Pedro Figari
o retrato da cotidiano dos escravos
na “Suíça Latina”
Maria Margarida C Nepomuceno
Pedro Figari. Óleo sobre tela. Candombe Federal, s/d
Atrás das pinturas aparentemente anacrônicas do uruguaio Pedro
Figari (1861-1938), centradas nas planícies fronteiriças dos pampas, nas
paisagens repletas de umbus e nas festas religiosas dos negros escravos,
revela-se um pensador disposto a registrar cenas e cotidianos de culturas
desaparecidas.
No Uruguai, o fim do tráfico de escravos foi um processo que se
inicia em 1825, mas só culminaria em 1842 quando se deu a libertação dos
escravos ao mesmo tempo em que se deu o início do embranqueamento
cultural da população com a chegada das correntes imigratórias europeias. Em
meados de 1870, a cidade de Montevidéu correspondia a 30% da população
de todo Uruguai e dessa população somente os italianos correspondiam a
20%., os espanhóis eram 14%. Ou seja, quase 50%da população de
Montevidéu era composta de estrangeiros.
Os negros eram livres, mas não possuíam a menor ascendência
na elaboração das políticas culturais do país. Figari levou para dentro dos
salões artísticos, repletos de uma elite ávida em conhecer e reverenciar a arte
de matriz europeia, suas pinturas do Candombe, dos congos, e cabindas de
Angola, e os hábitos cotidianos de festas ou funerais dos escravos africanos no
Uruguai.
Muito embora tenha sido considerado durante muito tempo
um
artista fora de seu tempo, costumbrista, de forte vertente nativista , Figari é
considerado hoje como o primeiro pintor uruguaio que fez um registro
documental de importância social e antropológica dos africanos para a
sociedade uruguaia dos anos 20/30. Período em que se acentuou o processo
de modernização e desenvolvimento econômico do Uruguai.
Figari faz parte de uma geração de artistas que recolocou negros e
indígenas no centro da representação das matrizes fundantes nos países
americanos, tais como os mexicanos Diego Rivera e Siqueiros, ou como o
peruano José Sabogal e no Brasil como Portinari e tantos outros.
O objetivo desse estudo destina-se a estabelecer as relações entre
os processos de formação de linguagens estéticas e sua correspondência com
a preocupação das vanguardas latina americanas do período mencionado
acima, de definição de identidades próprias.
Juan Manoel Blanes. La Paraguaia. Óleo sobre Tela. 1879
Poucas
cidades
da
América
Latina
homenageiam
permanentemente seus artistas, com mostras de seus acervos e publicações
de suas obras como Montevidéu. Cada artista tem, praticamente, um museu
para celebrar seu trabalho que permanecem abertos ao público uruguaio e aos
estrangeiros que para lá se dirigem, durante todos os dias da semana. Os mais
procurados são: o Museu Pedro Figari (1861-1938); o museu do construtivista
uruguaio Torres Garcia (1874-1949); o Museu José Gurvich ( 1927-1974) e o
Museu Juan Manoel Blanes, o mais velho deles e autor da La Paraguaya, obra
emblemática sobre o final da Grande Guerra, ou a Guerra da Tríplice Aliança
contra o Paraguai ( de 1864-1870).
Com exceção de Manoel Blanes, cujas pinturas remetem ao
processo de consolidação da nação, as definições de fronteiras e a
determinação da identidade “gaúcha” do país, os demais artistas situam-se já
na produção modernista do início do século, incluindo Pedro Figari, artista que
personifica muito bem a transição entre o
acadêmico e as suas
representações ruralistas e o moderno, com as produções que remetem aos
processos de transformação da sociedade montevideana.
Longe de querer analisar cada um desses grandes nomes da Arte
no Uruguai, especialmente Joaquin Torres Garcia, vanguarda construtivista de
alcance na Europa e em toda a América Latina, arriscaria dizer que cada um
deles possui uma importância especial e um papel de representar
simbolicamente fases distintas da História do país. Coube, entretanto, a Figari,
um artista tardio, advogado e jornalista, a tarefa de promover o processo de
transição na arte. Ao contrário dos artistas de sua época que se iniciavam nas
artes ainda muito jovens, Pedro Figari somente dedicou-se ao trabalho
artístico, pintando, desenhando e esculpindo, aos 60 anos e deixou para trás
uma carreira política de expressão.
Filho de pais italianos, o uruguaio Pedro Figari nasceu a 29 de
junho de 1861, em Montevidéu. Formou-se em Direito em 1885, e no ano
seguinte foi nomeado defensor público. Famoso por sua defesa de pessoas
injustamente acusadas, Figari elegeu-se deputado em 1896. Na Câmara
Federal, trabalhou pela abolição da pena de morte e apresentou o projeto da
criação da Escola de Belas Artes. Em 1910, passou a integrar a diretoria da
Escola Nacional de Artes e Ofícios e dois anos depois publicou o ensaio
filosófico “Artes, Estética e Ideal”. Em 1915, pôde reformular a escola segundo
um projeto de sua autoria. Renunciou então à carreira jurídica, para só aceitar
encargos ligados à arte. (Simão, 2007)
Como ocorreu também no Brasil, as escolas de artes e ofícios
reuniam artesãos e artistas, havia pouca diferenciação entre eles, em
Montevideu, como membro da Escola Nacional de Artes e Ofícios, Figari
apresentou um projeto de programa onde os ofícios criados por artesãos
levassem em conta as necessidades de modernização da vida social do país.
Estaria fundamentando o surgimento das Artes aplicadas às nascentes
atividades das indústrias elementares. O estímulo de técnicas para que se
adequassem ao desenvolvimento industrial ainda embrionário, mas exigentes
de uma diversificação de mão de obra, criou o ambiente propício para estimular
a escola de trabalho industrial e artístico. Foi com seu empenho que
estabeleceu definitivamente a diferença entre “as formas acadêmicas caducas
e um conceito novo de criação” (LINARI, 2012, p.09).
Pedro Figari. Óleo sobre papelão. Nostalgias africanas. s/d.
Antes de Pedro Figari dedicar-se exclusivamente à Arte, escreveu
inúmeros textos que mencionavam a polêmica existente de então, de
adequação e necessidade dos ofícios de qualquer natureza estabelecer
relações com o processo de desenvolvimento industrial. Figari acompanha as
mudanças que estão ocorrendo no governo de José Battle y Ordonéz,
presidente responsável pela modernização de setores consideráveis da vida do
país1 e estabelece uma unidade dialógica e dinâmica entre arte e indústria. A
arte, afinal, para Figari teria que ter um sentido pragmático?
As polêmicas levantadas pelo artista corriam na contra mão das
definições em outras partes do mundo, especificamente na L´Ecole de Beaux
Arts , de Paris, onde a “intromissão” da indústria não haveria de se imiscuir
com as Artes, por decisão de seus principais porta-vozes. Teria declarado
Ingres, um dos mais respeitados docentes da Academia francesa: “A indústria!,
não a queremos. Que fique em seu lugar e não venha estabelecer-se no meio
da Escola de Apolo, consagrada às artes únicas de Grécia e Roma”. (LINARI,
2012.p 15).
No Uruguai, o modelo das Bellas Artes adotado por grupos sociais
dominantes vai aos poucos se misturando e convivendo com o modelo
denominado por Linari de típico modelo burguês “artístico-industrial”. (LINARI,
2012, 14).
Na verdade, o que artistas como Figari anteviam é que “ o Uruguai
estruturado com bases na produção do gado e no modelo econômico
agroexportador, não poderia, a não ser com um lento esforço abrir caminhos a
uma consciência social de suas possibilidades produtivas ao nível industrial”
(CF. LINARI, 2012: 17). Não se tratava de enfrentar um processo puramente
econômico, mas essencialmente cultural, de mudança de mentalidade e
adequação na produção dos bens simbólicos.
O período de transição foi justamente marcado pelo surgimento de
uma gama diversificada de artesãos: em 1884 podia-se estimar 1774
estabelecimentos industriais e artesanais em Montevidéu que empregavam
1
José Batlle Ordonéz, eleito duas vezes presidente da República do Uruguai pelo Partido Colorado, fez reformas profundas nas instituições políticas do país apoiando a criação de um Executivo Colegiado composto de representantes dos partidos de tal forma que evitasse o risco de desestabilização do país. O modelo encontrado foi a criação e aprovação pela Constituição de 1917 de um Conselho Nacional de Administração. Fundador do Jornal El Día, o primeiro a ser censurado na ditadura de Gabriel Terra. A tradição de reformas profundas na sociedade e nas estruturas institucionais deixou como herança a corrente denominada batlista, dentro do Partido Colorado. 26% da população economicamente ativa. Eram ferreiros, carpinteiros, fabricas
de carruagens, de guarda-chuvas, de artigos de coro, de velas, cigarros,
presunto e móveis, artigos para construção, bebidas, azeites e outros produtos.
Para os historiadores uruguaios é corrente a ideia de que no
Uruguai:
Nas três primeiras décadas do século XX havia se
desenvolvido um efetivo processo de democratização
política, modernização social e afirmação institucional,
amparado nas vantagens comparativas obtidas por uma
economia agropecuária no marco de uma situação
internacional favorável. A situação alcançada não teve
paralelo na América Latina e, no clima de confiança e
relativa prosperidade no que contribuiu os avanços sociais,
os progressos materiais e as vitórias desportistas, muitos
acreditam estar vivendo na ‘Suíça da América’, como
algum deslumbrado observador estrangeiro nos qualificou”
(NAHUM et al, 1898:p9)
A partir de 1920, Figari começa a desenvolver as suas séries onde
suas pinturas davam a ideia de uma continuidade temporal. Suas telas
mostram aspectos diversos de cenas e costumes da vida cotidiana de
Montevidéu e do restante do país, pintados de memória uma vez que ele se
exilou em Buenos Aires. Dentre essas séries, destacam-se as que representam
cenas da vida da comunidade negra descendente de escravos. São cenas de
atividades coletivas como festas, batizados, casamentos.
Pedro Figari. Óleo sobre tela. Candombe s/d - Coleção Particular
De forte temática regionalista o mundo pictórico de Figari é
povoado pelas danças dos negros que ele conhecera nos arredores de
Montevidéu, as festas populares e a religiosidades dos escravos. Para Borges,
os temas de Figari estavam “fora do tempo e do espaço”, igualmente ao que
acontecia com seus contos. Seus motivos, pareciam congelados no tempo e
não faziam relação com o presente. Pátios coloniais, bandas locais e festas
dos negros, danças e canções populares, guitarras, tambores, cores brilhantes,
blocos de carnaval, sedas e percais escandalosos, esses são os seus motivos.
(ADES, 1997: 136) .
Figari pintou com frequência cenas de candombe, uma dança
africana, cujo ritmo africano, tem sido parte importante da cultura uruguaia, por
mais de duzentos anos. Este ritmo chegou ao Uruguai graças aos negros
escravos
e
ainda
hoje
é
encontrado nas
ruas,
especialmente
nos
carnavais. Para compreender como este ritmo enraizou-se na cultura uruguaia
é necessário trazer de volta alguns pontos da história africana e sulamericana.
Montevidéu, capital do Uruguai, foi fundada em 1724 e alguns
anos mais tarde, começou a ser registrada a entrada de escravos africanos,
sendo que, em princípios do século XIX, já excedia os 50% da população do
Uruguai. Esta população escravizada não era homogênea, mas oriunda de
uma África multiétnica e culturalmente muito variada, sendo a maioria de
origem Bantu, Africa Oriental e Equatorial. A área Bantu constituía uma vasta
região cultural, um mosaico étnico complexo formado – aproximadamente de
450 grupos – e uma diversidade de idiomas com cerca de 20 grupos
linguísticos e 70 dialetos que compreendia as áreas da Guiné, Senegal e
Gambia. (CF. Simão. Cores Primárias, 2007 s/p).
Para a pesquisadora, o candombe, portanto, “é a sobrevivência da
cultura ancestral africana trazida pelos negros chegados da região do Bantu
até o Rio da Prata”. O termo é generalizado a todos os bailes de negros,
sinônimo de dança negra, evocação do ritual da raça. Seu espírito musical
traduz os tormentos dos escravos desafortunados, que, de súbito, viram-se
transplantados para a América do Sul, para serem vendidos e submetidos a
duras fainas. Eram almas sofridas, guardando incuráveis nostalgias do solo
nativo.
Na época colonial, os africanos recém-chegados chamavam “tango”
a seus tambores. Esta palavra também se aplicava ao lugar onde realizavam
suas danças e às próprias danças. Assim, a palavra “tango” designava o lugar,
o instrumento e, por extensão o baile dos negros “. (CF. Simão. Cores
Primárias, 2007:s/d)
Em Alucinação, o casal de negros, no frenesi da dança, recorda os
rituais escravos. Com a variedade das roupas extravagantes, Figari cria uma
rica sinfonia de cores. As mãos dos personagens, transformadas em manchas,
sugerem o movimento. “Conversam com as mãos” escreve Eduardo Galeano
no O Livro dos Abraços:
.
Pedro Figari..Alucinação. Óleo sobre Tela - 1923
“Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e ainda assim os
dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. (...) E embora fosse proibido
falar, eles conversavam com as mãos. Quando é verdadeira, quando nasce da
necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe
negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por
onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa,
alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais”.
As casas em que os escravos apresentavam suas danças, com a
permissão de seus amos, eram fechadas ao público em geral na Montevidéu
antiga. E era ao som do “tambor” que eles celebravam suas festividades e
cerimônias. O tambor conjugava a necessidade de expressão e liberdade de
cultura, subjugada pelo domínio espanhol. O ritmo do candombe é dado pela
combinação de três tipos de tambor: “tamborpiano”, “tambor chico” e
“tambor repique”. (Simão, Cores Primárias,2007:s/d)
No início do século XIX, há uma preocupação séria por parte das
autoridades com a realização dos candombes, denominados indistintamente
“tambu” ou “tango”. A dança é proibida e perseguidos duramente seus cultores
por considera-la um atentado público à moral. Em 1808, os moradores vizinhos
de Montevidéu solicitaram ao governador Francisco Javier Elio que reprimisse
mais severamente os candombes e proibisse os “tangos” dos negros.
Com a abolição da escravatura, o candombe passou a integrar a
paisagem cultural de Montevidéu e contribuiu nos anos de 1860-1870 na
formação da milonga, do tango-milonga e, por extensão, do tango.
Na História da Arte, a afirmação de um movimento se faz,
normalmente, pela supressão ou crítica de outro anteriormente registrado.
Na América Latina, cada país, ou território cultural produziu a sua
própria experiência da passagem do século XIX para a modernização do
século XX, dissociando-se do peso nefasto das Academias de Arte. As
Academias isolavam o artista de seu próprio mundo, impediam-nos de
interagirem com a sua própria cultura mediante a imposição de normas de
criação e de valores estéticos alheios. No caso do Uruguai, Joaquin Torres
Garcia inverteu o mapa da América do Sul de cabeça para baixo e clamou:
Nosso norte, ou seja, nossa direção, é o sul., num ato de rebeldia em relação
aos cânones dos centros artístico-europeus e marcou a construção de um novo
paradigma, que rompia com as orientações até então nas produções artísticas.
Além disso, Torres Garcia radicaliza na forma, interrompendo o processo de
construção de narrativas até então presentes na maioria dos trabalhos
artísticos e enveredou-se pelos símbolos e pela reconstrução de um
vocabulário artístico com o seu construtivismo simbólico. Criou a Escola del Sur
e influenciou gerações de artistas na América Latina.
Pouco mais velho que Torres Garcia, Pedro Figari negou-se a
enveredar-se pela desconstrução da forma e de conceitos arrojados na arte
moderna. Pensou a Arte numa combinação com o desenvolvimento industrial,
na aplicabilidade do objeto estético nos processos de transformação
econômico. Figari reiterava em seus discursos a necessidade de uma cultura
artístico-industrial como perfil identitário nacional. Acreditava que um país como
Uruguai não poderia tornar-se um grande centro produtivo, portanto, deveria
destacar-se pela qualidade de seus produtos, pela intensidade e prestígio
próprios. Como artista fez a opção pelas formas difusas, resvalando num
expressionismo muito próprio e marcando seus quadros com motivações que
se definiram pelo resgate da cultura dos negros africanos, suas crenças e
rituais. Pensou a paisagem, não a de cavalete, meticulosamente construída
dos academicistas, mas a paisagem natural dos pampas, dos gaúchos, ligada
à memória, às emoções, a História e a tradição.
Foi a maneira que encontrou de marcar a sua posição na passagem
para um modernismo que ele pretendia..... humanitário, arielista e muito próprio
de ser.
Referências Bibliográficas
ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo. Cosac & Naif Edições. 1998.
CASTILLO, Jorge. A Formação de um Estilo. Disponível
em:http://www1.uol.com.br/bienal/23bienal/especial/pefi.htm
LINARI, Gabriel Peluffo. Pedro Figari: Arte e Industria em el Novecientos.
Uruguai. Ministério das RE; Consejo de Educación T.Profesional: Universidad
del Trabajo del Uruguay. 2012.
NAHUM, Benjamín (ORG). COCCHI, Angrl; FREGA, Ana e TROCHON, Yvette.
Crisis Política y Recuperación económica 1930-1958. Buenos Aires. Edições
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SIMÃO, Vera Lucia. Homepage Cores Primárias, 2006.
http://www.coresprimarias.com.br/ed_4/arte_latina2_p.php
VIVES, Enrique Méndez. El Uruguai de la Modernización 1876-1904.
Montevidéu. Ed. De la Banda Oriental.2011.
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