NARRATIVAS VISUAIS DO SENSÍVEL: RETRATO FOTOGRÁFICO E INDUMENTÁRIA Viviane Saballa* RESUMO: Este ensaio objetiva estabelecer relações entre as temáticas retrato fotográfico e indumentária à luz das manifestações visuais do sensível. O propósito é examinar a demonstração de status e poder de uma elite urbana através da conjunção desses instrumentos decodificadores de sua própria existencial social, na cidade de Porto Alegre, entre as décadas de 1910 e 1920. Por fim, apresentaremos uma proposta de leitura iconográfica alicerçada no conceito de representação. PALAVRAS-CHAVES: retrato fotográfico, indumentária, representação. ABSTRACT: This essay aims to establish links between the thematic photography and clothing in the light of sensitive Visual manifestations. The purpose is to examine the status demonstration and power of an urban elite through the conjunction of these instruments decoders from their own existential social, in the city of Porto Alegre, among the decades of 1910 and 1920. Finally, we will present a proposal for reading iconographic founded on the concept of representation. KEYWORDS: photography, clothing, representation O presente ensaio1 tem por objetivo relacionar os temas retrato fotográfico e indumentária2 sob a ótica das manifestações visuais do sensível. Para tanto, intercambiaremos considerações acerca das sensibilidades, partindo da premissa básica que é a tradução da realidade, portanto, forma de conhecimento do mundo: As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de representação da realidade através das emoções e dos sentidos. Nesta medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a ser capturado no passado (PESAVENTO, 2004, p. 6). * Doutora em História/UFRGS. Professora do Curso de História da FACOS. 1 Este texto aborda aspectos da tese da autora Indumentária, Representação e Narrativas Visuais: a mulher como idealizadora de sua identidade na Porto Alegre de 1900-1920. Tese (Doutorado em História). Programa de PósGraduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. 2 Há duas dimensões para a definição do conceito de indumentária: a abrangente e a estrita, para o presente estudo utilizamo-nos da referência abrangente, que envolve além do vestuário em si. Nossa interpretação é multifocal, contempla todos os elementos compósitos da cultura da aparência, ou seja, todo investimento ornamental do indivíduo: vestimenta, acessórios, jóias, penteados, cosmética, máscara fisionômica. 45 Quer-se verificar a demonstração de status e poder de uma elite3 urbana através da conjunção desses instrumentos decodificadores de sua própria existencial social, no período compreendido entre as décadas de 1910 e 1920 - em Porto Alegre. Após uma concisa contextualização abordaremos, primeiramente, a temática indumentária/vestuário que juntamente com a teatralidade do gestual compõe o ritual de exibição e ostentação, para então estabelecermos correspondência com o retrato fotográfico. Na parte final, ofertamos proposta de leitura iconográfica alicerçada no conceito de representação, que designa o “modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais” (CHARTIER, 1991, p. 6). O início do século na capital do Rio Grande do Sul foi marcado pela euforia da Modernidade, vive-se o cosmopolitanismo e a ampliação e modernização dos espaços de sociabilidade. As ruas são a passarela dos desfiles de modelos de vestuário e o cenário principal do “ato de vestir” será a Rua da Praia. Porto Alegre para pôr em prática seu afã civilizatório, elabora sua própria síntese da cultura européia, sob o domínio do ideal eurocêntrico de civilização. Moda e Modernidade estarão vinculadas a uma percepção da estética da modernização do espaço análogo entre a urbe e imagem, bem como função-símbolo de distinção social. Porto Alegre tem como modelo universal de novidades da moda, elegância e civilidade, Paris e, assim como o Rio de Janeiro, é seduzida por tal influência importando materialidades (figurinos, livros, jornais, objetos) e imaterialidades (hábitos, costumes, valores e idéias). O “ser moderno” repousa sobre a égide da oposição entre cidade e campo, progresso e atraso. A problemática da cidade refere-se à questão social construída por meio da identificação do outro, assim sendo sua história perpassa a noção das escolhas coletivas assumidas no seu percurso, desvelando o tangível e o invisível (MATOS, 2002, p.35). Novas imagens representantes da nação se constroem na República, onde convém “vestir as diferentes capitais com a nova roupagem que escondia os trópicos e exaltava a modernidade” (COSTA; SCHWARCZ, 2000, p. 128). 3 O conceito utilizado aqui para definir elite relaciona-se a uma definição cuja amplitude se relaciona diretamente ao poder, “poder derivado da riqueza, ocupação e status social reconhecido, bem como a posição política e, mais comumente, poder derivado de uma combinação de todos estes fatores.” (NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 275). 46 Transparecem as sensibilidades como construção de uma mundanidade, implicada em uma noção de processo que se legitima no social. A cidade no início do século XX vive um momento de expor formas de representação do mundo, construído e qualificado pelo ideário vivido. A fixidez do momento exibida nas formas imagéticas apresenta a noção da própria dimensão física do tempo que não volta, mas que pelos olhos da imaginação se faz presente. Nessa operação mental o próprio real é reconstruído pelos homens via imaginário e é o estudo das sensibilidades que possibilitará acesso ao núcleo secreto deste passado. As programações sociais de comportamento fizeram surgir uma orbe de signos repletos de referências burguesas, o padrão de comportamento é dado por suas atitudes. Destaca-se o culto a boa aparência, a riqueza associada ao poder, o conforto relacionado ao luxo, a valorização da educação formal e a hierarquização do espaço. É o estatuto da opulência e da exclusividade. A elite escolheu a riqueza material como metáfora de um modo de vida refletido através de sua imagem (Fig. 1, 2 e 3). O reconhecimento das objetividades e subjetividades que constituem a realidade nos dá condições para a análise das relações entre as figurações e práticas sociais (CHARTIER, 1991, p. 191). O vestuário é um meio utilizado para a exteriorização da noção de pertença na sociedade portoalegrense, “numa sociedade onde a riqueza é questão de orgulho e um meio de obter poder e respeito, é natural que os ricos procurem distinguir-se” (FLUGEL, 1965, p.25), o que permite transparecer consideráveis traços da psicologia coletiva. Mobilizada por esse sentimento, esta camada de maior poder aquisitivo promove grandes investimentos nas inovações, ocorrendo supervalorização do importado. O que anuncia o contato com o mundo na virada do século XIX é a novidade, a adoção das últimas mudanças, a invenção da maneira de aparecer (LIPOVESTSKY, 1989, p.34). A aparência comunica uma referência/ influência, possibilita a visualização de elementos apreendidos e absorvidos em um dado momento. A imagem surge como reflexo de um pensamento coletivo (MOLINER, 1996, p.117) e a indumentária passa a ser signo de expectativas expressas no domínio estético. Ver e, principalmente ser visto - cuja expressão máxima se corporifica no footing - exigia toda uma prévia preparação incorporada de intenções. Nos espaços de sociabilidade desfilará toda essa forma de pensamento, composta de valores morais, modernos, cosmopolitas e civilizados. 47 O vestuário possui uma dimensão que lhe é intrínseca: a social, por esta razão ele possibilita uma multiplicidade de enfoques que traduzem comportamentos societários, portanto, reflete transformações socioculturais, traduz preferências, hábitos, pensamentos e valores vigentes, para além da estética. À medida que acentua a divisão de classes, serve à estrutura social. No seu mais profundo significado, compreendemos a indumentária como: A arte de vestir, envolvendo a capacidade criativa e o domínio dos materiais de confecção das roupas, que obedecem aos padrões estéticos do contexto em que se inserem. (...). Abrange a capacidade criadora, num exercício mais amplo, onde a moda pode ser encontrada como uma das orientações das variações dos estilos (MIRANDA, 1998, p. 95-113). Através da indumentária captamos profundos contrastes que permitem a leitura de tipos e níveis de vida, esferas de ações. Neste estudo, utilizamo-nos da fotografia quanta produção de sinais indicativos que irão contribuir para veiculação de novos comportamentos e representações da classe no poder. O corpo é tratado como parte do processo de construção dos valores da modernidade e permite a compreensão de que a era da razão inaugurou o aprisionamento científico dos saberes sobre o corpo e na formação do autocontrole, no seio de uma sociedade (ocidental) cuja base é a disciplina e a idéia de micropoderes circundantes e presentes (FOUCAULT, 1993). As fotografias são signos que continuam existindo e sendo ressignificados ao longo da corrente dos fruidores que as freqüentam, inclusive pesquisadores, os quais ajudam a promover sentido a criações fotográficas, imagéticas. O passado deixa suas marcas, os chamados “rastros” referidos por Paul Ricouer são verificáveis através do sensível, corporificado na imagem que mapeia o pretérito, o tempo ido, escoado. A apresentação material da existência do fotografado é a marca objetal ao aguardo do resgate do historiador. É a imagem o registro de sentimentos, anseios e incertezas, representadas na fotografia. Nas formas de sentir o mundo, o indivíduo qualifica-o e nesse espaço que há evasão para leituras do sensível. Primeiramente é uma mistura de conhecimento científico, elaboração mental e complexa, vai mesmo além deles, no espaço anterior à reflexão, configurando-se como resgate de mais atávica experiência humana. Opera-se no campo do imediato, da reação dos 48 sentidos, da expressão da sensação, do homem em contato com a realidade. Em um segundo momento, parte-se para a elaboração mental, implicando o uso da razão, da racionalidade. É, pois, a tradução mental dos instintos, das emoções. Operações mentais atuam no extrato da criação de idéias, conceitos e práticas que significam o homem na realidade e se traduzem nas imagens. Eis, pois que se afirma a Representação do mundo como conhecimento sensível da realidade, não eliminando o racional. Enquadramento, foco, escalas, múltiplos planos, diferentes ângulos e contrastes prescrevem uma visão de mundo própria, com suas dinâmicas internas e faz parte das especificidades da fotografia, como fonte. O tempo presente está representado pela imobilidade, “um agora diante do qual o pesquisador é levado a reconstituir o que levou aquelas personagens a estar ali, assim, daquele jeito, naquele momento, para poder prever o desenlace, os momentos seguintes” (LEITE, 1993, p. 37). O tipo específico de documentação fotográfica - o retrato fotográfico - como forma simbólica apresenta especificidades cujas posturas, gestos, objetos e acessórios representados seguem um padrão e “estão freqüentemente carregados de sentido simbólico” atendem ao intento de apresentar o fotografado de um modo peculiar e conveniente. A melhor forma de portar-se está expressa na elaboração da elegância gestual (fig. 1, 2 e 3), a atenção incide sobre a “apresentação do eu” em um ato de cumplicidade entre fotógrafo e fotografado (BURKE, 2004, p. 31-32), sendo este um dos momentos em que o fotógrafo “(...) tem a mais nítida e precisa certeza de estar ‘ fazendo história’ com seu trabalho, usando seu engenho e arte.” ( VASQUEZ, 2002, p. 32). O ângulo, a luz, o distanciamento, a centralidade induzem o olhar, determinam direções. O mundo é enquadrado esteticamente, construído pelo olhar. A imagem através de uma precisa organização, construção e composição evidencia manifestações sobre o mundo, anuncia práticas e procedimentos. A imagem fotográfica será o meio de transmissão de modos, condutas e representações dos grupos dominantes que controlam meios técnicos de produção e divulgação de valores culturais, possibilitando a interpretação dos acontecimentos da vida social, pois a “(...) imagem responde à necessidade cada vez mais urgente do homem de dar expressão a sua individualidade”, 49 (FREUND, 2002, p. 08) é um processo de “ver e dar a ver” que permite leituras de visões de mundo. Em uma tentativa de eternizar a condição humana, as imagens despertam sentimentos, e as fotografias comunicam, ressignificam, simbolizam e além de tudo, representam (BORGES, 2003, p. 37). Aqui a fotografia pode ser considerada mais que evidência, sendo a própria história, pois “permite analisar a indumentária de um extrato social, códigos de postura e comportamentos, ostentação”, (BURKE, 2004, p. 28) sendo que os complementos que produzem a cena visual do retrato são imbuídos de valores emblemáticos, remetendo a papéis sociais. A velocidade alucinante da Modernidade trazia consigo o perigo do anonimato em um tempo de mudança cuja companheira era a efemeridade, grupos sociais e memórias coletivas encontram na fotografia o suporte de sua existência, registrada no ato fotográfico. A indicação de vida presente na fotografia acaba por fornecer indícios concernentes a um pretérito que se objetiva compreender pela sua possibilidade de se transfigurar em testemunho e “representação de uma realidade a ser reconstruída” (LEITE, 1993, p. 11). A fotografia é ao mesmo tempo documento investido de realismo e código social, onde o contexto é que dá sua significação, fixação de seus modelos, encenação e hierarquias. Como convenção social perpetua uma construção. Os retratos fotográficos possuem a função de inscrever “não tanto a realidade social, mas ilusões sociais, não a vida comum, mas performances especiais. Porém, exatamente por essa razão, eles fornecem evidência inestimável a qualquer um que se interesse pela história de esperanças, valores sempre em mutação”, (BURKE, 2004, p. 34-35) expressos através da postura, do facial, posição e planos, não esquecendo-nos que o retrato é uma representação de alguém que tem consciência de que está sendo fotografado, dando evidência ao momento em si dado, a ler através da indumentária modelos que “captam aparências momentâneas”, com seus préstimos de culto e exibição combinados, (LEITE, 1993, p.97-104) concedendo evidências de aspectos da realidade (BURKE, 2004, p. 37). A leitura da fotografia está estreitamente relacionada a circunstâncias e condições em que foi produzida, pois assim aumenta consideravelmente as possibilidades de apropriada compreensão da mensagem transmitida (LEITE, 1993, 47). Além das condições técnicas da feitura do retrato fotográfico, temos que observar a reprodução de condições de determinado grupo retratado, o que 50 evidencia e o que silencia, fazendo-nos entrar em contato com “outros níveis de realidade: sentimentos, padrões, normas sociais, conformismo e rebeldia” (Idem, p.76). Na fotografia a própria figura feminina com seus elementos indumentários trás elementos do cotidiano da vida das décadas que inauguram o século XX, (Fig. 1, 2 e 3) verdadeiros ícones do repertório compósito da representação, a mulher é símbolo de delicadeza, mistério. Emblemas da vida burguesa são representados na imagem, quem observa é remetido ao ambiente privado e preservado. São atendidas as vontades e necessidades dos segmentos dominantes da sociedade, mostram representações femininas como a mulher-esposa (Fig. 2) e a mulher-mãe (Fig.3). O fotógrafo assume o papel de medidor da cultura do olhar fotográfico, criando novas formas de documentar a vida em sociedade (BORGES, 2003, p. 54), legitimando sua importância e “... criando verdades a partir de fantasias (...) da classe dominante” (Idem, p. 69), divulgando intenções sociais bem como visões de realidade. Enfim, devemos valorizar as imagens fotográficas como documentos, cujo objetivo é fornecer informações acerca de determinadas fases históricas e culturas, considerando sua dimensão simbólica na atribuição de significados às diferentes formas de representações, (Idem, p. 73). Os retratos fotográficos externizam preocupações do uso da imagem como representação do real. (LEITE, 1993, p. 109). As imagens configuram o sentimento e a consciência de prosperidade e progresso e com a popularização do retrato fotográfico serão os estúdios o espaço propício para a vazão de fantasias, a possibilidade de contar com diferentes montagens de cenários fará do estúdio o endereço da auto-representação de grupos, objetos darão concretude aos mais íntimos sonhos de ostentação (fig. 1, 2 e 3). Segundo a autora Maria Elízia Borges, é o retrato uma linguagem fotográfica que atende às necessidades dos indivíduos, “cujo desejo era transcender os muros do anonimato erigido pelo ritmo acelerado e voraz da modernidade”, alimentando a “memória individual e coletiva dos homens públicos e de grupos sociais” (BORGES, 2003, p. 41). Memória é escolha, eliminação e reconstrução. Sempre trabalhada, atinge as dimensões singular e plural, pois a reminiscência de um pode ser compartilhada por outros, via agregação. 51 Ao olharmos um retrato fotográfico nos deparamos com a explícita tentativa do fotógrafo-artista de expressar um diálogo com critérios estéticos onde “as linhas de fuga dos retratos, quase sempre a meio corpo, atraem o olhar do espectador para os detalhes da roupa, das mãos e da expressão do olhar”, seu retrato artístico mais do que informa, representa (Idem, p. 44) e é através dele que as classes ascendentes encontram seu próprio meio de expressão artística, modificandoos conforme suas exigências (FREUND, 2002, p. 14). Da visão nebulosa que o passado nos oferta, em um emaranhado de fundamentos passíveis de investigação e variabilidade de caminhos a seguir, são as sensibilidades que apontarão uma orientação de decodificação dos indícios, cacos e registros que o mediam com o presente: O historiador, ao trazer o passado para o presente precisa dar a ver uma diferença no tempo, recriando uma temporalidade, distinta do passado e do presente, temporalidade esta onde esteja contida as formas de ver e sentir dos homens de um outra época (PESAVENTO, 2004, p. 12). Do visível da imagem à elaboração chegase à tradução e estabelecimento de relações de analogia e contrastes com o que vemos, descortinando-se frente a nós percepções de mundo. Aspectos concernentes e integrantes da memória de nossa cidade estão assegurados na fotografia, a invenção colabora definitiva e simbolicamente para o fenômeno do individualismo crescente, promovendo a expansão da imagem do eu. Tal questão se vincula ao nascimento de um novo ideário de sociedade moderna, que confirma a existência e imortalidade das pessoas fotografadas. Sendo o signo fotográfico FIG. 1 – Sra. Alice Ramos de Alencar (no centro) e suas duas irmãs. Fotógrafo Virgílio Calegari/ 1916. Acervo: MJF 52 motivado, não existe sem seu referente. Há uma aura específica que já parte de seu fruir, assim seus referentes se constroem a partir de uma mescla entre a imaginação dos espectadores e o resquício de sua existência, prova inquestionável da passagem pela vida, viabilizada pela fotografia (BENJAMIN, 1986), que mostra a corporificação da elegância através da linguagem corporal do trajar e do comportamento cerimonial, presentes nas iconografias apresentadas a seguir: O primeiro aspecto que desperta a atenção (Fig. 1) é a direção do olhar imposta ao observador, que converge para o centro da imagem, centrífuga e centrípeta ao mesmo tempo. A mulher de pé prende se destaca por sua própria posição, diferenciada das demais que constituem o conjunto. Sua postura ereta apura e valoriza a composição visual, denotando uma condição diferenciada das demais fotografadas, possivelmente seja referente a seu estado civil. As demais mulheres emanam jovialidade, mas algo é comum às três figuras: tanto o universo jovem quanto o mais maduro, demonstram o mesmo ideário de reprodução de padrões importados. No campo das sensibilidades, vemos aí a justaposição de duas formas de conhecimento do mundo: sensível e racional, em simbiose. Percebemos que está presente na imagem uma tendência comum verificada a partir do início de 1900: a verticalidade, o alongamento da silhueta e das formas femininas. As jovens de elite deixavam transparecer na sua produção visual adequação e enquadramento à demanda de sua classe, a retratação da beleza é a tônica, o equilíbrio é o desejo. Demonstra princípios do individualismo, o ser humano como medida de todas as coisas. No tocante ao gestual, percebemos a preocupação em expressar etiqueta, civilidade e refinamento. A boa maneira está posta pela delicadeza na forma como as mãos estão acomodadas, na maneira de manipular seus acessórios: o leque, a bolsa diminuta ou a própria sombrinha, é a “caligrafia dos gestos” revelando a alma feminina. Percebemos o status corporificado através de diferenciados elementos: o tecido nobre do vestuário, a elegância da modelagem, a presença do padrão europeu em cada detalhe: costura, cumprimento da saia, dobraduras, drapeados, botões, fitas. O padrão importado configura a aparência. Os chapéus demonstram a consonância com moda, espessura e dimensão emitem a importância de sua 53 presença tão bem projetada. Vemos que o vestuário das três mulheres está de acordo com os modelos da época, classificados como de requinte, mas comportados: pernas cobertas, braços pouco à mostra, ausência de decotes. O fotógrafo ausente se presentifica através da cumplicidade dos olhares das jovens, que “verbalizam” um chamado de descoberta que fala de sua época, uma inquietude própria da idade. Os lábios semi-serrados preenchem de leveza a sisudez imposta pelas conveniências. O cenário fala das fotografadas e de quem fotografa: o fotógrafo atende às demandas de um público exigente que visa eternizar FIG. 2 –Retrato de Casal: Sr. Adolfo Moreau e sua Sra. Rosa Bonfante/ 1910. Fotógrafo Anônimo - Acervo: MJF uma posição social avantajada, oferta em seu estúdio o espaço ideal para compor a representação do poder e luxo. Os objetos exibidos são emblemáticos. As colunas remontam à antigüidade clássica, símbolo de cultura e expressão de um ideal estético, grandeza material e beleza. Os próprios arcos emitem à civilização romana, que celebram a monumentalidade dos vitoriosos. Cortinas e tapetes obedecem a um gosto do mesmo modo clássico, tradicional, acabam por ressaltar a personalidade do ambiente, transmitindo sensações, idéia de conforto e bom gosto. Delimitam espaços que anunciam quem deve usufruí-lo. O mobiliário exerce papel documental para a interpretação da história das mentalidades, no espaço e no tempo, proporcionando interpretações que traduzem um arranjo que incorpora facetas que denotam traços do que os indivíduos ressignificam para si, no caso, demonstração de requinte 54 através de escolhas objetais interpretadas pelo fotógrafo, que traduz desejos de seus clientes, que se completam com o vínculo harmônico entre tapetes e cortinas. Este retrato da primeira década do século XX (Fig.2) permite um transportar no tempo, onde os princípios norteadores da vida cotidiana eram diferenciados dos nossos. No conjunto da cena é evidenciado quem é o detentor do poder, afinal estar de pé – homem - próximo a alguém sentado – mulher – neste período, dá um sentido de projeção, como uma ampliação do espectro de domínio. O horizonte visual de quem está de pé é de maior amplitude. Nos dá a ler uma época, cujas sensibilidades passam a ser pensadas a partir de múltiplos elementos, onde o mais evidente neste instante é o conflito, o reconhecimento da tensão das relações de gênero. A leitura da imagem nos faz captar os fantasmas do passado. O homem tem em si os símbolos da hierarquia social: sua máscara fisionômica sob o suporte do bigode transmite a respeitabilidade tão valorizada na época. O cuidado explícito na elaboração demonstra proeminência do usuário deste acessório. Acordos são selados com o fio do bigode, portanto ele porta adjetivos que incorporam o ideário de respeitabilidade, compromisso, seriedade. Considerando que o poder se produz a cada instante e em vários pontos, encontramolo novamente simbolizado na presença do anel, na mão esquerda. Estes símbolos propõem outras formas de ver, diferentes das usuais, são subjacentes à aparente neutralidade formal das imagens. O traje pré-anuncia a preocupação discreta com a estética visual, cujo padrão é o europeu, entrando em acordo com o conhecimento dos códigos possíveis do aceito e não aceito, da conveniência e convenções. O ato de vestir do homem tradicional não é inofensivo, tem um objetivo específico: transmitir pragmatismo e noção da possibilidade dos bens materiais do usuário. As roupas de um homem de bom gosto e sintonizado com o condizente com sua posição denotam acima de tudo sobriedade, discrição, que está presente inclusive nos sapatos, preferencialmente escuros. Linhas simétricas, medidas precisas, cortes retos, emitem efeitos que figuram grandiloqüência e solidez. A gravata, adorno símbolo de elegância, e o chapéu, sendo um sinal do seu tempo e um reflexo dos valores e da moda, compõem o visual, comunicando acerca do universo masculino que o homem “em público nada o deve distinguir a não ser o corte impecável e a simplicidade britânica” (SOUZA, 1987, p. 153), denotando a fabricação de 55 esteriótipos identitários. A roupa do marido é um instrumento de afirmação pessoal masculina que se completará, por extensão, à aparência da esposa. Duas esferas são contempladas neste retrato fotográfico: a masculina e a feminina. Quanto à feminina, esta mostra uma cumplicidade no que diz respeito à arte do “bem aparecer”, do ser visto. O que revela é a “harmonia” de um extrato social que transmite signos de poder. Enquanto o homem se resguarda em sua falta de destaque visual - na renúncia de excessos de elementos decorativos - se realiza nos excessos da aparência cabíveis a sua esposa, esta depositária do compromisso de difundir toda a tradição familiar de linhagem distinta e de bem sucedida posição social. O chapéu feminino possui abas largas e adornos excêntricos, a concepção das formas e dimensão parte do princípio de busca de destaque e atendimento aos padrões da Belle Epoque francesa, que se traduz no requinte. A bolsa vem a legitimar a adequada escolha, o bom gosto. O esmero com a aparência é visualizado através da indumentária que transmite o cuidado com o detalhe, a qualidade, seja nos bordados, fitas ou bordados. As jóias figuram a riqueza, usadas pela esposa, mas intencionalmente refletindo as posses do casal. A figura feminina lembra que a maneira como a mulher casada se expõe em público deve ser cercada de critérios, pois comunica a prosperidade e situação econômico-financeira do casal. O olhar do homem ao fotógrafo representa a afirmação de uma condição, a sisudez caracteriza o excesso de seriedade, impõe uma forma de concepção de mundo. Já a mulher busca não inferir nenhum tipo de expressão facial que pusesse sua posição de mulher de família a risco. O cenário remete a um outro espaço: o do possível, do prazer, do belo e que se perfaz pela tradução sensível da recomposição mental, do imaginário. O fotógrafo elaborou uma química perfeita, quase que uma tradução de propósitos. O casal se perpetua através do retrato fotográfico como representantes de nível social elevado nas maneiras, hábitos, gestos e aparência. O diferencial está em evidência, mostrando distinção e civilidade. Não há somente a captação de uma imagem, mas uma intenção, códigos socias da classe dominante, mostrando tendências internacionais e imposição de comportamentos, vislumbrando uma estética burguesa. O fotógrafo 56 se coloca como importante instrumento deste grupo, à medida que se empenha em “naturalizar” suas representações através de uma forma específica de visualidade, são as percepções das sensibilidades de um tempo. A presente imagem (Fig. 3) mostra uma mulher e criança pertencentes a uma classe hegemônica, leitura possível via percepção do culto ao ornato como intermediário da disputa pelo controle simbólico de redes sociais colocadas pela manutenção da distinção visual. A fotografia em si transparece uma prática usual na primeira década do século XX: as crianças meninas geralmente aparecem acompanhadas de uma figura feminina, seja mãe ou irmã. Crê-se que seja uma forma de FIG. 3 – Mãe e Filha. Calegari/1910. Acervo MJF. iniciação ao universo feminino desde a tenra idade para que as regras sejam nela imbuídas ainda cedo, é “fazer-se feminina, observando a feminilidade” (SABALLA, 2001, p. 162). O vestuário aqui apresentado é usado como emblema distintivo, um mecanismo de sobreposição, garantidor de distâncias sociais. A riqueza está personificada principalmente através do tecido (abundante por opção): delicado, refinado, vaporoso. A leveza aparenta a noção de inatingível. O corte obriga um gestual refinado, impossibilitando movimentos rudes, afinal desnecessários à elite, há assim a demonstração de controle, disciplina e vigilância. O funcional e prático perdem a importância frente à elegância. A imagem mostra que mais que vestir, a roupa enfeita. Não devemos esquecer que desde o século XIX a França está na Belle Epóque e que para as elites chegam os primeiros catálogos, figurinos e revistas de moda francesa, onde as principais características da indumentária no começo do século são a ostentação com toques de exarcebação. É a qualificação e conformação de padrões de beleza. 57 O decote do vestido faz o jogo dúbio ao julgamento do olhar, cujo equilíbrio se coloca entre o traje e a insinuante nudez do colo. O domínio de si está explícito e a exibição é concedida sob a prerrogativa de, supostamente, ser uma mulher casada. O princípio diretor da roupa feminina – sedução e atração - está na sutileza cabível à sua condição. Sob o recato, percebemos pontos de fuga da sensualidade. O penteado valoriza a aparência, sendo os cabelos a “moldura do rosto”, merecem destaque e se apresentam elaborados. Eles estão presos, de forma a não chamar atenção para este ponto valorizado como da beleza feminina, permitido às mulheres solteiras e restrito às casadas. O posicionamento de seu corpo mostra comedimento. Há esmero na produção. A criança está apresentada dentro dos cânones da época - como miniatura de adulto. O comportamento da menina transcreve bons modos, educação exemplar para alguém de sua idade, portanto, a domesticação dos impulsos. Lembramos aqui a influência do século XVII e o pensamento de Descartes, onde explosão de emoções era considerada barbárie e o controle emocional sintoma de civilização. Colocada junto à mãe, porta-se como adulta. Seus cabelos não estão em desalinho, exemplo de comportamento condizente com sua classe, ou de seus pais. A brancura da pele mostra que é uma criação sob vigilância de cuidados que não a expõe a excessos. Pela cor de sua roupa, percebe-se que foi projetada para a limitação das ações próprias de sua idade. Comum eram os pais vestirem seus filhos objetivando colocá-los como instrumento de exposição, suprindo suas necessidades pessoais e satisfações exibicionistas nas crianças, que inclusive eram encorajadas a imitar o comportamento dos adultos. O cenário interage com as fotografadas, há uma atmosfera de tranqüilidade, segurança e zelo materno. O conjunto coopera para a autopromoção e divulgação do status econômico de um segmento societário, capta-se o espírito do domínio estético da exteriorização, como diferenciador. A composição visual juntamente com a observação da interferência do que fotografa, no sentido da supervalorização do fotografado, emitem sinais e mensagens de intenções através de códigos visíveis no ato fotográfico. A aparência traduz comportamentos dos 58 homens, serve de espelho de seus hábitos e gostos, sendo assim o retrato fotográfico vem a reforçar a fabricação de uma idealização. Enfim, a cultura visual nos permite a experiência do olhar “enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade” (BOSI, 1998, p. 66). A proposta apresentada nesse texto foi a de oportunizar diferentes percepções que a imagem nos oferta. Foi, de fato, um exercício de construção de uma versão sobre o passado, através da busca da tradução visível das sensibilidades geradas a partir da interioridade dos indivíduos, expressas e materializadas nesse registro passível de ser resgatado pelo historiador: o retrato fotográfico (PESAVENTO, 2004, p.12). Referências BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: Obras escolhidas I. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. BORGES, Maria Elizia Linhares. História e Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. IN: NOVAES, Adauto (Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 65-87. BURKE, Peter. Testemunha Ocular história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004. CARDOSO, Sérgio (Org.). 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