Para ilustrar a relevância da dissecção do cadáver humano na formação técnica do estudante de Medicina, em pré-graduação e do médico, em pós-graduação, cito alguns exemplos muito esclarecedores que retiro da literatura: Assis Leite, Professor de Anatomia da Real Casa Pia, no século XVIII, escrevia (citado por ESPERANÇA PINA, 1976): ‘Quem concertará uma máquina ignorando as peças de que é feita? Como se podem curar as doenças não conhecendo os órgãos que atacam? A Anatomia é a chave fúnebre, que abre os pavorosos mistérios da morte. Do seu obscuro e medonho seio sai uma luz brilhante, que dirige constantemente o cirurgião em toda a sua carreira. Um cadáver é o primeiro livro clássico de Anatomia. Um cemitério a sua vasta livraria. O cadáver é um mestre mudo mas eloquente. Este Mestre, instrui os vivos, antes de baixar à morada dos mortos. Os mortos deixam a companhia dos mortos para com a sua presença instruir os vivos. Na Anatomia, estuda-se o homem vivo no homem morto, colhendo-se no campo da morte frutos da vida, arrancando-se das mãos dos mortos armas, com que combater a mesma morte.’; ESPERANÇA PINA (1976) escrevia: ‘O cadáver constitui a primeira e uma das mais relevantes fontes de conhecimento morfológico. (...) Por muito extensos que sejam os melhores tratados de Anatomia, eles proporcionam ao estudante, a desilusão penosa de lá não se encontrar, o que o bisturi descobre na sala de dissecção’; Sampaio TAVARES (1978) afirmava na 26ª Reunião da Sociedade Anatómica Portuguesa: ‘(...) a dissecção anatómica de material humano é indispensável e insubstituível para o ensino médico pré e pós-graduado e para a investigação científica; (...) esta e aquela têm profundos reflexos nos progressos da medicina e na qualidade dos actos médicos e cirúrgicos e portanto na promoção da saúde e bem-estar dos indivíduos e da sociedade em geral’. O mesmo reforça PINTO-MACHADO (1995) quando escreve: ‘(…) a impossibilidade de dissecção do cadáver humano - ou, pelo menos, do estudo do cadáver já dissecado - é travão ao progresso dos conhecimentos e técnicas ao serviço da Medicina e afecta gravemente a formação médica, tanto a nível da formação geral como da formação especializada, mormente nos domínios com predominante componente cirúrgico’. Também é evidente a importância da dissecção anatómica na formação afectiva e deontológica do estudante de Medicina: Maria Amélia TAVARES (1991) verificou objectivamente, como resultado de um questionário efectuado aos estudantes nas sessões práticas de Anatomia, que estes ‘apresentam reacções emocionais e modificação das suas atitudes no contacto com o cadáver humano no teatro anatómico (...) A Morte, o valor da Vida e a privacidade dos corpos eram as ideias mais frequentemente suscitadas na manipulação dos cadáveres bem como a curiosidade, a ansiedade e o respeito pelo corpo que estavam a dissecar’; Por seu lado, PINTO-MACHADO (1991) escreve: ‘O Teatro Anatómico proporciona (...) o primeiro encontro - grande, inesquecível encontro! – do estudante de Medicina com a realidade brutal da Morte: oportunidade preciosa de educação profissional e desalienação pessoal enquanto estímulo para reflexão sobre a Vida - sua finitude e seu sentido. Conduz também, deve conduzir - a reflexão sobre o significado ético de se ser médico.' O autor realça assim '(...) a profunda influência da Anatomia na atitude mais determinante do correcto agir do médico: o respeito, que ousamos qualificar de sagrado, pelo doente.’; No seu manual de dissecção humana, ESPERANÇA-PINA e colaboradores (1995) reforçam: ‘(…) o cadáver presta assim, ao ser dissecado, um serviço de valor incalculável à Comunidade em geral e aos estudantes de Medicina em particular. Ao cadáver humano é, por isso, devido o maior respeito. Deve guardar em relação ao cadáver o mesmo respeito que tem pelos vivos. O desrespeito pelo cadáver é ofensa grave.’ Para concluir, um excerto do comovente relato que Liberato DIDIO (1985) faz da aula inaugural do seu curso de Anatomia ministrada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, aos 26 dias do mês de Março de 1940, pelo seu Mestre, o Professor Renato Locchi: "Concito-os, pois (…) a tratá-los com carinho, a dissecá-los com cuidado, a estudá-los com profundo respeito, como se lidássemos com nós mesmos, com os nossos próprios parentes ou amigos e, certamente, com indivíduos mais nobres do que nós." "Lembre-se", advertiu-nos, "que o laboratório de anatomia é o lugar onde a Morte se compraz em auxiliar a Vida, frase cuja autoria se perdeu na história da medicina. " REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: DiDio LJA - Biografia do Professor Renato Locchi. Um Gigante das Ciências Anatômicas. Editora Guanabara Koogan SA. Rio de Janeiro, 1985. Esperança-Pina JA - Ensino e Investigação da Anatomia Humana. I - Evolução do Ensino da Anatomia Humana. O Médico 81(1317): 401-407, 1976. Esperança-Pina JA, Bensabat-Rendas A, Correia M, Goyri-O'Neill JE, Pais D - Anatomia Geral e Dissecção Humana. Lidel, Edições técnicas. Lisboa, Porto, Coimbra, 1995. 5 Pinto-Machado J - O Ensino-Aprendizagem de Anatomia: Uma resposta a um dos Desafios Actuais. Educ Med 2(3): 2-12, 1991. Pinto-Machado J - O Cadáver Humano e o Estudo da Anatomia (passado, Presente e Futuro). Educ Med 6(3): 134-49, 1995. Tavares AS - Doação de Corpos Para o Ensino Anatómico. O Médico 87:119-21, 1978. Tavares MA - Atitudes e Reacções dos Alunos ao Contacto com o Cadáver no Teatro Anatómico. Educ Med 2(3): 13- 21, 1991