VIAGENS E PEREGRINAÇÕES À SANTIAGO DE COMPOSTELA NA IDADE
MÉDIA.
Cristiane Sousa Santos1
Renata Cristina de Sousa Nascimento (Orientador)2
RESUMO
Em constante busca por sua salvação o homem no medievo partiu em cruzadas e peregrinações
em busca de indulgências, expiação dos pecados e redenção, vivendo em prol do além vida.
Dentre as peregrinações que mais se destacaram na Idade Média está à peregrinação ao local
que segundo a tradição repousam as relíquias de um dos mais diletos discípulos de Jesus Cristo,
Tiago Maior. O Caminho de Santiago de Compostela unia a Europa Medieval e colaborou no
fortalecimento dos pequenos reinos católicos da Hispania diante da invasão moura. As
narrativas e os caminhos relacionados ao mito jacobeu proporcionam um vislumbre do mundo
que o homem medieval almejava e suas crenças que não raro se aproximavam do exótico e do
maravilhoso. Tais narrativas serviam para fundamentar a presença das relíquias do Santo
Apostolo nos confins do Ocidente conhecido até então e como orientação aos peregrinos.
Repletos das mirabilia que dominavam o pensamento coletivo do homem medieval as
narrativas e os documentos que intencionam legitimar o mito jacobeu, tornam-se peças
fundamentais na analise do imaginário do homem medieval. Além de podermos vislumbrar as
contribuições que essas narrativas emprestaram a cultura e o poder continuamente.
PALAVRAS-CHAVE: Peregrinação. Medievo. Mirabilia. Tiago Maior. Narrativa.
INTRODUÇÃO
Encontrado no século IX por obra de uma revelação a um eremita no limite do Ocidente
conhecido até o período, o túmulo que abriga São Tiago sacramenta a tradição que garante que
o apostolo teria predicado na Hispania e após ter realizado sua obra, teria retornado à Jerusalém
onde sofreu o martírio.
En el curso del undecimo año desde la misma Pasión de Cristo, en el tiempo de los
azimos, el bienaveturado apostol Santiago, traz visitar las sinagogas de los judios, fué
preso em Jerusalém por el pontifice Abiatar. (Liber Sancti Jacobi, op. Cit. 1992: 393
apud VIDOTTE e RUI, 2011: 146).
_____________________________________
1
Bolsista PIBIC UEG e graduanda em História no Campus Universitário de Ciências Sócio-Econômicas e
Humanas da Universidade Estadual de Goiás (UnUCSEH-UEG). Email: [email protected]
2
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Universidade Federal de Goiás,
da Universidade Estadual de Goiás e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). Email:
[email protected]
Seguindo tal pressuposto, os discípulos de Tiago então teriam resgatado seu corpo que
teria sido transportado de forma miraculosa de volta à Hispania. Segundo uma das mais
importantes narrativas sobre o mito jacobeu, o Liber Sancti Jacobi os discípulos de São Tiago
teriam encontrado por obra de uma revelação divina o local de repouso das relíquias do Santo
Apóstolo. Francisco Singul aventa que a descoberta do sepulcro possivelmente entre 820 e 830
seria o ressurgir de um culto esquecido durante o século VIII em decorrência da invasão
muçulmana e da queda do Estado visigodo. (SINGUL: 1999: 36). Contudo, algumas narrativas
como os Martirológios de Floro de Lyon (entre 830 – 840) e de Adão de Lyon (possivelmente
860), que se apresentam como algumas das fontes responsáveis pela difusão da “redescoberta”
do sepulcro de São Tiago, possivelmente sejam cópias do Martirológio de Beda que um século
antes da revelatio já noticiava a existência e o local do sepulcro das relíquias jacobinas.
Fortalecendo consubstancialmente a crença de que Tiago Maior teria sido o evangelizador da
Galiza.
A tradição conta que, o eremita Pelayo teria visto por seguidas noites, luzes anormais
no bosque próximo a sua residência. Entendendo que esse fenômeno poderia se tratar de um
sinal divino, Pelayo se encaminhou ao bispado de Iria Flavia o mais próximo de sua vivenda e
relatou ao próprio Bispo, Teodomiro o estranho fenômeno.
Após vários dias em oração e jejum, Teodomiro se encaminhou ao bosque e encontrou
o sepulcro no qual repousavam três corpos, identificados imediatamente como sendo os do
Santo Apostolo e de dois de seus discípulos. (SINGUL: 1999: 35).
VIAGENS E PEREGRINAÇÃO: O CAMINHO DE SANTIAGO
São vários os caminhos que cortam a Europa e levam à Basílica Compostelana.
Contudo, o caminho francês se destaca:
Por Caminho de Santiago entendemos um itinerário privilegiado entre outros e um
espaço ritual indissociável da meta a que conduz; muitos são os caminhos que levam
a Compostela, mas quase todos acabam por se encontrar no que se chamou de
Caminho Francês, o Caminho de Santiago por antonomásia. A rota de peregrinação
comunicava as capitais e principais cidades dos reinos hispano-cristãos (Jaca,
Pamplona, Nájera, Burgos, Leão e Compostela) com os caminhos e terras do resto da
Europa. (SINGUL: 1999: 132).
O dinamismo do Caminho e a intensa devoção dedica à São Tiago, proporcionaram um
impulso cultural seja em grandes obras de arquitetura e escultura, música e literatura, que se
personificam com vigor nas Igrejas e outras construções do Caminho ou em obras como o Liber
Sancti Jacobi, o Livro de Santigo, um verdadeiro monumento à peregrinação à Santiago e ao
culto jacobeu.
O LIBER SANCTI JACOBI
O Liber Sancti Jacobi ou Códice Calixtino, pelo interesse de seus autores em simular a
autoria do papa Calixto II (1119 – 1124) (SINGUL, 1999:165), é um importante documento
composto provavelmente no final do século XII e funcionou como instrumento de afirmação
da peregrinação.
O livro tem a finalidade de exaltar a devoção e o fervor dos jacobitas e de promover
a confiança dos mesmos no amparo de São Tiago, sobretudo quando estão fazendo a
peregrinação ao Santo Sepulcro de Compostela. (DÍAZ Y DÍAS, 1998: 35-36, 53-55
apud SINGUL: 1999: 165).
Vários documentos relatavam sobre a presença do sepulcro jacobino na Hispania. Como
o códice tais narrativas eram permeadas por aspectos do maravilhoso e das “mirabilia” que
povoavam o imaginário coletivo. O historiador francês Jacques Le Goff ressalva que na Alta
Idade Média entre os séculos V e XI havia certa repressão ao “maravilhoso”, mas que no século
XII tal prática volta a ser vista na intelectualidade por subentender que esse gênero não mais
representava perigo à cristandade. Dessa forma a “cultura erudita” haveria de se apoderar dos
aspectos fantasiosos tão apegados aos documentos como o Liber Sancti Jacobi. (MALEVAL,
2005: 23).
Dividido em cinco partes, o Liber Sancti Jacobi funciona como um manual do peregrino
além de conter livros com a biografia do Santo Apostolo e sobre o translado de suas relíquias
para a Galiza. Além, de se apresentar como instrumento de legitimação do culto jacobeu e sua
influência na unificação hispânica enquanto território católico que fazia frente aos muçulmanos.
O Códice Calixtino, trata-se então de um monumento ao Caminho de Santiago e ao esplendor
da catedral românica de Compostela. Tal documento que recebeu a benção do Papa nos dá a
dimensão da importância que o culto a São Tiago alcançou na Idade Média.
Pode-se concluir afirmando que, em todo o século XII europeu, nenhum outro Santo
– nem São Pedro em Roma – recebeu tanta honra no Ocidente como São Tiago Maior
(TORRES RODRÍGUES, 1974: 56 apud SINGUL: 1999: 167).
Com a descoberta do tumulo no século IX, reis, nobres e santos como São Francisco de
Assis e a Santa Isabel de Portugal, a rainha santa (SINGUL, 1999: 63), fizeram a peregrinação
à Compostela em devoção a São Tiago. O Caminho de Santiago era favorável àqueles que
empreendiam a peregrinação, pois Jerusalém se encontrava na posse dos muçulmanos e Roma
era vista como uma cidade política. Sobretudo o pequeno reino da Península Ibérica que lutava
constantemente contra a invasão islâmica e assim despertava a admiração do restante da Europa.
Quando se instituiu o Ano Santo, em pleno século XII, só podiam ser perdoados
determinados pecados graves através da peregrinação a Compostela como penitentes,
orando, confessando-se e comungando na basílica apostólica. (SINGUL, 1999: 63).
Assim como o Liber Sancti Jacobi vários documentos mantêm narrativas que intentam
legitimar a presença do sepulcro jacobeu nos limites da Galiza. Tais como a História
Compostelana e o Breviarum Apostolorum (século VI). Outros importantes autores como Beda,
o Venerável, Santo Isidoro de Sevilha e Santo Adelmo de Malmesbury também deram pistas
sobre o sepulcro de São Tiago e sua pregação na Península Ibérica. Composta possivelmente
no ano 1100 pelo bispo Xelmírez, responsável pela construção da Catedral Românica de
Compostela, A História Compostelana é tida como uma obra historiográfica na quais
documentos oficiais e narrativas eram compiladas e ligadas entre si que oferecem uma
perspectiva do contexto histórico no qual se produzia a documentação. (SINGUL, 1999: 113).
Tais registros que compõem a História Compostelana contribuíam para agregar um valor
histórico a Sé Apostólica e demonstram aspectos do período além da expansão e extensão do
prestigio da Catedral Compostelana. O Breviarium Apostolorum, composto provavelmente no
século VI é um dos documentos primordiais a relatar as pregações apóstolicas e a dar a
descrição da viagem de Tiago à Hispania além de divulgar a localização do sepulcro jacobeu
um século antes da sua descoberta no século IX. Esses documentos e as narrativas descritas por
diversos autores no medievo reforçaram a crença da evangelização jacobéia na Hispania.
A Universalidade da mensagem da pregação jacobéia suscitou uma resposta geral e
inequívoca: encontrara-se a Tumba do apóstolo que evangelizou os confins ocidentais
da Europa. Segundo o Breviarium Apostolorum, a Gália recebera o batismo por São
Felipe e a Hispania por São Tiago. A tumba de São Felipe não aparecera em território
franco, nem se tinha conhecimento dela no Ocidente. No entanto, sabia-se do sepulcro
de São Tiago. A Europa com a Revelatio da tumba jacobeia, tinha uma meta clara
onde achegar-se a fim de rogar pela sua alma e saúde, […] A Europa encontrara o seu
novo intercessor e queria render culto às suas relíquias, na procura de que se
pacificassem os espíritos e na esperança de que os povos do Ocidente pudessem
renascer como civilização cristã. (SINGUL: 1999, 53).
O culto jacobeu colaborava então para o fortalecimento da cristandade católica e da
soberania ibérica diante da ameaça muçulmana. É possível visualizar nessas narrativas o Santo
Apostolo caracterizado conforme a necessidade de um período. Nessas fontes acompanhamos
as viagens simbólicas de São Tiago entre o Paraíso e a Terra, seja para realizar seus milagres
ou mesmo para combater os infiéis ao lado dos cristãos. São Tiago ora é visto como
evangelizador ora como guerreiro, fortalecendo as ações dos cristãos perante os muçulmanos e
até mesmo como mote para a união entre cristãos em torno de um objetivo em comum. Na frase
Dios, ayuda, et Sanct Yague! Ouvia-se um grito de guerra manifestado por um guerreiro cristão
e repetido por seus comandados nos combates contra os muçulmanos. (VIDOTTE e RUI, 2011:
157). Como tal reforçava o apego e a confiança que os guerreiros tinham nas intervenções de
São Tiago nos combates.
Por assim dizer, um fenômeno religioso, a devoção a São Tiago e a peregrinação ao
sepulcro em Compostela, consistia de diversos caminhos que movimentaram a Europa na Idade
Média. Em expiação das culpas, em busca de graças ou mesmo nas peregrinações de aluguel,
nas quais um peregrino percorria o caminho em expiação dos pecados de outrem, ou para rezar
pela alma de um defunto.
Os homens do século XII amaram apaixonadamente essas viagens. Parecia lhes que a
vida do peregrino era a própria vida do cristão. Pois o que é um cristão senão um
eterno viajante que não se sente em casa em parte alguma, um viajante em marcha
para uma nova Jerusalém. (BATISTA NETO, 1988: 181 apud VIDOTTE e RUI,
2011: 158).
Dessa forma, as viagens simbólicas presentes no Liber Sancti Jacobi e em outros
documentos do período que versam sobre esse assunto, as viagens para a descoberta do túmulo
do apostolo e as viagens dos peregrinos que proporcionaram a disseminação do Culto à Santiago
são alguns dos diversos objetos de pesquisa que esse fenômeno da cristandade pode nos
proporcionar enquanto fonte.
O homem peregrino é o homo viator por excelência (VIDOTTE e RUI, 2011: 157).
Tendo em vista que o peregrino era aquele que ia à Casa de São Tiago e retorna dela, o romeiro
o homem que vai a Roma por devoção e o palmeiro aquele que parte rumo a Jerusalém para
orar nos lugares santos (SINGUL, 1999: 57). A peregrinação a Santiago de Compostela na
Idade Média seja em suas viagens físicas no que diz respeito ao trajeto dos diversos caminhos
que ainda hoje são passiveis de visitação e que desenvolveram culturalmente e economicamente
seus respectivos lugares. As viagens simbólicas empreendidas sejam por São Tiago ou por seus
peregrinos nas situações correntes do imaginário medieval. O mito jacobeu e seu culto, o
terceiro em importância da Cristandade, movimentaram a Europa medieval em diversas
vertentes. Como podemos vislumbrar nas palavras de Maria Consuelo Cunha Campos no
poema “Botafumeiro” nome do incensório tido como o maior do mundo que se encontra na
Catedral de Santiago.
[...] Do fondo da Idade Media rexurden
intensas corporacións de peregrins farrapentos:
van camiño de Santiago, face pálida, bordon na man
que o xexún, esmorecido, fai tortorear o camiño.
Dan os físicos os peregrins meiciñas;
Danlle os curas vestidos novos
arrecendendo, do fume balsâmico,
corpos suxos e fedorentos.
Na nave coagulada, ó coro das ladaíñas
balazan botafumeiros
péndulos de un tempo
en que xá non velan no vaivén da fumaza
cabaleiros em vexilias de armas.
.............................................
Van pola entrada do tempo
en resonancias
romarias de barons e bispos
..............................................
Levan grosas alfais e comestibles
escuderos, toda criadagen
carrozas e cabalos.
Por todo o camiño de penitencia
van pobres e van ricos,
van o pan de cada dia,
a pousada de cada noite
e a abundancia de a cotio:
van o exceso parello con a carencia
polo camiño de Santiago.
(CAMPOS, 1995: 142-143 apud MALEVAL, 1999: 155- 161).
Tendo em vista que o Caminho de Santiago e a Basílica em Compostela ainda hoje são
destinos de viagens e peregrinações, muitos dos atuais peregrinos apresentam motivações
distintas daquelas dos homens medievais, mas o Culto em busca da expiação de culpa e na
busca por uma graça ainda são presentes e despertam diversas reflexões por sua abrangência e
longevidade como vemos através das expressões do poeta brasileiro Murilo Mendes
Santiago de Compostela isolada no campo,
Mas na tua direção marchou a Europa
Pesquisando paralelos Corpo e estrela
(MENDES, 1994: 583 apud MALEVAL, 2005: 11).
Mendes se refere dessa forma em relação à peregrinação tamanha impressão que esse
fenômeno lhe traz. Santiago de Compostela, localizada no chamado Finisterre, o pequeno reino
de Galicia que conseguia atrair multidões sejam de humildes servos aos poderosos reis e
eclesiastas (MALEVAL: 2005: 11).
Sendo assim, pretendemos entender os aspectos que estenderam a propagação da
peregrinação à Santiago de Compostela, as mudanças que a mesma foi seguindo ao longo desse
período, o fortalecimento dos reinos castelhanos enquanto monarquia cristã que se utilizou da
tradição jacobina para fazer frente aos muçulmanos. O desenvolvimento econômico e cultural
proporcionado pelas peregrinações, tais como as construções dos primeiros modelos de
hospedaria que mais tarde ficariam conhecidos como hospitais, à construção da basílica e o
poder obtido pelo bispado de Compostela na Idade Média.
Dessa forma, o texto que aqui apresentamos, digna-se a apresentar alguns aspectos de
um trabalho em sua fase inicial, na qual intentamos destrinchar sobretudo as narrativas que
tratam do culto, em especial o Liber Sancti Jacobi, em especial o livros dos milagres que
subentendemos ser uma rica fonte para se trabalhar não somente sobre as origens e a
legitimação do culto, mas também de diversos aspectos do caminho.
REFERÊNCIAS
LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições
70, 2010.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavarez. Maravilhas de São Tiago. Narrativas do Liber
Sancti Jacobi (Codex Calixtinus). Niterói: EdUFF, 2005.
__________. Santiago de Compostela em (alguma) poesia (brasileira e galega). In:
Registros do SEPLIC n. 5. Rio de Janeiro: Departamento de Ciência da Literatura do Instituto
de Letras da UFRJ, 1997.
SINGUL, Francisco. O Caminho de Santiago: a peregrinação ocidental na Idade Média.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.
RUI, Adaílson José. O Culto a São Tiago e a Legitimação da Conquista Espanhola. In:
História Revista: Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em
História/ Universidade Federal de Goiás. Goiânia: Programa de Pós-Graduação em História, v.
17, n. 2, jul./dez. 2012.
VIDOTTE, Adriana; RUI, Adaílson José. Caminhos Físicos, Imaginários e Simbólicos: O
Culto A São Tiago e a Peregrinação À Compostela na Idade Média. Projeto História nº 42.
Junho de 2011. ( p. 143 – 160).
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