"RETRATO DE CAYALO": OCAMPO DA METAFoRA AMOROSA Antonia Marly Moura da Silva CRUZ (Mestrado - UNESP/FCUCAr) ABSTRACT: This paper is an analysis of Guimaraes Rosa's short story "Retrato de cavalo". It tries to show how the author deals with the subject of love, based in the Roland Barthes's ideas about the loving speech. KEY WORDS: Brazilian literature; Guimaries Rosa; "Retrato de cavalo"; loving speech. o objetivo deste trabalho consiste em analisar 0 discurso amoroso em "Retrato de cavalo", urn. dos contos de Tutameia de Guimaries Rosa, tendo como base as reflexaes desenvolvidas em FragTMntos de urndiscurso amoroso, de Roland Barthes. A hist6ria de "Retrato de cavalo" tem como eixo principal a disputa de dois homens pela posse de urn. retrato. A imagem reproduiida apresenta uma m~a abr~ada a urn.cavalo branco - a m~ ~ a namorada de 10 Wi, urn. dos sujeitos da ~o; 0 cavalo, por sua vez, pertence a Bio - 0 segundo sujeito da hist6ria. 10 Wi man~m 0 retrato em seu poder para contemplar a mulher amada. Bio, por querer contemplar a beleza do seu cavalo, se sente lesado, como diz Vera Novis (1989, p. 106), pois ~ impedido de vivenciar a mesma condi~o do amigo. o retrato da m~ ~, para 10 Wi, 0 sfmbolo da propria relacao. E urn.corte da realidade que permite colocar em evidencia urn. momento da situa~o, 0 instante do rapto, como diz Barthes. 0 rapto e urn episOdio lido como inicial (pode ser reconstitufdo depois) durante 0 qual do objeto amado. (1990, p. 165) 0 sujeito apaixonado e "raptado" pela imagem Em "Retrato de cavalo", 0 discurso amoroso pre em cena a amencia do objeto amado. A m~a, objeto do querer de 16 Wi, e 0 outro que parte; 16 Wi, 0 sujeito apaixonado, por voc(lfiio inversa, e 0 sedentario, vive em eterno estado de espera. (Barthes, 1990, p. 27) Para sustentar a relaciio arnorosa dita nas linhas e entrelinhas, 0 autor implicito cria um dialogo entre Ia Wi e a m~a atraves do retrato da figura feminina. Guimariies Rosa nos coloca diante de uma questio curiosa. Ao contrario do que ocorre nos mitos e na literatura ocidental, em "Retrato de cavalo" , 0 homem e 0 sujeito que esta a espera do outro. Historicamente, 0 discurso da ausencia e sustentado pela Mulher: a Mulher e sedentaria, 0 Homem e ca~ador, viajanre. A Mulher e fiel (ela espera), 0 Homem e conquistador (navega e aborda). If a mulher que dd forma a ausencia. (Barthes, 1990, p. 27) A partir dessa distorCiiosingular, Guimariies Rosa afirma um novo discurso para a questio do arnor; instaura uma memfora arnorosa1 que destaea 0 culto do poder vivido pela mulher e a submissiio masculina personificada na figura de Ia Wi. Em relaCiio a imagem da m~a, Ia Wi manifesta uma fantasia de fundo narcisico. Ia Wi esta fascinado pelo rosto que ve no retrato - objeto que pode simbolicarnente possuir. Diz 0 narrador sobre Ia Wi e sua relaCiiocom retrato: Por causa, 0 queria, como um possuido. (Rosa, 1979, p. 147) No conto, 0 processo de identificaciio com 0 outro, ocorre atraves de uma miragem idealizada, da falsa contemp1aciio da outra metade. Atitudes que nos remetem a dois mitos de arnor integrados na simbologia arnorosa: 0 mito de narciso e o mito do andr6gino. A "identific(lfiio" que Freud ap6ia no mito de Narciso e a "ideaUza~iio"centrada no Eros de Platiio. (Kristeva,1988, p. 13) Em "Retrato de cavalo", 0 processo de eleiCiiodo objeto amoroso ocorre, para uma das personagens, por meio da idealizacao da m~a, idealizaciio essa que se desenvolve a partir da contemplaCiio da imagem da mulher. 1 Diz Kristeva: 0 temw met6fora lido deve indu:ljr a pensar aqui no figura ret6rica cl4ssica (figurado versus pr6prio) mDS. de um lodo, nos teorias modernas do met6fora que viem nela uma colis40 indejinida de semDS, um sentido em ato; de outro, no mobilidode de uma htterogeneidade 110 ceme de um oparelho psfquico heterogineo, que val das pulsiJes e das sensQfOts ao significado e vice-versa. (p. S9) ( ... ) Oramemos mtt6fora, 110 sentido geral de um traIIspom de sentido, esta economia que afeta a linguagem quando 0 sujeito e 0 objeto do enunc~Qo confundem as SUDS jronteiras. (p. 300) (00') No mtanto, buscamos a inteligibiUdade dessa mttaforicidade ampUada 110 economia amarosa do sujeito do enunc~40 que manilesta em met6foras 0 ato complexo de idenlificQf40 (narcisimo e idea.lizar40). (p.301) (Kristeva, 1988) [0 Wi do dito nao se desfazia. jamais. tanto nele eontemplava a metode - a ~a de fora, de eidade, eom ela ia se easar - eheio de arnorosidades. (Rosa, 1979, p. 131) o sintagma a metade nos remete a vislo platonica do amor desenvolvida em 0 'Banquete. Nessa obra, Platio, citando 0 mito do andrOginoatraves de Arist6fanes, seu porta-voz, preconiza que 0 objeto amado e 0 objeto que falta. 0 amor configurase como busea da totalidade partida, da unidade quebrad/l. Por isso, 0 arnorparte desse sabor que 0 ser humano experimenta de falta, de muti/afiIo, de incompletude. 0 desejo de unir-se ao amado provem dessa sens~iIo de ser apenas parte, metade de urntodo. (Pessanha, 1987, p. 94) Assim, em "Retrato de cavalo", 10 Wi busca 0 outro, a m~a do retrato. que representa 0 seu ell vital. A ide~o da figura feminina atinge 0 estAgio de endeusamento, a m~a apresenta-se emoldurada num quadro que decora a entrada da casa de 10 Wi, ocupa 0 altar da casa, assim substitui 0 lugar da Virgem - e a pr6pria sacraliza~o da mulher. De acordo com Sant' Anna: No nivel eonsciente dos signijieados, estd a inten~iIo e a vontade de que a imagem seja uma coisa. mas no nivel dos signijieados inconscientes estd urn desejo oculto, recalcado e reealcante da libido amorosa. (1984, p. 68) Esse desejo oculto que Sant'Anna menciona, pOeem faco uma questio que baliza os sentidos da narrativa: sera que 0 interesse de Bio pel0 retrato nio esta Hgado ao seu desejo oculto pela m~a? E bom ter em mente que esse personagem mostra-se desinquieto ao saber que a m~a nio voltaria mais para 10 Wi. Bio se co~ava os dedos das milos. A ~a nao podia assim de todofugir (Rosa, 1979. p. 132). Silo constantes as referencias indiretas ao mito de Narciso, embora escamoteadas pel0 narrador; signos comoespelho. agua, ver, espiar e olhar do sempre referidas a Bio e seu cavalo e nio a 10 Wi e a m~a, personagens claramente envolvidos na si~o amorosa. Seu cavalo avultava espelhado, bem descrito, no destaque, dessa regrada representa¢o ... (... ) E que com coragem jitava alguma autoridade maior de respeito... (Rosa, 1979. p. 131) Ele, 0 Bio. la outra Vet ver 0 10 Willidozinho - e 0 quadro. (Rosa, 1979, p. 130) [grifo nosso] Bio olhava-o com insistencia, num SUSSU"O soletrante... (Rosa, 1979, p. 131) [grifo nosso] o Bio voltasse, para ver e rever, vez.esquantas quisesse... (Rosa, 1979, p. 131) [grifo nosso] o Bio fosse, ao qual canto, e a vontade 0 espillsse. (ROSA, 1979, p. 132) [grifo nosso] Os signos ver, espiar e olhar confirmam 0 distanciamento da m~a em relaCio a 10 Wi, 0 amante que ama apenas com os olhos. o "ver" passa a ser sinOnimo de "amar" e "viver". 0 "ver" passa a ser, paradoxalmente, uma especie de cegueira douda, a verngem da posse (... ). Ver a mulher vai ser uma atitude metonfmicapela qual 0 resto do corpo se ausenta da realidade. Olhar e fantasiar se compiementam. Nesse caso, 0 que se vi n40 e exatamente a imagem objetiva, mas a reprodu~ao de fantasiar fantasmas er6ticos subjetivos. (Sant' Anna, 1984, p. 72) A imagem da m~, fixada na forma estatica da fotografia que recebe 0 olhar do arnante sem nenhuma participaCio voluntaria, como algo a ser apenas visto, narra 0 contlito entre 0 quente da paixiio e o/rio da indiferenra (Sant' Anna, 1984, p. 71), instaura a pratica voyeurista, a &Cioque e substituida pela vislo. A personagem se integra numa fantasia e ali se aflI1D.aatraves de uma imagem - a imagem esta presente, mas 0 referente, Dio. De acordo com Umberto Eco, 0 retrato e urn espelho mdgico que congela a imagem (Boo, 1989, p. 33). Boo assinala tambem que espelho congelante e a chapa fotogrdfica (... ), a chapa capa:r.de reproduzir a imagem com altfssima dejinirao (comprimentode onda, re~6es de intensidade, contomos... ) (Eco, 1989, p. 33). Em "Retrato de cavalo", 0 narrador usa 0 mesmo termo chapa parareferir-se ao retrato - de tirar a chapa, sem aviso nempermisso, 010 Wi abusara (... ) (Rosa, 1979, p. 130). Na narrativa, 0 retrato ora representa a realidade, Seu cavalo avultava, espelhado, bem descrito, no destaque dessa regrada representa~ao, real~ado de luz: grosso, /iso, branco feito leite no copo, sem perder espa~o. (Rosa, 1979, p. 131) 16 WiUiifozinho,por palavras travessas, caroodamente, dava a entellder que 0 cavalo de verdode, nIJoera portentoso de"~ejeito, mas mixe, somente javorecido de indUstriasdo retratista e do aspeeto e autir da Mora - risonha, sonsa a cara /ambtvel. (Rosa, 1979, p. 131) Esse e urn tra~ peculiar da dialetica da fotografia: tambCmpode mentir. De acordo com Umberto Eco, n6s 0 fato de que 0 retrato sabemos que alguem, ou por mise-en-scine ou por e/eitos opticos, ou por misteriosos jogos de emulsiio, solarizarlio, et similia, pode ter jeito aparecer a imagem de alguma coisa que nIJoera, que niiojoi nem sera nunca. A joto pode mentir. Sobemos disso ate mesmo quando supomos, ingenuamente, quase confiantemente, que ela niio minta. (1989, p. 34) Assim, em "Retrato de cavalo", 0 sujeito apaixonado pode ter amado a um falso, como ocorreu com Narciso, no mito. 10 Wi ama uma mulher muito mais bela e distante da "realidade" e Bio percebe 0 perigo que isso pode causar. - Desdenhava jalsejos e retratos. Agouros! devia aboUr aquele, destruido em os setecentos pedafos. (Rosa, 1979, p. 132) 16 Wi nlo aceita a verdade, ama um "espelho" e transforma-se num fantasma de si mesmo ao viver de contemplar uma lembran~a ficticia. Em "Retrato de cavalo", 0 fim do trajeto amoroso se eta atraves de duas si~s: a re~o de 16 Wi diante da inf~ de que a m~a nlo voltaria eo sofrimento de Bio diante da morte do cavalo. Tais aconteeimentos obrigam os dois sujeitos da ~ a renunciarem ao estado amoroso. Com isso, 0 caminho para acura e o extlio do imagindri02 , como postula Barthcs (1990, p. 105). A conf~ de que a ~ n10 voltari e a morte do cavalo sio "provas de realidade". Ate entio, 0 amor-fantasma au 0 amor-delfrio nutriu-se de olhares incessantes para um objeto de contempl~o. 0 texto Ilio menciona, da parte da m~a, a existencia de uma rel~o com 16 Wi - A mDfa... desdeixara 016 Wi (Rosa, 1979, p. 132).0 prefixo des- por seu proprio significado, pode negar a rel~o entre as duas personagens - ela nlo 0 deixou, porque nio se comprometera. Quanto ao cavalo, esse, na verdade, nunca pertenceu, de tato, a Bio; a personagem jamais sentiu 0 prazer de govema-Io com estalOs do olhar como fazia seu antigo proprietario, Nh6 da Moura. 2 Segundo Bartbcs, 0 exUio do imagindrio e 0 caminho necess6rio para a cura. No luto real, e a ·prova de reaJidade" que me mostra que 0 objeto amado lido aiste mais. No luto amoroso, 0 objeto lido estd nem morto nem disttllltll. Sou eu quem decido que a sua imagem deve mo"er (II ele talvez nem sabera disso). (Barthes, 1990, p. 105) 450 Somente ap6s 0 falecimento do cavalo, Bio ouve alguem se referir ao cavalo pelo verdadeiro nome: - "Vod, Bio, enterrou, 0 seu Lirialvo? (Rosa, 1979, p. 133) o amor em "Retrato de cavalo" e sinal de busca permanente do outro. 0 que leva 16 Wi a agir e 0 poder do retrato. E a ausencia do objeto desejado que estabelece o motor da a~a.o. 0 amor de 10 Wi, unilateral, nasce e cresce contemplativamente. E o que descreve 0 narrador: 0 [0 WiUiiJozinhosendo dos que persistem, ele carecia daquilo, do retrato, para con/erir sOJldodes. 56 0 viliio soMa sem 0 seu corariio. (Rosa, 1979, p. 132) [ grifo nosso] RE5UMO: 0 trabalho tem como objetivo a analise do conto "Retrato de cavalo", de Guimaraes Rosa, procura mostrar como 0 autor lida com 0 tema do arnor, baseado nas idiias de Roland Barthes sobre 0 discurso amoroso. PALAVRAS-eHA VB: Literatura Brasileira; Guimara.es Rosa; "Retrato de cavalo"; discurso amoroso. BARmES. R. (1990). FragmmtO$ de Francisco Alves. 11m discuno ECO. U. (1989). Sobre os espelhos. In:_. Janeiro: Nova Fromira. p. 11-58. 1l1M1'000. 10. ed. TraIl. H. dos SaDtos. Rio de Janeiro: Sobre 0$ eapelhos e outros ensaios. Trad. de Borges. Rio de NUNES. B. (1976).0 amor na obra de Guimaries Rosa e A viagem do grivo. In: 0 dorao do tigre. 2. ed. Sio Paulo: Perspectiva, p. 146-195. NOVIS, V. (1989). Tutamiia: mgmho e ane.Sio PLATAO. (1991) 0 Banquete. In:_. Cultural. (C. Os Pensadores) PESSANHA. J. A. M. (1990). A igua e das Letras. p. 91-123. Paulo: Perspectiva. (Debates. 223) Platao. 5a ed. Trad. e nolaS de J. C. de Sousa. Sio Paulo: Nova 0 mel. In: NOVAES. A. et at. 0 fhsejo. Sio Paulo: Companhia PEIXOTO. N. B. (1990). As imagens e 0 outro. In: NOVAES. A. das Letras. p.471-480. d. aI. 0 fhsejo. 810 Paulo: Companhia