CRUZANDO O ATLÂNTICO E OUTROS HIATOS: LIGAÇÕES ARTÍSTICAS ENTRE BRASIL, ÁFRICA – E ALÉMi Roberto Conduruii Tradução de Marina Santos revista pelo autor London Snow Africa, London Hole Brazil, 1998-99, consiste em duas imagens fotografadas por Milton Machado nas ruas de Londres: um mapa de África coberto de neve e um buraco no asfalto que lembra o mapa do Brasil. Milton Machado, London Snow Africa, London Hole Brazil, 1998-99. Para além de questionar as dimensões políticas da cartografia, este trabalho propicia um interessante meio de abordagem às relações entre as artes plásticas e as questões sócio-culturais afro-brasileiras. O título, aparentemente literal, possui uma sonoridade que aponta para outros sentidos (diferença, identificação, domínio) e leva-nos a ter em consideração que as relações entre o Brasil e África são muitas vezes forjadas por mediadores externos, artistas não necessariamente de ascendência africana que estabelecem redes difusas de sentido no Atlântico e que configuram imagens singulares de África no Brasil. Também nos permite compreender como, apesar de ser uma constante no processo de modernização artística no país, a questão afro é pouco percepcionada e analisada, de modo correlato ao silêncio na sociedade brasileira sobre questões relacionadas à africanidade A afro-modernidade no Brasil As questões afro-brasileiras são simultaneamente inerentes e essenciais à compreensão da cultura brasileira. Contudo, essas ligações assumem formas diversificadas, com uma intensidade variável ao longo do tempo e do espaço, sendo que certos momentos e lugares são de particular importância para o processo de modernização artística. Uma dessas conjunturas ocorreu, entre finais do século XIX e princípios do século XX, nos meios artísticos académicos do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, no contexto da intensificação do processo abolicionista, do fim da escravatura e do início do regime republicano. Refletindo a complexidade dos processos de representação e auto-representação – nomeadamente das imagens que construíam de si mesmos e dos outros – pintores negros como Estêvão Silva, Antônio Firmino Monteiro, Antônio Rafael Pinto Bandeira e os irmãos João e Arthur Thimótheo da Costa moviam-se dentro dos géneros da pintura ocidental, evitando temas afro-brasileiros, cuja abordagem foi feita por artistas de ascendência não africana – como Belmiro de Almeida, Pedro Américo, Antônio Parreiras, Rodolpho e Henrique Bernardelli – embora com sentidos depreciativos que contribuíram para estabelecer uma posição marginal dos negros na sociedade. Um outro momento singular ocorreu por volta de 1910 em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, antecipando uma nova apreciação da componente africana na cultura brasileira. Deixando de ser encarada como negativa ou degenerativa, como um mal social a ser erradicado, a miscigenação transformou-se num valor cultural positivo – um paradigma para as relações artísticas e culturais. As referências recorrentes a mulheres e religiões sobressaem como parte do mapa artístico da cultura popular do Brasil. A imagem da baiana – como mãe-de-santo, vendedora de acarajéiii ou de fruta – chamou a atenção de Brocos, Anita Malfatti, Cecília Meireles, Oswaldo Goeldi e Cândido Portinari, entre muitos outros, e culminou no ícone internacional que foi Carmen Miranda. A mulata passou a símbolo da miscigenação, tendo sido homenageada, em especial, nas elegias pictóricas de Di Cavalcanti, o que ajudou a transformá-la num padrão de beleza brasileira, subvertendo, por um lado, os padrões estéticos ocidentais impostos pela cultura das belas artes, mas perpetuando, por outro, a objectivação sexual das mulheres negras. Este processo foi criticado de forma, a um tempo, monumental e afectiva por Tarsila do Amaral em A Negra, 1923, e por Anna Bella Geiger em Am.Lat, 1976, em que a mulata é integrada na perspectiva crítica da artista em relação à América Latina como parte de um repertório subserviente de sexualidade e de misticismo. Anna Bella Geiger, Am. Lat, 1976 Os anos 1950 trouxeram uma nova abordagem do tema que correspondeu simultaneamente a um desenvolvimento étnicocultural do modernismo brasileiro e a uma resposta em artes plásticas ao processo de construção de outra perspectiva sobre a influência cultural africana no Brasil, como a que foi então delineada pelo Movimento Negro. Na Bahia, Rubem Valentim começou a explorar as possibilidades de síntese entre os princípios e as formas do construtivismo e as religiões afro-brasileiras, uma tendência que se prolongou até aos nossos dias e se estendeu a outras regiões (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais) como resultado das iniciativas estéticas de Emanoel Araújo, Ronaldo Rego e Jorge dos Anjos que contrariam as persistentes ameaças a essas religiões – bem como a respetiva marginalização –, ao contribuirem para a sua visibilidade pública positiva. Outro desenvolvimento importante começou no final dos anos 1960, inserido na tendência da contracultura dessa época. No início dos anos 1970, as obras de Antônio Henrique Amaral, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e Regina Vater exploraram ligações específicas com a cultura afro-brasileira e, em particular, com as religiões afro-brasileiras estabelecidas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Durante esta década, os cultos afro conheceram uma espécie de reflorescimento nas artes (cinema, música, teatro, artes visuais) e nas ciências sociais.iv Nas artes plásticas, o diálogo com o universo afro-brasileiro é facilmente perceptível nas obras de Antônio Manuel, Artur Barrio, Cildo Meireles, José Roberto Aguilar e Waltercio Caldas. A partir dos anos 1990, o intercâmbio entre artistas plásticos e a afro-brasilidade viria a ganhar um novo ímpeto, paralelamente a uma nova vaga de aproximação às culturas africanas e afrobrasileiras em diversos campos culturais, particularmente no domínio da música popular; ao mesmo tempo, as políticas públicas têm procurado novos meios de inclusão social para as comunidades negras do Brasil. Estas realizações não chegam a constituir uma vertente específica, nem um conjunto imediatamente destacável na produção de arte contemporânea no Brasil. Trata-se de diálogos estabelecidos por artistas em determinadas obras específicas, baseadas nas suas experiências de múltiplas Áfricas heterogéneas – e, por vezes, esporádicas – presentes em várias cidades brasileiras dispersas pelo território brasileiro. MACUMBA PARA TURISTA? Este conjunto de ligações foi, ocasionalmente, denominado de arte ‘afro-brasileira’, sublinhando a ideia de uma mistura surgida no Brasil; noutros tempos, foi referido como arte ‘afro-descendente,’ enfatizando-se uma suposta pureza africana. Contudo, nenhuma destas classificações se reportou alguma vez exclusivamente à arte produzida por africanos no Brasil ou por brasileiros negros. Para além dos artistas brasileiros de ascendência não africana, como Milton Machado, inúmeros artistas europeus (alguns dos quais viriam a tornar-se cidadãos brasileiros) ocuparam-se de assuntos relacionados com a cultura afro-brasileira: o espanhol Modesto Brocos y Gómez, os mexicanos Henrique e Rodolpho Bernardelli, o lituano Lasar Segall, o argentino Hector Júlio Páride Bernabó (conhecido pelo nome de Carybé), o alemão Karl Heinz Hansen (com o pseudónimo de Hansen Bahia), o francês Pierre Verger, as portuguesas Maria Helena Vieira da Silva e Cristina Lamas e os norte-americanos Mathew Barney e Arto Lindsay. Baseando-nos na expressão ‘macumba para turista,’ que designa simulações de práticas religiosas afro-brasileiras para não iniciados,v poderíamos falar de ‘macumba por turista’ para referir este grupo de artistas. Recentemente, algumas produções artísticas, museológicas e historiográficas alargaram o carácter inclusivo desta tendência: o próprio nativo ou nativa podem ser o turista, o que nos leva a refletir sobre as diversas formas de pertença, despoletadas por obras feitas a partir de dentro e de fora, para os que pertencem e os que não pertencem a grupos étnicos, a religiões afro-brasileiras ou ao próprio Movimento Negro. Com certeza, corre-se o risco da generalidade, pois muito, quase tudo, pode ser associado à problemática afro no Brasil. Contudo, também se evita a idéia de raça, pautando-se menos em marcações étnicas e mais por valores culturais africanos imiscuídos a muitos outros nas complexas dinâmicas sociais brasileiras. Ou seja, em conjunções de Arte, Brasil e África para além de raça e etnia. MACUMBA DE ARTISTA? No Brasil, grande parte do diálogo artístico com o universo afrobrasileiro centrou-se nas religiões afro-brasileiras, ocupando-se das suas imagens e reforçando a tradição de representação das suas práticas iniciada no tempo em que o Brasil era uma colónia portuguesa. Enquanto as obras de Carybé e Verger têm muitas vezes um caráter etnográfico por se centrarem na cultura material, ritos e mitos afro-brasileiros, as investigações de Valentim exploram a sintaxe e a semântica características da simbologia presente nessas religiões. Valentim alude a várias religiões, em especial, mas não em exclusivo, às religiões afro-brasileiras, propondo combinações hieráticas e abstratas, reivindicando a respectiva universalidade. Araújo refere especificamente o candomblé, com um dinamismo que parece derivar do construtivismo lírico disseminado no Brasil e do poder do orixá Exu.vi Rego aproxima as estruturas plásticas rituais destas religiões a modalidades da arte contemporânea (quadros-objectos, instalações). Dos Anjos, influenciado pelos neoconcretistas no seu ‘construtivismo crioulo’, explora a tensão inerente à reversibilidade dos signos abstractos geométricos. Ao mesmo tempo, é possível observar apropriações directas ou indirectas de imagens pertencentes a religiões afro-brasileiras como consequência de investigações, conduzidas directamente em terreiros (espaços de culto) e disseminadas na paisagem ou na história da arte do Brasil. Macumba de Arthur Bispo do Rosário é uma obra particularmente notável, pela auto-representação e, simultaneamente, pela rearticulação de objectos e sentidos, na sua representação sintética das religiões afro-brasileiras, através do poder interventivo – ao mesmo tempo rude e poético – de múltiplos objetos. Alguns artistas tiveram, contudo, um considerável envolvimento e experiência com religiões afro-brasileiras, sem que tivessem sido necessariamente iniciados nelas. Algumas das melhores realizações nesta área recorrem tanto às consonâncias, como às descontinuidades entre arte, religião e cultura, entre o universal e o local. Em geral, essas obras rearticulam os procedimentos de desmaterialização característicos da arte contemporânea – performances, instauraçõesvii e instalações – em relação a práticas religiosas, em que ritos e objectos são fundamentalmente inseparáveis. Os rituais raramente se realizam sem a introdução ou a utilização de certos objetos que, de acordo com a tradição, têm de ser fabricados e apresentados segundo rituais específicos. Em Nimbo/Oxalá 2004, Ronald Duarte articula um acontecimento químico/físico com a divindade Oxalá, apresentando uma breve e incontrolável nuvem formada pela expulsão de todo o conteúdo de alguns extintores, como uma oferenda ao orixá da criação para os nagôs. Esta relação é reforçada por algumas características de Oxalá: o dia da performance (sexta-feira); a cor do fumo, que é também a cor dominante das vestes da congregação (branco); o elemento de formação temporária (uma nuvem) e uma das suas características (a sua omnipresença difusa). Numa obra que se repete tal ex voto, o artista explora a amplitude semântica das religiões e a disseminação clandestina dos seus signos no interior dos códigos culturais brasileiros. De modo similar, prescindindo de representações icónicas e explorando a multiplicidade semântica dos signos através de uma intervenção performativa fugaz, Marepe realizou Pérola de água doce, 2007, lançando treze mil pérolas de água doce no rio Tietê, em S. Paulo. Situando-se na fronteira entre o artístico e o religioso, a performance foi apresentada como uma oferenda ritual a Oxum (a divindade afro-brasileira mais poderosa e directamente associada à água doce) e também como um manifesto contra a poluição do rio e a degradação ambiental. É, então, legitimo perguntarmo-nos se alguns dos diálogos artísticos com religiões afro-brasileiras não deveriam ser classificados de ‘macumba de artista’: a exploração deliberadamente ‘exótica’ destas religiões para efeitos estéticos. Sem dúvida que a abundância de obras ligadas a religiões afro-brasileiras é importante para a integração social dessas religiões. No entanto, a esteticização de certos elementos dessas religiões constitui uma dimensão da sua transformação em espectáculo através da arte que pode estar ligada à ‘hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras’ dada a ênfase colocada no seu valor estético e mercantil.viii ARTE DE MACUMBEIRO? Há que distinguir entre uma esteticização dos cultos religiosos, que decorre de uma desvalorização dos valores éticos e que tem como consequência a redução do seu significado a mera aparência, e a dimensão estética intrínseca a essas religiões. Isto leva-nos a refletir sobre a inserção de objectos e práticas religiosas no mundo da arte, naquilo que poderíamos denominar de ‘arte de macumbeiro.’ A obra de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, mais conhecido por Mestre Didi, presente nas instituições de arte no Brasil e no estrangeiro desde os anos de 1960, testemunha a possibilidade de conservação das características ou atributos requeridos pela religião e pela sua expansão a outros domínios. Embora a obra e a carreira de Mestre Didi anunciem transições mais amplamente influentes e culturalmente inclusivas entre os mundos da religião e da arte, estabelecendo precedentes para as obras de Lena Martins, Wuelyton Ferreiro e Júnior de Odé, não deixam de ser excepções no que respeita ao estatuto marginal da arte religiosa afro-brasileira no circuito artístico. Para entender a invisibilidade desta tendência artística é necessário compreender a posição social dos negros brasileiros e de suas práticas culturais.O que nos leva a reflectir sobre realizações artísticas vinculadas à causa da negritude, uma tendência que ganhou maior relevância recentemente. ATIVISMO ARTÍSTICO? A articulação entre a arte, a política e a condição negra no Brasil nos conduz à intervenção do Movimento Negro no campo das artes e, consequentemente, à militância intelectual e política de Abdias do Nascimento em prol das populações afro-brasileiras.ix Tendo desenvolvido a sua actividade nas áreas da poesia e do teatro, bem como na da política, A. do Nascimento procurou, quando passou a dedicar-se às artes visuais nos anos 1950, criar uma nova imagem pública para os negros, fundar um museu e divulgar o conhecimento sobre a arte negra. O caso de Araújo é semelhante, uma vez que também se tem dedicado ao ativismo político no campo institucional da arte, em especial como editor de livros, curador de exposições e director de museu – actividades essas que acabariam por culminar na criação, em 2004, do Museu Afro-Brasil em S. Paulo, a maior e mais importante iniciativa museológica dedicada à reflexão sobre a participação de africanos e seus descendentes na formação do Brasil. No grupo de artistas que tem procurado ligar a causa afro-brasileira à tradição da arte engajada, que denuncia a exclusão social e chama a atenção para a situação do socialmente abjecto, incluem-se Johann Moritz Rugendas, Lucílio de Albuquerque, Cândido Portinari, António Henrique Amaral, Sebastião Salgado e Vik Muniz. Dentro desta tendência, há que salientar as representações críticas de Lasar Segall do sofrimento ou da melancolia dos homens negros. Bananal, 1927, retrata a sabedoria humilde de negros idosos, feita de um misto de culturas ancestrais e de sofrimento, de marginalidade e de resistência gerados pela escravatura, em que se baseia a figura do preto velho,x que relaciona a condição política do trabalhador rural com o universo religioso afro-brasileiro. Hoje em dia, os artistas mais jovens referem frequentemente as obras de Meireles e Pape por levantarem a questão da exclusão racial. A obra Inserções em circuitos antropológicos: Black Pente, 19711973, de Meireles fala explicitamente das políticas de exclusão no Brasil, sendo apresentada do seguinte modo: Projeto de produção e distribuição a preço de custo de pentes para negros. Na série Inserções em circuitos ideológicos o dado fundamental é a constatação da existência do(s) circuito(s), e a inserção verbal constitui uma interferência nesse fluxo de circulação, isto é, sugere um ato de sabotagem ideológica contra o circuito estabelecido. Já nas ‘Inserções em circuitos antropológicos’ (Black Pente, Token), importa mais a noção de ‘inserção’ do que a de circuito: a confecção de objetos, elaborados em analogia com os do circuito institucional, tem por objetivo induzir a um hábito e, daí, à possibilidade de caracterizar um novo comportamento. No caso específico de Black Pente, o projeto trabalharia no sentido de afirmação de uma etnia.xi Caso tivesse sido realizado, Black Pente atacaria de modo bem humorado as políticas de desvalorização de penteados, cabelos, corpos e culturas negras presentes cotidianamente na sociedade, participando da valorização da negritude por um flanco geralmente tido como secundário, investindo contra os cerceamentos à alteridade comportamental. Recentemente, algumas intervenções artísticas participaram nesta luta através da inserção de mensagens lúdicas e bem-humoradas nos circuitos e práticas urbanos, abordando questões mais gerais sobre a condição social dos afrobrasileiros. A Frente 3 de Fevereiro, de S. Paulo, questiona o racismo profundamente implantado na sociedade brasileira na sua Ação Bandeiras, 2006, levada a cabo em estádios de futebol. Este colectivo incita as massas a passar à acção, levando-os a desfraldar e a ler enormes bandeiras, celebrando a visibilidade e o alcance da identidade afro-brasileira com slogans enfáticos como ‘Brasil negro salve’, ‘Onde estão os negros?’ e ‘Zumbi somos nós’.xii Na sua paródica e subtilmente incisiva Caixa Brasil, 1968, Pape utiliza a ironia para criticar a instituição da arte e o mito segundo o qual a nação brasileira teria sido formada, de forma harmoniosa por portugueses, povos indígenas e africanos. Representando as etnicidades através de madeixas de cabelo loiro, castanho e preto, Pape ataca a hierarquia racial que se manifesta na sociedade brasileira através da valorização do cabelo liso, fino e claro, em detrimento do cabelo escuro, grosso e frisado, bem como de práticas museológicas como o fetichismo, a acomodação, o isolamento, o controle e o voyeurismo. Ayrson Heráclito, Divisor 2, 2001. Foto: Edson Varas. Na mesma linha crítico-poética, uma outra via de abordagem ao universo afro-brasileiro envolve a utilização de materiais com conotação étnica e referências culturais mais ou menos circunscritas. Em Divisor 2, 2001, composto de três grandes caixas de vidro contendo sal, água e óleo de palma, Ayrson Heráclito vai além da literalidade desses materiais e explora dimensões metafóricas baseadas na sua justaposição: água e sal são indissociáveis no mar; o óleo de palma é feito a partir de nozes de palma e a palma (Elaeis guineensis) tem múltiplas conotações nas religiões afro-brasileiras, podendo o óleo das suas nozes representar o sangue humano. A referida obra apresenta, assim, uma combinação de materiais que remete para o Oceano Atlântico como fulcro dos processos sociais decorrentes do transporte forçado de africanos para serem escravizados no Brasil ocorrido entre os séculos XVI e XIX. Ao permanecerem isolados, em camadas, numa interacção parcial e contraditória, esses materiais remetem para a impossibilidade de se pensar o Atlântico sem ter em consideração os impasses da diáspora e as suas consequências, a impossibilidade de se pensar o mar sem o sangue nele e a partir dele derramado. Deste modo, os ditos materiais simbolizam complexas ligações e disjunções de pessoas, grupos sociais, religiões e culturas entre a África e o Brasil. Ainda assim, podemos questionar até que ponto obras que se centram em temas afro-brasileiros podem ser identificadas como ativismo de artista: ações políticas circunscritas ao âmbito artístico sem pretensão de interagir com as demais forças do campo político. O que estaria vinculado ao dito “a(r)tivismo”xiii e seria uma modalidade atual de arte panfletária. Não há dúvida que tais obras estão ligadas ao presente brasileiro e contribuem para uma maior visibilidade das questões relacionados com a condição dos negros na sociedade brasileira. Uma das consequências desta visibilidade tem sido o incremento de políticas públicas em defesa dos brasileiros negros nos últimos anos. A questão que se coloca não é apenas a de se saber se a arte poderá ou não ter um papel efetivo na transformação do campo social, ou seja, para além do seu domínio próprio; é também a de se perceber em que medida a intervenção política poderá ser revitalizada através da arte, no presente. ARTE+RELIGIÃO+POLÍTICA+ Na maior parte dos diálogos artísticos com temas afro-brasileiros, a religião e a política misturam-se com outras matérias, sejam elas de índole artística ou pertencentes a outros domínios, tempos e lugares, já que as referências africanas e afro-brasileiras raramente são exclusivas. O trabalho de Rosana Paulino constitui um exemplo desta amplitude de expressão. Vivendo em São Paulo, a artista tem desempenhado um papel pioneiro na recente intensificação destes diálogos, com uma perspectiva original que abarca o individual e o colectivo, a partir da sua experiência como artista negra. Na sua obra, R. Paulino utiliza material impresso e objectos manufacturados e alude a fetiches e sortilégios (adivinhação ou profecia) que podem estar relacionados – embora não exclusivamente – com as religiões afrobrasileiras. Parede de memória, 1994, que consiste em imagens das suas antepassadas impressas em patuás (talismãs, fetiches ou amuletos africanos), versa sobre as crenças, a memória e a transmissão de geração em geração de conhecimentos e práticas que tornam possível a sobrevivência cultural em contextos adversos. Noutras obras – que não se referem explicitamente ao âmbito religioso –, Rosana Paulino alude às interdições quotidianas impostas às mulheres negras, que se prendem com constrangimentos sociais antigos e actuais, bem como aos condicionamentos à sua própria actividade e expressão como artista e mulher negra. Rosana Paulino, Parede de Memória (detalhe da instalação), 1994. Situações de micro e macro-poder são também tematizadas (habitualmente com um humor cáustico que está a milhas do ‘politicamente correto’) nas intervenções de Alexandre Vogler, que abordam o universo das religiões do Brasil de uma perspectiva satírica. Em Tridente de Nova Iguaçu, 2006, o artista imiscui-se, de forma aberta e provocatória, numa guerra religiosa que, na altura, decorria numa região densamente povoada por terreiros e outros locais de culto. Com ironia crítica, o artista explora a demonização de Exu pelas religiões cristãs tradicionais, propondo o orixá como patrono da mediação táctica; fá-lo, pintando um tridente de cal e colocandoo na serra do Vulcão, atrás e acima do Mirante do Cruzeiro (o nome refere-se à cruz que existe no monte, um poderoso símbolo religioso e cultural que domina a paisagem da região). Deste modo, Vogler explora a ambiguidade do signo que remete, ao mesmo tempo, para o ceptro mitológico de Neptuno e o tridente de alguns Exus afro-brasileiros, desafiando tanto a intolerância religiosa como o populismo político que atacaram a obra e o artista, destruindo a primeira e ameaçando processar o último. Alexandre Vogler, Tridente de Nova Iguaçu, Foto, 110 x 70 cm, 2006 / 2009. Foto: João Laet. O diálogo entre a arte e a cultura afro-brasileira nem sempre foi pacífico. Do mesmo modo que a condição social dos afro-brasileiros continua a ser, em grande medida, desigual e injusta, a forma como é representada dá muitas vezes origem a mitos, estigmas ou caricaturas. O desafio destes artistas, com sucesso variável, é tentar atingir o estatuto crítico/poético da arte, em diálogo com cultura afro-brasileira, sem ter de produzir obra sacra ou panfleto artístico, embora, ocasionalmente, as suas obras possam assumir-se como realizações religiosa e politicamente engajadas – uma dinâmica e um risco que têm afectado tanto críticos como historiadores, ambos sujeitos à condescendência e à ingenuidade, em nome da fé ou da causa negra. Apesar disso, os diálogos entre a arte e a cultura afrobrasileira constituem um ramo da produção de arte contemporânea no Brasil que não pode ser ignorado, nem pela crítica de arte, nem pela historiografia. ÁFRICA AQUI, ALI E ALÉM Ao apresentar sua obra, Milton Machado diz: “ Em tempos remotos, estes dois pedaços de terra – África e Brasil – estavam ligados. Faziam parte de Pangea, o continente unido que se dividiu na sequência de cataclismos ocorridos no período câmbrico. É em Londres que me apercebo da brecha ('mind the gap')”. Entretanto, ele não foi o primeiro e muito menos o único a perceber de fora conexões e lacunas entre Brasil e África. Com efeito, é raro essas conexões artísticas serem feitas diretamente, tendo sido muitas vezes estabelecidas a partir da Europa e dos EUA. Foi em Paris que Tarsila pintou A Negra, quando descobriu a negrofilia e se recordou dos negros que vivam na fazenda de café onde fora criada. Foi motivada e acompanhada por Blaise Cendrars que ela, assim como outros artistas e escritores, empreendeu viagens ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, enveredando por imagens e práticas populares, cuja observação distanciadamente afetiva gerou suas telas algo etnográficas dos anos 1920. Quando, nos anos 1960, a ditadura militar o levou ao exílio nos EUA e em África, Nascimento começou também a pintar temas afro-brasileiros. Embora, na sua escrita, defendesse o panafricanismo, os seus quadros revelavam um esforço no sentido de conseguir uma visibilidade pública positiva para a cultura afrobrasileira através do realce dos mitos iorubá. Foi no Museu Britânico, em Londres, que Darcy Ribeiro selecionou a imagem de um Oni de Ifé para representar Zumbi dos Palmares como herói nacional no Rio de Janeiro, superpondo etnias, religião e política. O tema recorrente da religião não constitui surpresa, uma vez que foi, sobretudo, por meio das religiões (africanas, afro-brasileiras ou outras) que a África foi interiorizada e experienciada no Brasil através dos terreiros – espaços omnipresentes de preservação dos valores culturais africanos. A obra de Mestre Didi é o melhor exemplo da sobrevivência de técnicas, símbolos e ideologias africanas, apesar dos hiatos temporais e espaciais. Agnaldo Manoel dos Santos representa outro exemplo excepcional de continuidade apesar da ruptura. Em 1966, a sua obra galardoada foi considerada um símbolo da “universalidade do africanismo, preservado pela expressão estética de novas culturas” na primeira edição do Festival Mundial das Artes Negras em Dakar, Senegal.xiv Ao longo deste processo, os contactos directos com África foram esporádicos. Nas suas viagens a esse continente e nas obras que se situam na fronteira entre a arte e a etnografia visual, Carybé e, sobretudo, Verger enfatizaram continuidades culturais entre os dois lados do Atlântico, cuja disseminação teve um forte impacto nas comunidades religiosas. Se suas realizações geraram percepções do todo africano a partir de partes, o trabalho recente de Viga Gordilho assenta em sobrevivências específicas entre contextos sócio-culturais africanos e brasileiros relacionados com processos de afirmação da identidade de grupos étnicos no Brasil. Resultado tanto da escassez de contactos directos com a África como do carácter difuso e permanente da presença africana no Brasil – presença que nunca é encarada com a abrangência que poderia ou deveria ter – a África no Brasil, continua em aberto: ela é um futuro. ©Tate, direitos reservados Tradução portuguesa do texto Bridging the Atlantic and Other Gaps: Artistic Connections between Brazil and Africa - and Beyond, publicado em 2010 por Tate Publishing em Afro Modern: Journeys through the Black Atlantic. i A presente versão portuguesa deste texto é, também ela, resultado de diversos cruzamentos atlânticos. Tendo sido utilizada a tradução inglesa publicada no catálogo Afro Modern: Journeys through the Black Atlantic (Tate Publishing, 2010), a mesma foi vertida para Português, em Portugal, sendo depois revista pelo autor, no Brasil. Processo de que terá resultado uma versão mais híbrida, enquanto resultado dessas viagens de textos. Agradecemos ao autor a disponibilidade para rever a versão ‘lusa,’ bem como aos artistas que forneceram as imagens que acompanham o texto e autorizaram a respectiva reprodução. À Tate Liverpool agradecemos também a autorização de publicação deste texto que poderá iniciar, quem sabe, um alargamento da própria concepção do website ArtAfrica a outros trânsitos africanos e às suas diásporas. - A Administação do www.artafrica.info ii Roberto Conduru é historiador da arte, professor no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro e ex-presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte, é autor de Arte Afro-Brasileira (Belo Horizonte: C/Arte, 2007), de entre outros trabalhos relacionando arte, África e Brasil. iii Nota da tradução inglesa: acarajé é um prato feito de feijão-frade pelado e amassado em almôndegas que depois são fritas em óleo de dendê (óleo de palma). Faz parte da culinária nigeriana e da culinária brasileira. No Estado nordestino da Bahia e especialmente na cidade de Salvador é um prato tradicional, servido muitas vezes como comida de rua. O acarajé é partido ao meio e recheado com uma pasta condimentada feita de camarão, caju, óleo de palma e outros ingredientes. iv Ver Yvonne Maggie, Guerra de orixá, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001. v Nota do editor inglês: macumba é um termo de origem africana (Bantu) utilizado no Brasil para referir rituais ou religiões de origem africana. O termo tem muitas vezes conotações pejorativas, reportando-se a superstições, bruxaria, rituais e crenças baseados na sorte; mas, quando utilizado por praticantes dessas religiões, não é visto necessariamente como tendo implicações negativas. vi Na tradição iorubá, os orishas (orixá, no Brasil) constituem manifestações espirituais de uma divindade suprema. Nas religiões sincréticas de origem africana (tais como o candomblé e a santeria), o culto dos orishas misturou-se com a veneração católica dos santos; por isso, certos orishas apresentam características dos seus equivalentes católicos. vii Nota da tradução inglesa: trata-se de um neologismo. Instauração é o nome que Antonio Mourão, mais conhecido por Tunga, dá a uma estratégia, recorrente na sua obra, que consiste na incorporação de pessoas não pertencentes ao mundo da arte como protagonistas de uma espécie de performance, obedecendo a um ritual com objetos e materiais sugeridos pelo artista; os restos da performance constituem uma instalação que é exposta. O todo formado por performance + processo + instalação ‘constrói’ um mundo. viii Ver Reginaldo Prandi, “Hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras,” Novos Estudos CEBRAP, nº 56, 2000, pp. 77-88. ix Nota do editor inglês: Nascido em 1914, Nascimento foi um famoso líder do movimento negro no Brasil. Em 1968, foi condenado ao exílio pela ditadura militar, após o que se tornou um membro muito ativo do Movimento internacional Panafricano. Regressou ao Brasil em 1983. x Nota da tradução inglês: a figura do preto velho está relacionada com Santo António e/ou S. Benedito e representa as almas de velhos escravos morridos em cativeiro. São espíritos pacíficos e bondosos que possuem grande sabedoria acerca do sofrimento, da compaixão, do perdão e da esperança. xi Cildo Meireles, Cildo Meireles, Rio de Janeiro, Funarte, 1981. xii Nota do editor inglês: Zumbi dos Palmares (1655-95), que se transformou num herói nacional, foi o último chefe do Quilombo dos Palmares, uma república negra de escravos fugidos, em Alagoas. Foi comandante geral desse quilombo durante a resistência aos portugueses e a subsequente rebelião, tendo sido capturado e executado a 20 de Novembro – data celebrada no Brasil como o Dia da Consciência Negra. xiii Juliana Monachesi. “A explosão do a(r)tivismo”. Folha de S. Paulo, 06 abr. 2003. xiv Ver Clarival do Prado Valladares, “África Nova: a busca do universal,” Jornal do Brasil.