EUROPA RENOVADA: RENASCIMENTO E HUMANISMO- DO MANEIRISMO AO BARROCO RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar à luz da metodologia historiográfica, alguns fatores sociopolíticos, econômicos, de cultura e de mentalidade que abriram uma nova possibilidade de expressão ao homem da Baixa Idade Média e o instrumentalizou para a inauguração de um novo período histórico, baseado na valorização de si mesmo e de suas potencialidades. O recorte cronológico abrange o período entre os séculos XIV e XVIII. Palavras -Chave: Antropocentrismo. Artes Visuais. Estados Nacionais. INTRODUÇÃO A Europa dos séculos XI – XIV presenciou transformações econômicas, políticas, intelectuais, artísticas e culturais que, gradativamente, levaram a sociedade a reorganizar-se estruturalmente e a repensar sua visão e seu conceito de mundo, no qual: “o desenvolvimento do saber e do comércio se reforçavam mutuamente.” (SEVCENKO, 1985.p. 12). O século XIV, sobretudo, é marcado por fortes tensões e crises, dentre elas a rápida propagação da “peste negra” deixando trás de si uma soma de milhões de mortos por todo o continente, além das disputas territoriais entre França e Inglaterra numa guerra que se arrastou por mais de cem anos e as revoltas camponesas resultado da super-exploração da mão-de-obra campesina. A fome e o decréscimo populacional, conseqüências imediatas destas tragédias, contribuíram para o esfacelamento do antigo sistema feudal. Estas mudanças decorrentes de processos históricos que se acentuaram sobremaneira no final da Baixa Idade Média proporcionaram o ressurgimento da efervescência urbana, conseqüência do novo modelo econômico comercial que possibilitou o aparecimento de uma nova classe social: a burguesia mercantil, que teve um papel fundamental na política de solidificação dos territórios e das monarquias nacionais modernas e no financiamento de todo um instrumental técnico cientifico e artístico. O período é de grande inventividade técnica estimulada e estimuladora do desenvolvimento econômico. Criam-se novas técnicas de exploração agrícola e mineral de fundição e metalurgia, de construção naval e navegação, de armamentos e de guerra. É o momento de invenções da imprensa e de novos tipos de papel e de tintas. (SEVCENKO, 1985. p. 12) 1 I- Os humanistas e suas contribuições No que tange às transformações de ordem intelectual nota-se as propostas dos humanistas1 em dinamizar o currículo científico das universidades medievais com o acréscimo de outras áreas do conhecimento como a poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloqüência, baseadas nos modelos da Antiguidade Clássica. Estas propostas, num primeiro momento, foram refutadas pelo crivo da Igreja que as interpretou como uma espécie de retomada saudosista de práticas reminiscentes do paganismo. Contudo, essa proposta de dinamização da sociedade e do homem aos moldes dos parâmetros da Antiguidade Greco-romana: “... não seria a mera repetição, de resto impossível, do modo de vida e das circunstâncias históricas dos gregos e romanos, mas a busca de inspiração em seus atos, suas crenças, suas realizações, de forma a sugerir um novo comportamento do homem europeu. (SEVCENKO, 1985. p. 15). Este “novo comportamento” pode ser definido como o desejo da sociedade européia em reinterpretar modelos estéticos artísticos e literários da antiguidade em favor da constituição de uma mentalidade na qual o homem tem a oportunidade de superar-se através de seus feitos: “O momento histórico colocava em foco, sobretudo a capacidade criativa da personalidade humana.” (SEVCENKO, 1985.p. 12) A reflexão humanista acerca da sociedade, da cultura, das artes e das ciências medievais levou a profundas e consideráveis críticas acompanhadas de soluções de caráter antropocêntrico em oposição ao teocentrismo ortodoxo defendido pelos teólogos e pela Igreja, que se viam ameaçadas por esta onda de inovações perturbadoras da ordem social estabelecida. “É inútil querer procurar uma diretriz única no humanismo ou mesmo em todo o movimento renascentista: a diversidade é o que conta.” (SEVCENKO, 1985:23). Mais do que críticas, o movimento humanista preocupava-se em oferecer novos valores, novas oportunidades ao homem que lentamente começa a indagar-se a respeito do mundo a sua volta tornando-se mais atuante, mais participativo desejoso do saber técnico/teórico fundamental para que a experimentação prática fosse bem 1 Sevcenko chama a atenção para o surgimento do termo humanista ocorrido no século XV, definindo-os como “... conjunto de indivíduos que desde o século anterior vinham se esforçando para modificar o padrão de estudos ministrado tradicionalmente nas Universidades medievais” (SEVCENKO, 1985. p. 14) 2 sucedida tal qual o vemos nas técnicas empregadas na pintura que evoluiu do bidimencionalismo medieval fortemente bizantino para o tridimensionalismo de Giotto mestre da pintura renascentista italiana que já no século XIV impressionava o telespectador pela profundidade, sentimentalismo e realidade de suas obras, em muito influenciada pela espiritualidade franciscana voltada para a assistência aos pobres e que conseguia conciliar mística profunda e promoção do ser humano, sobretudo os mais carentes. O antropocentrismo permite ao artista uma ampla e variada amálgama de cenas e fatos cotidianos imortalizados pela arte renascentista que ostentava a máxima de: “viver mais pelo sentido do que pelo espírito.” (SEVCENKO, 1985. p. 28) Contudo esta afirmativa não colocava o mundo espiritual em segundo plano pelo contrário o que mudará será a concepção teológica em voga do movimento descendente da divindade que se encarna no seio da virgem humanizando-se sem, porém perder sua natureza divina. “Era já o anseio da reforma da religião, do culto e da sensibilidade religiosa que se anunciava e que seria desfechada de forma radical, fraccionando a cristandade por outros humanistas mais tarde, como Lutero, Calvino e Melanchton.” (SEVCENKO, 1985. p. 21) O que se pretendia era levar ao povo uma religião que se identificasse com seu cotidiano, desprendida de uma liturgia pomposa desenvolvida numa linguagem totalmente desconhecida pelos fiéis e que colocasse a figura de Cristo como principal modelo e a opção pelos pobres como meta. Nisto consistia o humanismo cristão do século XV desenvolvido por Erasmo de Rotherdam. Tanto na religião quanto na política pode ser percebido o desejo de liberdade de expressão assegurado a cada indivíduo de maneira inviolável. Porém esta liberdade foi bastante discutível no renascimento. Nicolau Maquiavel membro do governo dos Médicis, de Florença, autor de “O Príncipe”, afirmava que para se manter no poder, o soberano deveria passar por cima de qualquer código moral e, se preciso fosse até mesmo a força seria justa quando necessária visando o bem do Estado que no absolutismo já consolidado do século XVIII era o próprio Rei. Já para Thomas Morus, Campanella e Francis Bacon nas Obras: Utopia, Cidade do Sol e Nova Atlântida de autoria dos respectivos autores, a sociedade ideal baseava-se na justa distribuição de renda e na concórdia entre os indivíduos que estariam sob a égide de um governo centralizado, mas justo. Ambos os autores defendiam um Estado forte e centralizado. Maquiavel já no século XVI apresentava a unificação da Itália como alternativa de 3 extinguir as lutas internas pelo poder e os ataques de outros reinos inimigos na figura de um monarca que concentrasse sobre se autoridade suficiente para governar. “A concepção de que tudo já está realizado no mundo e que aos homens só cabem duas opções, o pecado ou a virtude, não faz mais sentido. O mundo é um vórtice infinito de possibilidades e o que impulsiona o homem não é representar um jogo de cartas marcadas, mas confiar na energia da pura vontade, na paixão de seus sentimentos e na lucidez de sua razão. Enfim, o homem é a medida de si mesmo e não pode ser tolhido por regras, deste ou do outro mundo, que limitem suas capacidades. E se cada individuo é um ser contraditório entre as pressões de sua vontade, de seus sentimentos e de sua razão cabe, a cada um encontrar sua resposta para a estranha equação do homem. As disputas, as polêmicas, as críticas entre esses criadores são intensas e acaloradas, mas todos acatam ciosa a lição de Pico Della Mirandola: a dignidade do homem repousa no mais fundo da sua liberdade.” (SEVCENKO, 1985. p. 23). O desprendimento de códigos civis tirânicos e dogmas retrógrados, mesmo que lenta e gradualmente, possibilitaram ao homem colocar em prática toda sua potencialidade criadora no ofício de construir, de inovar de recriar o que já existe. Sendo assim a visão ideal arquitetônica renascentista colocava em voga o cálculo matemático a favor do remodelamento do espaço urbano onde imperasse a harmonia, o equilíbrio e a proporção das formas dentro de princípios geométricos que tinham por finalidade materializar o desejo de uma sociedade harmônica e ordeira dirigida pela razão. O panorama político da Itália, berço do Renascimento era bem variado. As cidades guerreavam entre si pelo controle de uma região e conseqüentemente da economia que ali era desenvolvida. Os sistemas governamentais variavam entre cidades repúblicas representadas por dignitários; os doges assessorados por conselheiros, que podiam ser eleitos por parlamentares ou se não confirmados em seus cargos evocando o direito de hereditariedade, e as cidades que já centralizavam o poder político na figura de um nobre adotando o sistema monárquico caminhando assim para o processo de consolidação do absolutismo europeu oitocentista. A rivalidade político /militar logo cedeu espaço amplo para a rivalidade artística. II- Arte e ciência: a busca incessante pela perfeição Os antigos artesãos da Idade Média aperfeiçoaram suas técnicas mediante estudo prévio, para isso convertendo suas corporações ou guildas em escolas nas quais o mestre, acompanhado atenciosamente por discípulos, podiam exercitar o ofício de 4 reproduzir com fidelidade a beleza presente na paisagem natural nas cenas cotidianas onde o homem aparece geograficamente no plano da pintura como cerne. O desejo de reproduzir o Belo fazia-se necessário mais que simples capricho era imprescindível fazê-lo, pois: “Todo o belo é uma manifestação do Divino. Assim sendo, a exultação, o cultivo e a criação do belo, consistem no mais elevado exercício de virtude e no gesto mais profundo de adoração a Deus. A produção do belo através da arte é o ato mais sublime de que é capaz o homem.” (SEVCENKO, 1985.p. 19). Quando nos remetemos aos legados deixados pelos humanistas que se desdobraram nas várias áreas do conhecimento: matemáticos, arquitetos, físicos, químicos, filósofos, teólogos, juristas e literatos etc... os artistas plásticos ou melhor seu legado artístico eternizado na pintura e na escultura melhor evocam e sintetizam o Renascimento. A produção plástica intensa toma a dianteira de todo o inestimável e vasto legado humanista por traduzir o momento histórico de inquestionável prosperidade econômica decorrente de práticas mercantis financiadas e encabeçadas pela burguesia. “A ruptura dos antigos laços sociais de dependência social e das regras corporativas promovem, portanto, a liberação do indivíduo e o empurram para a luta da concorrência com outros indivíduos, conforme as condições postas pelo Estado e pelo capitalismo.” (SEVCENKO, 1985. p. 11). A arte era, pois o mecanismo perfeito por meio do qual a burguesia se utilizou para sua auto afirmação, correlacionando direta ou indiretamente sua classe à nova ordem econômica, política, social na qual projetar-se-ia impreterivelmente no centro, como grande patrocinadora dos inventos técnicos, científicos e artísticos estreitando suas relações com a nobreza e o alto clero que juntos comporiam o mecenato instituição esta de vital necessidade para a concretização de obras monumentais, um avanço para a época em que foram executadas e objeto de fascínio e estudo para os contemporâneos. O espaço urbano então sofre constantes interferências plásticas, mostra do poderio financeiro em consonância com a mentalidade burguesa difusora de uma cultura do novo, propondo comportamentos, hábitos e valores condizentes com o momento histórico provando sua superioridade ante a cultura medieval constantemente apontada como inferior e retrógrada, com seu românico embrutecido e pesado dando as catedrais aparência de fortalezas militares embora também o fossem, prevalecendo na arte da Alta Idade Média, suplantado posteriormente pelo gótico, que embora mantivesse algumas 5 características românicas já demonstrava leveza nas orgivas e delicadeza no colorido das iluminuras e vitrais que iluminavam o sombrio interior dos templos. Na imaginária sacra prevalecia o estilo bizantino pouco preocupado com noções de proporcionalidade, volume e perspectiva o que conferia um efeito “chapado” às imagens meticulosamente hieratizadas dentro de uma hierarquia celeste fixa. Ao contrário dessa, a arte renascentista preocupava-se sobremaneira com a harmonia do todo, com a proporcionalidade com o volume realista obtido entre os jogos de luz e sombra e a coerente ocupação do espaço pictórico. Conforme verificamos, a nova camada burguesa, pretendendo impor-se socialmente, precisava combater a cultura medieval, no interior da qual ela aparecia somente como uma porção inferior e sem importância da população. Era, pois, necessário construir uma nova imagem da sociedade na qual, ela, a burguesia, ocupasse o centro e não as margens do corpo social. (SEVCENKO, 1985. p. 24) A nova concepção artística intuía a fidelidade na reprodução da cena pintada pretendendo tocar as pessoas através dos sentidos; para tanto as técnicas de perspectiva ampliavam o campo pictórico conferindo à obra a impressão de ali estarem multiplicadas cenas da vida cotidiana. A perspectiva do dolce stil nouvo (doce estilo novo) representada por Ducio e Giotto evoluíram para a: “... invenção da perspectiva matemática, ou a perspectiva exata”, em que todos os pontos do espaço retratado obedecem a uma norma única de projeção, deveu-se com uma grande dose de certeza, a Felipo Brenelleschi, arquiteto florentino, por volta de 1420. Baseado no teorema de Euclides, que estabelece uma relação matemática proporcional entre objeto e sua representação pictórica... (SEVCENKO, 1985.p. 30) O domínio da técnica levou a arte a status de ciência, tornando-se desconhecida aos artesãos populares. Esta exigência fez-se necessária para atender ao sofisticado gosto artístico que a partir de então evoluía constantemente. O artista/cientista era senhor do domínio da técnica conciliando em seu ofício, estética e cálculo, conferindo assim à obra procedente de seu ateliê alto valor econômico, acessível apenas ao clero, a nobreza e a burguesia, esta última ávida em afirmar-se ante as cortes reais e ao papado provando assim seu refinamento e poderio financeiro: A arte renascentista é uma arte de pesquisa, de invenções, inovações e aperfeiçoamentos técnicos. Ela acompanhada paralelamente as conquistas da física, da matemática, da geometria, da anatomia, da engenharia e da filosofia. Basta lembrar a invenção da perspectiva matemática por Brunelleschi, os seus instrumentos mecânicos de construção civil ou militar, 6 ou instrumentos de engenharia civil inventados por Leonardo da Vinci, ou as pesquisas anatômicas de Michelangelo, ou o aperfeiçoamento das tintas a óleo pelos irmãos Van Eyck, ou os estudos geométricos de Albrecht Dürer, entre tantos outros (SEVCENKO, 1985. p. 25). III- O renascimento e seu caráter consolidador do Estado A amplitude e profundidade crítica a que se propunha o humanismo Renascentista naturalmente fez romper as fronteiras florentinas dominada pelos Médici, para além da região nortenha encontrando entusiastas e mecenas por toda a Itália. Entre prósperos comerciantes burgueses, integrantes de cortes monárquicas e da poderosa corte pontifícia, o Renascimento gradativamente vai sendo apropriado pela elite assumindo assim uma afeição social distinta e erudita. A propagação do humanismo de uma região específica italiana para todo o continente europeu deveu-se a vários fatores, sendo a autonomia financeira a mais relevante. Não se trata apenas de afinidade e empatia ao movimento renascentista, mantê-lo e fazê-lo acontecer como já foi refletido carecia de todo um aparato econômico sólido, de suma importância para que as idéias, as teorias e a inspiração fluíssem e acontecessem de fato. Esse fenômeno é facilmente compreensível, uma vez que apenas a prosperidade comercial é que permitia a constituição de núcleos urbanos densos e ricos e cortes aristocráticas sofisticadas o suficiente para se transformarem em público consumidor de uma produção artístico-intelectual voltada para a mudança dos valores medievais (SEVCENKO, 1985. p. 39). O surgimento, portanto dos idiomas nacionais são o fruto dos estudos lingüísticos dos humanistas que através de intensa produção literária contribuíram para que cada país, alguns ainda sob fortes conflitos internos consolidassem o poder político com a adoção, ou em certos casos, pela imposição de uma língua nacional comum, pondo fim à dispersão causada pelos vários dialetos característicos de cada região. Na Itália da Baixa Idade Média, nasce a literatura moderna com o poema épico Divina Comédia de autoria de Dante Alighieri2. Embora carregado do dogmatismo medieval numa descrição minuciosa do cotidiano, o poema marca época basicamente no fato de ter sido escrito em dialeto 2 Dizemos que é um marco ambíguo, porque assim como as imagens de Giotto, a literatura de Dante guarda intocadas inúmeras características da mentalidade medieval. (SEVCENKO, 1985. p. 36) 7 toscano e não em latim a língua oficial do direito e da igreja, como era de praxe na Idade Média. Outra evidência um tanto quanto ambivalente é o fato de o autor ser conduzido do espaço temporal para o plano atemporal não por um anjo ou outra divindade cristã, mas por um poeta da Antiguidade latina, o sábio Virgílio que após vagarem pelo inferno, passarem pelo purgatório e alcançar a beatidade do paraíso é entregue a sua estimada Beatriz. Nota-se, portanto na obra de Dante valores clássicos enaltecidos pelo movimento renascentista que o precedeu: valoração dos saberes da Antiguidade Greco-romana como ideais de perfeição e busca do Belo idealizado na figura de Virgílio, e a experiência empírica do amor humano que transcende o amor a Deus, substituído por Beatriz. Sevcenko, (1985. p. 37) diz que “Dessa forma, o espaço intemporal do sagrado só pode ser compreendido se for remetido à temporalidade histórica da terra...” Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio são considerados continuadores do estilo literário inaugurado por Dante, suas principais obras são a poesia lírica, cancioneiro e a narrativa em prosa, Decameron, de autoria dos respectivos literatos, ambos “... fundadores e divulgadores da corrente humanista.” (SEVCENKO, 1985. p. 39). Tornando-se reconhecidos em todo o continente. Centralizar o poder supunha também consolidar o idioma e a cultura conferindo caráter unitário ao país. Os literatos tiveram um papel de grande relevância ao colocarem sua poesia a serviço da unificação territorial, política e cultural de cada nação exaltando-as sobre maneira tal qual percebemos na obra de “... um dos maiores escritores de todos os tempos foi Luiz Vaz de Camões (1524 – 1580), autor da célebre epopéia das conquistas marítimas portuguesas, Os Lusíadas.” (Sevcenko, 1985. p. 71) Embora, Portugal desde o século XII já possuísse, monarquia constituída e as fronteiras definidas mais antigas da Europa, Os Lusíadas apresenta-se como marco da história e da literatura portuguesa que no século XVI ostentava a fama de ser a mais próspera economia européia, fruto do bem-sucedido expansionismo marítimo. Neste caso particular a literatura solidifica o idioma escrito e congrega os indivíduos ante a euforia de pertencerem ao país das grandes navegações. Uma vez introduzido o ideal renascentista em cada região por indivíduos que tiveram contato com a efervescência italiana do século XIV, cada país a partir de então começa a desenvolver uma arte e uma literatura com contribuições culturais próprias, apesar de que: 8 “Demoraria muito para que as demais nações aprendessem a desligar-se do jugo cultural italiano e fizessem sua própria arte. Isso só ocorreria quando cada uma dessas nações atingisse o auge de seu poderio econômico e político, como ocorreria, por exemplo, com o Portugal de D. Manuel e D. João III, com a Espanha do século de ouro e com a Inglaterra isabelina” (SEVCENKO, 1985. p. 39). Na Flandres, a produção artística encontra-se estreitamente ligada à riqueza das manufaturadas e do comércio que transformaram a arte numa espécie de veículo de divulgação do estilo de vida burguês que ao contrário da burguesia italiana e de outras regiões da Europa não pleiteavam vagas na nobreza, estavam centrados na prosperidade comercial, bancária, portuária e manufatureira construída sob a égide do trabalho constante e da disciplina. O mecenato flamengo, pois, era patrocinado pela burguesia e pelos duques de Borgonha que desde 1419 transferiram-se com sua corte de Paris para Bruges a fim de legitimar a autonomia cultural e financeira desta região, na qual o Renascimento acompanhou a evolução da pintura. Segundo Sevcenko (1985. p. 60) “ao contrário dos italianos, os povos nórdicos e os flamengos em especial nunca se sentiram muito atraídos pelas filosofias de estilo, pelos amaneiramentos e pelas teorizações sobre os sentidos últimos e mais elevados da arte.” Sua arte esforçava-se ao máximo em reproduzir de forma real o objeto pintado, o que conseguiram magistralmente com o sucesso da retratação de pessoas e na captação de formas, cores, brilhos e texturas das mais variadas naturezas. Paralelo a vivacidade do brilho dos metais e pedras preciosas, os artistas se preocupavam em utilizar suas telas para fazer denúncia social através da representação de indivíduo esquelético e mal vestido, representando a situação da má distribuição da abundante riqueza. A fixação em representar o ambiente doméstico é outra forte característica da arte flamenga onde: Mesmo as representações religiosas tendem a ser banalizados como meras cenas do cotidiano das famílias burguesas. O efeito disso é ambivalente, pois ao mesmo tempo em que humaniza mais o sagrado, aproximando sua experiência daquelas pessoas comuns, tende igualmente a sacralizar o ambiente e a faina do dia-a-dia, preenchendo-os de uma dignidade superior (SEVCENKO, 1985. p. 61). A técnica da pintura a óleo conferia ao trabalho um brilho uniforme fascinante além da possibilidade de matizar as cores entre si podendo o artista trabalhar 9 variadamente a incisão da luz. Embora a técnica da pintura a óleo tenha sido idealizada pelo Mestre de Flemalte, os irmãos Jan e Hubert Van Eyck na obra conjunta “O Retábulo do Cordeiro Místico”, bem como no ‘Casal Arnolfini’, conseguiram alcançar os efeitos mais favoráveis. A França de Francisco I e sua irmã a poetisa Margarida de Navarra, ambos mecenas das artes nacionais francesa tomaram a dianteira da formação de humanistas com a idealização de um instituto o Colégio de França objetivando criar condições favoráveis para o afloramento das ciências, das letras e das artes que estariam a serviço da consolidação monárquica e de uma cultura: “... decisiva para fixar as características da arte renascentista francesa: mais cheia de artificialismos e de afetação que a italiana ou flamenga, revelando claramente sua origem aristocrática essa inspiração monárquica” (SEVCENKO, 1985. p. 66). Os artistas franceses mais representativos do renascimento são os arquitetos Pierre Lescot e Plilibert Pelorme, os escultores Jean Gocjon e Michel Colombe, o pintor Jean Focquet que soube conciliar o gótico com a pintura renascentista mediante viagem realizada a Itália sintetizando os dois estilos a fim de criar um gênero próprio caracterizado pelo monumentalismo técnico e monocromático, tornando-se uma referência para a pintura francesa. A corte dos referidos mecenas contava com lingüistas especialistas em diversos idiomas e um grupo de poetas que constituíam a Pléiade representado por Pierre de Bonsard e Du Bellay encarregados de “... lançar as bases da literatura nacional,... aristocrática e oficial, graças ao apoio da Princesa de Navarra” (SEVCENKO, 1985. p. 66). Na Inglaterra, a dinastia dos Tudor marca o início do processo de consolidação do Estado nas últimas décadas do século XV, por interferências da doutrina calvinista as artes plásticas não tiveram a mesma vultuosidade como em outras regiões tendo o renascimento participação apenas na música, na literatura e no teatro, a grande diversão tanto de nobres como da população em geral. A ruptura de relações do Estado inglês com Roma foi decisiva no rumo que a produção científica tomou na Inglaterra dos Tudor. Os literatos dividiram-se entre os que defendiam a liberdade de culto e os que apoiavam a recém criada igreja nacional e a centralização do poder temporal e espiritual na pessoa do rei. Sir Francis Bacon considerado o introdutor do método científico moderno que prima pela experiência 10 como base da produção do conhecimento é o autor mais significativo das ciências renascentistas inglesa. Mas a principal expressão cultural encontra-se no teatro amplamente difundido no reinado de Elizabeth I e coroado pelas obras de Willian Shakespeare que em Hamlet: “... coloca dúvidas sobre a eficácia da razão e da racionalidade, num prenúncio já da arte maneirista, que sucede ao Renascimento” (SEVCENKO, 1985. p. 45). Na Alemanha, as influências diretas nas artes nacionais correspondem ao gótico tardio ao gosto ornamental flamengo posteriormente com a contribuição italiana assimilada gradualmente. As críticas à cultura medieval dominadas pelo conservadorismo, culminaram com a obra dos humanistas Ulrich Von Hutten e Crotus Rubians em “As Cartas de Homens Obscuros”, que abriram caminho segundo a linha de pensamento do flamengo Erasmo de Rotterdam e para o afloramento da teoria reformista de Martinho Lutero. Nas artes plásticas a gravação em madeira e metal adaptaram-se às técnicas desenvolvidas pela imprensa que as divulgou fartamente por toda a Europa, difundindo estilos e recursos ornamentais, tendo no gravurista Albrecht Dürer, discípulo de Michael Wolge Mut, seu maior e mais talentoso representante. Dürer soube conciliar com maestria mediante viagens de estudo, estilo flamengo, italiano e alemão transmitindo às suas obras: a luminosidade, a harmonia geométrica e a singularidade do gótico, respectivamente características destes três estilos. Na escultura, o estilo suave, ao gosto burguês encontrou em Adam Kraft, Peter Vicher e Riemenshneiler seus maiores vultos. Na Espanha, a unificação do Estado deu-se em fins do século XV com a união matrimonial dos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão, reunindo assim, forças suficientes para a expulsão definitiva do último reduto de mouros na Península Ibérica. Em 1492, a Espanha vibra com a notícia do descobrimento do novo mundo. Segundo Sevcenko, estes dois eventos contribuíram favoravelmente para a propagação do renascimento em terras espanholas que no contexto histórico de fins do século XV e início do século XVI já possuía poder político centralizado, uma burguesia militar poderosa assim como a portuguesa financiadora das expedições marítimas expansionistas. O estilo artístico em voga era o mudéjar constituído pela fusão do gótico com a arquitetura e a azulejaria mourisca. 11 De acordo com Sevcenko3 “O predomínio de uma aristocracia guerreira e militante fervorosa em favor da expansão do Cristianismo; a ascensão de uma monarquia centralizada, forte e voltada para a ampliação permanente de seus domínios...” Nestes princípios de fidelidade monárquica e religiosa, constituiu-se a sociedade Espanhola, onde o renascimento perdurou muito pouco, sendo suplantado pela intolerância da contra-reforma tão solidificada na Espanha católica do século XVI, abrindo campo para o maneirismo que antecedeu o século de Ouro barroco no setecentos. O estilo renascentista se imporia ao mudéjar com a presença de artistas, flamengos e italianos ou do trabalho de artesãos espanhóis, enviados a estes dois grandes centros de irradiação de renascimento para inteirar-se do estilo em voga. A temática sacra é uma constante nos trabalhos plásticos reflexo da exaltação do catolicismo que tem na literatura mística, o fervor inconfundível de Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, autor de Exercícios Espirituais, Teresa de Ávila, reformadora da “Ordem Carmelita, Espanhola feminina”, autora de Castelo Interior e O Caminho da Perfeição, e Obras Espirituais, atribuídas a seu coetâneo e entusiasta na Reforma do Carmelo masculino, João da Cruz. “Essas obras devocionais, mas revestidas de extraordinária densidade poética se somariam à parte mais significativa da cultura do Renascimento espanhol, representada pela literatura de Herrera e Cervantes e pelo teatro de Garcilaso de La Vega e Lope de Vega [...]” (SEVCENKO, 1985. p. 70). Assim como Espanha, Portugal encontrava-se eufórica com o bom êxito da expansão marítima, também patrocinada pela burguesia que, a partir do século XV, rompeu o monopólio naval italiano, detentor da única rota para a Ásia, oferecendo com as expedições navais a rota atlântica contornando a costa da África. O controle do comércio de especiarias e a expansão territorial, fez dos portugueses no século XVI detentores da mais prospera economia européia. Surge na arquitetura e na decoração de edifícios militares, palacianos e religiosos, o estilo manuelino, que mesclava elementos mouricos do mudéjar com elementos góticos. O estilo manuelino é caracterizado pela abundância de ornamentos, muitos dos quais alusivos aos cordames das caravelas que se lançavam na aventura dos descobrimentos. 3 SEVCENKO, 1985. p. 69. 12 Francisco Sá de Miranda é o responsável de implantar o renascimento, sobretudo na produção literária, em terras lusitanas após algum tempo em contato com o stil nuovo italiano. Sevcenko (1985. p. 71) descreve: “produzindo obras e textos de todas as formas e compostas em todos os metros: poesias, elegias, sátiras, epístolas, éclogas etc [...]” (SEVCENKO, 1985. p. 71). As ligações com o teatro espanhol e a cultura medieval, são as características básicas da obra de Gil Vicente em muito influenciado por Juan de Encina. Nas artes plásticas, destaca-se a obra Políptico de São Vicente onde é perceptível o cromatismo de Jan Van-Eyck, embora tenha sido executado pelo português Nuno Gonçalves, nela pôde-se observar: [...] todo o viço da sociedade moderna e aburguesada do Portugal da Dinastia de Avis e transpira todo o sentimento de euforia e glória nacionais produzido pelas afortunadas navegações. O Políptico de São Vicente pode assim ser compreendido como a versão da epopéia camoniana (SEVCENKO, 1985. p.72). IV- Maneirismo: renascimento reinventado A Arte Renascentista, sofrera intervenções que lhe conferiram características próprias, associadas ainda à sua relação com as transformações culturais e econômicas de cada país ou região européia, havendo, portanto uma releitura a partir do século XVI que propunha, segundo Hauser (1954. p. 473) “[...] romper com a regularidade e harmonia excessiva simplista da arte clássica, substituindo a sua normatividade superpessoal por características mais subjetivas e mais sugestivas.” Esta releitura estilística do conceito clássico aplicado às artes culminou no maneirismo, cujo conceito não pode ser tomado de modo simplório, pois implica em ambigüidades terminológicas amplamente discutidas. O têrmo maneira tem um significado inteiramente positivo em Borghini, que chega a lamentar a falta desta qualidade em certos artistas, e assim antecipa a distinção moderna entre o estilo e a falta de estilo. Os clássicos do século XVII – Bellori e Malvasia – são os primeiros a relacionarem com o conceito maneira a idéia de um estilo de arte afetado e trivial, redutível a séries de fórmulas, são os primeiros a revelar a consciência da lacuna que o maneirismo introduz na evolução da arte, e os primeiros a notar a oposição perante o verdadeiro classicismo, que se faz sentir na arte, depois de 1520 (HAUSER, 1954. p. 472). 13 As opiniões acerca das intervenções plásticas são variadas, mostra da dualidade presente no ser humano que ora penetra a fundo na mística em busca de um novo sentido para a vida religiosa, ora busca a racionalidade que altera a realidade habitual. O maneirismo seria o novo estilo artístico intermediário entre a rigidez metódica da Renascença e a profusão estilística barroca, mais do que isso seria a ousadia do artista em romper com a excessiva matematização do espaço e do ideário filosófico ao qual a arte se prestava, para, imprimir em sua obra rejeição ao classicismo exacerbado. Tintoreto e El Greco ilustravam bem através de seus trabalhos “[...] o maneirismo, como expressão do entusiasmo entre as tendências espirituais e sensualistas da época [...]” (HAUSER, 1954. p.478). Maneirismo, contudo não se detém apenas a uma terminologia artística, mas denota significativamente os conflitos políticos, religiosos e culturais que abalavam as estruturas sociais da Europa do século XVI. A invasão da Itália por tropas francesas e espanholas demonstram a rápida ascensão destes dois impérios fortalecidos internamente pela conclusão de bem sucedidas guerras e empreendimentos marítimos expansionistas que lhes proporcionavam respeito e credibilidade ante as outras nações que segundo complexo jogo de interesses, estreitavam relações diplomáticas como se nota na união entre Alemanha, Países Baixos e Espanha, dando origem a uma aliança forte o suficiente para encabeçarem empreitadas expansionistas continentais na região sede do papado, dos mecenas e berço das artes renascentistas. O auge do poderio Espanhol evidencia-se na invasão e saque à cidade de Roma, quando Carlos V “[...] já não sentia vontade de se submeter às intrigas do Papa.” (HAUSER, 1954. p. 484), e como forma de subjugá-lo, expoliou todo o tesouro milenar presente em mosteiros e basílicas, deixando o Pontífice impotente ante a orda mercenária que saqueou a cidade Eterna. Nápoles, Milão e Florença constituíam redutos de possessão francesa até serem expulsos pelas tropas Hispano-germânicas que a partir de então, redefinem o controle político italiano onde: “Um vice-rei espanhol reside em Nápoles e um governador espanhol em Milão, em Florença, os espanhóis governavam através de Médicis, em Ferrara através de Este, e em Mântua através de Gonzaga” (HAUSER, 1954. p. 484). Contígua a agitação política, desencadeou-se na região germânica da Saxônia a Reforma Protestante, fruto da insatisfação popular ante a degeneração moral do clero e o abuso de poder exercido pelo papado que legitimava suas ações pautadas na interpretação errônea da doutrina cristã. Este cisma do ocidente católico, fruto de um 14 longo processo de críticas sufocadas pelo inquestionável magistério da igreja, abalou as estruturas sociais do Continente dividido a partir de então, entre fiéis e hereges. A adesão em massa aos ideais reformistas propostas pelo monge agostiniano Martinho Lutero, em muito se deram pelo discurso político que estabelecia de forma prática, ligação entre religião e cotidiano com ênfase na doutrina cristocêntrica, colocando em segundo plano todo o ritualismo prolixo e trazendo ao conhecimento das camadas mais simples, uma religião que se faz entender de forma clara e objetiva, para tal empreendimento, a impressa divulgou amplamente os ideais da reforma que em outras regiões da Europa encontraram adeptos e protetores que as reinterpretaram de diferentes modos. A resposta da Igreja Católica ao movimento separatista não foi, contudo imediato. Somente em 1542, sob o Pontificado de Paulo III, a Inquisição faz sentir o peso de seu ofício de regenerar hereges e punir intransigentes. A difusão da cultura literária obriga os órgãos eclesiásticos a intensificar a censura a todo e qualquer gênero de publicação. O embate deste período histórico tange à mentalidade religiosa de pertença ou revogação a determinada doutrina. Esta ambigüidade será cabal na consolidação de alianças político/militares que os reinos europeus irão assumir a partir se então, fortalecendo ainda mais as relações entre Estado e Igreja. O Concílio de Trento, de certo modo acatou as críticas protestantes, mas enfatizou sobre maneira a linha tênue que separava ortodoxia de heresia, difundido ainda mais a intolerância religiosa. Contudo, foi a concepção de arte que ganhou novo e inusitado impulso. Já não havia que ter mêdo de más interpretações da ortodoxia, a ordem do dia era agora dar mais brilho à soturnidade do Catolicismo militante, fazer apêlo aos sentidos, na propagação da fé, tornar as formas do serviço divino mais agradáveis, e fazer com que a Igreja fôsse o centro resplandecente e atrativo de tôda a comunidade. E foi a estas tarefas que o barroco se mostrou, de início, capaz de prestar justiça, [...] (HAUSER, 1954. p. 500) O esfacelamento da unidade da cristandade contribuiu para que a Igreja, enquanto instituição de grande influência no mundo ocidental atentasse para conflitos morais até então ignorados e assim, elegesse estratégias para ao mesmo tempo renovarse e impor-se ante a onda de sucessivas contestações; contudo o instrumento mais apropriado seria o mesmo utilizado pela burguesia para impor-se socialmente a Arte com sua linguagem ao mesmo tempo subjetiva e universal em oposição à visão 15 iconoclasta nascente com o protestantismo de Calvino4 a igreja apropria-se deste recurso visual para comunicar aos fiéis de maneira intensa e profusa, sua doutrina e sua crença. Estrategicamente, o realismo sentimental do barroco será apropriado pela nobreza, a fim de constituir-se absoluta e inquestionável, em consonância com o catolicismo que encontrará nas cortes européias, sobre tudo nas ibéricas de longa tradição militante/religiosos aliados fervorosos na empreitada de combater os desvios doutrinários e, na altura dos acontecimentos, expandir a fé verdadeira em seus domínios e possessões e junto a esta a linguagem da arte que sustenta o esplendor do culto e afirma a veracidade do dogma. Certifica-se a importância e necessidade da arte como grande instrumento e ferramenta pela qual os indivíduos são atraídos e moldados segundo os preceitos da religião e do Estado que fundem-se na consolidação do Absolutismo, amparado e justificado teológica e filosoficamente pela doutrina do direito divino que legitimava incontestavelmente a função do monarca de arbitrar sob seus súditos. A realidade social, a que se liga direta e coerentemente a realidade política aparece-nos como a responsável pela definição de uma determinado espírito e de uma certa forma de expressão estética: a conjunção entre ambas feita sobretudo graças às forças políticas, levar-nos-á diretamente à caracterização de um complexo de manifestações artísticas a cujos traços gerais nos referimos por meio do termo “barroco” (MACHADO, 1969. p. 119). Ora, se o maneirismo apresenta-nos como a degeneração classicista e o embate entre religiosidade e sensualismo, o barroco apresenta-se, de acordo com Hauser (1954:478), “como solução temporária do conflito, baseado no sentimento espontâneo.” V- Pluralidade do barroco O barroco instala-se como estilo artístico no contexto de início da Idade Moderna, testemunhando a expansão marítima mercantilista vinculada à expansão científica espacial, e aos embates religiosos, ferrenhos travados entre reformistas e contra-reformistas. No que diz respeito à empreitada naval, cabe o mérito do fato a 4 Conforme chama a atenção o autor (HAUSER, 1954.p. 504) 16 Portugal e Espanha, países de forte tradição monárquica que respectivamente amparados pela burguesia, lançaram caravelas ao mar, expandindo a territorialidade européia, a qual se achavam confinadas a séculos, comprovando empiricamente as teorias copernicanas a cerca da esfericidade da Terra através da descoberta de outros continentes. Ao Cisma da Cristandade Ocidental, o barroco apresenta-se como resposta à urgência de uma reação das monarquias católicas ante a rápida propagação dos ideais protestantes, que ameaçavam ruir a supremacia política e espiritual de Roma e das cortes absolutistas por ela dirigidas. A magnificência, monumentalismo e exuberância do novo gosto ornamental, exerceriam dupla função de reafirmar o poder temporal da Igreja e advertir sobre o risco da contaminação provinda do liberalismo filosófico renascentista. Confrontando-se com a arte renascentista, o barroco substitui a linearidade, a rigidez matemática de distribuição dos elementos no plano por uma liberdade criativa ímpar, onde os jogos de luz e sombra que conferiram profundidade aos contornos classicistas assumem um exagero soberbo, tal que, além do realismo implicam em uma profusão de cores, formas e volumes na composição de um conjunto exageradamente movimentado e transcendente. Trata-se de uma arte de cunho devocional, voltada para a fácil compreensão do povo e ao mesmo tempo portadora do requinte palaciano. O naturalismo, técnica que sugere a união da policromia em concordância com a escultura, conferiu a imaginária sacra barroca um sentimentalismo e uma veracidade comoventes, artifício este mais que ideal quando unido a teatralidade do culto católico na arte de convencer pelo discurso teológico em consonância com a época ganha tons poéticos. Na arquitetura, a construção de prédios civis e militares obedece a parâmetros sólidos e imponentes e em alguns casos apresentando fachadas abauladas em substituição a planta baixa de princípios retangulares, nos edifícios religiosos “[...] a grande cúpula domina toda a igreja, é a expressão da submissão do material e terrestre ao imaterial, absoluto, divino” (MACHADO, 1969. p. 90). O barroco rompe o racionalismo matemático renascentista, sobrepuja a subjetividade maneirista e afirma-se como estilo artístico, arquitetônico, escultórico e pictórico refletindo, outrossim, toda a carga sócio-histórica do homem, cabendo ponderar que embora: Os primeiros estudiosos do barroco limitavam sua atenção à criação plástica, a um fenômeno formal que eles distinguiam senão como categoria própria 17 das artes visuais: arquitetura, da pintura, da escultura. Essa posição evoluiria, no entanto, para uma visão global do mesmo fenômeno, que outros estudiosos passariam a identificar também na literatura, no teatro, na música e mesmo em toda a vida social do período, tornando possível falar-se do caráter de uma idade barroca, de uma concepção barroca do mundo, de uma ideologia religiosa do barroco” (ÁVILA, 1980. p. 6). Seria por demais simplista analisar o barroco como fenômeno plástico tão somente em vista a abrangência e interação com o meio social cultural a que se expandiu encontrando nas mais variadas manifestações frutuoso campo de atuação. Contudo, o ornamento barroco por sua vez não deve ser colocado em segundo plano, visto ser ele a exteriorização concreta do pensamento do período onde se almejava galgar a glória, mas também temia-se a possibilidade não obstante da aniquilação nos suplícios da danação eterna. O conflito de valores por seu turno possibilitou à História da Arte e aos que a seu estudo se dedicam a análise de uma produção material indescritivelmente invejável, posto a amplitude de possibilidades e rumos que a pesquisa possa tomar, compreendendo-se a partir de vários vértices, o estudo da sociedade européia, na qual se desenvolveu o barroco que “[...] recusava-se a conter-se nos limites de uma teoria” (MACHADO, 1969. p. 75). Tão pouco a um conceito que lhe definisse apenas como concepção plástica ampliando sua atuação em várias áreas do conhecimento e representando a mentalidade histórica de um período que superou o Renascimento. Lourival Gomes Machado nesta mesma linha de raciocínio, analisando o pensamento do Dr. Arnold Hauser ressalta e levamos a compreensão de que o barroco trata-se de: “[...] um fenômeno artístico tão amplo que, identificando-se e ao mesmo tempo traduzindo o espírito de uma época, foi capaz de atender às solicitações de diferentes grupos locais, estruturas econômicas, formulações jurídico-políticas e até ideologias éticas e religiosas (MACHADO, 1969. p. 59) Ambos os autores são uníssonos na afirmação de que o barroco mais que conceito artístico acadêmico, corresponde a uma época, a um período da história da Europa que em determinado momento expande esta territorialidade para implantar-se na América Ibérica com o processo colonizador. Sua ocorrência compreende os séculos XVII e XVIII, abarcando toda uma vasta produção cultural estendendo-se a elaboração de códigos comportamentais, impondo uma aristocratização da sociedade com o 18 advento do regime absolutista que distinguiu drasticamente os indivíduos segundo o conceito de classes sociais. A nobreza conserva os ideais medievais da cavalaria: fidelidade, heroísmo e honradez, porém lapidadas pela delicadeza e requinte dos modos, conferindo à nobreza absolutista características aristocráticas5 deixando de lado a rudeza militar em substituição a função burocrática, a qual o Estado moderno se adere. Dá-se início a era da fidalguia em tudo dependendo das benesses reais, que por sua vez, conseguia manter seu extravagante estilo de vida através da arrecadação tributária, que culminará com a derrubada do Antigo Regime liderada pela burguesia e sustentada pelas camadas sociais mais simples no final do século XVIII. Considerações Finais A arte desenvolvida e partilhada pelas cortes católicas, portanto são de caráter doutrinário contra-reformista, palaciano monárquico e cortesão ao passo que o barroco que se desenvolveu nos países protestantes, assumem feições burguesas mercantilistas, e politicamente devido a crença de que “[...] todos homens são filhos de Deus, era essencialmente hostil à autoridade” (HAUSER, 1954. p. 600), e simpáticos aos ideais republicanos, salvo várias exceções. O barroco protestante se deterá à pintura e a representação “[..] que tenta não só tornar visíveis as coisas espirituais, mas também dar às coisas visíveis um ar de espiritualidade” (HAUSER, 1954. p. 606), onde a burguesia é retratada freqüentemente com seus trajes austeros, bem como cenas do cotidiano com um realismo impressionante, sobretudo no domínio da técnica, da incisão da luz sobre os objetos. O barroco protestante é acima de tudo uma arte da classe média e da burguesia, alheia a pompa dos palácios e avessa à exaltação exacerbada da mística e da religião, detém-se a representação de cenas que revelam sensibilidade e pertença ao visível e ao real. Na Holanda, protestante de Vermeer e Rembrandt a arte desenvolveu-se não por imposição da Igreja, nem pelo poder régio e nem pela corte como era comum nos países 5 Hauser atenta para a transferência do centro da cultura e da política de Roma, Itália para a França que: “[...] torna-se agora o poder orientador na Europa, politicamente falando, e toma a chefia em todos os assuntos de cultura e gôsto.” e é justamente na França absolutista que a nobreza se consolida como instituição “[...] de uma brilhante representação teatral.” (HAUSER, 1954. p. 574-576) 19 católicos, mas pelo corporativismo presente na burguesia mercantilista e na classe média em ascensão. REFERÊNCIAS ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro – Glossário de Arquitetura e Ornamentação. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1980. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou, 1954. MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo: Perspectiva, 1969. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento: os humanistas, uma nova visão de mundo: a criação das línguas nacionais: a cultura renascentista na Itália. São Paulo: Atual, 1985. 20