BELO HORIZONTE Patrocínio: Apoio: cidades ilustradas MIGUELANXO PRADO BELO HORIZONTE Prefácio de John – Pato Fu Casa 21 Ltda Todos os direitos reservados para: Casa 21 Ltda Reprodução Proibida Copyright 2003 ISBN 85-88627-02-7 Coordenação Geral: Roberto Ribeiro / Giuseppe Landi / Erica Buzelin Texto: Miguelanxo Prado Tradução: Juliene Vieira Revisão: Beatriz Morais Arte Final: Sílvio Romero Impressão: Artes Gráficas Formato Ltda Já vou avisando: não sou mineiro de mineiridades. Nem de belorizontismos. No entanto, cá estou, olhando pra estas imagens. Conheço todos estes lugares. É esta a luz, esta a sombra. É esta a cor, estes os cinzas. O que é preciso pra empacotar tão bem assim o espírito de uma cidade? Olha! É este o guardinha e este o asfalto! Tudo confere ponto a ponto com as imagens arquivadas em minha memória. Agora pronto, me deu vontade de voltar a todos estes lugares, pra ver se é isso mesmo. Danado, esse galego. Tem certeza de que não nasceu ali na Maternidade Santa Fé? Miguelanxo Prado, sinta-se em casa! John – Pato Fu Três razões que me levaram a Belo Horizonte A primeira, a promessa explícita de seu nome. A segunda, a vantagem financeira, pelo deslocamento. A terceira, a convicção de que essa viagem representaria um ponto de inflexão na minha tediosa vida de engenheiro de minas, ancorado em um trabalho mediano, nos escritórios cinza de uma multinacional desse setor. Esta terceira razão, certamente, tinha mais complexidade interna do que qualquer uma das duas anteriores. Belo Horizonte é a capital do estado brasileiro de Minas Gerais. A principal extração é a do ferro, mas não muito longe dali, duas outras cidades têm nomes cintilantes: Ouro Preto e Diamantina. Reconheço que, imaginarme como negociante de pedras preciosas, era mais um delírio romântico, do que um projeto especulativo. Sempre senti fascinação por gemas e pedras preciosas. Nunca consegui trabalhar com elas. Conheço um homem, dono de um restaurante perto de minha casa que, de tempos em tempos, como em um acesso de uma dessas enfermidades tropicais que nunca desaparecem por completo, cruza o Atlântico e volta com um punhado de esmeraldas no bolso e a máquina fotográfica cheia de fotos. Nelas, aparece, no meio do mato, com camisas de manga curta, barba de vários dias, olhar aceso. Com ele, tipos de pele curtida e um desconcertante e cálido sorriso, armados como soldados. Há outro elemento que sustenta essa convicção na minha mudança de vida e que me provoca certa vergonha confessar. O meu bisavô materno emigrou para o Brasil e trabalhou entre portugueses e italianos, lá por volta de 1896, durante a fundação e construção da cidade de Belo Horizonte. Poucas coisas dele restaram: um relógio de corda estragado, cinco fotos envelhecidas, comidas por manchas de umidade, um mapa com algumas anotações, e a certeza, entre os familiares, de que ele fora um pobre homem que foi “fazer as Américas” e voltou para morrer na sua Galícia natal, trazendo a exígua bagagem que enumerei. O mapa era, supostamente, de um tesouro que um português enterrara, tempos atrás, na Serra do Curral, o cinturão montanhoso que envolve o amplo vale sobre o qual cresceu Belo Horizonte. Não riam, por favor. E ali estava eu, no 21º andar de um hotel quatro estrelas, contemplando um parque frondoso aos meus pés e a cidade imensa que se estende ao seu redor, sem poder associar ainda nenhum nome a esse labirinto de avenidas e arranha-céus. Primeiro dia A recomendação da minha empresa era que eu estudasse a possibilidade de participação em algumas das companhias de extração que operam em Minas Gerais, ou mesmo de aquisição de algumas delas, e elaborasse uma proposta para o estabelecimento de escritórios próprios. Chamadas telefônicas, algumas visitas técnicas, contatos imobiliários... Tinha três meses de prazo, prorrogável se necessário. O mais urgente era procurar um apartamento. Hoje peguei um táxi e pedi à motorista que me mostrasse a cidade. Era conduzido por uma mulher... Mônica...não, Érica. Anotei o seu telefone. O primeiro contado urbano foi um pouco desconcertante. Uma metrópole com quase três milhões de habitantes tem pouco a ver com a idéia de capital de uma província recolhida e calma, que eu tinha feito. Não existe um centro histórico: os restos da cidade novecentista ficam espalhados, gotas de Belle Époque rodeadas de construções do surto desenvolvimentista dos anos 60 e de arranha-céus futuristas dos 90. Ao longo de quase duas horas dando voltas, a minha percepção é, talvez, mais confusa. Comprei um mapa, mas ainda não consigo me orientar. Segundo dia Enquanto almoço no restaurante do hotel, um tipo, já passado dos cinqüenta, acompanhado por três moças entre vinte e trinta anos, fala sem pausas, de um jeito ostensivo. Elas não paravam de rir. Ou ele é muito simpático, ou é quem paga. Numa mesa ao lado da minha, uma mulher bebe um café com pouco entusiasmo e petisca um dos três pequenos bolinhos que estão num prato. Eu ainda não sei, mas o que come, chamado de pão de queijo, é um poderoso elemento da identidade mineira. A moça é encarregada das relações públicas do hotel. Puxa conversa. Chama-se Rebeca. É belo-horizontina. Para ela, BH é uma aldeia iluminada. O raciocínio não me alude a nada, mas a intuição poética me resulta evidente, clara. Telefonei a duas empresas com as quais devo começar as negociações. Não há pressa. Não devo dar a sensação de interesse excessivo. Tenho uma entrevista dentro de três dias com um tal doutor Walter Almeida. Saí para passear. A avenida Afonso Pena é o cordão umbilical dessa cidade. É a ligação direta, lá no fundo, com a Serra do Curral, limite, origem, proteção e símbolo dessa grande metrópole. De seus cumes, Aarão Reis, o engenheiro-chefe que dirigiu a Comissão Construtora encarregada de criar a capital, sonhou Belo Horizonte. Eu caminhei em sentido contrário. Terceiro dia Tenho de começar a fazer algo. O tempo passa com uma lentidão entorpecedora. Hoje percorri o Parque Municipal, esse jardim que vejo do meu hotel, do outro lado da avenida. Chamei de novo Érica, a taxista. É uma falante culta e amena. Perguntei-lhe se sabia de apartamentos para alugar. Compramos alguns jornais e fomos a algumas imobiliárias. Indagou as minhas preferências e me ajudou a escolher os bairros mais interessantes. Quarto dia Achei o lugar. É num edifício de três apartamentos, distribuídos em três andares, no bairro Cidade Jardim. Um dos apartamentos está habitado por uma viúva silenciosa e o outro está vazio. A região é tranqüila, cheia de árvores, das quais desconheço os nomes. Ontem, à tardinha, cinco colibris voavam ao redor de umas flores vermelhas, imensas, no jardim da casa vizinha. O contato Encontrei-me com Walter Almeida no escritório da Mineradora Bettelsein, num arranha-céu perto da Praça da Estação, às seis da tarde. A idéia era ter um jantar de negócios para trocar informações sobre as nossas respectivas companhias e tentar diferentes possibilidades de associação. É um tipo culto, de modos refinados, com o que supre a sua falta absoluta de perícia técnica. Percorremos cinco ou seis bares, talvez mais, bebendo bastante, falando muito e comendo pouco. O mais contundente foram os pães de queijo deliciosos, num local com decoração minimalista, público com ar cosmopolita e aspecto elegante, no qual meu anfitrião tentou, sem sucesso, que fizéssemos contato com um par de moças de linhas alongadas. Às três e meia da manhã mencionei a conveniência de bater em retirada, e meu colega respondeu em tom alegre que ainda não havíamos jantado. Temi que pudéssemos terminar fazendo um sofrível after-hours, comendo alguma porcaria semi-sintética, rodeados de notívagos hiper-estimulados. O restaurante que Walter havia escolhido era uma casa em estilo colonial, numa esquina de uma grande praça. Havia uma igreja do outro lado. Oba! Estava completamente errado na minha previsão: macarrão. Surpreendente, esse Walter. Quando bebo demais perco a minha precaução habitual. Naquele contexto, depois de tantas horas de bebidas e conversa, Walter Almeida me pareceu merecedor de toda a minha confiança. Temerária e descaradamente, perguntei-lhe pelo comércio de pedras. Foi elegantemente evasivo. A Bettelstein, disse, dedica-se, exclusivamente, ao ferro. Ainda assim, faloume com discrição monástica das dificuldades para entrar no controladíssimo comércio legal e dos perigos de fazê-lo no turvo e arriscado comércio clandestino. Depois, falou o resto da noite de futebol. Em BH existem dois grandes times: Atlético e Cruzeiro. Ele é cruzeirense. Ao sair do restaurante, levou-me para casa no seu carro e, no momento de nos despedirmos, anotou algo num pedaço de papel, que me entregou dobrado. Com um sorriso de ator britânico, advertiu-me de que não sabia nada do assunto. Fiz a melhor cara que consegui para aparentar que entendi bem a que ele estava se referindo e resisti à tentação de desdobrar o papel ali mesmo para ver se compreendia algo. Fiquei ali na rua, cortês, aguardando que ele arrancasse. Quando o seu BMW desapareceu na esquina, abri a anotação. Havia, escrito numa caligrafia um tanto afetada, um número de telefone e um nome: Otacílio. O ´escaravelho´ Era evidente que precisava de um carro. Pelo preço que me custaria alugar um, resolvi comprar um Volkswagen usado. Aqui o chamam de fusca. Existem milhares. Também há muitas daquelas peruas, da mesma marca que, na Europa e creio que também nos Estados Unidos, associamos aos anos 60 e ao movimento hippie. Primeiro encontro Otacílio é um mulato grande com voz de barítono, pontuada pela vibração rascante dos cantores de jazz. Encontrei-me com ele num banco dos jardins da Praça da Liberdade. Disse-lhe que queria tratar de negócios. Quando falei de pedras preciosas negou, lacônico, qualquer relação com esse comércio, mas continuou sentado. Imitando personagens de filmes em situação semelhante, tentei jogar com a sua curiosidade e cobiça, com um misto de prudência e ousadia. O resultado pareceu ser desalentador: Otacílio permaneceu impassível, sem deixar de olhar, todo o tempo, imperturbável, o edifício de Niemeyer que se encontra no meio das Secretarias de Estado. Eu não tinha mais o que dizer. Depois de uns segundos em silêncio, Otacílio comentou sem afastar o seu olhar imóvel: - Esse edifício é como um pedaço de plástico no meio de jóias. Levantou-se e foi embora com as mãos no bolso. Eu fiquei desconcertado, sentado no banco. Demorei a me dar conta de que o mulato deixara um cartãozinho perto de mim. Tinha o tamanho de um cartão de visitas, em branco. Escrito a mão, com letra redonda e algo infantil, havia outro número de telefone. Segundo encontro Liguei para o novo número do Otacílio e marcamos um encontro no Mercado Central. Sem mais detalhes. Na hora indicada comecei a perambular por suas ruas internas. Estava contemplando, fascinado, uns estranhos peixes chamados surubim, quando escutei a voz áspera do mulato às minhas costas. - É delicioso grelhado, com arroz ou com molho de camarão. Depois se calou e começou a caminhar devagar, as mãos bolsos, o queixo levantado, o olhar perdido. Voltei a argumentar. Falei da minha formação acadêmica, da minha intenção de entrar no negócio das pedras, deixando-o intuir que tinha o respaldo de uma pouco concreta organização na Europa... Não olhou para mim uma só vez. - O que você quer comprar? Não soube dizer ao certo. Diamantes, esmeraldas, topázios, águasmarinhas... Depois detectaria que aquela dúvida revelara minha falta de profissionalismo. - Por que você quer se meter nisso? Compreendi que Otacílio tinha certeza da minha inexperiência. Decidi jogar a carta da sinceridade. Comecei a lhe explicar. Interrompeu-me um pouco. - As histórias e os contos eu prefiro escutar sentado e com algo para beber nas mãos. Você convida. Ele me levou até um dos barzinhos do interior do mercado. Ocupamos uma mesa. Ele pediu suco de maracujá; eu, uma cerveja. Aquilo não era álcool bastante para esquecer a minha prudência, mas reconheço que sentia medo e não tinha nem idéia do que podia estar passando pela cabeça do Otacílio. A possibilidade de que se sentisse incomodado e pensasse em desfazer-se de mim de uma maneira violenta era mais que provável. Experimentei diante daquele delinqüente indiferente o conforto perverso da confissão plena. Com entusiasmo, destaquei os detalhes mais grotescos da minha história, como quem revela os seus vícios mais secretos e irrisórios, sentindo, na crueza dos pormenores, o alívio masoquista da expiação. Contei-lhe da minha vida sem graça. Admiti a minha inexperiência em matéria de pedras preciosas e gemas, mas reforcei a minha formação teórica e a minha entusiasmada fascinação. Destaquei estupidamente as minhas boas qualificações nos meus estudos das matérias correspondentes. Não me senti ridículo, quando revelei que na minha mala tinha um mapa de um tesouro soterrado por um português na Serra do Curral. Otacílio nem sequer riu. Balançou a cabeça lentamente, como se não pudesse acreditar no que estava escutando. - O suco de maracujá é relaxante. Não disse nada mais. Levantou-se e foi embora. Agora, à luz fantasmagórica de um televisor que comprei, de ocasião, num mercadinho na semana passada, sem sequer concentrar-me no filme incoerente que contemplo sem ver, compreendo o quão patético eu fui. Terceiro encontro Demorei uma semana para ter coragem de ligar de novo para o Otacílio. Fiz isso ontem. Ele me convidou para assistir a uma partida de futebol no estádio do Mineirão, entre Atlético e Cruzeiro. Otacílio é atleticano. Não olhou para mim nem por um momento. Tampouco falou. Manteve-se tão impassível diante do gol do Atlético como quando, a sete minutos do final, o Cruzeiro conseguiu igualar. Terminado o encontro, já fora do estádio, Otacílio afirmou: - Cada vez fico mais nervoso, tenso com jogos de futebol. Não vale a pena tanto sofrimento. Logo, não me deu opção. Fez-me entrar no carro e, em silêncio, claro, atravessou a cidade pela avenida Afonso Pena. Tive o cuidado de colocar música: Chico Buarque. Num semáforo, sentado no meio-fio, um homem lia, absorvido, um livro. Consegui ver o título: era a Bíblia. Confesso que, quando me dei conta de que estávamos saindo da cidade, temi novamente pela minha vida. Chegamos ao alto, a um mirante, no qual parou o carro. Descemos. - Aí, à direita, está o Parque das Mangabeiras. - Desse outro lado...Belo Horizonte. Passou um tempo antes de voltar a falar. Tentei com todas as minhas forças não me ruborizar, mas não consegui. Para cortar o gracejo, disse-lhe a quantidade aproximada com a qual contava. Pela primeira vez, Otacílio me olhou. Não pude deixar de perceber um aceno de incredulidade nos seus olhos. - Quanto dinheiro você tem para investir? - Que é? Sua poupança? - Investir? - Sim. - As pedras que você quer vender na Europa, terá de comprá-las primeiro, não? Comecei a calcular mentalmente, convertendo em dólar o total da minha poupança... Foi como se um esconjuro secreto tivesse sido pronunciado sem que eu percebesse. Aquele mulato lacônico mudou a atitude fria e distante que mantivera até então e começou a falar em um tom quase carinhoso, como quem fala com uma criança de pouca idade ou com um animal de estimação. Fez isso durante mais de meia hora. - Porque... você não está pensando em roubá-las, está?! Acabou assegurando que me ensinaria o ofício. Na pergunta havia um temor não dissimulado de que aquilo pudesse acontecer. Tranqüilizei-o com uma negativa categórica. Num tom já mais bemhumorado, insistiu: - Não vai esperar encontrar primeiro o tesouro da Serra do Curral para investir nos seus negócios? De volta, levou-me, um pouco mais abaixo, por uma rua onde desligou o carro, deixou-o em ponto morto, e este começou a subir, só que para trás. É a rua do Amendoim. Proposta de Otacílio Três dias antes o Otacílio havia me ligado. Deu-me um endereço, no bairro Floresta, e me disse que fosse lá, às dez da noite. Por precaução, fui dar uma volta no local pela manhã. É um bairro tranqüilo. O endereço parecia ser de um bar que, àquela hora, estava fechado. À noite comprovei que, efetivamente, era um bar com ares de pub, no qual havia gente de todo tipo. Otacílio disse que ia ali pela música. O senso de humor desse homem é pitoresco. Mas o certo é que estavam tocando num canto do lugar, uns músicos que não o faziam nada mal. - Canções do Milton Nascimento, disse-me o Otacílio. É mineiro. Nasceu no Rio..., mas é belo-horizontino, do bairro Santa Tereza. Eles e seus amigos fundaram um grupo que chamavam de O Clube da Esquina. Otacílio insiste em enfatizar diferenças com os traficantes de drogas, reivindicando, de um jeito romântico, o espírito corsário dos contrabandistas. Passou-me, com extrema cautela, um pacotinho. Advertiu-me para que não o abrisse ali. Terei de devolvê-lo amanhã, ao meio-dia, num lugar que ele me indicará por telefone. A minha apreensão devia ser muito evidente. Ele me tranqüilizou: - Não abra até chegar a sua casa. Cuide bem disso e não tenha medo, não é droga. Agora, tenho diante de mim o conteúdo do pacotinho: sete pedras, sete cristais de diferentes cores. Numa notinha que os acompanhava, Otacílio escreveu com a sua letra redonda: diga-me que pedras são e a sua qualidade... Bom começo Marcou um encontro na igreja de Lourdes. Eu não quis admitir não saber onde era. Procurei no mapa. - Estas duas são águas-marinhas, esta uma granada, estas duas topázios azuis. As outras duas são falsas. Quanto à qualidade, não sei dizer...As águas-marinhas têm bom brilho e transparência, mas a cor não é muito intensa... A granada é um tanto opaca, e os topázios parecem excelentes, com um azul belíssimo... - Bom, parece que você é seguro do que diz. Só uma coisa: não volte a dizer belíssimo... Uma mulher Uma vez por semana vejo o Otacílio. Trago um novo pacotinho de pedras para casa e as estudo. Não estou mal. Hoje busquei um pacotinho novo no bar habitual. Num canto pouco iluminado do lugar havia uma mulher loira, sozinha, sofisticada, vestida elegantemente. Parecia incongruente naquele ambiente. Percebi que estava nervosa e deslocada. Estava triste. Era belíssima, como os topázios azuis. Um encargo Otacílio me pediu que o acompanhasse para buscar um gravador. Ele confia em mim. Na semana que vem irei a Governador Valadares, no nordeste do estado, para buscar material, berilos. Perguntei se a mulher que eu tinha visto no outro dia era freqüentadora do bar. Otacílio não tinha reparado nela. Descrevi-a com todos os detalhes de que fui capaz, mas ele não conseguiu se lembrar. Aventurou uma possível razão com duas variantes para que uma mulher como a que eu descrevi estivesse naquele lugar: tinha marcado um encontro com alguém para lhe vender jóias próprias (era a jovem mulher de um homem endinheirado ou filha herdeira de uma boa família) ou presenteadas (era amante de um homem endinheirado, casado). Parece plausível. Terceiro passeio com Érica Hoje eu tinha duas reuniões. Uma de manhã e outra na primeira hora da tarde. Ainda não conheço bem a cidade, por isso revolvi chamar Érica para que me levasse. Aluguei o táxi todo o dia. Convidei-a para jantar e quando terminei o trabalho, pedi que ela me levasse por partes da cidade que ainda não conhecia. Ela é casada e adora teatro. É uma grande ouvinte. Sabe passar confiança para que a pessoa fale de si mesma. Seria uma boa psiquiatra. Acabei falando do meu descontentamento com a minha vida na Europa e da minha esperança de mudá-la aqui, de encontrar algo semelhante a uma aventura. Falei, inclusive, da elegante mulher loira. Quis ver no seu olhar compreensivo um aceno de cumplicidade. Prometeu chamar-me um dia desses para me levar a um lugar, segundo ela, muito interessante. Santa Tereza Saí em busca do Clube da Esquina, o lugar onde Milton Nascimento e os seus colegas desenvolveram seu movimento musical. Otacílio falou do bairro Santa Tereza. Não podia imaginar a exatidão do nome. Uma placa exígua, num muro como qualquer outro, assinalava a esquina onde os músicos se encontravam. Isso mesmo: uma esquina. O bairro tem, em geral, uma atmosfera de vila hispânica centro-americana. Bebi uma cerveja num desses bares diminutos - que aqui chamam de copo-sujo - sempre com alguém dentro, falando, o tempo detido. O dono afirma que Milton & company freqüentavam o lugar. Perto dali reconheci uma praça com uma igreja. Era o local em que, semanas atrás, acabei jantando macarrão, de madrugada, com o Walter. Museu Giramundo Érica me chamou, como tinha prometido. Buscou-me às três, pouco depois de almoçar, e me levou em direção ao norte. Entramos no Bairro Floresta, e paramos o carro diante de um edifício com aspecto industrial. - Pode ser que tenha estado ali alguma vez. Começamos uma conversa esquiva, falando de bonecos, de teatro, de aparências, de fabulações. Um pouco antes das cinco, ela disse que tinha de ir. Tentei acompanhá-la. - Entra aí. É o Museu Giramundo. Eu tenho trabalho e não posso ficar, mas o museu fecha às cinco. Você terá algum tempo. Nessa hora passarei para buscar você. - Não me siga, por favor. Ao entrar, fiquei surpreendido: um museu de marionetes. Uma pessoa atendia à entrada. No interior, não vi ninguém. - Para continuar falando de bonecos? Já havia um tempinho que estava no museu quando uma mulher apareceu de supetão, como se fosse um daqueles bonecos dotados repentinamente de vida. Durante uns segundos olhei sobre a sua cabeça com medo de encontrar os fios secretos que a movessem. Duvidei, pois a iluminação no bar onde falei com o Otacílio não era boa, mas estava seguro de que era ela. A loira elegante. Não consegui comportar-me com naturalidade quando lhe disse que estava certo de que já tínhamos nos visto antes. Respondeu que não acreditava. Disse-lhe o nome do bar e me arrependi no mesmo instante de fazê-lo. - Gostaria de vê-la novamente. Não consegui pensar em uma resposta engenhosa. Fiquei em silêncio, olhando como ela seguia caminhando. - Na próxima quarta-feira estarei na Pampulha a partir das cinco da tarde. Talvez nos encontremos. A Pampulha é uma lagoa, nos limites da cidade. Nunca estive lá. Quarta-feira será o dia de conhecê-la. Primeira perseguição Hoje voltei a vê-la. Tinha uma reunião na Mineradora Belgobrasileira pela manhã, no outro extremo da cidade. O tráfego, como sempre, estava engarrafado. Num semáforo da avenida dos Andradas encontrei-a dirigindo um carro vermelho. Era ela, estou seguro. Não resisti à tentação e comecei a segui-la. Não foi fácil. Ela trocava freqüentemente de pista e desviava sem parar. Perdi a orientação e acabei dirigindo por umas ruas que não conhecia. O tráfego foi ficando mais fluido, e ela aumentando a velocidade. Suspeito que ela chegou a perceber que eu a seguia. A duras penas a mantinha à vista quando ela começou a subir uma rua impossível. Não podia crer que meu carro pudesse superar aquele muro quase vertical. Estava convencido de que, a qualquer momento, a máquina se renderia, e cairíamos os dois, artefato e condutor, indo acabar destroçados aos pés do paredão. Ao chegar no alto, topamos com um precipício pelo qual ela desceu a toda a velocidade. Pus fim à minha perseguição. O bairro é cheio de encostas vertiginosas que provocam overdoses de adrenalina. Tentando sair, passei por uma rua na qual uma árvore crescia incontida. Tive de descer do carro para convencer-me de que era real. É uma gameleira, me disseram. A rua é Venezuela. Logo encontrei a avenida do Contorno. Depois, à tarde, estive perambulado a pé pela cidade. Jantei tarde num restaurante italiano. Pouco depois chamei Érica para ver se vinha me buscar e me levar para casa, mas o seu telefone estava desligado. Já não devia estar de serviço. Procurando um táxi, subi a rua da Bahia e cheguei à avenida Afonso Pena. Ali, na esquina do que fora o meu hotel nos primeiros dias, havia um bar aparentemente muito animado. Entrei com a intenção de tomar um último café. Parece um centro de reuniões de amigos. Surpreendeu-me um incontido desejo de comer pão de queijo. Estou parecendo um verdadeiro belo-horizontino. O lugar se chama Bar do Ponto. Tenho de voltar ali. Acabo de olhar o mapa. O bairro das encostas tem de ser o Santo Antônio. Amanhã tenho de ligar para a Belgobrasileira para me desculpar pela falta. Tenho de pensar numa desculpa. Encontro na Pampulha Hoje foi quarta. Fui à Lagoa da Pampulha. Aquela paisagem é o resultado do cunho modernizador entusiasta de Juscelino Kubitschek e da ambição criativa de Oscar Niemeyer. Não pude evitar uma sensação kitch ante alguns daqueles edifícios, mas o conjunto tem uma fascinação atemporal, quase onírica. Como uma lembrança. É imensa. Fui percorrendo a orla, parando de vez em quando, pensando ver, a cada instante, a mulher com quem tinha um impreciso encontro. Ao passar pelo Museu de Arte da Pampulha estava convencido de tê-la encontrado. Estava chegando à entrada. Estacionei o fusca e entrei no local. Não estava lá. Sai às pressas, dei a volta no edifício, procurei pelos caminhos do jardim, mas não a encontrei. Sentia-me como um personagem de Hitchcock. Segui o meu passeio, procurando-a. Passei por uma espécie de cais que entrava pela lagoa. Havia alguém no seu extremo. Já o tinha ultrapassado quando, pelo espelho retrovisor, vi que era ela. Parei e fui encontrá-la. Parecia contemplar, absorvida, as águas. Esperei na beira para não assustá-la. Depois de um momento, veio ao meu encontro. Agora sei algumas coisas. Chama-se Laura. Vai à Pampulha porque lhe lembra o mar. - Não vivi sempre em Belo Horizonte. Quem nasce perto do mar, não consegue esquecê-lo nunca. Passamos o fim de tarde juntos. Ela quase não falou de si mesma. Pediu que não fizesse perguntas. No entanto, quis saber tudo sobre mim. Não lhe falei de bonecos. Não lhe falei do Otacílio. Não lhe falei de gemas. Não lhe falei de mapas do tesouro. Ela escolheu o restaurante. Quem nos atendeu foi um garçom de idade que todos chamavam com respeito de seu Olimpio. No menu, aparecia surubim com molho de camarão. Otacílio tem razão: delicioso. Aos poucos consegui saber dela. Tenho certeza de que é casada, ainda não quis me certificar, nem vi um anel nos seus dedos. Falamos do Brasil, de Minas, de Belo horizonte. Falamos de não ser. Falamos de ser outros. Pedi-lhe que me deixasse levá-la em casa. Tive de insistir. Vivia no noroeste da cidade. Durante um tempo seguimos a avenida do Contorno. Ao chegarmos perto de uma praça iluminada, pediu-me que parasse. Suponho que por discrição. Agradeceu-me a companhia e se foi, atravessando a praça. Do outro lado, vi um muro alto e um portão grande com grade adornada por onde Laura entrou. Atrás do muro intuí, na escuridão, grandes árvores, talvez um extenso jardim, que correspondia sem dúvida a uma grande mansão. Confirma-se então a intuição de Otacílio: mulher com problemas, de família endinheirada. Vê-se que é frágil. Vê-se que é indefesa. Vê-se que é triste. Jantar na Cantina do Lucas Tentando voltar, me perdi duas vezes. Convidei-a para jantar. Insisti, e acabou aceitando. Quando lhe perguntei onde estava o seu carro, ela respondeu que a tinham levado até ali. Suponho que tenha chofer. Senti um pouco de vergonha ao convidá-la para entrar no meu fusca. A mansão Tinha curiosidade de ver, à luz do dia, a mansão onde vivia Laura. Repassei o mapa da cidade. O restaurante onde jantamos estava na avenida Augusto de Lima. Dali, pegamos a Afonso Pena e fomos na direção norte até chegar na avenida do Contorno. Fomos primeiro para esquerda e, aos poucos, para a direita. Segui o mesmo caminho e cheguei a identificar vagamente algumas das ruas. Já tinha dado várias voltas, desorientado, quando identifiquei a praça onde Laura havia me pedido para parar. Lá no fundo estavam os muros e as grades. Estacionei o carro e desci. Os portões estavam totalmente abertos. Entrei e passeei desconcertado, pelo seu interior silencioso: era, incompreensivelmente, um cemitério. Chama-se Bonfim. Não foi o único assunto estranho do dia. Passando de novo pela avenida Afonso Pena não encontrei o bar onde estive há alguns dias. Não entendo como pude me confundir. Walter informa Walter Almeida me convidou para jantar. Cozinha mineira: feijão, leitão, torresmos, couve...sei que passamos em algum momento pelo viaduto de Santa Tereza, mas acho que eu não seria capaz de voltar sozinho ao mesmo restaurante. Hoje Walter estava muito profissional. Passou o tempo todo falando de uma empresa concorrente que andava em dificuldades financeiras. Parece ser a Belgobrasileira. Tentei que me dissesse como conheceu o Otacílio, mas foi inútil. Perguntei-lhe também se sabia haver perto do cemitério do Bonfim uma mansão ou residência de alguma família endinheirada. Não sabia de nenhuma. Quis saber, lógico, a razão do meu interesse. Não lhe dei nenhuma resposta convincente. Não me atrevi a contar-lhe a verdade. Também lhe perguntei se conhecia o Bar do Ponto. - Hoje está bem misterioso. Claro que o conheço. Qual o seu interesse? - Nada de particular. Ouvi falar dele. Podíamos beber algo ali. - Vai ser difícil, meu amigo. O Bar do Ponto está fechado há... pelo menos, sessenta anos. Passeio na Selva Otacílio marcou um encontro no Parque das Mangabeiras. A princípio estava convencido de que essa estratégia de encontros itinerantes era conseqüência de uma meticulosa prevenção. Agora suspeito que é devido ao amor incondicional de Otacílio por essa cidade e à sua vocação de andarilho adornada, isso sim, por uma certa tendência à teatralidade. Caminhamos devagar pelo parque. Vi macacos. E borboletas, às centenas, daquelas que enchiam o livro que tinha o meu vizinho Ramón, e com que eu sonhava, tropicais e longínquas, exóticas, inalcançáveis, com nomes em latim, impossíveis de memorizar. Só lembro o dos enormes morphos, grandes como pássaros, de vôo majestoso, feitos de assombroso metal azul. Incansáveis, pois parecem não pousar jamais. Otacílio me disse que, depois de amanhã, terei de buscar a encomenda em Governador Valadares. Deverei avaliar as pedras lá mesmo, no local. Essa é a prova. Estou convencido. Perguntei a Otacílio por alguma mansão perto do Bonfim. A ele não pude mentir. Acabei contando a historia de Laura. Pareceu-me que, a principio, se sentia incomodado. Perguntou-me, muito sério, se estava tentando rir dele. Quando ficou convencido de que não era isso, foi ele quem começou a rir de mim. - Laura, Laura... você conheceu a Loura do Bonfim. A lenda diz que, numa noite, em mil novecentos e poucos, uma mulher loura pediu em uma Delegacia da Policia Civil da Lagoinha se alguém podia acompanhá-la até a casa. O policial que o fez, assegurou depois, que após se despedir dele, agradecendo-lhe a gentileza, a mulher entrou logo pelas portas do cemitério do Bonfim. Você está cortejando um fantasma! Tem de ser coincidência. Uma arma Amanhã tenho de viajar para cumprir o encargo de Otacílio. Reconheço que hoje comecei a sentir uma certa apreensão. Pensei que deveria levar uma arma. Há uma loja, a Casa Sales, que funciona no mesmo endereço desde a fundação da cidade. Fui lá. Parece um museu. Há umas fotos, uma caixa registradora dos velhos tempos, uns artigos de caça e pesca, um desenho da cara de Charlot e armas de toda classe e tamanho. Preciso de uma licença para poder comprar uma. É lógico. No fundo quando cheguei de novo a minha casa, senti alívio por ser assim. Estação Ontem fui a Governador Valadares. Peguei um trem. Chamei a Érica para que me levasse à estação. Na verdade, era uma desculpa para perguntar-lhe sobre a lenda da Loura do Bonfim. Confirmou o que me havia dito o Otacílio. Em Governador Valadares cumpri a proposta de Otacílio. Os berilos eram de excelente qualidade. Dormi lá e voltei a BH pela manhã. Não pude deixar de pensar em Laura. Tem de ser o cúmulo da coincidência. Cinema Hoje, perambulando como um fantasma no qual por alguns momentos sinto ter me transformado, cheguei à Praça Sete. Ali estava o pirulito, sinal de identidade doméstica. Do outro lado da praça vi um cinema. Dei-me conta de que durante todo o tempo que estou aqui, não fui ao cinema, nenhuma vez. Devia tratar-se de uma programação para cinéfilos, pois era um filme antigo. Tinha o título de “Deliciosa”... Não havia muitos espectadores. Na mesma fila em que me sentei, duas poltronas à minha esquerda, um homem, elegantemente vestido, chorava emocionado. Fizeram um intervalo, como nos velhos tempos, e o meu vizinho falou comigo. Disse que se chamava Delfim Moreira e que fora governador de Minas. Talvez fosse verdade. Tenho de perguntar. Começo a ficar preocupado. Depois das conversas com Walter, Otacílio e Érica, tive medo de sofrer alucinações. Lembrei-me da árvore imensa que crescia na rua...tenho anotado, sim..., Venezuela. Era quase meianoite, mas peguei o fusca e fui até lá atravessando o Santo Antônio. Reconheço que dirigia angustiado pela ansiedade, temeroso de encontrar a rua e descobrir, no lugar da árvore, um solar vazio ou um edifício abandonado. Não foi assim. Quando entrei na rua, a silhueta imponente da gameleira tranqüilizou-me, crescendo incontida, e as suas raízes poderosas penetrando na calçada. Fui me aproximando devagar, deixando que aquela visão confirmadora acabasse de vez com os meus temores. Num dos galhos horizontais que atravessam a rua, vi, estou certo, um jaguar. Agora passa das quatro da manhã, e não consigo dormir. O desastre Hoje o Walter me ligou. A mineradora Belgobrasileira, aquela da qual ele me falou insistentemente no mês passado, vai ser absorvida por uma empresa francesa. O negócio foi, ao que parece, uma pechincha. Com todo esse assunto da Laura, dos encargos do Otacílio, me descuidei do meu trabalho. Agora não tem remédio. No interior do recinto havia uma grande atividade. - É uma associação de catadores de lixo. Gente que vive na rua. Estão organizados. Recolhem lixo, selecionam materiais, reciclam. Há algum tempo, inclusive, confeccionam roupas, elementos de decoração, esculturas... Aquela é uma das fundadoras. Foi cumprimentá-la. Falou um pouco com ela, apresentou-me como um amigo, fez com que me contasse como tinham organizado tudo aquilo. A Laura, não voltei a ver. Quando saímos, perguntei ao Otacílio por que quis me levar ali. Passei de novo pela Praça Sete e atentei para o cinema em que havia entrado outro dia. É o cine Brasil. Grades fecham as portas e a sua deterioração evidencia anos de desuso. Um homem disse não saber ao certo quando deixou de funcionar, talvez em 1997 ou 98. Aproveitei e perguntei por aquele Delfim Moreira, governador do estado. Não se lembrava de ninguém com esse nome nos últimos trinta anos. ASMARE - Há algo que eu quero que conheça, me disse o Otacílio. Não tive como conseguir mais dados ou dar alguma desculpa. Entramos no seu carro e seguimos a Contorno. Fiquei angustiado, porque parecia que estávamos nos dirigindo para o Bonfim. Temia que o passeio tivesse alguma relação com Laura, fosse alguma brincadeira do Otacílio ou uma revelação dolorosa. Mas ele continuou um pouco mais. Estacionamos e caminhamos para um lugar que se parecia com restos de uma fábrica ou oficinas. O Arrudas, rio de Belo Horizonte, passava perto. - Queria que conhecesse a dignidade da miséria. As favelas são urbanizações de luxo para essa gente. O Arrudas caminhava sujo, apenas uns fios de água morta. Belo Horizonte deveria estar atravessada por um grande rio, cheio de pontes. Se no futuro houver outra época de grandes obras e projetos, algum novo visionário deverá propor a conversão da avenida Afonso Pena em leito desse grande rio. Recolocação Hoje telefonaram da minha empresa. Souberam da Belgobrasileira. Era inevitável. Vão recolocar-me. Na semana que vem chegará Urdiales. Poderia ter sido pior. Tinha assumido que poderia, até mesmo, perder o emprego. Estou pensando na possibilidade de renunciar ao meu posto lá e ficar em Belo Horizonte. Despedida de Walter Despedi-me do Walter. Comida mineira, não podia ser de outra forma. Falei-lhe da possibilidade de ficar aqui. No momento ele não sabia de nenhum posto que eu poderia assumir, mas me assegurou que assim que tivesse notícias de algum trabalho para as minhas qualificações, me avisaria. Quando nos despedimos, senti remorsos por não ter lhe dado uma explicação verídica do acontecido nesses meses, da minha relação com Otacílio e Laura. Mas não estou certo de que ele entenderia. Despedida de Otacílio Poderia jurar que os olhos de Otacílio estavam mais úmidos do que o normal quando anunciei a minha partida. Levou-me para tomar um sorvete na Sorveteria São Domingos. Também lhe falei da possibilidade de ficar aqui, dedicando-me ao comércio de pedras. - Este não é o seu mundo. Você transita pelo contrabando com a mesma gentileza e metódica eficácia que no mais legal dos negócios... Não se trata apenas de recolher algumas pedras, avaliá-las e tomar umas cervejas. Há partes obscuras e duras demais, que não conhece, mas que, se fica, não teria outro remédio senão afrontá-las. Você não gostaria delas. A proposta de Walter é razoável. Se conseguir um trabalho e voltar, encontrará o seu posto de contrabandista honorário aguardando por você. Abraçamo-nos. Dei-lhe um pacote que lhe havia levado e pus-me a caminhar. Deve tê-lo aberto. Escutei sua voz funda berrar meu nome e, logo, recomendar-me que me cuidasse. Levantei o braço e acenei com a mão sem me virar. Não queria que notasse minhas lágrimas. O pacote guardava meus dados e o mapa do tesouro do português. Despedida de Érica Hoje chamei a Érica. Queria me assegurar de que seria ela a me levar ao aeroporto depois de amanhã. Propus que nos encontrássemos assim que ela terminasse o trabalho. Buscou-me na minha casa e me levou à Praça da Savassi. Ali, no Café Três Corações, tomamos chocolate com pão de queijo. Anoiteceu enquanto falávamos. Contei-lhe sobre Laura, e ela não riu de mim. Escutou em silêncio com um sorriso melancólico que lhe entristeceu o olhar. Este pôr-do-sol urbano, o sabor do chocolate, o pão de queijo e as luzes da Savassi são a estampa da minha despedida de Belo Horizonte. O que acontecer a partir de hoje não será surpresa. A Partida Érica veio buscar-me cedo. Chegamos ao Aeroporto da Pampulha com tempo de sobra para o check-in com tranqüilidade. Tentei convidá-la para um derradeiro café, mas afirmou já ter se comprometido com um trabalho. Não estou certo de que me tenha dito a verdade. Agora estou sentado na poltrona do avião que me leva ao Rio de Janeiro, onde tenho uma conexão com um vôo para Madri. Vendo pela janelinha uma paisagem de nuvens iluminadas pelo entardecer, quase tenho medo de escrever o que vou escrever a seguir: Estávamos embarcando quando, através dos vidros dos corredores do aeroporto, reflexo sobre reflexo, eu a vi. Era Laura, não tenho dúvidas. Acenou com a mão. A comissária aguardava pelo meu bilhete de vôo. Entreguei-o mecanicamente e, quando voltei a olhar, Laura tinha desaparecido. Caminhei atordoado, seguindo meus companheiros de viagem. Ao chegar ao alto da escadinha do avião, voltei a olhar o terminal e ali do outro lado do vidro, estava ela de novo. Fui eu, então, que acenei com a mão, e ela respondeu. Adeus, Laura. Adeus Belo Horizonte. Pôr-do-sol Dorinda é faxineira no aeroporto da Pampulha. Sua jornada está chegando ao fim. As pernas lhe doem e, sobretudo, os pés. Empurra com desânimo o carrinho em que leva o material de limpeza. Nele, coloca um cartãozinho onde se lê: “Fora de Serviço para Manutenção”. Entra no banheiro de mulheres. Lá ao fundo, Dorinda vê uma jovem - para ela, com seus gastos 53 anos, toda mulher que aparente menos de 40 é uma jovem - diante do espelho. Subitamente, a mulher tira da cabeça uma peruca loura e lisa. O cabelo, o verdadeiro, está preso. Quando o solta, vê-se uma cabeleira anelada, de um negro profundo. Guarda a peruca numa bolsa e sai. Ao passar ao lado de Dorinda, sorri, e a faxineira pensa que a brancura de seu sorriso se assemelha à lua. De vez em quando Dorinda tem esses ímpetos poéticos. A mulher da peruca sai do edifício do terminal e vai em direção ao estacionamento. De frente, vem outra mulher loura, apressada e tristonha. A mulher da peruca sabe que esta outra se chama Laura. - Chegou tarde. Já se foi, diz-lhe quando se cruzam. Segue caminhando sem olhar para trás, sem saber o que agora fará a outra, Laura, a fantasma, a loura verdadeira. Abre a porta de um carro, coloca debaixo do assento do motorista a bolsa com a peruca, senta-se, fecha a porta e arranca. Dirige um táxi. Agosto 2003. ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES Página 10: Alusão ao minério de ferro Página 13: Vista geral da cidade Página 15: Parque Municipal Américo Renée Giannetti - Avenida Afonso Pena Página 17: Avenida Augusto de Lima com Rua da Bahia Página 19: Instituto de Educação Página 21: Edifício Sesc - Laces JK (antigo Banco do Comércio e Indústria de Minas Gerais) - Rua São Paulo com Rua dos Caetés Página 23: Avenida Afonso Pena (destaque para o Condomínio Álvaro José dos Santos - Castelinho) Página 25: Avenida Afonso Pena (destaque para o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e Automóvel Clube) Página 27: Uma casa no bairro Cidade Jardim Página 29: Praça Duque de Caxias (Praça Santa Tereza) Página 31: Edifício localizado entre a Avenida do Contorno e Rua Rio de Janeiro Página 33: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais (Solar Narbonna e Palacete Dantas) – Praça da Liberdade Página 35: Edifício Oscar Niemeyer – Praça da Liberdade Página 37: Mercado Central Página 39: Bar no Mercado Central Página 41: Estádio Governador Magalhães Pinto (Mineirão) Página 43: Parque das Mangabeiras Página 45: Mirante Página 47: Bairro Floresta Página 49: Igreja Nossa Senhora de Lourdes Página 51: Avenida Oiapoque Página 53: Avenida do Contorno – Bairro de Lourdes Página 55: Bairro Santa Tereza Página 57: Museu Giramundo Página 59: Bairro Santo Antônio Página 61: Rua Venezuela – Bairro Sion Página 63: Lagoa da Pampulha: Estádio Jornalista Felipe Drumond (Mineirinho), Estádio Governador Magalhães Pinto (Mineirão) e Igreja São Francisco de Assis Página 65: Museu de Arte da Pampulha Página 67: Lagoa da Pampulha Página 69: Cemitério do Bonfim Página 71: Viaduto Santa Tereza Página 73: Parque das Mangabeiras Página 75: Praça da Estação Página 77: Praça Sete de Setembro Página 79: ASMARE Página 81: Sorveteria São Domingos – Avenida Getúlio Vargas Página 83: Praça Diogo de Vasconcelos (Praça da Savassi) Página 85: Partida de Belo Horizonte Contra-capa: Escola Estadual Pedro II