TEMPO DE ACELERAR: UM PROJETO PARA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ADEQUADO À LÓGICA DO ESTADO MÍNIMO Aldenice Alves Bezerra Maria da Conceição M. Pereira RESUMO Este texto apresenta o Tempo de Acelerar como um projeto desenvolvido para Educação de Jovens e Adultos no Estado do Amazonas, originado nos moldes das relações de produção do sistema de acumulação flexível do capital, servindo, portanto, à lógica do Estado mínimo. Analisa esse projeto, criado para uma modalidade de ensino originada para compensar aqueles que não obtiveram na idade certa a escolaridade adequada, ao contrário do que se propagou, propiciou a exclusão do estudante jovem ou adulto das escolas públicas e do mercado de trabalho. Palavras-chave: Tempo de Acelerar. Educação de Jovens e Adultos. Estado mínimo. Qualidade Total na educação. Neoliberalismo. RESUMÉ Ce document présent le Temp d’Accélération comme un projet développé pour l’Éducation de Jeunes et des Adultes dans l’État d’Amazonas, originé les manière des relations de production du système d’accumulation du capital, en sevent, par conséquent, la logique de l’État minimum. Examiner ce projet, créé par une modalité d’enseignement originée à indeminiser ceux qui n’ont pas obtenu le droit d’étudier dans l’âge adéquate, contrairement à la difusion, conditionné l’exclusion de jeune étudiant ou adultes des écoles publics et marché du travail. Mots-clé : Projet Temp d’Accélération. Educations de Jeunes et Aldultes. État minimum. Qualité Total dans l’Éducation. Neoliberalisme. 2 INTRODUÇÃO São perceptíveis na história as transformações sofridas pelo Estado para adaptar-se às exigências da economia. Se antes o mercado necessitava de produção em série, o Estado de bem-estar social colaborava para manter o trabalhador passivo e adestrado. Se agora se necessita de trabalhadores ativos, capacitados, porém em número reduzido, e de recursos públicos prontos para socorrer empresas quando o capital privado entra em crise, o Estado se reconfigura em um novo liberalismo (neoliberalismo) e assume uma postura mínima diante das despesas. Tal como o Estado, a escola, por ser um de seus aparelhos ideológicos, também tem servido às orientações neoliberais. Esse processo se manifesta em todas as etapas de ensino e em toda a estrutura e funcionamento da escola. No entanto, é bem mais visível nas etapas e modalidades onde se concentram os indivíduos economicamente ativos ou prontos para entrar em atividade: na educação de jovens e adultos. Com o novo sistema de reestruturação produtiva, também denominado de acumulação flexível do capital, uma onda de conceitos, atitudes, jargões e modismos advindos do mundo empresarial têm invadido a instituição escolar nos últimos anos. Missão, visão, valores, índices de qualidade e segurança são itens constantes no painel escolar vinculados a um novo movimento do mercado que enfatiza o desenvolvimento de certas potencialidades humanas, que servirão de base material e ideológica a essa nova configuração do sistema. As evidências dessas transformações ocorridas no ambiente escolar são observadas tanto em documentos como nas próprias relações de trabalho. O diretor de escola passou a ser chamado de gestor escolar; professor, de educador, assim como de colaborador, juntamente com os demais funcionários e comunitários; e alunos são denominados de clientes. Em documentos e frases de efeitos emitidos por essa instituição não podem faltar expressões como qualidade total, competências ou habilidades. Termos como gestão participativa são recebidos pela comunidade escolar com a perspectiva de que enfim a democracia fará jus a seu nome na educação pública. No entanto, o que se confere na prática é a descentralização da obrigação pública, correspondente à transferência de responsabilidades das Secretarias à administração escolar, sem, contudo, virem acompanhadas de recursos suficientes e necessários. Assim, a professores e diretores atribui-se a missão de gerir seus próprios problemas seja de ordem política ou pedagógica (através dos PPPs1, planos de ação e projetos), ou de ordem financeira (através de PDEs e PDDEs)2. Da mesma maneira que, diante do fenômeno da empregabilidade, atribui-se ao trabalhador a responsabilidade pelo seu desemprego, a escola, diante de uma pseudo-autonomia financeira e administrativa, deve dar conta dos problemas ocorridos em seu interior, mesmo que não se tenham originado nela ou não seja de sua competência. No que diz respeito à educação de jovens e adultos, modalidade em torno da qual as reflexões deste artigo estarão mais diretamente relacionadas, criam-se cursos à distância ou de curta duração, intensivos e supletivos, com metodologias semelhantes às aplicadas em cursos de treinamento de recursos humanos. A materialização mais recente desse processo, no Estado do Amazonas chamou-se Projeto Tempo de Acelerar (PTA)3, desenvolvido no período de 2001 a 2008. 1 PPP - Projetos Políticos Pedagógicos. PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação e PDDE - Programa Dinheiro Direto na Escola 3 Projeto desenvolvido para Educação de Jovens e Adultos pela SEDUC/AM a partir de 2001, cujo material didático e metodologia foram importados dos Telecursos 1º e 2º Graus da Fundação Roberto Marinho. Outros projetos desenvolvidos com os mesmos recursos didáticos e a mesma metodologia também foram ou estão sendo executados em outros estados brasileiros – Projeto Poronga (AC), Tempo de Avançar (CE), Acelerar é Preciso (SC), dentre outros. No Amazonas, utilizando-se dos recursos do 2 3 Nesse sentido, como esse tema faz parte de uma pesquisa em processo, as observações aqui pautadas serão restringidas à análise de alguns de seus aspectos observados pelas pesquisadoras no período de implementação do PTA no Estado do Amazonas. À luz de teóricos como Frigotto, Gadotti, Antunes, dentre outros, serão tecidas algumas considerações sobre o Projeto, numa perspectiva crítica, utilizando-se das categorias neoliberalismo, Estado mínimo, Qualidade Total na educação e reestruturação produtiva do capital. PROJETO TEMPO DE ACELERAR: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES O Projeto Tempo de Acelerar chegou à comunidade escolar como tábua de salvação para os jovens e adultos da periferia de Manaus, cujo intuito era concluir de forma rápida os estudos, para o ingresso nas empresas do Pólo Industrial de Manaus ou no comércio da Zona Franca. Ao professor, no entanto, causou certo impacto, visto que, a ele, especialista em uma dada disciplina, foram-lhe exigidos conhecimentos de todos os componentes curriculares básicos da grade curricular nacional; ministraria todos os conteúdos, (pré-estabelecidos e registrados em apostilas e fitas VHS) correspondentes ao nível fundamental ou médio, num curto prazo de um ano. Enfim, qual a relação desse projeto com as novas relações sociais de produção do regime de acumulação flexível do capital? A resposta encontra-se no tempo, espaço e na forma, pois como diz Enguita: “as instituições educativas [...] não serão tomadas como instituições naturais, mas, por sua vez, como produto histórico e social que só pode ser compreendido dentro da totalidade em transformação da qual faz parte [...]” (1993, p.79). Esse projeto possui uma metodologia que tenta resgatar a sensibilidade e criatividade humana; trabalha habilidades como versatilidade, liderança, flexibilidade, equilíbrio físico e emocional, iniciativa, capacidade de reversão, trabalho em grupo, tudo com o fim de resolver questões de ordem prática: uma preparação do trabalhador para os problemas práticos que irá enfrentar no chão da fábrica. Profissional com tais características é que se tem buscado em setores de recursos humanos, pois, para um setor produtivo que necessita velocidade de decisões para atender as demandas de uma sociedade de consumo dinâmica, “a intervenção direta de um trabalhador com capacidade de análise torna-se crucial para a gestão da variabilidade e dos imprevistos produtivos” (SALERMO apud FRIGOTTO, 2001). No entanto, apesar de utilizar-se de uma metodologia, dentro dos conformes do então estágio produtivo, o Projeto Tempo de Acelerar tem se prestado aos interesses do Estado muito mais pela curta despesa que lhe tem dado do que pela preparação de um novo operário para atuar perspicazmente no chão da fábrica4. Além disso, era exigido do professor aprovação absoluta da turma no final de cada módulo5. Nestes termos, podemos perceber que do Estado pouca responsabilidade foi exigida. E, como maneira de mascarar sua omissão, sob a égide da ilusória autonomia financeira dada às Novo Telecurso, em substituição ao Projeto Tempo de Acelerar, mas com nova roupagem, está sendo implementado em escolas de Manaus e do interior o Projeto Igarité. 4 A economia de professores se dava pela contratação de apenas um professor por turma e quanto ao material didático, ao final do período, poderia ser transferido de uma turma para outra ou criado, segundo a criatividade do professor, a partir de sucatas. 5 Essas situações foram observadas no período em que uma das autoras do texto atuava como pedagoga em uma escola da zona Leste de Manaus, onde funcionavam algumas turmas do Projeto Tempo de Acelerar. Foi nesse período, portanto, que surgiram as inquietações a cerca da validade do projeto para a Educação de Jovens e Adultos dentro do que se propusera atingir. 4 escolas, transfere para a mesma o dever de administrar seus recursos, os quais não correspondem nem mesmo a um décimo das necessidades que ela comporta. De forma perversa é atribuída à instituição escolar uma vasta responsabilidade, cuja proposta do governo é fazê-la adaptar-se às novas condições produtivas da realidade onde, como ironiza Frigotto, “tende a tornar-se uma espécie de bruaca onde tudo cabe e da qual se cobra: resolver o problema da pobreza, da fome, do trânsito, da violência, etc.” (2001, p.168). Quanto aos jovens e adultos que ingressam no Tempo de Acelerar, o fazem, como já fora mencionado anteriormente, por uma necessidade que lhes é imposta pelo próprio mercado de trabalho. Empresas do setor industrial não aceitam candidatos que não tenham, no mínimo, o ensino médio. Por esse motivo, jovens e adultos buscam desesperadamente a escola para adquirir o certificado de conclusão de curso, documento necessário ao seu ingresso no mundo do trabalho, ou para manterem-se empregados, mesmo que seja em um emprego provisório ou precário. A preocupação desses sujeitos, contudo, não se dá com a qualidade da formação recebida na escola ou com a qualidade do trabalho ao qual será incumbido. Em poucos é despertada a revolta por tal situação, mesmo porque “o caráter excludente das relações sociais determina que, nestas circunstâncias, o trabalhador lute para manter-se ou para tornar-se mercadoria” (OLIVEIRA apud FRIGOTTO, 1999, p.60-61). Nestas condições, precariza-se a luta de classes. O aluno individualizado, buscando sua sobrevivência, torna-se apenas mais um no vasto exército de excluídos. Este fenômeno sintomático revela uma das principais falhas da escola nos tempos modernos, a precariedade da formação política oferecida aos alunos, a qual, por sua vez, o próprio professor também não possui. Cabe, neste momento, retomarmos o termo qualidade não como o que vem sendo implementado nos projetos do Estado mínimo, que reduz a abrangência do termo como privilégio de poucos. Mas no sentido de dar ao educando uma educação integral, sem separação do prático e do teórico, sem fragmentações, sem alienações. Enfim, o que de fato tem acontecido com os jovens e adultos que apostam no tipo de modalidade de ensino, aqui mencionada, como instrumento de inclusão no mundo do trabalho, é o que Kuenzer qualifica como “exclusão includente” (2002, p.79). Criam-se trabalhos terceirizados e temporários, com salários bem abaixo do que seria se a função fosse exercida dentro de um trabalho estruturado. Incentiva-se o empreendedorismo e encharca-se o setor terciário. Caso o jovem empreendedor não venha obter sucesso, o governo defende-se atribuindo a culpa ao próprio trabalhador, por este não haver adquirido as competências necessárias à empregabilidade. CAMINHOS METODOLÓGICOS A SEREM PERCORRIDOS PELA PESQUISA As explicações dadas aos problemas surgidos no processo da educação, como a evasão, a distorção idade/ ano escolar, ou à dificuldade que jovens egressos do Ensino Básico apresentam para conseguir um emprego, são apresentadas pelos órgãos oficiais do Estado de maneira estanque, pontual e desvinculada do contexto mais amplo que gerou os mesmos problemas. Daí que, para entender como se tem materializado as intenções governamentais no que se refere ao PTA, o objeto deste estudo, será desenvolvida nessa pesquisa uma abordagem dialético-histórica sobre a educação de jovens e adultos no Estado do Amazonas, pois assim como as justificativas dadas para a ineficiência das atividades escolares [...] se fixam no fato, no mundo da aparência ou na sistematização doutrinária das representações (ideologia), a concepção materialista histórica, respectivamente, se fixa na essência, no mundo real, na teoria e ciência (KOSIK, 1976, apud FRIGOTTO, p.76) 5 A busca por um método que explicasse o objeto de estudo em sua totalidade favoreceu a escolha do método dialético histórico porque, Enquanto o materialismo histórico representa o caminho teórico que aponta a dinâmica do real na sociedade, a dialética refere-se ao método de abordagem deste real. Esforça-se para entender o processo histórico em seu dinamismo, provisoriedade e transformação. Busca apreender a prática social empírica dos indivíduos em sociedade (nos grupos e classes sociais), e realizar a crítica das ideologias, isto é, do imbricamento do sujeito e do objeto, ambos históricos e comprometidos com os interesses e as lutas de seu tempo (MINAYO, 1999, p.65) Foram escolhidas como área de investigação da pesquisa duas escolas estaduais, onde se desenvolveu o PTA, localizadas em um bairro situado nas proximidades do Pólo Industrial de Manaus (PIM), Zona Leste de Manaus. A escolha desses locais deveu-se ao fato de que parte da população economicamente ativa desse bairro são trabalhadores do setor industriário. Os sujeitos alvos desta investigação são alunos egressos do PTA, residentes no próprio bairro onde estão localizadas as escolas, trabalhadores ou não das empresas do PIM. Por não ter encontrado registros de avaliações oficiais referentes ao PTA após seu encerramento, em 2008, nos departamentos competentes da SEDUC, e por estar ciente da necessidade da reconstituição histórica da implantação do PTA para uma análise mais abrangente, colher informações de funcionários da sede da Secretaria que estiveram ligados à gerência do Projeto, se fará, portanto, necessário. A pesquisa será realizada com os seguintes instrumentos: pesquisa bibliográfica, análise documental, entrevistas semi-estruturadas, questionários e observações da área. As fontes bibliográficas serão selecionadas de acordo com o tema políticas públicas e projetos de aceleração de estudos direcionados à educação de jovens e adultos, o qual estará essencialmente relacionado a categorias de análise como trabalho, neoliberalismo, Estado mínimo, globalização e gestão da Qualidade Total da educação. As entrevistas serão aplicadas aos funcionários da sede da SEDUC, lotados nos departamentos que gerenciaram o projeto no período de sua vigência e os questionários aos alunos egressos do PTA, identificados e localizados com a ajuda das secretarias das escolas, lotados nos departamentos que gerenciaram o projeto no período de sua vigência. De posse dos dados será dada sequência à análise dos resultados. PROJETO TEMPO DE ACELERAR E A LÓGICA NEOLIBERAL Seguindo a lógica do projeto neoliberal, o governo investe em cursos de formação escolar ou profissional com custos mínimos; o jovem ou adulto trabalhador apenas deve matricular-se e adquirir a formação com eficácia e, a partir daí, estará pronto para a concorrência do mercado, como se a empregabilidade dependesse apenas da formação do trabalhador. Mesmo que o Projeto Tempo de Acelerar propiciasse a formação necessária ao aluno, pelo menos para que pudesse concorrer a uma vaga no mercado de trabalho, o que de fato não acontecia6, é necessário salientar que outros fatores determinam o sucesso desse empreendimento: a alta taxa de desemprego e a consequente e crescente concorrência é, dentre outros, um forte fator. 6 Essas informações foram obtidas através de conversas informais com alunos no período em que o Projeto era desenvolvido em escolas da Zona Leste de Manaus. Era possível perceber no desabafo dos próprios alunos o descontentamento com o resultado do projeto tanto no que ser referia à aprendizagem como às perspectivas de obtenção de trabalho formal. 6 A lógica neoliberal é, portanto, contra-atacar o Estado de bem-estar social. Para as políticas neoliberais “[...] o Estado deve abandonar a idéia de igualdade (socialização) para assumir a equidade (atenção para com as diferenças). Considera-se a educação como serviço não como direito.” (GADOTTI, 2006, p.105). Ainda sobre o mesmo assunto Frigotto apud Gentili (2007, p.88) acrescenta que [...] não é casual o processo atual de abandono das teses da democratização e da igualdade no campo social e educacional. Na realidade, este abandono tem persistência de quase meio século de defesa da tese básica do teórico mais importante da ideologia neoliberal, Friederich Hayek que postula, como vimos anteriormente, que a democratização e a igualdade levam à servidão. O princípio fundamental é a liberdade de mercado, pois este é o único justiceiro que premia de acordo com o esforço individual, os mais capazes e aptos. A igualdade não exclui, privilegia a todos dando igual oportunidade e condições para adquirir o direito. A equidade atribui a cada um de forma diferente, não levando em conta se há ou não condições que favoreçam igualitariamente todas as pessoas. Não se leva em conta a historicidade do desequilíbrio que há entre as condições de um indivíduo e outro. Nesse sentido, para o neoliberalismo, a educação na versão do Projeto Tempo de Acelerar não poderia ser vista como direito, mas como serviço, visto que as pessoas são analisadas pontualmente, dentro de uma lógica positivista e, portanto, injusta. Bianchetti (2001, p.99), comentando Friedman, mostra-nos claramente como as idéias liberais analisam a sociedade de forma pontual e descontextualizada. Em relação à educação superior, a crítica deste autor parte da consideração de que ‘nas instituições públicas, nas quais as anuidades são baixas, os alunos são clientes de segunda classe [...] Devido ao fato de que as taxas são baixas, a inscrição dos alunos são numerosas, sem que isto reflita uma verdadeira intenção de estudar. [...] No caso das universidades privadas, os estudantes são os principais clientes: pagam pelo que recebem e querem receber o valor correspondente por seu dinheiro. Segundo o objetivo neoliberal, o Estado deve desresponsabilizar-se pela educação, pois a mesma também deve ser considerada uma mercadoria, estando sujeita aos mecanismos do mercado (GADOTTI, 2006). Daí a idéia do Estado mínimo, o qual se desvinculará dos interesses sociais para somente servir aos interesses de quem regula o mercado. “No entender dos empresários, os problemas educacionais seriam resolvidos, a partir de um gerenciamento eficiente, como o que é usado pelas empresas.” (BEZERRA, 2003, p.58). Desde a fase desenvolvimentista do capital, fundada nas teorias fordistas e tayloristas, a escola pública não tem outra função se não a de preparar os indivíduos para o mercado de trabalho. “Entre as teorias coincidentes com a filosofia neoliberal, identificamos a ‘teoria do capital humano’ [...] Essa teoria incorpora em seus fundamentos a lógica do mercado e a função da escola se reduz à formação dos recursos humanos para a estrutura de produção” (BIANCHETTI, 2001, p.93-4) Há muito não se vê em documentos oficiais, programas ou projetos destinados à educação os termos cidadão, transformação, coletividade, construção coletiva do aprendizado, etc. Em contrapartida, o ato de aprender e ensinar incide sobre o indivíduo, detentor de competências e habilidades que o mesmo deverá aplicar sobre os problemas imediatos de ordem técnica e precisa, como se o ser humano fosse a extensão de uma máquina, diferenciando-se da mesma pelo motivo de poder pensar a melhor maneira de produzir. 7 A questão, no entanto, é: para quem se está produzindo? Qual a parcela de quem produz nessa produção? De acordo com Gadotti (2006, p.106) Ensina-se muito e aprende-se pouco. Aprender, nessa visão instrucionista, é ‘aceder’, ter acesso a computadores, a uma informação. Aprender é identificar informações e saber utilizá-las em algum momento. Esse é o conceito neoliberal de qualidade. Ensinar se reduziria a aplicar uma receita, a saber manejar um repertório de técnicas. A cidadania parece ter sumido das finalidades dos documentos oficiais. Em seu lugar, termos como competência, habilidades, autonomia, eficiência, entre outros, estão em voga como uma espécie de modismo, dando a entender que a função da escola não é mais formar cidadãos capacitados para exercer e exigir as condições para execução de seus direitos, mas a preparação do indivíduo trabalhador com o único propósito de saber as exigências do mercado, seja em que setor produtivo estiver. Nos anos 90, com a abertura do mercado, ocorre um novo deslocamento, a educação de qualidade deixa de ser vista apenas como um direito à cidadania, e passa a ser articulada às questões associadas à competitividade. Sendo assim, a educação passa a ser considerada como a grande viabilizadora da inclusão do país no mundo competitivo. (BEZERRA, 2003, p.59) Vista como empresa, a escola não mais se compõe de alunos mas de clientes; diretores são gestores da educação; demais funcionários são colaboradores. E, fechando com chave de ouro, o termo Qualidade Total, antes somente usado pela indústria para designar um conjunto de medidas dentro da empresa para otimização do produto final, também faz parte do novo vocabulário dos documentos oficiais destinados à educação. O conceito de qualidade atribuído à educação se distancia da que é almejada pela sociedade no todo, pois é destinada a poucos, assumindo o conceito de privilégio. Segundo os consultores da FCO (Fundação Cristiano Otoni), a Qualidade Total é uma estratégia que consegue levar as empresas, as instituições, os serviços e as escolas à obtenção de níveis crescentes de qualidade e de produtividade. Para o alcance dos resultados desejáveis, é preciso conseguir a ‘adesão de todos’, para tanto se difunde o ‘discurso da salvação’; sem o emprego dessa estratégia de gestão, não existiria solução possível para as empresas ou instituições. (Idem, p.63). Esse discurso salvacionista, que apresenta a filosofia da Qualidade Total como única saída para os problemas dos campos sociais e educacionais não passa de engodo, pois que seu objetivo é manter um exército de reservas de trabalhadores à mão para o momento que o mercado precisar sem, no entanto, preocupar-se se mais da metade da população economicamente ativa está desempregada ou servindo-se a um emprego precarizado (ANTUNES, 2001). Nessa atual etapa em que o sistema capitalista se reestrutura assumindo características de flexibilidade, incertezas, desemprego, extinção de direitos e precarização das próprias instituições que o ajudam a divulgar sua ideologia, pode-se perceber por que a educação das escolas públicas têm-se desempenhado tão precariamente, de acordo com os próprios órgãos oficiais de avaliação da aprendizagem. 8 Esta forma flexibilizada de acumulação capitalista, baseada na ‘reengenharia’, na ‘empresa enxuta’ para lembrar algumas expressões do novo dicionário do capital, teve consequências enormes no mundo do trabalho. Podemos tão somente indicar as mais importantes: .......................................................................................................................... . Exclusão dos jovens e dos idosos no mercado de trabalho dos países centrais: os primeiros acabam muitas vezes engrossando as fileiras de movimentos neonazistas e aqueles com cerca de 40 anos ou mais, quando desempregados e excluídos do trabalho, dificilmente conseguem o reingresso no mercado de trabalho. (ANTUNES, 2001, p.15) Qual o sentido da educação de jovens e adultos então? Será este o motivo de ter-se criado ultimamente projetos de aceleração de estudos, visto que são de menor custo e direcionados a um grupo que não dá retorno lucrativo ao capital? De acordo com Frigotto (2007) a qualificação profissional tem sido para poucos, que vão se constituir como supervisores de máquinas e experts na arte de resolver problemas. Em contrapartida, uma grande massa de trabalhadores precarizam-se, terceirizam-se. O que leva à conclusão de que a escolarização para todos não é uma preocupação do mercado e muito menos do Estado que defende os interesses de quem detém os meios de produção. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do exposto, não seria precipitado dizer que, tanto na sua criação como durante a sua execução, não houve preocupação com a qualidade do ensino e da aprendizagem no Projeto Tempo de Acelerar, mas somente com os números. Organismos nacionais e internacionais exigem atitudes concretas do governo e ele deve dar alguma resposta de qualquer forma. Por outro lado, as elites sabem que por trás dos números está a realidade que, preferencialmente, faz-se necessário manter-se assim, precária, de péssima qualidade, para que seu quadro eleitoreiro mantenha-se intacto até às próximas eleições. O que faz e o que deve fazer a escola (professores, alunos, gestores, pais de alunos) enfim, diante de tal situação? Qual o papel da educação escolar, principalmente em relação aos jovens e adultos que se preparam para enfrentar o mundo do trabalho, das responsabilidades civis e do medo em busca da sobrevivência nesta nova e degradante etapa da sociedade capitalista? Culpar o sistema e dizer que nada pode fazer é o que se tem ouvido nas declarações de professores, inquietados pela crescente onda de terceirizações, sucateamento e desvalorização do ensino público advinda dos planos e orçamentos enxutos do governo. No entanto, cruzar os braços não deve ser a atitude do profissional da educação, pois como declara Paulo Freire: Não posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a por sua malvadez, ao atribuir a ‘forças cegas’ e imponderáveis os danos por elas causados aos seres humanos. A fome frente a frente à abastança e desemprego no mundo são imoralidades e não fatalidades como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O que quero repetir, com força, é que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria (1997, p.113) 9 O trabalho docente proposto para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos, deve iniciar, como arma principal, com reflexões, juntamente aos alunos, sobre as condições de ensino e as respectivas qualidades da aprendizagem que lhes são oferecidas através de projetos prontos, empacotados, sobre cujo processo de criação não lhes foi permitido opinar. Há que se promover no ambiente escolar desses sujeitos momentos de debates sobre as teorias e práticas que envolvem a sua educação, com perspectivas para um trabalho social, crítico e libertador, onde os alunos possam se sentir protagonistas de sua aprendizagem e não somente projetos de políticas desenvolvidas para privilegiar alguns grupos, donos dos meios de produção. Qualificar os jovens e adultos não deve ser, portanto na visão do educador, uma preparação para o mercado de trabalho classificador e excludente, mas sim um trabalho de instrumentalização do alunos para a busca de uma sociedade mais justa e embasada nas idéias socialistas. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Reestruturação produtiva e mudanças no mundo do trabalho numa ordem neoliberal. In: DOURADO, Luiz Fernandes; PARO, Vitor Henrique. Políticas públicas & educação básica. São Paulo: Xamã, 2001, p.13-26. BEZERRA, Aldenice Alves. Escola pública n Amazonas: as políticas de 1987 a 1994. Manaus: Edua, 2003. 147p. BIANCHETTI, Roberto G. Modelo neoliberal e políticas educacionais. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2001. 119p. ENGUITA, Mariano Fernández. Trabalho, escola e ideologia: Marx e a crítica da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 339p. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 168p. FRIGOTTO, Gaudêncio. 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