ESCOLA NORMAL REGIONAL DE CRUZEIRO DO SUL: MODELO CATÓLICO DE FORMAÇÃO DOCENTE Maria Irinilda da Silva Bezerra/ Universidade Federal Fluminense- UFF [email protected] Heloísa de Oliveira Santos Villela/ Universidade Federal Fluminense- UFF [email protected] Resumo O campo da pesquisa histórica vivenciou, nos últimos anos, um intenso processo de renovação teórico-metodológica que aponta para a revalorização de estudos de caráter localizado, o que possibilitou um maior investimento na construção da história das instituições educativas espalhadas pelas várias regiões do país. A presente investigação ancora-se neste campo re-oxigenado da história das instituições escolares, fundamentando-se no referencial teórico de autores que reconhecem que toda instituição, por um lado, conserva uma organização hierárquica própria e, por outro, mantém uma vinculação com a sociedade mais ampla na qual está inserida. Neste movimento, interações e trocas culturais acontecem entre as práticas e os fazeres escolares e sociais. Nossa investigação, pretendeu ampliar o conhecimento sobre a história das instituições educativas tendo como objeto a Escola Normal Regional criada em 1947 na cidade de Cruzeiro do Sul / Acre, no extremo ocidente da Amazônia brasileira, tendo como propósito levantar questões a cerca do currículo utilizado nessa instituição confessional de formação do professorado primário. A periodização contempla o momento de criação da Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul até o ano de 1965, quando a Instituição passou por um processo de reestruturação curricular, ampliou a formação oferecida e incluiu o normal colegial. A análise de fontes documentais existentes nos arquivos da Escola, tais como regimentos, estatutos, boletins, certificados e atas, além de entrevistas semi-estruturada desencadeou a reflexão sobre a proposta de formação de professoras desenvolvida pelas freiras “Dominicanas” alemãs na região acriana. Indagamonos como, no interior daquela Instituição, se estabeleceram as articulações curriculares entre o ideário confessional católico e o projeto escolanovista em voga naquele contexto e de que forma os dois projetos coadunaram-se na formação da mulher-educadora cruzeirense. Este trabalho pretende demonstrar de que forma o currículo da Instituição mencionada privilegiava a formação da mulher católica, contemplando, além da formação didática e geral, as aulas de catecismo, prendas e economia doméstica. Ao mesmo tempo chama a atenção para a especificidade de uma formação que, embora de orientação católica, ao mesmo tempo inseriase no âmbito das inovações pedagógicas que tinham como base as ideias irradiadas pelo movimento escolanovista. Contrariando uma literatura muito difundida no campo da educação que indicava que ideais liberais escolanovistas e movimento católico se antagonizavam, pretendemos mostrar como essa escola normal traduziu esses dois vetores e os articulou em sua prática cotidiana. Palavras-chave: Escola Normal. Formação docente. Educação Católica. Considerações Iniciais O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados de uma investigação realizada na Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul/Acre, se propondo a trazer para o campo do debate questões relacionadas às práticas cotidianas e o currículo das escolas normais de caráter confessional, dedicadas a educação feminina. Nossa periodização contempla o momento de criação da Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul, que data do ano de 1947 até o período de 1965, quando a Instituição, passando por um processo de reestruturação curricular, ampliou a formação oferecida incluindo, a partir de então o curso normal colegial. A Instituição estudada constituiu-se como um importante legado para a formação de professores no Acre dada a inexistência de outras instituições semelhantes naquele contexto. Por essa razão julgamos determinante sua compreensão para a história da educação e da formação docente naquela região. Partimos da percepção das múltiplas possibilidades que o campo da pesquisa histórica tem possibilitado aos pesquisadores que pretendem ampliar o conhecimento sobre a cultura escolar. Durante muito tempo, a história da educação brasileira tomou como parâmetro, estudos preferencialmente realizados nas regiões politica e economicamente dominantes no cenário nacional, generalizando seus resultados, como se todas as regiões do país tivessem vivenciado o mesmo processo. Hoje, esta realidade vem se modificando e a pesquisa no campo da história da educação dialoga com pesquisadores e temas diversificados, tanto no que diz respeito ao tempo, aos espaços estudados, bem como às abordagens escolhidas. A luz do referencial teórico de autores que dialogam com o campo da história das instituições escolares e da cultura escolar, a presente pesquisa analisou fontes documentais localizadas nos arquivos do Instituto Cultural Santa Teresinha procurando não perder de vista que que toda instituição, por um lado, conserva uma organização hierárquica própria e, por outro, mantém uma vinculação com a sociedade mais ampla na qual está inserida. Neste movimento, interações e trocas culturais acontecem entre as práticas e os fazeres escolares e os sujeitos se constituem nesta tessitura entre escola e sociedade. Destacamos que os instrumentos de coleta de dados utilizados nesta pesquisa possibilitaram reconstituir, pelo menos parte da história e da cultura desta Instituição de ensino e de formação, revelando a complexidade que envolve os objetos culturais com seus valores, representações e inserção social numa dada realidade. Estas técnicas, especialmente as entrevistas, combinadas com o estudo e análise de artefatos produzidos e preservados pelos próprios sujeitos que fizeram ou fazem parte desta história, nos revelaram aspectos interessantes do cotidiano da Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul o que desencadeou um aprofundamento maior sobre nosso objeto de estudo. Estudos nessa direção trazem a vantagem da interação direta entre o investigador e os sujeitos participantes, bem como a possibilidade de valorização da memória no estudo do passado. O trabalho de resgate da memória histórica tecida pelos diversos sujeitos que constituíram modos paralelos ou oficiais de instrução escolarizada, permite encontrar, a partir dessas memórias individuais e até dispersas, os aspectos que compõem a identidade e a cultura da coletividade. Segundo Demartini (2000), trabalhos recentes têm indicado que a exploração de fontes das mais diversas, e até pouco comuns, pode resultar em estudos fundamentais e instigantes. Nossa investigação, na esteira deste momento fértil e favorável à utilização de novas fontes, apropriou-se de um corpus documental rico e inédito localizado nos arquivos da secretaria do Instituto Cultural Santa Teresinha e nos acervos particulares das ex alunas do Curso Normal Regional na tentativa de compreender como se estruturou o currículo deste Curso de formação dos professores. Por meio desta investigação teórico-empírica suscitamos reflexões sobre a seguinte problemática: Como se estabeleceram as articulações curriculares entre o ideário confessional católico e o projeto escolanovista nas práticas curriculares e pedagógicas da Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul, e de que forma os dois projetos em voga naquele contexto coadunaram-se na formação da mulher-educadora cruzeirense? Mais do que respostas para a questão acima, pretendemos contribuir para futuras discussões sobre as semelhanças e diferenças que marcaram a constituição das escolas normais espalhadas pelas várias regiões do país, especialmente no que diz respeito às instituições de caráter confessional dedicadas a educação feminina. Partilhamos a convicção de que a educação escolarizada, por ser um campo permeado por disputas e interesses diversos, possibilita trajetórias de ascensão, tanto individual quanto coletiva. Assim, considerando a influência que a cultura escolar exerce na constituição de uma sociedade é que nos propomos a discutir a organização e funcionamento da instituição focalizada, destacando principalmente questões relativas ao currículo implementado e as adaptações realizadas no interior do Curso. Os resultados indicaram que o currículo na Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul privilegiava a formação da mulher católica, contemplando, além da formação didática e geral, as aulas de catecismo, prendas e economia doméstica. Demonstram também a busca por uma formação católica, mas ao mesmo tempo inserida no âmbito das inovações pedagógicas e políticas públicas pensadas para a educação no período. Assim foi possível percebermos interlocuções entre a formação oferecida no âmbito da Instituição mencionada e a formação oferecida em instituições congêneres em outras regiões do país. O ideário católico na formação da mulher cruzeirense A presença de religiosos da Igreja Católica nos rios da Amazônia está registrada desde o final do século XIX. Todavia tais ações apresentavam caráter esporádico, uma vez que, de tempos em tempos, grupos de padres e irmãos viajavam pelos rios e comunidades evangelizando e catequizando a população ribeirinha. No ano de 1931, com a criação da Prelazia do Alto Juruá, a Congregação do Espírito Santo estabeleceu-se definitivamente na região. Estes missionários realizaram um intenso trabalho social, evangelizador e educacional junto à população local, criando e dirigindo escolas, creches, seminários, oficinas de aprendizagem, igrejas e conventos. No ano de 1937 chegaram também freiras da Congregação Dominicana de Santa Maria Madalena, para endossar a missão iniciada pelos Espiritanos no espaço amazônico. Esses padres e freiras de ambas as congregações eram de nacionalidade alemã. As religiosas dominicanas atuaram predominantemente na educação feminina, criando e dirigindo o Instituto Orfanológico Santa Teresinha. Foi nesta Instituição - orientada para uma formação de cunho católico - que surgiu a Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul, onde foram formados e constituídos como docentes os primeiros educadores primários daquele municípioi. A Escola Normal funcionou do período de 1947 até a década de 1980 no Instituto Orfanológico Santa Teresinha como uma “Instituição educativa, confessionalmante católica, mantida pelas Irmãs Dominicanas de Santa Maria Madalena” (BEZERRA, 2010, p.). De acordo com o Regimento Interno a Escola adotou, tanto no curso Primário quanto no Curso Normal Regional, o plano geral estabelecido pelo Ministério da Educação e Cultura, mas seguindo normas próprias às instituições confessionais. A formação oferecida deveria ser solidamente cristã, “visando à formação integral da personalidade feminina, destinada a desempenhar um papel benéfico na família e na sociedade, seja como dona de casa e educadora dos próprios filhos, seja como dirigente de uma escola e educadora do povo”ii Na opinião das entrevistadas, comparando-se a educação do seu tempo de normalistas com a educação desenvolvida atualmente evidenciam-se muitas mudanças, uma vez que àquela época os conteúdos preparavam as alunas para atuarem em sala de aula, a partir de um ensino rígido onde havia cobrança de qualidade. A instrução transmitida no Curso Normal Regional pretendia desenvolver o ser humano em todos os sentidos, destacando-se a capacidade cognitiva, as habilidades manuais e os valores como a moral, o respeito e os bons costumes. Conforme mencionado anteriormente, a Escola Normal Regional dirigia-se à formação de professoras voltadas para princípios cristãos e familiares. Tal preceito é confirmado pelos depoimentos das ex alunas, evidenciando que a Igreja, de modo geral, exercia uma grande influência na sua formação espiritual e profissional, enfatizando a parte moral, ética, assim como no tocante à obediência e cumprimento das obrigações estudantis e comunitárias. De acordo com uma das entrevistadas “as professoras formadas naquela época saiam com uma bagagem religiosa bem firme”. Em consequência dessa educação, “até hoje a gente vê elas assim na Igreja, dando aulas de catequese, ajudando os pobres nas obras sociais”. E conclui sua reflexão, afirmando: “Acredito que essas atitudes foram influência da educação recebida”iii. Nesta declaração fica evidente que tal ênfase formativa no aspecto religioso se constituía num dos aspectos mais priorizados na formação oferecida. Outra entrevistada enfatiza que, pelo fato dos professores serem todos padres e religiosos de congregações católicasiv, as alunas eram obrigadas a assistir aulas de religião três vezes por semana, subdivididas em estudo da Bíblia, Catecismo e História Eclesiástica e da Igreja, acrescentando que durante aqueles encontros recebiam também valores significativos para a vida e para a profissão. A forte influência das freiras dominicanas sobre a formação das professoras nesta parte da Amazônia acriana se ampliava ainda mais em relação às alunas internas, visto que aquelas permaneciam mais tempo sob o controle constante das mestras. Entretanto, na condição de interna ou externa, a matrícula no Estabelecimento subjugava os pais e as alunas aos estatutos da Escola, que se investia do poder de instruir e educar, inclusive se sobrepondo ao poder dos próprios pais. Geraldo Filho (2002) ao estudar a educação feminina no triângulo mineiro discorre a respeito do domínio da Igreja Católica sobre a formação feminina e nos oferece importantes reflexões para pensarmos esta questão. Fica evidente que as internas ficavam mais tempo sob a vigilância das mestras, entretanto ao entrarem para o colégio as externas submetiam-se as mesmas normas do estabelecimento, as quais pretendiam que o mundo exterior ao colégio deixasse de influenciar as suas vidas. Desta forma, as normas acabavam por se estender aos lares, ao espaço do convívio com a família, realçando a obediência, a disciplina e o controle da sexualidade, segundo a ideologia e a moralidade católicas (GERALDO FILHO, 2002, p. 59). Tomando como parâmetro a Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul, podemos inferir que muito embora fosse sobre as alunas internas que as dirigentes das escolas confessionais estabeleciam maior domínio, as externas também eram objeto de forte controle. As evidencias nas falas das nossas entrevistadas confirmam a consideração de Geraldo Filho de que as normas impostas por estes colégios pretendiam minimizar a influência do mundo exterior sobre as vidas destas alunas e, sobretudo, que tal ação disciplinadora se estendesse aos lares, ao espaço do convívio com a família, realçando a obediência, a disciplina e o controle da sexualidade. Uma estrita relação se estabelecia entre a formação oferecida e o ideário católico, que não era exclusivo da Igreja, mas impregnava a sociedade ao demandar uma mulher dócil, boa mãe e esposa. Tais instituições cumpriam integralmente as exigências necessárias para tornar aquelas moças educadoras primárias por excelência, responsáveis pela formação de crianças com espirito de passividade e obediência à ordem posta, transferindo assim qualidades “naturais” femininas para a sala de aula. Discursos como o do educador católico Everardo Backhauser (1934), ao paraninfar uma turma de normalistas, confirmam esse papel destinado à mulher-professora: “Vós queridas afilhadas, [...] sereis professoras. Tendes, com isto, de desenvolver vossa atuação pedagógica em uma atmosfera verdadeiramente maternal” (apud MAGALDI; NEVES, 2006, p. 106-7). Nesse mesmo sentido advertia Alceu Amoroso Lima, quando afirmava: “Na obra educativa, mais que em qualquer outra, só o amor é fecundo e criador. Por isso há tanta afinidade entre a maternidade e a educação. As mulheres são professoras natas, em geral, porque têm por natureza a vocação da maternidade” (LIMA, 1994, p. 296 apud MAGALDI; NEVES, 2006, p. 106-7). Mesmo em contexto temporais e espaciais diferentes, observamos uma coerência entre os discursos dos líderes do movimento católico nacional, como era o caso de Everardo Backhauser e Alceu Amoroso Lima, e dos representantes católicos do município de Cruzeiro do Sul. Em ambos, percebemos a nítida associação entre a formação da professora e a missão da mulher no projeto católico, bem como a crença depositada no papel da professora como missionária a um só tempo educadora e evangelizadora. O discurso de Dr. Abel Pinheiro, paraninfo da primeira turma da Escola Normal Regional referenda esta percepção. “Os maus hábitos podem fixar-se quando se descuida a educação da criança. Não esqueçais que no tocante a educação, a escola é um prolongamento do lar. A vossa missão nobre, digo-vos mais uma vez, é sublime, mas é extremamente delicada” (JORNAL O REBATE, 1º DE JAN, 1951, p. 01)v. Os interesses católicos projetaram, por meio de suas propostas curriculares e pedagógicas, a figura de uma mulher ideal, ou seja, aquela que cumpriria rigorosamente suas atribuições perante a Igreja e a sociedade, como catequista, mãe, mulher, educadora, tanto nas escolas como na família, contribuindo, assim, para a propagação dos ideais cristãos. Ao mesmo tempo em que a Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul atendia aos interesses da Igreja, tornava-se espaço de ascensão social da mulher, que formada para atuar no magistério primário poderia finalmente conseguir maior “autonomia” político-social ou contribuir no sustento da família. Uma professora primária formada era também símbolo de status e as famílias faziam qualquer esforço possível para que suas filhas pudessem tornar-se “diplomadas”, até porque esse era o mais alto grau de escolarização existente no local e uma das únicas possibilidades para a mulher ingressar no mercado de trabalho. Essa importância social desempenhada pela mulher na pequena sociedade cruzeirense é enfatizada, com riqueza de detalhe por uma ex aluna do Curso quando ressalta: “Os professores naquela época eram hombridade. Nossa! Você nem imagina o valor que nós tínhamos. Hoje o mercado está grande demais, mas naquele tempo era escasso”.vi Esta fala destaca aspectos relevantes da formação docente. Primeiro, o status que esta profissão apresentava, onde os professores eram considerados autoridades e representavam o Estado nas cerimonias oficiais realizadas em atividades cívicas, tais como: desfiles, cerimonias e discursos. Segundo, a própria escassez de profissionais formados proporcionava àquelas normalistas uma inserção social muito significativa, visto que podiam ocupar cargos de destaque, como professoras, bancárias, etc mas também o diploma lhes credenciava para falar em nome da população nos discursos públicos, representando os anseios do povo nas reivindicações junto as autoridades do Estado. O Curso Normal Regional e suas transformações curriculares Segundo Azzi (2008), a partir da década de 1920, a Igreja empreendeu um esforço para adequar os colégios de freiras às normas e diretrizes emanadas do Estado. Esse fenômeno se deu por uma necessidade de conquistar novos adeptos ao catolicismo e ampliar o número de matrículas em suas instituições. “A necessidade de atrair matrículas de novas alunas fez com que as religiosas procurassem obter a equiparação de seus cursos aos colégios oficiais, que eram apresentados à sociedade como padrões de ensino” (p. 106). Na análise dos Boletins, acompanhamos a sequência de estudos da 4ª turma do Normal Regional, compreendendo o período de 1950 a 1953, onde verificamos disciplinas variadas dependendo das séries. Na 1ª série eram trabalhadas disciplinas como: Religião, Português, Matemática: Aritmética e Geometria, Geografia, Ciências, Desenho, Caligrafia, Canto, Trabalhos Manuais e Educação Física. Na 2ª série as disciplinas ministradas eram: Religião, Português, Matemática: Aritmética e Geometria, Geografia, Ciências, Desenho, Caligrafia, Canto, Trabalhos Manuais, Educação Física e História. Quanto à 3ª Série, podemos observar a existência das seguintes disciplinas: Religião, Português, Matemática: Aritmética e Geometria, Geografia, Ciências, Desenho, Caligrafia, Música e Canto, Trabalhos Manuais, Educação Física e História. Por fim, no que se refere a 4ª série, verificamos disciplinas como: Religião, Português, Biologia, Desenho, Música, Prendas, Ginástica, Pedagogia, Prática e História. Numa análise comparativa, percebemos poucas alterações ocorridas na estrutura curricular do 3º e 4º ano, sendo que suprime a Matemática, Geografia e Caligrafia e acrescenta-se Pedagogia e Prática. Notamos no currículo da Escola uma ênfase nas disciplinas como Trabalhos Manuais, Educação Física, Religião e Canto, presentes em todas as séries do Curso em contraposição a pouca relevância dada a formação pedagógica, sendo que apenas no 4º ano as alunas tinham disciplinas voltadas para este aspecto, como Pedagogia e Didática. O caráter de ensino geral característico da formação oferecida nos cursos normais é destacado por vários educadores do período, como é o caso de Anísio Teixeira que traz uma importante contribuição para esta reflexão ao denunciar o desvirtuamento dos objetivos do ensino normal em consequência da publicação de tal Lei Orgânica. [...] o curso estava descaracterizado como curso vocacional de habilitação ao magistério primário na medida em que se operava a integração deste curso ao sistema de educação secundária do país, fazendo das escolas normais uma das formas de acesso ao ensino superior. Assim, as escolas normais ‘se deixam levar pelo seu caráter de ensino preparatório e não pela formação vocacional do mestre’ falhando em seu duplo objetivo, pois nem ofereciam a formação cultural desejável ao ingresso em muitos cursos superiores, nem cuidavam com esmero da profissionalização dos professores (TEIXEIRA, 1950, apud LOPES, 2006, p. 287-8). No ano de 1958, observamos por meio do livro de atas dos exames de admissão uma separação em: - Diplomas do Curso Normal Regional e Diplomas do Curso Normal Regional, adaptado ao Ensino Ginasial. O currículo do Curso Normal Regional contemplava Português, Matemática, Geografia Brasileira, Geografia Geral, História Geral, História do Brasil, Ciências Naturais, Anatomia, Pedagogia e Psicologia, Prática de Ensino, Desenho, Canto, Trabalhos Manuais e Ginástica. Quanto ao currículo do Curso Normal Regional adaptado ao ensino Ginasial, este era muito similar, com pequenas alterações: inclusão do Latim e Francês, supressão da Anatomia e substituição de Ginástica por Educação Física. Essa distinção foi verificada também nos anos posteriores, até 1965, exceto nos anos de 1963 e 1964 que não houve diplomados do Curso Normal Regional adaptado ao Ensino Ginasial. Além do livro de Ata, encontramos apenas um Ofício enviado em 24 de abril de 1965, pela direção da Escola Normal ao Diretor da Divisão do Ensino Médio, justificando que a adaptação do Curso Normal ao ensino ginasial foi feita a pedido dos pais dos alunos, em 1954, visto que naquela época não existia ginásio cruzeirense. Ou seja, até então a Escola só recebia o público feminino, excluindo os homens de adquirir uma formação ginasial visto que na cidade não existia outra instituição que oferecesse tal formação. No ano de 1965 o Curso Normal Regional passou por várias transformações com a implantação do Ciclo Secundário, denominando-se, a partir de então de Escola Normal Padre Anchieta. Mas as transformações não pararam na denominação, a titulação também foi alterada. Enquanto o Curso Normal Regional conferia título de Regente do Ensino Primário, conforme dispunha o art. 36 da Lei Orgânica do Ensino Normal baixada pelo Decreto-lei n. 8.530, de 2 de janeiro de 1946, o Diploma da Escola Normal Padre Anchieta, ou seja, do Curso Pedagógico, conferia o título de Professor Primário, conforme rezava o artigo 54 da Lei n. 4.024, de dezembro de 1961, que fixou as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. De acordo com o Certificado da Escola Normal Padre Anchieta, na 1ª série, as alunas estudavam: Português e Literatura, Matemática, Estudos Sociais Brasileiro, Ciências Naturais, Psicologia Educacional, Artes Infantil, Didática e Educação Musical. Na 2ª série, constam as seguintes disciplinas: Biologia Educacional, Educação para a Saúde, Português e Literatura, Matemática, Psicologia Educacional, Artes Infantil, Educação Musical, Sociologia, Educação Moral e Cívica e Religião e Metodologia e Prática. Já na 3ª série, as alunas estudavam disciplinas como: Estatística, Português e Literatura, Psicologia Educacional, Educação Musical, Educação Moral e Cívica e Religião, Metodologia e Prática, Administração Escolar, Filosofia da Educação e História da Educação. A fala de uma ex aluna é ilustrativa das diferenças curriculares do primeiro ciclo do normal em comparação como o segundo. Ela destaca que no Curso Pedagógico “eram priorizadas mais as disciplinas científicas sim. [...] a gente tinha como prioridade a Filosofia, a Psicologia, a Matemática. E no Normal Regional era dada mais ênfase aos cantos, trabalhos manuais. No Normal a gente saia assim: prendada”vii. Nas aulas de trabalhos manuais, ministradas no Curso Normal Regional, no turno da tarde, era ensinado bordado, tricô, crochê e pintura. O material utilizado nas aulas era oferecido pela Escola para as meninas órfãs e aquelas reconhecidamente pobres. As que podiam custear seus estudos providenciavam o material necessário. A Escola realizava comumente exposição dos trabalhos produzidos pelas alunas e convidava os pais e a comunidade para assistir. As obras confeccionadas, quando feitas com o material da própria aluna pertencia a mesma, inclusive há relatos de algumas que confeccionavam objetos para seu enxoval de casamento. Os recursos eram limitados o que restringia o aprendizado prático das normalistas. Vidal (2001) demonstra que algumas escolas do período dispunham de um acevo pedagógico significativo. “Como recursos didáticos eram indicados jogos, dramatizações, livros de leitura, cadernos, biblioteca de sala, e atividades extra-classe, como clubes de leitura” (VIDAL, 2001, p. 108). Porém, boa parte dos recursos aqui referenciados não estava disponível na Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul. Além disso, as metodologias adotadas se limitavam ao espaço da sala de aula, não sendo verificada a execução de atividades extra-classe. Muito embora seja possível constatar a ausência de muitos recursos pedagógicos, pela fala das entrevistadas nota-se que, em relação as demais instituições da cidade, a Escola Normal Regional possuía um acervo de materiais pedagógicos significativo. No que diz respeito às aulas de Educação Física, estavam presentes no currículo, e as alunas faziam as atividades inicialmente comandadas pela Madre Adelgundes. Entretanto, estas aulas inicialmente não eram vistas com real importância. Depoimentos indicaram que, algumas vezes, eram substituídas por uma caminhada carregando tijolos para a construção do novo prédio do Instituto Santa Teresinha ou do aeroporto da cidade. Se por um lado, o aprendizado não correspondia exatamente ao que era pretendido na educação física, não deixava de ser percebido pelas ex-alunas como um trabalho de caráter cívico. Estas relembraram tal acontecimento com orgulho pois acreditavam estar contribuindo com o desenvolvimento da Escola e do próprio município, sendo essa uma das funções da escola da época. Este fato foi verificado nos primeiros anos de existência no Curso. Posteriormente, percebemos tal disciplina ganhando maior importância por meio da assistência de professores com formação militar. Com relação ao estágio de regência, não foi verificada nos boletins de notas das alunas nenhuma referência ao mesmo, o que leva a concluir que este era trabalhado na disciplina de Didática e Prática de Ensino. Segundo as entrevistadas, o estágio acontecia no último ano do Curso Normal, sendo desenvolvido no curso primário da Escola. Era acompanhado e orientado pelo professor de cada disciplina, que fazia um sorteio do tema a partir do qual as alunas preparavam a aula, mas previamente recebiam orientação e supervisão quanto ao plano de aula e as atividades a serem desenvolvidas. No dia da regência, costumavam assistir às aulas a professora da disciplina, a professora da sala do primário, o diretor/a e todas as colegas de turma. Havia ainda a possibilidade de contar com a presença do inspetor de ensino que supervisionava e orientava o trabalho realizado. Notamos que a formação desses professores tornava-se um acontecimento público, dada a quantidade de pessoas que participavam dos exames finais e da regência. Esse destaque dado ao referido Curso nos leva a perceber que a formação de normalistas permitiu novas oportunidades educacionais, primordialmente às crianças que necessitavam de professor formado, mas também ampliou as possibilidades de educação feminina e de participação na vida pública por meio da inserção no magistério. Este Curso era bem conceituado em todo o Estado sendo prestigiado por diversas visitas de autoridades, quando as Irmãs eram felicitadas por seus esforços em mantê-lo em funcionamento [...]. Sendo este o primeiro curso de formação de professores que funcionou nesta região, com certeza estão aqui os alicerces de muitas das práticas e fazeres dos professores que atuam no município (BEZERRA, 2010). Pelos sempre incompletos resultados a que chegamos, destacamos que escrever sobre a história das instituições escolares no âmbito da história social e cultural é tentar entender os meandros que tornaram possível sua construção como espaço nuclear da educação de crianças e jovens. Mergulhar no seu cotidiano nos leva a compreender os espaços e grupos que estão em disputa pelo controle dos processos de socialização. Essa percepção nos leva a afirmar que estudar a história da instituição escolar significa mergulhar num contexto que permite compreender a própria cultura de uma época, enraizada nos processos escolares que, por sua vez, gera também ideias, práticas e hábitos que são culturais. É exatamente em decorrência dessa complexidade que envolve as instituições escolares, que somos obrigados a reconhecer que muito ainda precisamos saber sobre a cotidianidade da escola: suas práticas, seus sujeitos, sua materialidade bem como as interações que produz com a sociedade. Segundo Nunes (1992, p. 152). “[...] a ênfase recai sobre os usos diversos que os agentes escolares fazem da própria instituição escolar, sobre a prática de apropriação de práticas não escolares no espaço escolar e os múltiplos usos não escolares dos saberes pedagógicos”, ou seja, cada grupo social que integra um espaço produz processos específicos de escolarização que acabam deixando suas marcas na construção da sociedade como um todo. Para Carvalho (2003), precisamos perspectivar nosso olhar e problematizar o estabelecido, historicizando-o, para que o objeto “escola” possa ser desnaturalizado. É importante reconhecer também que os tempos e espaços diversos ensejam modelos educacionais próprios que precisam ser entendidos nas suas especificidades, sem desconsiderar, no entanto, sua relação com o geral. Assim sendo, torna-se imperativo a incorporação de vertentes historiográficas que possibilitem a compreensão de elementos da cultura escolar, tais como os agentes escolares, suas práticas e instituições. Considerações Finais A Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul foi a responsável direta pela implantação da formação docente escolarizada no município de Cruzeiro do Sul, deixando uma herança importante para a história da educação naquela região. Tal Escola, idealizada pela Igreja Católica, foi criada com o objetivo de oferecer formação adequada para os professores que iriam atuar no ensino primário da própria Instituição. Mas nas circunstancias explicitadas ao longo deste texto, sua atuação atendeu aos interesses da população em geral: do poder público, que naquele momento histórico não possuía condições de oferecer formação pública aos professores da localidade; da Igreja, que oferecia formação as professoras, educadoras das crianças e jovens de acordo com os princípios católicos e cristãos; dos pais, que tinham possibilidade de ver suas filhas com uma formação aceita socialmente sem ter que afastar-se do âmbito familiar e local; da sociedade local, que era contemplada com professoras com formação adequada, ampliando as oportunidades de escolarização. Nessa direção, a Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul era bem prestigiada e valorizada, pois cumpria sua função de formar as educadoras da sociedade cruzeirense. Aqui encontramos a principal semelhança entre a formação oferecida pela Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul e o ideário do projeto escolanovista católico que via a mulher como formadora nata das crianças e jovens que se tornariam cidadãos patrióticos e ao mesmo tempo, católicos fieis aos preceitos da Igreja. Assim, o currículo oferecia os conhecimentos necessários a esta educação, oferecendo aulas de cantos orfeônicos, prendas e economia doméstica, educação física, aulas de catecismo, além da formação geral e da específica do professor. Esta última, mais direcionada aos anos finais da formação da normalista, contemplava aulas de estágio supervisionado, didática e prática de ensino. O que ia ao encontro da formação oferecida a nível nacional orientada por meio do projeto escolanovista em voganos principais centros urbanos do país. Percebemos que desde a fundação do Instituto Orfanológico Santa Teresinha, em 1938, quando funcionava apenas o Curso primário, até os anos de 1965, quando a Instituição colocou em funcionamento o Curso Secundário, a Instituição vivenciou um processo de expansão considerável. Mas foi a opção por criar no ano de 1947, o Curso Normal Regional, com a finalidade de formar professores que otimizou as ações educacionais da Escola possibilitando que a mesma não só sobrevivesse às crises econômicas e doutrinárias por que passou, bem como expandisse suas ações a ponto de hoje, 74 anos após sua fundação, continuar sendo a Instituição de ensino mais tradicional no município e na região. Assim, a criação do Curso Normal Regional e as necessidades reais de educação vividas pela população fizeram com que a influência da Escola na formação local se expandisse cada dia mais. Atendendo as necessidades dos pais de alunos, em 1955, a Escola abriu suas portas aos meninos, tonando-se mista. Mas as mudanças continuariam e em 1965 o Curso Normal Regional passaria a denominar-se Escola Normal Padre Anchieta, podendo dessa forma, atender as determinações legais e continuar sua missão de formar professores. Mas este é um tema para um próximo trabalho. REFERÊNCIAS AZZI, Riolando. A Igreja Católica na Formação da Sociedade Brasileira. Aparecida, SP: Santuário, 2008. BEZERRA, Maria Irinilda da Silva. Dissertação de mestrado. A Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul: tecendo memórias e histórias sobre a formação religiosa católica alemã na Amazônia acriana (1947-1965). Rio de Janeiro, 2010. ______. Memória, história e educação: a Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul. VIII Congresso luso de História da Educação. São Luís/Maranhão, 2010. ______. A Interação na Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul: ideais católicos e valores morais. In: AMPED SUL: Formação, ética e políticas: qual pesquisa? qual educação?". Londrina, PR, 2010. CARVALHO, Marta. 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In: LOPES, Eliane Marta Teixeira. et al. 500 anos de educação no Brasil. 2 ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2002. i O Curso Normal Regional do Instituto Santa Teresinha foi fundado no município de Cruzeiro do Sul pela Prelazia do Alto Juruá, em 1947 e homologado pelo ministro da educação, através do decreto nº 100 de 30 de julho de 1949, registrado em 18 de março de 1959, com o nº2 de registro, no livro nº 1, embasado no direito de livre iniciativa e associação, fundamento do pluralismo escolar (cf. BEZERRA, 2010). ii Regimento Interno da Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul. S. d. iii Ir M. I., aluna da 11ª turma do Normal Regional. Cruzeiro do Sul/Acre. Entrevista concedida em 03 de setembro de 2009. iv Nesta parte da região acriana, destacou-se a presença da Congregação do Espírito Santo e da Congregação Dominicana de Santa Maria Madalena. v Jornal publicado no município de Cruzeiro do Sul. A edição referida foi dedicada a relatar a Colação de Grau da primeira turma de Normalista. vi R. de S. Aluna da Escola Normal Regional de Cruzeiro do Sul. Entrevista concedida em 2010. vii A. M. aluna do Curso Normal Regional e do Curso Pedagógico. Cruzeiro do Sul/Acre. Entrevista concedida em maio de 2012.