editora batista regular "Construindo Vidas na Palavra de Deus" Rua Kansas, 770 - Brooklin - CEP 04558-002 - São Paulo - SP 2014 A Commentary on Daniel by Leon J. Wood Copyright © 1973 by Leon J. Wood Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada em sistema de processamento de dados ou transmitida em qualquer forma ou por qualquer meio – eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou qualquer outro – exceto para citações resumidas com o propósito de rever ou comentar, sem prévia autorização dos Editores. Publicado no Brasil com a devida autorização. Revisão: Simone Granconato; Thiago André Monteiro Supervisão de produção: Edimilson Lima dos Santos Diagramação / Capa: Edvaldo Cardoso Matos Primeira edição, 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) W876c Wood, Leon James, 1918 – 1977 Comentário de Daniel Leon Wood – São Paulo: Editora Batista Regular, 2014 360 p. 16 x 23 cm. Título original: A Commentary on Daniel ISBN: 978-85-7414-047-6 1. Bíblia – Comentário. 2. Antigo Testamento — Daniel. I. Título CRB004/2012 CDD: 224 CDU: 27-273 Índice para catálogo sistemático: 1. Daniel : Antigo Testamento : Bíblia : Religião 224 editora batista regular Rua Kansas, 770 - Brooklin - CEP 04558-002 - São Paulo - SP Telefone: (11) 5041-9137 – Site: www.editorabatistaregular.com.br Prefácio................................................................................................................. 6 Abreviações.......................................................................................................... 8 Introdução........................................................................................................... 9 A. Lugar na história de Israel B. Daniel, o homem C. Línguas e a divisão judaico-gentílica do livro D. O Autor do livro E. Propósito do livro F. Contexto histórico do livro G. O cativeiro de Daniel Capítulo 1.......................................................................................................... 26 (Os números que seguem cada subtítulo indicam versículos) A. Nabucodonosor ataca Jerusalém (1-2) B. Introdução de Daniel, Hananias, Misael e Azarias (3-7) C. Daniel e seus companheiros recusam a comida do rei (8-16) D. A bênção de Deus sobre os quatro jovens (17-21) Capítulo 2.......................................................................................................... 48 A. O sonho perturbador de Nabucodonosor (1-13) B. O sonho revelado a Daniel (14-30) C. O sonho e sua interpretação (31-45) D. Daniel é honrado (46-49) Capítulo 3.......................................................................................................... 81 A. A ordem de Nabucodonosor (1-7) B. A coragem de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego (8-18) C. O livramento milagroso (19-27) D. A reação louvável de Nabucodonosor (28-30) Capítulo 4........................................................................................................ 104 A. A introdução significativa (1-3) B. O segundo sonho de Nabucodonosor (4-8) C. O conteúdo do sonho (9-18) D. A interpretação do sonho (19-27) E. A insanidade de Nabucodonosor (28-33) F. Nabucodonosor honra o Altíssimo (34-37) Capítulo 5........................................................................................................ 137 A. Uma festa ímpia (1-4) B. A escrita milagrosa (5-9) C. Daniel é chamado (10-16) D. A interpretação (17-28) E. O resultado (29-31) Capítulo 6........................................................................................................ 163 A. O novo governo (1-3) B. Uma conspiração traiçoeira (4-9) C. Fidelidade e acusação (10-15) D. Sentença e livramento (16-23) E. Os resultados significativos (24-28) Capítulo 7........................................................................................................ 189 A. O contexto geral (1-3) B. A própria visão (4-14) C. A interpretação (15-28) Capítulo 8........................................................................................................ 221 A. O contexto geral (1-2) B. A própria visão (3-14) C. A visão interpretada (15-27) Capítulo 9........................................................................................................ 247 A. O contexto geral (1-2) B. A oração de Daniel (3-19) C. A profecia das “setenta semanas” (20-27) Capítulo 10...................................................................................................... 284 A. O contexto geral (1-3) B. A aparição do mensageiro celestial (4-8) C. Palavras de explicação do mensageiro celeste (9-14) D. Daniel é fortalecido para entender (10.15–11.1) Capítulo 11...................................................................................................... 301 A. A história até a divisão do império de Alexandre (2-4) B. Os ptolomeus e selêucidas até Antíoco Epifânio (5-20) C. Antíoco Epifânio (21-35) D. O Anticristo (36-45) Capítulo 12...................................................................................................... 338 A. A Grande Tribulação (1-3) B. Cronologia da Tribulação (4-13) Gráficos Cronológicos................................................................................. 354 Bibliografia...................................................................................................... 356 O livro de Daniel é como um monumento a uma das personalidades marcantes do Antigo Testamento. Daniel, um executivo numa das grandes cortes do tempo antigo, obteve uma elevada posição em fé e obediência a Deus, mantendo um testemunho brilhante apesar da perversidade pagã envolvente. Um estudo de suas experiências dá exemplo e desafio contínuos para o cristão de qualquer época. Deus honrou Daniel inspirando-o a escrever o livro que leva o seu nome, e lhe deu informações importantes relativas ao futuro através de uma série de visões. Por causa dessas informações, o livro de Daniel tem sido chamado de contraparte, no Antigo Testamento, do livro de Apocalipse, no Novo Testamento. Ele fornece verdades centrais que nos ajudam entender grandes porções da profecia preditiva encontrada em outras partes das Escrituras. Numerosos comentários de Daniel têm sido escritos, mas poucos em anos recentes. As obras usadas na redação desta exposição estão alistadas nas notas de rodapé e/ou na bibliografia. Essas, se agrupam em quatro categorias. Algumas são liberais, representadas pelo volume monumental de James A. Montgomery. Outras são conservadoras, mas amilenistas em sua escatologia, representadas pelas ótimas obras de C. F. Keil, Albert Barnes, H. C. Leupold, e E. J. Young. Algumas são pré-milenistas, porém mais populares em estilo, representadas pelos estudos úteis de A. C. Gaebelein e H. A. Ironside. Uma é conservadora, pré-milenista, erudita, e de data recente: a de John Walvoord. O desejo do autor é que esta última obra tivesse aparecido a tempo de usá-la mais. A intenção deste livro é prover um comentário gramático-histórico do ponto de vista pré-milenar, usando informação recentemente descoberta por pesquisa arqueológica e linguística. Muito mais sobre o contexto histórico de Daniel é conhecido hoje do que era há alguns anos. Especialmente importante tem sido a leitura das Crônicas Babilônicas, nas quais se encontra a história oficial da Babilônia do ponto de vista da corte real. Na Introdução faz-se um esforço específico de correlacionar esta informação com a história revelada no livro de Daniel. O autor prefere comentários que seguem versículo por versículo e frase por frase. Um comentário deste tipo deve tratar de cada questão significativa, ainda que seja para dizer muito pouco sobre ela ou mesmo para declarar que nenhuma resposta é conhecida. Ele também aprecia comentários que apresentam argumentação detalhada para pontos de vista tratados. Este procedimento é visto como particularmente importante em Daniel, uma vez que posições escatológicas, que desempenham um papel maior no ponto de vista de alguém sobre o livro, diferem marcantemente. Ele também gosta de comentários que gastam menos tempo refutando um escritor de oposição e dá mais tempo apresentando evidência positiva para a interpretação defendida. Um pouco de atenção deve ser dada, é claro, a escritores oponentes, pois o ponto de vista próprio pode ser melhor visto em sua singularidade quando comparado a outro; no entanto, o esforço primordial deve ser analisar, não refutar. Essas considerações têm fornecido orientações na redação deste comentário. A tradução usada é a de João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição. Algumas referências às palavras originais foram consideradas inevitáveis. Entretanto, a intenção foi dar explicação suficiente para que a pessoa que não tem conhecimento das línguas originais possa seguir o pensamento sem dificuldade. O uso do parágrafo traz a seguinte lógica: inicia-se um parágrafo com cada versículo, e mais de um parágrafo é usado para um único versículo se o comentário for extenso. A grafia “Yahweh” é empregada, ao invés da mais comum “Jeová” para o nome (tetragrama) de Deus. Conforme explicado mais amplamente nos comentários dos versículos 2 e 4 do capítulo 9, essa grafia mostra a pronúncia original do nome de modo mais preciso. O livro de Daniel emprega esse nome para Deus somente no capítulo 9. ANET ASV BD BDB DLD DM DP GD IABD KDC KJV LCD LED MICC NB NIP SD SOTI TTC WD YPD Ancient Near Eastern Texts, James B. Pritchard, ed. American Standard Version Barnes' commentary on Daniel Hebrew Lexicon, Brown, Driver, Briggs Daniel and the Latter Days, Robert D. Culver Darius the Mede, John C. Whitcomb Daniel the Prophet, E. B. Pusey The Prophet Daniel, Arno C. Gaebelein In and Around the Book of Daniel, Charles Boutflower Keil and Delitzsch commentaries King James Version Lange's Commentary on Daniel, O. Zockler Exposition of Daniel, Herbert C. Leupold Commentary on the Book of Daniel, James A. Montgomery Nabonidus and Belshazzar, Raymond P. Dougherty Nations in Prophecy, John F. Walvoord Studies in Daniel, Robert Dick Wilson A Survey of Old Testament Instroduction, Gleason L.Archer,Jr. Things To Come, J. Dwight Pentecost Daniel, The Key to Prophetic Revelation, John F. Walvoord The Prophecy of Daniel, Edward J. Young A. Lugar na História de Israel Os eventos históricos apresentados no livro de Daniel aconteceram num tempo difícil da existência de Israel. Sob a mão de Deus, a nação israelita foi punida através do cativeiro. Quando as tribos de Israel se estabeleceram, Deus lhes disse que prosperariam sob sua bênção, se eles permanecessem fiéis a ele (Dt 28.1-14), mas que sofreriam punição dolorosa se fossem infiéis (Dt 28.15-68). Essa última possibilidade foi o que aconteceu; e punição, pelas mãos do inimigo, se seguiu já nos dias dos juízes (Jz 3-16). O tempo de Davi trouxe alívio temporário, por causa de sua liderança em fidelidade. Mas Salomão, após um bom começo, “desviou-se do Senhor”, e os problemas surgiram, levando a uma separação completa dentro do reino, logo após o seu reinado. Profetas foram usados para falar fortemente contra o pecado e apregoar advertências de punição contínua e até cativeiro em uma terra estrangeira, mas sem sucesso. O cativeiro realmente veio para a divisão norte do reino, Israel, em 722 a.C, quando Samaria caiu sob o poder da Assíria (2Rs 17.4-23); e também para a divisão sul, Judá, apenas um século depois, sob o poder dos babilônios. O golpe principal para Judá veio em 586 a.C, quando Jerusalém foi destruída e o país se tornou província da Babilônia (2Rs 25.1-21). Onze anos antes (597), no entanto, uma primeira leva de israelitas foi conduzida ao cativeiro quando Jeoquim reinava, e cerca de 10 mil pessoas preeminentes foram levadas para Babilônia (2Rs 24.11-16). Oito anos antes, Daniel, seus três amigos, e outros jovens judeus haviam sido levados à força (605). Seu cativeiro na Babilônia é a ocasião de interesse central no livro de Daniel. Essa ocasião é, às vezes, chamada de primeira fase, na série de três, do cativeiro judaico como um todo. Assim, Daniel já estava na Babilônia há oito anos quando os judeus do cativeiro de 597 chegaram, e há dezenove anos, quando os de 586 chegaram. Ele continuou a viver durante o período completo do cativeiro, e foi capaz de testemunhar o retorno a Judá de muitas das pessoas em 538/37 a.C. Comentário de Daniel 10 Vale notar que o tempo de Daniel marca o terceiro de quatro grandes períodos de milagres na história das operações de Deus com os homens. O primeiro período veio com Moisés e a libertação de Israel do Egito; o segundo, com os profetas notáveis, Elias e Eliseu; e o quarto, com o advento de Cristo. Todas essas épocas foram caracterizadas por desenvolvimentos significativos, precisando de demonstração de credenciais autênticas. O primeiro e o quarto foram ocasiões do estabelecimento do Antigo e Novo Testamentos, respectivamente; e o primeiro e o terceiro, as duas épocas de cativeiro e libertação de um poder estrangeiro. O segundo período, quando Elias e Eliseu operaram milagres, foi o começo de um ministério profético maior. Profetas haviam ministrado outrora, ainda que não numa base nacional, advertindo a nação, como um todo, da punição iminente por causa do pecado caso a correção não estivesse a caminho. Deus estava agora instituindo essa forma de ministério, e ele queria que as pessoas reconhecessem que Elias e Eliseu, e aqueles que os sucederiam, fossem de fato, seus servos autorizados. A época de Daniel exigia especialmente credenciais para que os pagãos, entre os quais os judeus foram forçados a viver, tivessem motivo para pensar de forma elevada a respeito do Deus de Israel, Yahweh. Isso foi significativo porque os fatores normais de avaliação levariam os pagãos a pensar de modo contrário, uma linha de raciocínio a ser explorada de modo mais extenso atualmente. As credenciais foram necessárias também ao próprio povo de Daniel. Eles precisavam ser encorajados e permanecer firmes em sua fé, sob circunstâncias difíceis. Deve ser observado, além disso, que a presença de Deus foi evidente não só em milagres de obras, mas também em milagres de palavras. Foi necessário que o povo ouvisse de Deus, bem como testemunhasse o seu poder. As pessoas ao redor estavam dizendo que Deus havia deixado Israel de lado (Jr 33.24), e elas precisavam ouvir, de fato, que Deus realmente tinha em mente um futuro longo e atrativo para os israelitas. Através de Daniel, a informação bem-vinda foi revelada e registrada no seu livro, caracterizando-o como o livro que contém as predições mais explícitas de todo o Antigo Testamento. B. Daniel, o Homem Daniel se posiciona como um dos servos de Deus mais admiráveis no Antigo Testamento. Seu nome significa “Deus é meu juiz” ou “Deus é juiz”, dependendo se o “i” do meio for considerado como um sufixo da primeira pessoa ou meramente um conectivo (yôd compaginis). Pouco se sabe dos primeiros anos da vida de Daniel. Seus pais não são nomeados, Introdução 11 mas ele claramente era descendente real ou nobre (Dn 1.3)1, e seus pais devem ter sido pessoas piedosas a quem podemos atribuir sua marcante dedicação a Deus. Sua primeira casa foi provavelmente na capital, Jerusalém, e de lá, ele foi levado cativo para Babilônia, junto com seus amigos mais próximos — Hananias, Misael e Azarias. Cada um provavelmente não tinha mais que 15 anos de idade. O livro apresenta cinco eventos de destaque na vida de Daniel na Babilônia. Primeiro, a decisão que ele e seus amigos tomaram de pedir comida diferente daquela que fora prescrita pelo rei Nabucodonosor (cap. 1). Isso veio quase imediatamente após a chegada dos quatro na terra estrangeira. O segundo, ocorrido cerca de dois anos depois, relativo à revelação de Daniel ao rei, do sonho que ele havia tido e a sua interpretação (cap. 2). O terceiro tem a ver com a interpretação de Daniel de um segundo sonho de Nabucodonosor, o qual provavelmente ocorreu trinta anos após o primeiro. Esse evento refere-se ao período de 7 anos de insanidade de Nabucodonosor, o qual considera-se melhor ter ocorrido próximo ao fim do seu reinado de 43 anos (cap. 4). O quarto foi a leitura da escrita milagrosa na parede do palácio de Belsazar. Esse evento ocorreu na véspera da queda da Babilônia sob os persas (539 a.C.), quando Daniel estava com pelo menos 80 anos de idade (cap. 5). O quinto, ocasião em que ele foi lançado na cova dos leões, veio provavelmente depois de três anos da captura da Babilônia por Ciro (cap. 6). Nesse tempo, Daniel havia escolhido honrar a Deus ao invés de obedecer ao decreto inadequado e tolo do rei Dario. O regente persa considerou necessário executar a punição designada no decreto assinado por ele, mesmo que artimanhas tenham sido usadas pelos inimigos de Daniel para convencê-lo a assinar. O episódio mencionado não diz respeito a Daniel, mas sim aos seus três amigos que se recusaram a se inclinar diante da estátua que Nabucodonosor mandara construir e foram lançados na fornalha ardente (cap. 3). Assim, todos os primeiros seis capítulos do livro se referem principalmente a eventos históricos na vida de Daniel e/ ou seus três amigos. Interligados com esses eventos, estão quatro períodos de revelação, dados por Deus a Daniel. Eram eventos futuros envolvendo o povo de Deus. Os primeiros dois vieram nos primeiro e terceiro anos, respectivamente, do reino de Belsazar, quando Daniel tinha cerca de 64 a 66 anos; e os dois últimos, nos primeiro e terceiro anos do reinado de Ciro, quando 1 Josefo (Antiq. X,10,1) diz que Daniel e seus amigos foram todos parentes do Rei Zedequias. 12 Comentário de Daniel o profeta tinha cerca de 81 e 83 anos. Os primeiros três períodos do recebimento das revelações são registrados, respectivamente, nos capítulos 7, 8 e 9, e o quarto, nos capítulos 10, 11 e 12. Uma divisão básica do livro é sugerida pelo fato de que os primeiros seis capítulos são principalmente história, e os últimos seis, profecia preditiva. Fora do seu próprio livro, Daniel é mencionado cinco vezes nas Escrituras: Ezequiel 14.14, 20; 28.3; Mateus 24.15; e Marcos 13.14. Nas primeiras referências, Daniel é associado a Noé e Jó como exemplo notável de retidão; na terceira, como um modelo de sabedoria, com quem o rei de Tiro não poderia esperar se medir.2 As duas referências do Novo Testamento fornecem evidência sobre a interpretação apropriada de um aspecto das revelações de Daniel; pois Jesus identifica a “abominação da desolação” mencionada por Daniel (9.27; 12.11), que se cumprirá no tempo da Grande Tribulação. As três referências de Ezequiel são importantes pelo que dizem do caráter de Daniel.3 O próprio livro de Daniel o apresenta como homem de retidão e sabedoria notáveis, e as referências de Ezequiel reforçam significantemente essa apresentação. Para valorizar esse reforço, é importante notar que Ezequiel foi contemporâneo de Daniel, chegando como um cativo à Babilônia oito anos depois. Nessa época, Daniel já alcançara a importante posição que obteve no governo, e Ezequiel, pode-se supor, teria investigado, na chegada, sobre o jovem judeu que subira tão rapidamente a tal posição. Ele provavelmente pensou, no início, que alguém teria de servir aos modos pagãos para fazer isso. Mas Ezequiel claramente descobriu que foi diferente e ficou impressionado a ponto de mencionar Daniel, em paralelo com Noé e Jó, como um grande homem de retidão. Este fato é ainda mais marcante quando se reconhece que pessoas que vivem numa geração anterior tendem a se destacar mais brilhantemente do que seus contemporâneos. Tanto Noé quanto Jó viveram séculos antes de Ezequiel listá-los com Daniel. 2 A visão de alguns estudiosos de que o Daniel mencionado por Ezequiel tem que ser identificado com uma personagem semimitológica da literatura épica de Ras Shamra deve ser rejeitada. É impensável que Ezequiel tenha comparado um pagão, um personagem adorador de Baal, com os dois baluartes históricos, Noé e Jó, especialmente no que se refere à retidão. 3 As duas primeiras foram dadas seis anos após Ezequiel ter chegado ao país (Ez 8.1), e a outra, onze anos após sua chegada (Ez 26.1), dando tempo suficiente para a investigação e conclusão de Ezequiel. Introdução 13 Há evidências de outras boas qualidades de Daniel. Seus três anos de educação na Babilônia que, sem dúvida, se seguiram a um bom treinamento em Jerusalém, equiparam-no bem para sua vida de trabalho. Junte-se a isso uma habilidade natural para administração, porque uma vez concedida uma alta posição na corte, ele lá permaneceu. Posteriormente, ele alcançou uma posição entre os principais presidentes do governo persa de Dario. Esta honra foi claramente o resultado da bênção especial de Deus, mas o Senhor regularmente usa meios naturais para executar sua vontade. Outra qualidade foi sua fé admirável em Deus. Enquanto ainda um jovem de 17 anos, ele e seus três amigos tiveram fé que Deus lhes revelaria o sonho de Nabucodonosor, e os quatro se reuniram em oração para pedir isso a Deus (2.14-23). Em vista do tipo de pessoa que Daniel era e do grau em que Deus se agradou de fazê-lo prosperar no governo estrangeiro, segue-se que Deus desejou realizar algo específico através dele. Duas áreas de trabalho se apresentam. A primeira refere-se a Daniel ser usado para manter a honra do Deus verdadeiro na terra pagã, quando desenvolvimentos naturais tendem a fazer com que os babilônios pensem em Deus de maneira desonrosa. Os pagãos avaliavam qualquer divindade pelo tamanho do país cujas pessoas o adoravam, o grau de prosperidade daquele país, e o tamanho e o sucesso do exército. Quando Judá foi levado cativo pela Babilônia, o seu Deus não se equiparou bem a esses padrões. Para os babilônios, suas divindades pareciam mais fortes. Esta situação não agradou a Deus, e ele usou Daniel como seu instrumento especial para trazer uma mudança.4 Particularmente, através da interpretação de dois sonhos para Nabucodonosor, da leitura da escrita milagrosa na parede do palácio de Belsazar, e do livramento da cova dos leões no reinado de Dario, Deus usou Daniel para despertar adoração dos lábios desses regentes estrangeiros. (cf. Dn 2.46-49; 3.28-30 [que se refere também ao uso que Deus fez dos três amigos]; 4.1-3, 34-37; 5.29; 6.25-27). A outra área de trabalho se refere ao desenvolvimento por parte de Daniel do bem-estar dos judeus, enquanto eles estavam em cativeiro. Alguém poderia naturalmente esperar que a sorte dos cativos fosse difícil e opressiva, mas esse não foi o caso para a maioria, dos judeus na Babilônia. Há evidências de que eles viviam numa boa área rural do país, tinham 4 Da mesma forma, séculos antes, no Egito, Deus usou José e posteriormente Moisés. Os faraós da época foram levados a mudar seu pensamento a respeito do Deus de Israel (cf. Êx 5.2) como resultado da operação de Deus através desses dois homens. Comentário de Daniel 14 suas próprias casas, gozavam de liberdade de locomoção, continuaram com suas instituições de anciãos, sacerdotes e profetas, experimentaram oportunidades de empregos e até mesmo se correspondiam com a terra natal.5 Provavelmente, o fator humano responsável por essa condição surpreendente foi a influência de Daniel, que ocupava uma excelente posição no governo. A razão principal para que Deus permitisse que ele fosse levado cativo oito anos antes do cativeiro abrangendo o grupo grande de judeus pode muito bem ter sido para que Daniel alcançasse tal posição. Então, Daniel pode ter tido muito a ver com a efetivação do retorno dos cativos de Judá no devido tempo. Ele ainda vivia na época do retorno deles, e conforme tem sido notado, tinha o posto mais alto do governo de Dario (6.2-3). E o fato de uma mudança de governo ter acontecido nessa época, quando Daniel tinha mais de oitenta anos, comprova isso. A mão de Deus foi evidente na promoção de Daniel, sugerindo que Deus ainda tinha trabalho para ele. Este trabalho poderia muito bem ter sido influenciar o rei Ciro na questão do decreto que permitiria o retorno para Judá. C. Línguas e a Divisão Judaico-Gentílica do Livro O livro de Daniel é singular no Antigo Testamento por ter uma extensa seção escrita em aramaico.6 O aramaico vai de 2.4 a 7.28, assim, menos da metade do livro foi escrita em hebraico. A razão para o uso do aramaico é melhor vista em termos do assunto da seção onde é encontrado. O material lida com assuntos pertencentes ao mundo gentio, com pouca referência ao povo de Deus, os judeus, e, aparentemente, Deus viu que o aramaico, a língua do mundo gentio da época, era mais apropriado para registrá-lo do que o hebraico, que era distintamente judeu. Esse fato sugere o pensamento de que existe outra divisão do livro além da observada anteriormente. A primeira observou que os seis primeiros capítulos são basicamente história e os últimos seis, profecia. Essa divisão deve permanecer, porque os assuntos nela apresentados claramente cabem nesse padrão literário. Mas o uso das duas línguas aponta para uma divisão igualmente válida, que tem a ver com a identidade do povo referido, em vez dos critérios literários. Por falta de termos melhores, essas duas divisões podem ser chamadas pelos nomes “judaica” e “gentílica”. 5 Cf. L. Wood, A Survey of Israel’s History (Panorama da História de Israel) (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1970), pp. 385-87 para discussão. 6 Dois outros livros do Antigo Testamento apresentam seções mais curtas: Esdras 4.86.18; 7.12-26; e Jeremias 10.11. Introdução 15 O primeiro capítulo do livro claramente se coloca na categoria “judaica”, porque aqui quatro jovens judeus são levados cativos de sua terra e colocados numa posição onde devem decidir se vão permanecer fiéis ao seu Deus ou não. O oitavo capítulo também é desse grupo, porque se refere à opressão dos judeus por um regente ímpio, Antíoco Epifânio (chamado aqui de “chifre pequeno”), e pelo Anticristo muito depois, durante o tempo da Grande Tribulação. O capítulo 9 pertence ao mesmo grupo, porque se refere às sete semanas de anos na história dos judeus, indo do tempo de Esdras até o do Anticristo (com um intervalo considerável entre a sexagésima nona e a septuagésima semana). Então, o décimo, décimo primeiro e décimo segundo capítulos devem também ser classificados, porque apresentam as opressões dos judeus efetuadas primeiro por Antíoco Epifânio, e depois pelo Anticristo novamente. Os sete capítulos interpostos, entretanto, colocam os assuntos pertencentes à história dos gentios em evidência. O segundo e sétimo capítulos, que, respectivamente começa e termina a seção, são paralelos em conteúdo e mostram outra ênfase ao apresentar o propósito geral da história gentílica, seguindo o tempo de Daniel. O segundo capítulo faz isso através do simbolismo da estátua do sonho de Nabucodonosor, que previa o surgimento e a queda de quatro impérios gentílicos sucessivos (Babilônico, Medo-Persa, Grego, Romano) e então a destruição do último, manifesto em forma restaurada, pelo surgimento do reino pré-milenar de Cristo. O sétimo capítulo apresenta informação semelhante, sob o simbolismo de quatro animais sucessivos, destacando os mesmos quatro impérios gentílicos com um clímax vindo novamente no futuro reino dominante de Cristo. Entre esses dois capítulos, quatro capítulos interpõem-se, os quais retratam o poder gentílico em ação, com suas limitações definidas diante do poderoso Deus. Os quatro capítulos se dispõem em dois pares, com respeito ao tipo de retrato que eles apresentam. O terceiro e sexto capítulos apresentam o poder gentílico trazendo perseguição ao povo de Deus. O anterior conta como Nabucodonosor quis forçar os três amigos de Daniel a se inclinarem à sua imagem, e o posterior descreve como os oficiais sob o rei Dario tentaram tirar a vida de Daniel por meio de uma conspiração traiçoeira. Ambas as ocasiões envolvem punição injusta aplicada sobre os representantes de Deus, com o correspondente livramento sobrenatural efetuado em favor deles como recompensa por sua fidelidade. O quarto e o quinto capítulos relatam as revelações sobrenaturais de Deus dadas aos reis gentios e a necessidade em cada momento de um homem de Deus para interpretá-las. O primeiro refere-se ao segundo sonho de Nabucodo- Comentário de Daniel 16 nosor, que permanece um enigma até que Daniel chega para dar seu significado; e o último, a escrita milagrosa na parede do palácio de Belsazar, que novamente precisa da interpretação de Daniel, agora muito idoso. O primeiro par de capítulos ilustra o fato de que o mundo tem trazido perseguição ao povo de Deus há tempos e que Deus, por sua vez, concedeu proteção graciosa aos que eram fiéis. O segundo ilustra a dependência do mundo do Deus poderoso e a necessidade dos filhos de Deus dizerem às pessoas do mundo sobre a verdade de Deus, se eles tiverem de conhecê-la. D. O Autor do Livro A erudição crítica moderna nega a autoria de Daniel deste livro. Eles creem que um escritor desconhecido escreveu-o cerca de 165 a.C. com o propósito de encorajar judeus desanimados que haviam sofrido recentemente sob Antíoco Epifânio. A principal razão para este ponto de vista é que o livro apresenta a história, pelo menos até o tempo de Antíoco, com detalhes marcantes, e o pensamento liberal declara que tal material poderia ter sido escrito somente após os eventos terem ocorrido. Aqueles que aceitam a ideia de revelação sobrenatural não têm esse problema. Há razões para crer, contrário a esse pensamento liberal, que o próprio Daniel foi mesmo o autor do livro. 1. O livro diretamente apresenta Daniel como o autor de pelo menos a segunda metade dele, porque ele é feito o recipiente das revelações divinas dadas repetidamente, e ele, como o autor, fala regularmente na primeira pessoa nos capítulos sete a doze. Também em 12.4, Daniel recebe a direção de preservar “o livro”, uma referência a, pelo menos, uma porção substancial do livro, se não todo. 2. Que Daniel deve ter escrito também a primeira metade supõe-se pela unidade do livro, conforme demonstrado por várias considerações. (1) As duas metades do livro são interdependentes, o que é visto, por exemplo, numa comparação da interpretação feita por Daniel do sonho de Nabucodonosor no capítulo dois com as revelações dadas diretamente através dele nos capítulos sete até o doze. (2) A terminologia usada em 2.28; 4.2, 7, 10 da primeira metade é semelhante à usada em 7.1, 2, 15 da segunda. (3) A unidade que existe na apresentação de Daniel como uma pessoa no livro todo. (4) Todos os capítulos combinam no propósito de mostrar a supremacia do Deus do céu sobre todas as nações e suas supostas divindades. (5) A unidade literária do livro é reconhecida até por importantes eruditos liberais, tais como Charles, Driver, Pfeiffer e Rowley. 3. O autor mostra conhecimento marcante da história babilônica Introdução 17 e início da persa, o que seria verdadeiro de um contemporâneo como Daniel. No quarto capítulo, Nabucodonosor é apresentado corretamente como o criador do império neobabilônico.7 No quinto capítulo, Belsazar é apresentado como corregente da Babilônia, um fato recentemente demonstrado pela pesquisa arqueológica. No sexto capítulo, Dario é apresentado como regente da Babilônia, ainda que Ciro fosse o supremo rei da Pérsia; sabe-se agora que Ciro apontou um Gubaru nesta capacidade, com quem Dario pode bem ser identificado.8 No segundo capítulo (cf. vv. 12, 13, 46), mostra-se que Nabucodonosor foi capaz de mudar as leis babilônicas que ele previamente fizera (sabe-se agora que tal mudança foi possível na Babilônia); já no sexto capítulo (cf. vv. 8, 9, 12, 15), apresentase Dario não podendo fazer o mesmo (sabe-se agora que tal mudança era impossível na Pérsia). 4. Fragmentos de manuscritos do livro foram achados na caverna I e na caverna IV de Wadi Qumran, e datam, pelo menos, do primeiro século, e provavelmente do segundo, a.C., o que faz com que a data de 165 a.C. para a composição do livro, como defendem os liberais, seja mais improvável. 5. O próprio Cristo falou de Daniel como tendo predito que a “abominação da desolação” se colocaria no santo lugar (Mt 24.15; Mc 13.14), e é comum e corretamente aceito que ele se referiu ao que é afirmado em Daniel 9.27 e 12.11. A erudição crítica moderna também apresenta numerosos argumentos para sua posição; mas eles podem ser respondidos sem dificuldade quando alguém aceita a ideia básica de revelação sobrenatural. 1. Faz-se a afirmação de que em 1.21, o escritor refere-se à data da morte de Daniel, e a suposição é que nenhum autor poderia dizer isso de si mesmo. O autor declara, no entanto, somente que Daniel viveu até o primeiro ano de Ciro, sem indicar que ele morreu. Em 10.1, de fato, faz-se claro que ele não morreu naquele tempo, mas viveu pelo menos até o terceiro ano de Ciro.9 2. Faz-se a declaração de que o autor evita usar o nome “Yahweh” para Deus, e que isso pode ser esperado de um autor pós-exílico, mas não de 7 Cf. R. H. Pfeiffer, Introduction to the Old Testament (Introdução ao Antigo Testamento) (New York: Harper and Brothers, 1941), pp. 758,59 para comentário, como um liberal. 8 Cf. J. Whitcomb, DM, uma obra dedicada a substanciar este ponto. Cf. discussão adicional no comentário de 1.21. 9 18 Comentário de Daniel Daniel, que viveu antes de cessar a pronúncia do nome (como de fato ocorreu depois do exílio). No capítulo nove, entretanto, o nome é usado pelo menos sete vezes. Na mesma base, então, isso argumenta contra uma autoria pós-exílica. Este raciocínio dos liberais não leva em conta o fato de que o emprego de nomes para Deus no Antigo Testamento depende do contexto de pensamento, cada nome carregando uma determinada conotação apropriada ao texto. 3. Apresentam-se evidências de que o livro de Daniel tem um estilo literário semelhante ao dos livros apócrifos, cujas datas são muito posteriores a Daniel. Pode-se responder que, embora a semelhança realmente exista, poderia muito bem ser porque os livros posteriores copiaram o estilo estabelecido antes por Daniel. Esta explicação encontra apoio na possibilidade de que os escritores do período macabeu (do qual esses livros datam), tendo visto a correspondência exata das predições de Daniel com a história recentemente experimentada, teriam respeitado o livro grandemente e teriam sido levados a seguir o padrão do livro para seus próprios livros. 4. Faz-se referência frequente a algumas palavras persas e gregas no livro, afirmando-se que estas poderiam ter sido conhecidas apenas por um escritor que viveu após o tempo de Daniel. O próprio Daniel, entretanto, escreveu nos tempos iniciais da Pérsia e teria conhecido o vocabulário persa; e as palavras gregas limitam-se ao nome de três instrumentos musicais, que podem ter sido importados anteriormente, pela Babilônia. Descobertas arqueológicas mostram que havia comércio considerável e intercâmbio cultural nesse tempo entre os países da região, incluindo Grécia e Babilônia. Também foi dito que o aramaico de Daniel é ocidental e não o tipo usado na Babilônia no tempo de Daniel. Descobertas recentes de documentos aramaicos do quinto século, entretanto, mostraram que “Daniel foi, como Esdras, escrito numa forma de aramaico imperial (Reichsaramäisch), um dialeto oficial ou literário que era corrente em todas as partes do Oriente Próximo”.10 10 Archer, SOTI, p. 376. Cf. E. M. Yamauchi, Greece and Babylon (Grécia e Babilônia) (Grand Rapids: Baker Book House, 1967), pp. 17-24; também R. D. Wilson, “The Aramaic of Daniel”, in Biblical and Theological Studies. (“O Aramaico de Daniel” em Estudos Bíblicos e Teológicos), p. 296, que afirma que, se Daniel tivesse vivido depois, muitas outras palavras gregas teriam aparecido no livro do que são de fato encontradas. Introdução 19 5. Faz-se objeção à alegada teologia avançada do livro, especialmente com respeito aos anjos e à ressurreição dos mortos. Diz-se que as ideias apresentadas foram desenvolvidas apenas por volta dos tempos dos macabeus. Esse argumento supõe, no entanto, um tipo de evolução no conceito teológico contrário às Escrituras. O povo de Deus chegou mesmo a entender tais conceitos em maior plenitude à medida que Deus revelou mais a respeito deles, mas Deus dera muita informação sobre anjos e ressurreição, bem antes mesmo de Daniel (cf., sobre anjos – Gn 19.1-22; 2Sm 24.16,17; 2Rs 19.35; Jó 1.6; 2.1; Sl 91.11; Zc 1.9,12-14 e, sobre ressurreição – Jó 14.11-14; 19.25-27; Sl 16.10; 49.15; Is 25.8; 26.19; Os 13.14; Hb 11.17-19). 6. Diz-se que o fato do livro de Daniel aparecer no Antigo Testamento com os “escritos” da terceira seção, em vez de com os “profetas” da segunda, indica autoria posterior; supondo que o livro teria sido incluído na segunda seção, se escrito antes de seção ser encerrada, e notando que a seção não foi encerrada até o terceiro século a.C., após o qual somente a terceira seção continuou aberta. Outra razão possível para a colocação do livro, entretanto, é que Daniel, servindo numa posição secular como administrador no palácio, não foi classificado como um profeta; e somente os livros escritos por aqueles que vieram a ser colocados na seção dos “profetas”. Daniel é chamado de “profeta” por Cristo em Mt 24.15 (Mc 13.14), mas isso deve-se às predições marcantes dadas através dele, não por causa de sua ocupação. 7. Diz-se que o fato do escritor apócrifo, Jesus Sirach, no seu bem conhecido livro “Eclesiástico”, capítulo 44, não mencionar Daniel quando cita muitos outros heróis bíblicos, indica que ele desconhecia Daniel. Replicando, pode ser afirmado que esse escritor também não menciona certas outras figuras bíblicas bem conhecidas tal como os juízes, exceto Samuel; e nem mesmo Esdras, que foi de fato mais próximo dele em tempo do que Daniel. Não se sabe por que ele omitiu Daniel, mas isso não prova que ele não o conhecia. 8. Um argumento construído sobre erros históricos apontados no livro não é usado com a mesma frequência hoje como era anteriormente, porque descobertas arqueológicas têm repetidamente demonstrado que tais “erros” não eram erros de modo nenhum. Por exemplo, dizia-se que o relacionamento pai-filho entre Nabucodonosor e Belsazar, conforme indicado em 5.2, 11, 13, 18, era impossível, uma vez que os dois foram de diferentes dinastias, mas a possibilidade de que isso era verdadeiro através da mãe de Belsazar é reconhecida agora. Mesmo que esse não fosse o caso, um texto assírio mostra que um sucessor real de um trono poderia Comentário de Daniel 20 ser normalmente chamado de “filho” de um predecessor mesmo que não houvesse uma ligação de sangue.11 Ou, novamente, foi alegado um erro na referência a Belsazar como último rei da Babilônia, quando a história mostrou que foi Nabonido. Mas sabe-se agora que Nabonido deixou seu filho mais velho, Belsazar, como rei da Babilônia, enquanto ele próprio permanecia fora da capital por extensos períodos de tempo, fazendo de seu filho um corregente com este propósito. Outros problemas deste tipo poderiam ser acrescentados.12 E. Propósito do Livro Quatro propósitos principais do livro são revelados pela natureza de seu conteúdo. Primeiro, o livro apresenta ilustrações desafiadoras do que significa a verdadeira dedicação a Deus e mostra o que Deus quer fazer através e por aqueles que são comprometidos com ele. Segundo, o livro retrata o interesse de Deus e seu cuidado com o seu povo escolhido, mesmo quando os judeus estão sendo punidos pelo pecado. Isso é mostrado na parte histórica pelos eventos descritos, e na parte preditiva pela natureza das profecias, nas quais os interesses judaicos são continuamente colocados à frente. Terceiro, o livro, dessa forma, trouxe para os judeus da época uma base sólida para o conforto. Embora estivessem sendo punidos numa terra estrangeira, puderam saber que Deus não os havia esquecido e que, de fato, tinha planos maravilhosos para eles em dias futuros; esses planos incluíam especialmente a vinda de seu Messias libertador. Quarto, o livro é paralelo ao livro de Apocalipse no Novo Testamento ao dar informações sobre os últimos dias. Estudos escatológicos seriam grandemente empobrecidos se o Antigo Testamento não incluísse o livro de Daniel. F. Contexto Histórico do Livro Os eventos apresentados no livro de Daniel são apenas uma parte de uma história muito maior ocorrida naquela época, e podem ser entendidas somente à luz da história completa. Com a publicação, em 1956, do livro de D. J. Wiseman, “The Chronicles of Chaldean Kings" (As Crônicas dos Reis Caldeus), mais desta história se tornou consideravelmente disponível. Quatro textos novos dos registros babilônicos oficiais foram publicados nessa obra, e estes, com os textos publicados previamente, cobrem os anos 626–595 e 556–539 a.C. 11 O rei Salmaneser III, no seu Obelisco Negro, fala de Jeú como “filho de Onri”; cf. ANET, p. 281. 12 Para tratamento extenso de assuntos históricos, cf. Pusey, DP, 1891; ou Wilson, SD, 1917. Embora ambas sejam antigas, essas obras são muito valiosas. Introdução 21 Nínive, capital do império anterior, o assírio, caiu em 612 a.C. sob uma força aliada de babilônios, medos e citas. A cidade foi devastada, mas alguns assírios, aparentemente sob a liderança do último regente, Assuruballit, escaparam para o ocidente. No outono do mesmo ano, esse grupo que escapou reivindicou soberania sobre toda a Assíria a partir de um centro em Harran, cerca de 400 Km a oeste de Nínive. No ano seguinte, 611 a.C., Nabopolassar, rei da Babilônia, liderando somente as forças babilônicas, fez campanha nas proximidades de Harran, mas sem realmente lutar contra os próprios assírios. No ano seguinte, 610, os aliados se juntaram novamente aos babilônios, e os assírios, mesmo reforçados por tropas egípcias, retiraram-se de Harran para o oeste, para o outro lado do Eufrates, enquanto os aliados entraram e saquearam Harran. Em 609, os assírios, aparentemente apoiados por mais tropas egípcias, atravessaram de novo o Eufrates numa tentativa de tomar Harran outra vez, mas fracassaram. O próprio Nabopolassar voltou seu interesse principal naquele ano para campanhas no nordeste de Harran, sugerindo que, possivelmente, Assur-uballit, após seu fracasso em Harran, fugira para aquela direção. Pelo menos, As Crônicas não o mencionam em outro conflito depois dessa época. Neste ponto, a história bíblica dá alguma informação. Josias, bom rei de Judá, tentou impedir as tropas egípcias, sob Faraó Neco, de ir em auxílio dos assírios para a campanha de 609 a.C. Josias levou seu exército para Megido a fim de interceptar a grande potência na passagem estratégica do Carmelo, mas foi derrotado e morto em sua tentativa (2Rs 23.28-30; 2Cr 35.20-24). Com essa medida, o rei judeu estava aparentemente buscando o favor babilônico, acreditando que o futuro de Judá estava com a potência oriental. Faraó Neco continuou então rumo ao norte, após essa derrota de Josias, para se juntar aos assírios no ataque mal-sucedido a Harran, acima citado. Após 609 a.C., as forças assírias não desempenharam nenhuma função importante na luta contínua. O Egito era agora o oponente principal da Babilônia, que também entrou plenamente na luta só a partir dessa época. Por três anos, os dois gigantes se contentaram meramente em empreender pequenas batalhas um contra o outro, sem se engajarem em uma guerra maior. Disputas menores ocorreram, com cidades estratégicas localizadas de um e de outro lado do Eufrates mudando de mãos mais de uma vez, mas os exércitos principais não se enfrentaram. Os babilônios empreenderam grandes esforços para fortalecer sua posição na área de Izalla, no nordeste. Vale a pena notar que o príncipe real, Nabucodonosor, ganhou Comentário de Daniel 22 proeminência pela primeira vez nesses esforços, sendo mencionado como comandante de um dos exércitos babilônicos na campanha de 607 a.C. Finalmente, em 605 a.C., a questão foi decidida na grande batalha de Carquemis. O idoso Nabopolassar permaneceu em casa neste ano, com as forças babilônicas sendo conduzidas pelo jovem e brilhante Nabucodonosor. Ele conduziu suas tropas através do Eufrates nas proximidades de Carquemis e envolveu os egípcios numa luta corpo a corpo, aparentemente tanto fora como dentro da cidade. Os egípcios foram decididamente derrotados, e Carquemis foi incendiada pelos babilônios. Os egípcios se retiraram para o sul de Hamate, mas os babilônios os pressionaram e mais uma vez derrotaram seu exército para que “nenhum homem fugisse para seu próprio país”. O resultado foi que “Nabucodonosor conquistou a área total de Hatti”, ou seja, toda a Síria e Palestina.13 Essa vitória importante de Nabucodonosor ocorreu algum tempo após o começo do vigésimo primeiro ano de Nabopolassar, isto é, após o mês de Nisã (abril) de 605 a.C. Então, no oitavo dia do mês de Ab (15 de agosto) seguinte, Nabopolassar morreu, e Nabucodonosor achou necessário retornar rapidamente à Babilônia, recebendo a coroa no primeiro dia do mês de Elul (6 de setembro). Após algumas atividades iniciais como rei, entretanto, e aparentemente acreditando que os assuntos do governo estavam bem, ele retornou ao ocidente e continuou seu trabalho de subjugar a região sírio-palestina, até o mês de Sebat (Fevereiro), de 604 a.C. Naquele tempo, ele retornou à capital para o Festival do Ano Novo, realizado no dia primeiro de Nisã, mas marchou novamente para o ocidente no mês de Sivan (junho) para mais seis meses de campanha. A Crônica diz que nesse tempo, todos os “reis da terra de Hatti vieram diante dele e ele recebeu pesado tributo deles”. G. O Cativeiro de Daniel Comparando essa história com a de Daniel, conforme registrado em seu livro, pode-se descobrir quando ele e seus companheiros foram levados cativos de Jerusalém. Foi durante o verão de 605 a.C., algum tempo entre a batalha de Carquemis e o retorno de Nabucodonosor à Babilônia para receber sua coroa. Os seguintes fatores são mencionados como evidência disso: 13 1. Essa ocasião não poderia ter precedido a vitória de Carquemis, Citações das Crônicas, cf. Wiseman, The Chronicles of Chaldean Kings (As Crônicas dos Reis Caldeus). (Londres: Trustees of the British Museum, 1956), pp. 25,69. Introdução 23 porque os reis babilônicos que naquele tempo cercaram Jerusalém (Dn 1.1) não tinham nenhum acesso tão distante a oeste como Jerusalém antes dessa vitória ter sido alcançada. 2. Nem poderia ter sido depois do retorno de Nabucodonosor à Babilônia para receber a coroa — por exemplo, durante os meses seguintes de 605 a.C., quando ele voltou para continuar a subjugar o ocidente — porque Daniel 1.1 menciona a data como o terceiro ano de Jeoaquim; e este ano não poderia ir além do mês de Tishri (Outubro), 605 a.C., como é mostrado a seguir. A partir de 2 Reis 23.28-37 (2Cr 36.1-5), sabe-se que Jeoaquim começou a reinar no outono de 609 (seguindo o reinado de três meses de Jeoacaz, que havia sucedido imediatamente a Josias, morto por Faraó Neco em Megido, em julho de 609), o que significa que seu ano inicial, chamado ano de acesso (no sistema de ano-acesso então em uso), terminaria no mês de Tishri (primeiro mês do ano civil), de 608 a.C., fazendo seu primeiro ano oficial ser estendido até Tishri, de 607, seu segundo até Tishri, de 606, e seu terceiro até Tishri, de 605. 3. Corroborando esses dois limites cronológicos, está a menção em Jeremias 46.2 de que a batalha de Carquemis, que tinha de preceder o cativeiro de Daniel conforme observado, ocorreu no quarto ano de Jeoaquim. A explicação do que parece uma discrepância com a menção de Daniel do terceiro ano de Jeoaquim, mostra que o único período que poderia ser corretamente designado tanto como o terceiro ano de Jeoaquim quanto o seu quarto ano, foram os seis meses entre os meses de Nisã e Tishri, de 605 a.C. Os hebreus mantinham dois calendários, um religioso começando com Nisã na primavera, e um civil começando com Tishri no outono.14 Assim, um evento ocorrendo entre Nisã e Tishri seria datado com um ano de diferença, dependendo de qual sistema de calendário fosse usado. Somente entre os meses de Nisã e Tishri de 605 a.C., seriam corretas as indicações de data tanto de Daniel 1.1 quanto de Jeremias 46.2. Admite-se que três meses (de junho a agosto)15 não dariam muito tempo a Nabucodonosor varrer o sul até Jerusalém e cercá-la conforme indicado em Daniel 1.1 (cf. 2Rs 24.1; 2Cr 36.6-7). Alguns aspectos podem ser indicados, entretanto, que dão evidência adicional de que foi isso 14 Cf. Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings (Os Números Misteriosos dos Reis Hebreus), rev. ed. (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Pub. Co., 1965), pp. 16f., 165-66. 15 A Batalha de Carquemis provavelmente não ocorreu antes de maio de 605 a.C. e possivelmente não até o início de junho. Comentário de Daniel 24 que de fato aconteceu. Primeiro, a Crônica Babilônica afirma que, como resultado da vitória de Carquemis, “Nabucodonosor conquistou toda a área do país de Hatti”16 Isto é, sem dúvida, uma referência à importância do seu papel, mas conclui-se que Nabucodonosor teria querido tornar real essa conquista o mais breve possível. É também claro que o rei babilônico realmente permaneceu no ocidente após a vitória até ser chamado para casa a fim de receber a coroa, e certamente teria aproveitado bem esse tempo. Além disso, que ele, de fato, agiu assim é demonstrado pelo seu retorno imediato ao ocidente para continuar a conquista após a coroação, tanto no outono seguinte quanto no verão. O fato dele querer retornar tão cedo mostra que ele tinha sido interrompido no que vinha fazendo. Quarto, que Nabucodonosor tinha, de fato, levado alguns cativos, incluindo judeus, do recém-conquistado ocidente, no tempo da morte de seu pai, é indicado por uma citação de Berossus;17 afirmando que Nabucodonosor “entregou os cativos que ele havia feito entre os judeus, fenícios e sírios, e entre as nações pertencentes ao Egito, a alguns de seus amigos” a fim de que pudesse se apressar e voltar rapidamente para sua capital. Em vista dessas considerações, pode-se concluir que após a derrota dos egípcios em Carquemis e Hamate sob Nabucodonosor, ele realmente se dirigiu rumo ao sul para consolidar a conquista de cidades-chave na Síria e Palestina. Provavelmente ele perseguiu guerreiros egípcios até certa distância, procurando trazer a mais completa destruição possível ao inimigo, e então se voltou para promover a submissão dos habitantes locais. Jerusalém pode muito bem ter sido uma das cidades atingidas, uma vez que Josias tinha tentado ajudar Babilônia havia apenas quatro anos em Megido. Ainda que Daniel 1.1 fale a respeito do cerco da cidade, isso provavelmente significa apenas que ele exigiu sua submissão. Vale notar que nenhuma batalha é sugerida nem por Daniel 1.1-2; 2 Reis 24.1 nem por 2 Crônicas 36.6-7. Jeoaquim, então rei, cuja política pode ter sido diferente daquela do amável Josias, aparentemente resistiu no início, porque 2 Crônicas fala dele sendo preso; mas deve ter sido libertado posteriormente, pois nenhuma mudança de regente foi imposta pelo conquistador babilônico. Nabucodonosor, porém, realmente tomou os utensílios sagrados do Templo, assim como numerosos cativos, entre os 16 A própria terminologia de Nabucodonosor, cf. Thomas, ed., Documents From Old Tes- tament Times (Documentos dos Tempos do Antigo Testamento), (New York: Harpers & Brothers, 1958), p. 79. 17 Citado por Josefo, Contra Apion, I, 19; Antiq. X, 11, 1. Introdução 25 quais foram escolhidos principalmente jovens, incluindo Daniel, Ananias, Misael e Azarias. O propósito em tomar estes jovens, contudo, não era punir,18 mas levá-los à Babilônia para que, dentre eles, no devido tempo, pessoal qualificado para o governo pudesse ser selecionado (Dn 1.4). Nabucodonosor foi um dos mais capazes regentes antigos, e poderia esperar-se que ele quisesse os maiores talentos que seu novo império pudesse fornecer no seu regime. Poderia esperar-se também que ele quisesse que tais jovens fossem tomados de todas as cidades que ele conquistou, e não somente Jerusalém. Sem dúvida, a brevidade do tempo antes de ser chamado de volta à Babilônia naquele primeiro verão não lhe permitiu reunir outros ali, mas ele teria acrescentado mais jovens ao número em suas campanhas sucessivas de retorno. De fato, mesmo o grupo de Daniel aparentemente não chegou à Babilônia antes da coroação, se o relato de Berossus, mencionado acima, está correto. Provavelmente Nabucodonosor escolheu-os durante seu retorno no outono seguinte; o que, se for assim, significa que Daniel chegou à Babilônia ao mesmo tempo que aqueles que foram trazidos de outras cidades, na primavera do ano de acesso de Nabucodonosor, ou seja, 604 a.C. 18 Nabucodonosor pode ter pensado deles como reféns, servindo para advertir o povo em casa contra revolta.