-se que as eleições de novembro de
2005, destinadas a renovação de 1/3 dos membros do Conselho, foram antecipadas
para o mês de julho do mesmo ano, objeto de moção de repúdio subscrita por
inúmeros músicos, dentre eles Horst Karl Schwebel, diretor da Escola de Música da
UFBA, Salomão Rabinovtz, diretor da orquestra sinfônica da Bahia, Fred Dantas,
maestro, músico e etnomusicólogo (DOC. V), etc.
Enfim,
Excelência,
tudo
completamente
contrário aos mandamentos legais que regem a matéria.
irregular
e
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
22
Assim, conforme demonstrado, o processo eleitoral da
OMB/BA está desprovido de um mínimo transparência, não conseguindo o
Presidente do Conselho baiano esclarecer, em momento algum, como se dá o
procedimento de forma precisa. Vejamos alguns trechos das informações, confusas
e inexatas, prestadas pelo representante da segunda Ré durante as investigações
procedidas pelo Parquet Federal (Doc. VI):
[...] 1º é montada a chapa com os requerentes; 2º é montada a
chapa dos candidatos; as publicações que já é do vosso
conhecimento, ou seja: publicação para prestação de contas,
publicação para registro de chapas, com prazo determinado para
inscrições [...] (sic)
À vista de todas as irregularidades, faz-se necessário, por
conseguinte, a anulação das eleições ocorridas em 12 de julho de 2005 e a
promoção de novas eleições para a composição dos membros da OMB/BA.
2.2. Do Princípio da Impessoalidade
À luz do método teleológico de interpretação, infere-se que a
finalidade do art. 12, § 2º, da Lei 3.857/60 é exatamente permitir a renovação
constante dos membros dos Conselhos Regionais da OMB. É este o fim público que
se pretende alcançar, daí a previsão de realização anual de eleições.
O princípio da impessoalidade, também alçado a princípio
constitucional pelo caput do art. 37 da CF, impõe ao administrador público a
realização de atos objetivando, exclusivamente, à finalidade pública prevista em lei,
ficando esse proibido de buscar quaisquer outros objetivos ou de agir visando
interesses próprios ou de terceiros. O fim legal é unicamente aquele que a norma de
direito indica, expressa ou implicitamente, como objetivo do ato.
Assim, fica evidenciado que a realização de procedimento
eleitoral apenas no interstício de três em três anos, e sem a devida transparência,
veicula interesse exclusivamente privado, para a perpetuação dos dirigentes da
23
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
OMB/BA na direção da respectiva autarquia. O Presidente, bem como os
conselheiros eleitos, objetivam com tal conduta o alcance de fins eminentemente
pessoais, em detrimento da finalidade pública, o que, por sua vez, viola o princípio
da impessoalidade, um dos principais vetores da atividade administrativa.
Conclui-se, portanto, que o descumprimento deliberado da
previsão contida no art. 12, § 2º, da Lei 3.857/60, acaba por violar tanto o princípio
da legalidade, como o princípio da transparência, sobretudo porque resta claro que
os dirigentes do referido Conselho objetivam fins eminentemente pessoais, em
desrespeito, também, ao princípio da impessoalidade, no qual se deve pautar
qualquer administrador público.
VI. DA NECESSIDADE DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA
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o
autor,
primordialmente,
obter
um
provimento
jurisdicional consistente numa verdadeira obrigação de não fazer, devendo os réus
se absterem de praticar quaisquer atividades ligadas a cobrança de taxas de
anuidade e de registro dos profissionais de Música.
Pleiteia-se, também, que seja declarada a nulidade das
eleições, ocorridas em 12/07/2005, para a composição de 1/3 dos membros da
OMB/BA, bem como que seja determinado novo procedimento eleitoral para todos
os cargos eletivos existentes na OMB/BA.
Nesse sentido, é de extrema oportunidade, para reger os
deslindes das questões de ordem processual e de mérito do presente feito, a
lembrança das palavras de Cândido Rangel Dinamarco, ao enunciar a importância
do princípio da instrumentalidade para a condução do processo:
Em inúmeras e imprevisíveis situações, coloca-se para o intérprete o
dilema entre duas soluções, uma mais acanhada e limitativa da
utilidade do processo e outra capaz de favorecer a sua efetividade. O
que se propõe, portanto é um novo “método de pensamento” a ser
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
24
perenemente aplicado na interpretação dos textos, dos casos
particulares e do sistema processual em si mesmo. 5
O fundamento legal para a concessão de tutela antecipada na
ação civil pública está previsto no art. 12 da Lei nº 7.347/85 c/c os arts. 83 e 84, § 3º
do Código de Defesa do Consumidor e art. 273 do Código de Processo Civil
(aplicáveis à ação civil pública por força do que dispõe o art. 21 da Lei 7.347/85).
À luz dos ensinamentos de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria
de Andrade depreende-se que a tutela antecipatória é plenamente cabível na
situação em tela:
Caso a hipótese concreta enseje a concessão de tutela que antecipe
a providência de mérito, como forma de propiciar a adequada e
efetiva tutela do consumidor, deve ser concedida pelo juiz com base
na autorização legal da norma comentada. Para tanto devem
concorrer cumulativamente, os dois requisitos previstos no CDC 84
§3º [...]. 6
José Marcelo Menezes Vigliar também enfrenta essa questão,
apresentando posicionamento favorável à possibilidade de tutela antecipada para
resguardar os interesses difusos, coletivos e homogêneos:
[...] nada mais efetivo que a antecipação da tutela que só seria obtida
ao final de um processo longo e demorado, até porque, via de regra,
a tutela dos interesses transindividuais se faz através do denominado
procedimento ordinário. [...] Assim, em sede de ação civil pública,
além dos provimentos cautelares, também a tutela antecipada tem
cabimento. 7
In casu, a relevância do fundamento da demanda (fumus boni
juris) resta evidenciado, tendo em vista todos os argumentos de fato e de direito
expostos ao longo da peça vestibular, que cabalmente demonstram a violação de
direitos coletivos. No caso em tela, a plausibilidade do direito é inconteste, uma vez
que as Rés estão atuando no Estado da Bahia, em arrepio à norma constitucional,
In: A instrumentalidade do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 433.
In: Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. São Paulo: RT.
2001, p. 1889.
7
In: Ação civil pública. São Paulo: Atlas, 1998, p. 60/61 e 64.
5
6
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MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
concernente aos direitos fundamentais consagrados no art. 5º, IX e XIII, e art. 125 e
em arrepio à Resolução nº 1.291/90 (Código Eleitoral dos Músicos do Brasil) e à Lei
3.857/60.
O receio da ineficácia do provimento final (periculum in mora)
consubstancia-se em três fatos. O primeiro deles concerne aos graves e
irreversíveis danos a que estão sujeitos os músicos, os quais têm sofrido restrições
quanto ao livre exercício de sua atividade, na medida em que têm sido compelidos a
custear o pagamento de taxas fixadas e majoradas sem o devido amparo legal. O
segundo deles está relacionado aos sérios e insuperáveis danos que estão sujeitos
os artistas e terceiros (que tenham celebrado acordo com autarquia, sob o comando
da atual administração), uma vez que, estão sob a gestão da OMB/BA, dirigentes
ilegitimamente eleitos, que vêm praticando atos administrativos como se legítimos
fossem. O terceiro está ligado à possibilidade desses dirigentes causarem danos
pelos atos praticados e não poderem responder por eles na qualidade de gestores,
mas, sim, pessoalmente, tendo em vista o exercício ilegítimo de suas funções.
Estão presentes, portanto, os pressupostos autorizadores da
concessão da tutela antecipada, quais sejam a plausibilidade do direito e o perigo
da demora.
Assim sendo, requer o Ministério Público Federal a concessão
da tutela antecipada para:
I)
suspender-se a exigência de observância das regras
insertas no art. 28 da Lei 3.857/60, para o exercício da
profissão de músico, autorizando todo cidadão a exercêla
livremente
no
âmbito
do
Estado
da
Bahia,
independentemente de formação acadêmica, realização
de provas perante o Poder Público ou qualquer outra
exigência;
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
II)
26
suspender-se a obrigação prevista nos arts. 16, 17 e 18
da Lei 3.857/60, concernente à necessidade de
inscrição dos músicos atuantes no Estado da Bahia
perante a OMB/Conselho Federal, ou quaisquer dos
seus Conselhos Regionais, para fins de exercício da
aludida profissão;
III)
determinar-se à segunda Ré, OMB/BA, a imediata
suspensão de quaisquer atos de cobrança relativos a
taxas de anuidade e de registro dos profissionais de
música, sob pena de pagamento de multa diária no valor
de R$ 5.000,00 (cinco mil reais);
IV)
declarar-se a nulidade das eleições para a Presidência e
Conselheiros da OMB/BA, ocorridas neste Estado em
12/07/2005, determinando-se a convocação de novas
eleições para todos os cargos eletivos existentes na
OMB/BA, nos termos da Resolução 1.291/90 (Código
Eleitoral da Ordem dos Músicos do Brasil) e do art. 12
da Lei nº 3.857/60, no prazo não inferior a 60 dias;
V)
determinar-se à segunda Ré, a divulgação, mediante
publicação no D.O.U. e em periódico local, de eventual
decisão prolatada por esse Juízo em tutela antecipada;
VII. DO PEDIDO PRINCIPAL E DOS REQUERIMENTOS FINAIS
Diante de todo exposto, confirmada a antecipação da tutela, requer
o Ministério Público Federal:
27
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
a) a declaração de inexistência de relação jurídica que
autorize a limitação, no Estado da Bahia, do exercício da
profissão de músico apenas aos cidadãos que preencham
os requisitos do art. 28 da Lei nº 3.857/60, bem como a que
obriga o músico a inscrever-se perante a OMB/Conselho
Federal e a OMB/BA para o exercício da profissão;
b) a condenação das Rés na obrigação de não fazer,
consistente em se absterem de praticar quaisquer atos de
cobrança de valores concernentes a anuidades ou taxas de
registro profissional dos profissionais de música, no Estado
da Bahia, sob pena de pagamento de multa diária no valor
de R$ 5.000,00 (cinco mil reais);
c) a declaração de nulidade das eleições, para todos os
cargos eletivos para OMB/BA, ocorridas neste Estado, no
ano de 2005;
d) que seja determinada a convocação de novas eleições para
todos os cargos eletivos existentes na OMB/BA, nos
estritos termos da Resolução 1.291/90 (Código Eleitoral da
Ordem dos Músicos do Brasil) e do art. 12 da Lei nº
3.857/60, no prazo não inferior de 60 dias a partir da
publicação sentença.
Requer, outrossim:
a) a citação das Rés para integrarem a relação jurídica
processual
e
contestarem,
querendo,
fundamentos jurídicos, sob pena de revelia;
os
fatos
e
MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA
28
b) a notificação da União, por intermédio de seu representante
legal, para manifestar eventual interesse em integrar a lide
na qualidade de litisconsorte (artigo 17, § 3º, da Lei nº
8.429/92);
c) a condenação das Rés em custas e honorários, em valor a
ser revertido para a Conta Única do Tesouro Nacional;
d) a produção de todos os meios de prova em direito
admitidos, especialmente, prova documental, pericial e
testemunhal, bem como pelas demais que se mostrem
necessárias.
Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00 (um mil reais).
A. deferimento,
Salvador/BA, 12 de dezembro de 2005.
SIDNEY PESSOA MADRUGA
Procurador da República
Procurador Regional dos Direitos do Cidadão
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Veja a petição inicial. - MPF-BA