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Traficando conhecimento
Jéssica Balbino
Programa Petrobras Cultural
Apoio
Copyright © 2010 Jessica Balbino
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
organização
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
projeto gráfico
CUBICULO
No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas
procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências
sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias
assume contornos biográficos de um sujeito ou de um
grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas
condições socioeconômicas e da afirmação cultural de
suas comunidades.
TRAFICANDO CONHECIMENTO
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO
designer assistente
DANIEL FROTA
revisão
CAMILLA SAVOIA
LETÍCIA BARROSO
revisão tipográfica
CAMILLA SAVOIA
B145t
Balbino, Jéssica
Traficando conhecimento / Jéssica Balbino. - Rio de Janeiro : Aeroplano,
2010. il. - (Tramas urbanas)
ISBN 978-85-7820-041-1
1. Balbino, Jéssica. 2. Projeto Cultura Marginal. 3. Hip-hop (Cultura
popular) - Poços de Caldas, MG. 4. Rap (Música) - Aspectos sociais.
5. Música e juventude - Aspectos socias - Poços de Caldas, MG.
6. Movimento da juventude - Poços de Caldas, MG. 7. Movimentos sociais Poços de Caldas, MG. 8. Jornalismo. I. Programa Petrobras Cultural. II.
Título. III. Série.
10-1574.
CDD: 305.2350981512
CDU: 316.346.32-053.6(815.12)
12.04.10
20.04.10
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar
ou autorizar a produção cultural dos artistas que se
encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz.
018538
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros
tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase
desta coleção.
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar
não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas
experiências novas formas de responder a questões
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
diz a curadora do projeto, “mais do que a internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401
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Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores
nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse
novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
Heloisa Buarque de Hollanda
Dedicado a você.
A Deus, minha fé eterna.
Para
Meus pais, pelos pequenos gestos e grandes demonstrações
diárias de carinho e afeto.
Minha irmã e minhas sobrinhas.
Toda a equipe da redação do Jornal Mantiqueira e Mais Poços.
Os garotos do portal Central Hip-Hop/Bocada-Forte.
Agradecimentos
Heloisa Buarque de Hollanda, por acreditar que o projeto poderia
virar livro.
Camilla Savoia, pela paciência durante o processo de revisão e editoração.
“Quando vi a estrada pela primeira vez nem sequer sabia o quanto ia ter que
caminhar pra chegar até aqui, e mal sabia que esse tipo de estrada não tem
fim, só paradas breves para que o coração possa registrar os momentos.
A vida não para, nem aqui, nem hoje e talvez, nem nunca. Quem sabe o
futuro? Ninguém vence enquanto a luta não acaba (...)”
Sérgio Vaz
Anita Motta (in memorian), Ademiro Alves (Sacolinha), Alessandro Buzo,
China Trindad, Coletivo Hip-Hop Mulher, CUB, Dina Di (in memorian),
DJ Cortecertu, DJ Mancha, DJ TR, Eduardo Herrera, Elemento.S, Ferréz,
Guilherme Bryan, Juliana Martins, Kaká Soul, Leopac, Lu Afri, Mary do
Rap, Michel da Silva, Renan Inquérito, Renato Vital, Rúbia Fraga, UClanos,
Sérgio Vaz, Tubarão DuLixo, Wakka Alves, Zulu King Nino Brown e a todas
as pessoas que colaboram para a viabilização de projetos como este.
Um salve especial aos fotógrafos Luciano Santos, Márcio Pinto e Marcos
Corrêa, pela paciência de sempre.
Citação do caminho certo
Do povo para o povo: “Hip-Hop –
A Cultura Marginal”
170
Cap.04
No ar: o hip-hop
Agora sim, profissão repórter!
Salvando vidas
Blog
Ciranda
O hip-hop não foi inventado
Oficinas
Uma letra, um beat
Sacolinha, vídeo-documentário e TCCs
Mixando
Pelas periferias do Brasil
Do lado de dentro da periferia
Plano B
Cultura Marginal
256
Cap.05
Em foco
3... 2... 1 gravando!
Caixinhas poéticas
Às margens da sociedade
Pela vida
O que você está lendo?
362
Cap.06
Estatística
Literatura, pedras e sementes
Do verbo produzir
Sem parada
Beatz
Passa Livros
Palavra cruzada: literatura e
conhecimento
Rap educativo
Fronteiras quebradas
Profissão: transmissora de
conhecimento
Palestrando: parte II
Repercussom
Querem nosso sangue
Em dia com a leitura
496
Imagens: índice e créditos
503
Sobre a autora
Sumário
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Prefácio
14
Introdução
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Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop
O início
Trajetória
Os interesses
Tempo para leitura
Escola da vida
Campo de batalhas
Uai, hip-hop
Os tios do hip-hop
Passo sincopado em direção ao futuro
Cotidiano
Marcando vidas
“Crime desorganizado”
72
Cap.02
Passos pela vida
Um zine diferente
Rap de dentro
Jornalismo no zine
Tempo de mudanças
Patrimônio cultural e histórico
Monitorando a infância e o futuro
Do desemprego ao mais perfeito possível
Entre livros
Despejo no quarto
114
Cap.03
Concepção
Caldeirão de ideias
O despertar
Traficando informação
Preparando o terreno
Hip-hopeando
Um grito de emergência
13
Prefácio
Não confunda briga com luta. Briga tem hora para
acabar, e luta é para uma vida inteira. E a maior prova
disso é a história da guerreira Jéssica Balbino.
Ela é daquelas pessoas que nascem com tudo para
dar errado, mas por uma força estranha — que só as
pessoas que não se entregam sabem que têm, ela
está vencendo.
E insistentemente, quer através das suas oficinas
de literatura na periferia ou por intermédio de suas
matérias, ela faz questão que outras pessoas que
vieram do mesmo destino e lugar que ela, também
vençam. E para que isso aconteça, ela não descansa sua caneta, e sua atitude vai muito mais além
do que palavras despencadas no papel.
Sua letra é forte sem ser arrogante, ela não bate, mas
revida, a doçura fica por conta de quem lê. Ela não
teve tempo pra isso. Aqui a verdade prevalece, por
isso acho que deve ter doído escrever esse livro, talvez doa quando você ler, e como todos sabem viver
dói, e de onde ela vem, dói mais ainda.
Num dos primeiros parágrafos do livro, ela diz “O
hip-hop salvou a minha vida”, e é isso que você vai
encontrar nesse livro: uma sobrevivente.
Só que com os punhos cerrados, e um enorme sorriso no rosto.
As ruas agradecem.
Sérgio Vaz
Poeta da Cooperifa
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Introdução
O interesse pela arte e pela cultura plantados na infância e na juventude produzem as árvores de um futuro
sem massacres cotidianos.
Nem sempre o tesouro está nos grandes centros urbanos. Pode ser encontrado um pouco mais longe, em
pequenas trouxas de conhecimento e em grandes invólucros contendo uma substância de aparência cultural.
Nas bocas do conhecimento é que o tráfico da periferia
precisa se fundamentar.
É logo ali, onde termina a linha do trem e começa a cultura marginal.
Prazer, conhecimento!
Da mesma maneira que salvou a minha vida, eu penso
que o hip-hop, o conhecimento e a literatura podem ser
ferramentas de resgate dentro das periferias.
Como uma sociedade que quer evoluir dá as costas
para a periferia? Para alcançar propósitos é preciso
incluir os que são esquecidos.
O livro desvela a periferia de Poços de Caldas sem medo
de expor as chagas de uma gente subtraída.
Propõe um olhar livre de preconceitos para a periferia. Imagine as pessoas cantando as letras mixadas em
forma de protesto sem julgá-las antes mesmo de ouvir.
As balas de borracha não vão parar a produção cultural
dos guetos.
Os quilombos modernos são grandes centros culturais.
Não existe mais utopia na periferia e sim gente que
sonha com as mãos e faz acontecer.
Os salários-misérias ainda são os mesmos, mas a cidadania exercida por meio do conhecimento e da literatura são novos.
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Jéssica Balbino
Traficante de conhecimento
Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop
Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop
O início
“O hip-hop salvou a minha vida...”. É assim que começo a
falar da minha vida durante as minhas palestras e oficinas
sobre cultura marginal, mas, antes de contar esta história,
é preciso voltar no tempo e lembrar como tudo começou.
Sinônimo de voz, de atividade e de exteriorização de um
submundo. Assim é a literatura produzida na periferia
e acompanhada por projetos culturais que invadem as
casas sem reboco, arrebanha os jovens sem perspectivas e tira as quebradas do limbo cultural.
Este é o projeto Cultura Marginal, que começou naturalmente e sem que eu mesma percebesse, já existia
fazendo barulho e ecoando dos lugares mais distantes um
grito ensurdecedor de produção literária. Veio para fugir
do jargão periférico de tráfico, opressão e sofrimento,
presentes em qualquer periferia brasileira e daí a expressão de Gog: “periferia é periferia em qualquer lugar”.
No entanto, é impossível contar a história deste movimento na periferia de Poços de Caldas sem, antes, contar sobre a minha indignação diante do descaso e a minha
necessidade de expressão.
18
Periferia adentro: o hip-hop
Trajetória
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Aos três anos, aprendi a escrever meu nome e de meus
familiares, em aulas intensivas nos dias de muito frio e
chuva, quando minha mãe, que cursou apenas até o 4°
ano primário e sempre trabalhou de forma assalariada,
me ensinava.
Para fugir das únicas referências culturais do bairro: a
novela das 20h da Globo e o programa do Sílvio Santos,
ficava com livros e papéis espalhados sobre a mesa,
cena que ainda não mudou no meu cotidiano.
Inverno de 1985. Época em que o frio na cidade de Poços
de Caldas era constante e a temperatura sempre inferior
a 0° C. Neste mesmo período, o Brasil era governado por
José Sarney após a morte de Tancredo Neves e o fim da
ditadura militar. Na periférica zona sul da cidade, sem
asfalto, saneamento básico adequado, posto de saúde
ou escolas eu nasci e cresci.
Considerada a cidade com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado e, segundo esta
mesma pesquisa, o 4° melhor município para se viver no
ranking nacional, Poços mascarava, como faz até hoje,
o sofrimento das quebradas. Mascara-se a existência
de favelas e treme-se ao ouvir dizer periferia. Não pode
ter. Mas tem, e ela apresenta todos os problemas e
encantos de qualquer outra.
Entre brincadeiras nas ruas e terrenos baldios do bairro
mais distante do centro da cidade — o Jardim Kennedy
— cresci na linha entre a total falta de infraestrutura e
a vontade real de mudar esta realidade. Além das típicas brincadeiras como pega-pega, esconde-esconde,
amarelinha, elefante colorido e passa-anel, desenvolvi,
muito antes de saber juntar as letras e formar palavras,
o gosto por folhear livros, gibis e revistas, fingindo ler.
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Como em qualquer periferia, as opções para diversão são
nulas. A ausência de praças, centros culturais, atividades
que envolvam crianças e jovens se transformava em criatividade enquanto as ruas ainda não eram tão movimentadas, e permitiam que, para o sossego das mães, ficássemos brincando em grupos. Quando alguém ganhava
uma bicicleta, um par de patins ou construía um carrinho
de rolimã, as brincadeiras poderiam ser variadas.
Para os adultos, entre as casas, muito próximas fisicamente, as janelas e portas estão sempre abertas aos vizinhos, que, como forma de lazer e contato com o mundo,
estão sempre um dentro da casa de outro, formando uma
grande família, à margem da sociedade, dita, elite.
O alfabeto e as primeiras operações matemáticas foram
aprendidas em um prédio velho, em uma rua de terra,
cheio de goteiras. Mas era divertido ir à aula nos dias
chuvosos, tínhamos arrastar carteiras e nos sentarmos
em outro ambiente, o que sempre representava quebra
de rotina.
Biblioteca, asfalto, posto de saúde, linhas de ônibus,
iluminação pública e saneamento básico eram secundários na região, afinal, as casas populares do bairro ao
lado já haviam sido entregues. Justamente nesta época,
aprendi a ler, no pré-primário e, de presente dos meus
22
Traficando conhecimento
pais, ganhei um livro que havido sido deles: “Simbad, o
marujo”. Encantei-me pela história que se passava do
outro lado do mundo. A quantidade de papéis sobre a
mesa aumentou. Também ganhei, nessa época, minha
primeira Bíblia e arriscava pequenas leituras, acompanhando as ilustrações. Devia ter uns sete anos quando
comecei a produzir os primeiros textos, que, hoje, se perderam em limpezas de armário e vontade de mudança.
Vim de uma família simples, entretanto, nunca faltou o
pão e a literatura. Os livros sempre foram parte da decoração e da rotina. Muito cedo percebi que a literatura
mudava minha forma de visão e entendimento de mundo.
Sempre que me sugeriam um presente, pedia um livro
e a rotina continua a mesma, até hoje, no bairro. Brincadeiras na rua, falta de infraestrutura básica para as
famílias e a obrigatoriedade em mudar de escola. Por
ainda não termos idade suficiente para cursar o primário na escola do bairro, eu e alguns outros companheiros do pré-primário fomos obrigados a fazer uma prova
na superintendência de ensino, que nos garantiria uma
vaga em uma escola do Estado.
Passamos e fomos encaminhados. Ficava há uns 12 quilômetros de distância e fazer o caminho era sempre um
transtorno. Carro, vans, ônibus e longas caminhadas a
pé. Assim foi resumido meu primeiro ano. Mais tempo
entre o trajeto do que dentro da escola e pouco tempo
para brincar, ou mesmo ler. Foi o tempo em que as responsabilidades, embora ainda pequenas, começaram a
surgir, tomando o lugar das farras nas ruas.
Periferia adentro: o hip-hop
23
Periferia adentro: o hip-hop
Os interesses
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mortos para sobreviver durante o tempo em que estiveram nos destroços do avião, aguardando um, quase
impossível, resgate.
Não parei mais. Entre livros de adulto e de criança,
pouco tempo mais tarde, abri uma ficha na biblioteca da
cidade e comecei a ler sobre tudo. É difícil saber quantos livros li na época, mas uma coisa nítida na lembrança
é que tinha dois interesses profissionais: escrever e me
tornar jornalista.
Estudar fora do bairro sempre foi um problema pelo
conflito de realidades. Alguns vinham de regiões mais
nobres e, desde cedo, aprendi como é ser diminuída só
porque moro em determinada região.
Minha vida, aos sete anos e meio se resumia em acordar, me arrumar, ir para a escola, voltar, fazer as lições,
tomar banho, comer e dormir. Devido ao longo trajeto, o
tempo para as diversões ficou apenas para os finais de
semana, quando alguns colegas iam para minha casa e
ficávamos na rua, como sempre, brincando.
Quando isso não acontecia, por ter crescido sozinha –
sem irmãos na mesma casa —, o tempo livre era para
fugir do ócio da televisão e acontecia com a leitura dos
clássicos infantis da série Vaga-Lume, os volumes de
Pedro Bandeira e os infanto-juvenis com histórias de
Sherlock Holmes, todos pegos na biblioteca da escola.
Aos nove anos eu já havia lido quase todos da sessão
infantil e, durante uma das greves do colégio — entre
as inúmeras que aconteceram —, sem nada para fazer
em casa, peguei o exemplar do meu pai de “Os Sobreviventes – A tragédia dos Andes” e, em três dias, li toda
a história dos jogadores de futebol que caíram de avião
na cordilheira e foram obrigados a comer pedaços dos
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Dividida entre a escola e o pouco tempo de lazer, o cenário era sempre o mesmo: professores mal remunerados e
com pouca vontade de transmitir conhecimento, alunos
agressivos que vandalizavam o pouco do espaço público
que tínhamos para estudar, um longo caminho de ida e
volta para casa, que em 1996, quando eu estava no 5°
ano do Ensino Fundamental, ficou ainda mais longe, com
a mudança do prédio da escola, que saiu do centro da
cidade para a Zona Leste.
Eu continuava morando na Zona Sul com a ânsia de fazer
algo mais do que simplesmente estudar.
Periferia adentro: o hip-hop
Tempo para leitura
Foi justamente nessa época que descobri um problema
crônico nos dois pés — a existência de um osso a mais
que me levava a uma dor insuportável e me impedia de
caminhar mais do que um quarteirão sem chorar por não
conseguir prosseguir — que me obrigou a ficar vários
dias afastada da escola e a viajar vinte vezes, no mesmo
ano, cerca de 180 quilômetros até a cidade de Campinas
(SP) para fazer uma cirurgia que removeria estes ossos.
Aos 11 anos, no trajeto e nas longas horas de espera,
o tempo era preenchido com livros, gibis (uma grande
paixão desde que aprendi a ler) e escrita aleatória em
folhas de caderno, que, tristemente, se perderam em
uma das limpezas de quarto, assim como os primeiros
textos da infância.
A falta de um local adequado para tratamentos desse
tipo em Poços de Calda me obrigava a ir para Campinas.
Creio ter lido uns 50 livros naquele ano. Na época passei
a me interessar por algo mais adulto, e conheci o universo de escritor que mais tarde se tornaria minha referência em estrutura textual, Marcelo Rubens Paiva, nos
textos de “Feliz Ano Velho” e “Blecaute”. Li também um
pouco de Shakespeare, nos clássicos adaptados para
infanto-juvenil como “Otelo”. Apaixonei-me pelo texto
de “Sonho de uma noite de verão”.
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Parti, também, para leituras de infanto-juvenis como
“Confissões de Adolescente” e “Ensaio de um beijo”,
além de clássicos como “Iracema”, “O Guarani”, “Lucíola”
e “O Cortiço”. No fim do ano, fiquei com os pés recuperados e a mente renovada, cheia de ideias.
Periferia adentro: o hip-hop
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Escola da vida
A falta de informações era tremenda, mas conseguimos
eleger uma chapa e criamos um pequeno grêmio, para
o qual fui nomeada assessora de imprensa. Achei lindo
o nome, afinal, tinha a palavra imprensa e eu poderia
considerar um trabalho jornalístico. Longe de qualquer
conhecimento sobre o que realmente era a profissão,
acho que não me saí tão mal, afinal, eu sempre divulgava
nossas ações em panfletos e fazia barulho junto com os
demais alunos, além de ter documentado boa parte das
nossas pequenas ações dentro do colégio.
Ao voltar para a escola, dividi com professores e colegas de classe meu desejo de escrever e me tornar jornalista. Fui ridicularizada. Pobre não pode ter esse tipo
de profissão, me diziam.
Conseguimos poucos resultados, afinal, em uma escola
onde o único objetivo pregado pela direção e pelos educadores é a conquista de um diploma, não importando
como, os alunos não davam muito importância ao grêmio.
Por que meu desejo, assim como o das demais garotas
da minha classe não era terminar o 2° grau, arrumar um
marido e ter filhos?
Leitura. Muita leitura. Entre todas estas atividades,
minha vida continuava marcada por muitos livros e textos. A aquisição de um computador e o acesso à internet, naquela época, ainda eram coisas raras e, com
muito sacrifício dos meus pais, conseguimos isso.
No universo gigante que a internet mostrava, comecei a pesquisar novos textos e, diante do computador,
escrevi minhas primeiras linhas, desconexas, mas que,
mesmo assim, achava que formavam literatura. Mas
não importa. Foi o primeiro passo.
Não, não era. Não naquele momento. Eu queria aprender
coisas novas a cada dia. Queria estudar. Queria escrever. Não poderia falar mais sobre isso em sala de aula
e demorei para perceber, pois, todos os dias, repetia o
mesmo sonho para toda a classe. Queria ser jornalista.
Gostava de escrever. Continuei lendo e juntando os trocados da mesada que meu pai me dava, com base no
salário de aposentado do ramo da metalurgia, para comprar alguns livros que me chamavam atenção.
Pouco tempo mais tarde, por ter sempre estudado na
mesma escola e militar em causas para o bem-estar
dos alunos, um grupo de alunos me convidou para montarmos um grêmio estudantil. Inspirados pela participação dos meus pais no colegiado, que sempre tentaram melhorar o ambiente estudantil, consolidamos
nossa ideia inicial.
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Periferia adentro: o hip-hop
Campo de batalhas
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conseguiam conter. Várias vezes a polícia teve de intervir e alguns alunos foram conduzidos à delegacia. Foi
então que uma viatura passou a fazer parte da paisagem estudantil dos quase dois mil estudantes daquele
colégio. Para evitar as brigas frequentes, os policiais
circulavam pelo pátio e arredores.
Nem isso impediu que, sem qualquer motivo, um aluno da
minha sala fosse espancado até quase a morte enquanto
saía da escola apenas porque esbarrou em outro. A educação cedeu, facilmente, o lugar para a violência incontida.
Falta de informação, de atividades, de lazer conduzindo
a um resultado comum e aterrador: violência dentro da
escola. Foi por volta de 1999 que as gangues surgiram,
dentro das escolas, com mais impacto.
Grupos da Zona Sul, onde vivo, rivalizavam com grupos
da Zona Leste, onde a escola estava situada, e as disputas por espaço e poder dentro da instituição eram
cada vez mais constantes. Um estrondo forte, de tremer todo o prédio trouxe a notícia de que uma bomba
caseira, fabricada por um aluno, fora colocada em um
dos banheiros.
As ofertas de drogas fáceis na porta do colégio também
eram uma realidade. Apesar da presença policial, da
Guarda Municipal, dos professores e diretores, o tráfico
não deixava de acontecer, à luz do dia, e atingir todos os
alunos. Graças a Deus, eu tinha outros sonhos e ideais.
Nunca me chamou atenção ficar “louca” por conta de
alguma substância. Preferia viajar pelos livros.
O grêmio se desfez pelas ameaças e ridicularizações das
gangues, que traziam personagens reais dos filmes de
terror, colocando medo em todos os demais alunos que
ousassem desobedecer às regras estabelecidas por eles.
O motivo? A imagem que a forma arquitetônica do prédio
transmitia a alguns alunos, que passaram a chamá-la de
pavilhão 9, talvez pela semelhança física e pela existência de uma grade que separava as salas de aula do pátio
e do portão de saída.
Era triste observar e não poder mais lutar pelos direitos dos alunos. Quase todos os jovens, com problemas
em casa e também na escola, não tinham mais sequer
o direito à merenda que era distribuída nos intervalos e
garantia a única refeição diária de muitos deles.
A inexistência de disciplina fomentou, cada dia mais, as
brigas entre os grupos e gangues, fazendo com que um
espaço onde a educação deveria acontecer se transformasse em um campo de batalhas.
Num tempo em que a única referência em educação é um
campo minado de batalhas entre grupos rivais, apenas por
diferenças geográficas, o desenho de profissionalização
e curso superior passa longe dos sonhos das periferias.
Nesta mesma época, brigas eram formadas durante o
intervalo entre as aulas e nem mesmo os professores
A porta da escola, mesmo com a presença policial, foi
transformada em ponto de tráfico pelos moradores do
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34
Traficando conhecimento
morro vizinho. Os que tinham mais de 16 anos, e uma
família um pouco mais ordeira e trabalhadora, abandonavam os estudos ou migravam para o período noturno e
passavam a trabalhar, quando conseguiam um primeiro
emprego com carteira registrada. Outros deixavam de
lado os estudos e partiam para atividades informais
como serventes de pedreiros, babás e diaristas.
Foi também neste período, que, não pela falta de informação, constante em atividades do governo e palestras, mas pela falta de oportunidades e de ousadia por
uma vida diferente, muitas garotas da minha classe e
de toda escola, todas com idades entre 12 e 16 anos,
ficaram grávidas.
Sem estrutura em casa, com pais e mães separados ou
já falecidos e namorados, quase sempre, ligados à atividades ilícitas, elas ostentavam as barrigas e carregavam no ventre não apenas os bebês, mas o sonho de
uma vida diferente, com casa própria, marido e carro do
ano. Todas elas, também, deixaram os estudos e as que
tiveram mais sorte foram viver com os companheiros. A
maioria continuou vivendo na mesma casa e, hoje, cria os
filhos sozinhos, sem reconhecimento ou apoio paterno.
Meu sonho de ser jornalista continuava e muito deste
retrato cotidiano, formado pelos acontecimentos da
escola, se transformaram em crônicas na própria escola,
durante as aulas de português, geografia e literatura.
Estava escrevendo a nossa própria história e caminhando
rumo ao meu sonho: ser jornalista.
Desde cedo me incorporei à contracultura, à cultura
negra, aos movimentos populares. Não sei de onde surgiu tamanha paixão e nem o porquê, mas o fascínio que
ela exerce sobre mim é incrível. Naquela época já não me
imaginava sem estes sonhos, sem estes engajamentos.
Periferia adentro: o hip-hop
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Acho que meus pais nunca entenderam esse gosto, esse
desespero por conhecer mais dessas culturas populares. Com o tempo, passaram a aceitar e acompanhar,
afinal, era melhor estar vivendo isso do que aliando aos
problemas e às ofertas perigosas da periferia.
Outro sonho, atuar nos palcos de teatro, já tinha ficado
na infância, mas, mesmo assim, na ânsia de saber e
aprender cada vez mais sobre tudo, me matriculei em
um curso de teatro do Conservatório Municipal. Aprender a falar em público, articular melhor os movimentos
corporais e perder a vergonha diante da plateia. Estas
foram as matérias mais proveitosas do curso.
Apresentei uma peça no fim do ano e, no ano seguinte,
me dediquei à produção e à atuação em outra peça,
sobre os problemas cotidianos de uma família tipicamente brasileira.
Periferia adentro: o hip-hop
Uai, hip-hop
Era uma tarde qualquer de sexta-feira no ano de 2000 e
a mesma cena, comum em todas as periferias do país,
onde as casas não têm reboco, dependuradas nos morros e encostas. As vielas, sujas e abandonas, e o mau
cheiro dos esgotos a céu aberto misturam-se com o mau
cheiro da violência.
Para contrastar, o hip-hop chegava naquela região, que é
a mais pobre da cidade de Poços de Caldas, e propunha
novos rumos à vida de tantos jovens do local.
Em meio ao caos urbano dos que estão fora da escola,
envolvidos com o tráfico e a violência generalizada,
porém, a cena vista era totalmente inesperada e envolvente: um grupo de sete garotos dançava, numa roda
formada por eles próprios, ao som das batidas do rap.
A expressão em inglês hip-hop, na tradução literal, significa saltar movimentando os quadris. Tão diferente
quanto possível desta analogia, a cultura propõe um
sem-número de outras manifestações. Na ânsia de
conhecer mais sobre o movimento, desisti de seguir até a
biblioteca montada recentemente naquela região – cerca
de 1,5 quilômetros de caminhada distante da minha casa
– e entrei no poliesportivo.
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Isso acontecia dentro do poliesportivo do bairro Conjunto Habitacional Pedro Afonso Junqueira (Cohab),
que já estava caindo aos pedaços no final da década de
1990 e, então, passou a ser o abrigo da cultura nascida
nas ruas do bairro.
A novidade da dança praticada por jovens com roupas
largas e uma música com batidas diferentes, trazia a
esperança de um estilo singular de vida. Para o grupo de
quatro garotas que passavam pelo local, até então, sem
qualquer esperança de encontrar algo fora da rotina, a
surpresa pela cena vista era, talvez, a possibilidade de
um mundo mais colorido e ritmado naquela periferia.
No dia seguinte, a mesma cena podia ser vista, no
mesmo horário e a aproximação entre os grupos foi inevitável. Eu estava lá, entre outras três garotas, feliz por
ver, de forma próxima, algo que então fazia parte da distante reprodução televisiva.
Era a época em que os programas de TV, aqueles dos
quais eu tentava fugir sempre, traziam um pouco da cultura importada dos Estados Unidos e mostravam como
ela valorizava a periferia brasileira. Diante da magia exercida por aqueles passos sincopados e executados pelos
garotos, senti que, de repente, era esta a oportunidade de
levar aquilo para as escolas e substituir o cenário violento
e sem perspectivas por uma dança colorida, uma música
envolvente e a vontade de mudar a realidade.
Na semana seguinte, o mesmo poliesportivo deu lugar a
um evento batizado apenas como Hip-Hop que invadiu o
espaço e trouxe grupos de cidades vizinhas, tão ligadas
à cultura de rua que era fascinante observar tudo.
Um casal de pouca idade circulava pelo local exibindo
os cabelos em estilo black power e as roupas típicas dos
adeptos do hip-hop daquela época.
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Traficando conhecimento
Com uma voz forte, a moça, que não teria mais que 18
anos, chamava a atenção de todos os presentes ao
embalar-se no ritmo e na poesia da música feita pela
cultura nascida nas ruas. Ao lado dela, o marido, dava
sentido ao rap, relatando os fatos cotidianos do lugar e
incrementando com um pouco do amor que sentia pela
esposa. Nasceu então, acompanhando a paixão do casal
e o amor dos garotos pela dança e pela cultura de rua, o
meu envolvimento com o hip-hop.
A magia do evento podia ser sentida diante da cena real
vista por centenas de jovens reunidos com um único
objetivo comum, descoberto depois, de promover paz,
amor, diversão e união, como profetizou o criador da cultura Afrika Bambaataa, nos anos 1970, nos guetos novaiorquinos. Mais tarde, este mesmo casal ficaria conhecido como Os tios do hip-hop.
Tentei encontrar alguma forma de contribuir com aquilo
que deu um novo sentido a minha vida: a cultura hip-hop.
Devagar, alguns garotos que moravam próximos a mim,
começaram a levar os passos para a escola e, alheios ao
que as gangues pregavam, passaram a disputar as diferenças através dos passos de break.
Diariamente, comentava com duas das minhas amigas
— Juliana e Karina — que me apresentaram, mesmo
que involuntariamente, à arte do hip-hop, tão próxima da
minha realidade, que mais de uma opção sempre existia
nas nossas vidas e entre o tráfico, o sexo tão aflorado
e as culturas populares, ficamos com a terceira opção.
Rapidamente, os intervalos de aula sangrentos e cheios
de medo foram substituídos pelo som que ecoava dos
micro-systems e faziam dançar.
Era hora de fazer alguma coisa.
Periferia adentro: o hip-hop
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Periferia adentro: o hip-hop
Os tios do hip-hop
Era o ano de 1991. Havia apenas um tape velho e uma fita
K7 vindos de São Paulo com os primeiros rappers nacionais como: Thaíde e DJ Hum e Racionais MC´s. Esta fita
chegou nas mãos de um jovem idealista e sonhador que
tratou logo de espalhar o novo som para aquela periferia.
Quando o assunto ou referência é hip-hop, rap ou cultura
negra, eles são, automaticamente, lembrados e citados:
“Eles já são titios do hip-hop aqui em Poços”. É o que
dizem os adeptos da cultura na cidade, quando se referem
a Suburbano, 30 anos, e a Lu Afri, 26 anos, os pioneiros do
rap e consequentemente da cultura hip-hop na cidade. É
injusto contar minha história sem citar a do grupo.
Casados há dez anos, eles fazem rap há muito mais que
isso. Suburbano conheceu o hip-hop aos 10 anos, através do rap, em fitas que vinham até ele por meio de amigos que faziam a ponte entre São Paulo e o sul de Minas
Gerais. Desde muito novo ele se interessou por música e
resolveu cantar rap.
Lu Afri cantava em um grupo chamado Valor Moral e
também dançava, quando um amigo em comum resolveu
apresentá-los. “Eu esperava encontrar um negão, cantor de rap. Encontrei o Suburbano (risos)”, diz Lu, brincando, enquanto conta sobre como se conheceram.
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O primeiro encontro significou flertes e, com o pretexto
de cantarem juntos, iniciaram o namoro que, anos mais
tarde, resultaria no casamento e na união das vozes em
cima do palco. Com músicas sobre cotidiano, política,
problemas sociais e amor, eles fazem questão de dizer
que integram a nova escola do hip-hop, mas sempre
inspirados pela old school, mesclando elementos e formando um grupo diferenciado.
Para se manterem e sustentar o filho, Jeam, sete anos,
o casal trabalha em tempo integral com as noites divididas entre ensaios, gravações e composições. Mas, para
chegar nisso, dividiram muitas histórias recheadas de
vitórias e dissabores. “Nós tentamos sempre correr pelo
certo, e passar o que há de bom, formar uma juventude
cabeça”, afirma Lu Afri, quando questionada sobre as
propostas do grupo.
Desta maneira, conquistaram a cabeça de Roberto
Moreira, conhecido como Bebeto. Assim que entrava na
adolescência, ele assistiu a um show do casal no poliesportivo da Zona Sul da cidade e se encantou. “Mexeu
demais comigo o jeito que o Flávio fazia rap, rimava e a Lu
também.” Tempos mais tarde ele foi convidado para integrar o clã de suburbanos, que dá origem ao nome UClanos.
Em uma casa simples, de quatro cômodos, nos fundos da residência da mãe de Suburbano, eles recebem
todos os amigos com muita simplicidade e hospitalidade. Quem tem o primeiro contato com o hip-hop na
cidade logo procura o casal e num armário branco, meio
que caindo os pedaços no canto da sala, encontram as
informações que buscam sobre a cultura, desde o surgimento desta no Brasil até os dias atuais, passando
por várias fases e vários artistas.
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Traficando conhecimento
Transmitindo muita paz e energia positiva, seguindo os
princípios de paz, amor, diversão e união pregados por
Afrika Bambaataa, o casal dispõe de um bom acervo e o
disponibiliza para consulta. Assim que os conheci, também me diriji à casa deles e me encantei com o acervo
bem organizado e montado em pastas.
Não diferente da maioria das casas dos guetos, o casal
mora em um canto simples, sem muito luxo ou conforto,
em um bairro a dez quilômetros de distância do centro da
cidade. Mas possui, na sala de estar, um moderno computador, junto da aparelhagem de som. Contrastando o
luxo eletrônico à humildade carinhosa, eles se sentam
para trocar ideias com quem quer que esteja em busca
de informações sobre hip-hop. “Estamos sempre procurando nos informar, e tentar levar a cultura adiante,
mudar alguma coisa na sociedade, tirar as crianças da
rua, ensinar”, diz Suburbano, lembrando de um projeto
que ele desenvolveu junto ao G do Gueto, um MC amigo
do grupo, no qual participam em músicas juntos. Espelhados por King Nino Brown, eles têm a intenção de, um
dia, disponibilizar o acervo de hip-hop em Poços de Caldas ao estilo Casa do Hip-Hop, em Diadema (SP).
Além de MC, Suburbano se arrisca no graffiti já tendo
exposto seus desenhos nos muros de duas escolas públicas do subúrbio onde mora. Sempre bem-humorado e
disposto, o casal divide atenção entre o trabalho, os amigos e o pequeno Jeam. Suburbano trabalha como auxiliar
em uma empreiteira e Lu Afri é tosadora em um pet-shop.
No restante do dia, ela cuida da casa e deixa Jeam na
escola, onde ele fica por todo o dia. Na maioria das vezes,
para economizar dinheiro e ajudar no orçamento mensal,
eles caminham quase 13 quilômetros para ensaiar com
o grupo, na casa de Bebeto — que depois de inserido no
grupo, se transformou em MB2 — do outro lado da cidade.
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Entre tantos quilômetros percorridos quase todo final
de semana, eles contam, aos risos, uma aventura que
viveram uma vez, indo para a cidade de Lavras (MG),
que fica mais ou menos 220 km de distância de Poços
de Caldas. O casal e mais quatro amigos foram fazer
uma apresentação em um evento de hip-hop e perderam a condução que os levaria. Foram pedindo carona
pela estrada, durante a madrugada. Os seis amigos viajavam um pedaço de carona e andavam outro tanto a pé,
pela beira da estrada, sem iluminação e sem conhecer
o caminho. “Gastamos muita sola de sapato para fazer
aquele show, mas temos histórias para contar”, diz Lu
Afri, lembrando o ocorrido. “Nós não tínhamos dinheiro
para pegar ônibus, nada. O Sidão, um amigo que estava
conosco, conseguiu sacar tudo que ele tinha no banco e
pegamos algumas conduções picadas até lá”, diverte-se
Suburbano, aos risos, lembrando da história.
Eles caminharam toda a madrugada e, quando chegaram ao local do show, estava amanhecendo. O único
grupo que faltava era o UClanos, que, mesmo com toda
correria, se apresentaram, recebendo muitos aplausos.
Ao término do show, entretanto, como eles voltariam
para Poços de Caldas novamente, sem dinheiro, sem
carona, com fome e muito cansados? Fizeram amizade
com alguns moradores da cidade que os hospedaram, e
Lu Afri lembra, com saudade, do tempo que passou lá:
“O Suburbano e eu estávamos em lua-de-mel e a dona
da casa cedeu a cama dela para gente”, diz. Durante
uma semana eles ficaram na casa dos amigos recémconquistados, tentando arrumar algum dinheiro para
voltar. “O nosso amigo, o b.boy Dinho, arrumou até um
relacionamento lá. Uma namorada que não queria deixálo ir embora”, conta Suburbano. Com o dinheiro emprestado pelos amigos, eles conseguiram voltar para Poços de
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Traficando conhecimento
Caldas uma semana depois, mas, quando chegaram, sentiram saudades da vida diferente que tiveram em Lavras.
Hoje eles são orgulhosos por terem vivido histórias como
essas, conhecido gente famosa. Eles são considerados
os tios do hip-hop na região, e sempre são convidados
para vários eventos em cidades vizinhas, em parceria com
um grupo K2, uma banda da cidade que toca o estilo ska.
Junto com o grupo, o casal sempre se esforça para mostrar o lado positivo da cultura e acreditam que o hiphop, pode sim, resgatar as pessoas. “Quando eu comecei, queria mostrar o que tinha dentro de mim, na minha
cabeça, o que pensava. Queria mostrar para as pessoas
que o hip-hop veio para não termos preconceito, para
lutarmos pelo certo, fazermos nossa correria. Para os
jovens trabalharem, estudarem. É isso que queremos
dentro do hip-hop, ver os jovens, as crianças aprendendo coisas legais que o hip-hop proporciona”, diz Lu
Afri, defendendo seu envolvimento com o hip-hop.
Suburbano acredita na expansão das informações e atitudes positivas, e conta que eles sempre realizam eventos beneficentes de hip-hop, onde recolhem alimentos
e doam para entidades carentes. Desta forma, pretendem dar um bom exemplo à sociedade, além de contribuir com os mais necessitados: “Sem o hip-hop isso não
seria possível, ele veio para resgatar todo mundo. Esses
quatro elementos vieram para tirar os jovens da rua, das
drogas, do álcool, da prostituição, do crime. Veio para
ocupar a cabeça das pessoas, para incentivar a prática
do bem”, diz Lu Afri.
Ainda na memória, eles trazem as lembranças dos primeiros eventos realizados na periferia, quando muitos
quilos de alimentos eram arrecadados e distribuídos
para creches e entidades da região. Mas, atualmente,
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as atenções estão voltadas para os trabalhos com novas
músicas e eles pretendem inovar o cenário interiorano,
compondo um rap misturado com reggae, ambos ritmos
com raízes afro.
Entre aventuras e desventuras, o casal pretende levar,
por muito tempo, a bandeira do hip-hop, e representar
o sul de Minas. Suburbano tem projetos para criar um
jornal sobre hip-hop, ao estilo dos “zines”, informativos
e independentes, com distribuição gratuita e ilustrado
com grafites feitos por ele mesmo. Cheios de sonhos,
expectativas e disposição, os tios do hip-hop continuam
trabalhando na divulgação do movimento enquanto cultura, e resgate, para o povo da periferia.
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Periferia adentro: o hip-hop
Passo sincopado
em direção ao futuro
Embalada pelo ritmo da poesia das letras de rap, que
eram cantadas e dançadas no poliesportivo, eu já não
passava um dia sequer sem ir ao poliesportivo e observar a explosão da cultura de rua.
Contudo, longe de ter aptidão para cantar, dançar e,
quem dirá, grafitar, me contentava em apenas acompanhar e pesquisar sobre o assunto. Comecei a ler tudo
que encontrava sobre a cultura e a guardar o material em
pastas. Porém, a vontade de integrar, fazer parte, e ajudar no fortalecimento da cultura era mais forte e junto
à crew, que dançava break, e ao grupo de rap UClanos
passei a fazer parte da organização dos eventos beneficentes que aconteciam regularmente na comunidade.
Fiquei com a parte da divulgação e cobrança dos ingressos, que não era mais do que 1 kg de alimento, sempre
destinado à entidades e creches do próprio bairro. O
ano ainda era 2000 e o novo século prometia ser culturalmente diferente. Novos estilos surgiam a cada dia
e, poder fazer música e dança, sem precisar de muito
investimento financeiro, trazia mais sonhos aos jovens
que, até então, apenas carregavam suas fitas e seus
micro-systems ladeiras acima.
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Garotas com roupas largas, tênis grandes e um desafio:
aprender a dançar como os meninos. Assim, neste ritmo,
crews, compostas apenas por garotas, começaram a
surgir no poliesportivo e, talvez, atraídas — assim como
eu e minhas amigas — por alguns garotos em particular
e, consequentemente, pela cultura, passaram a treinar o
break e descobriram que dava certo.
Inspiradas pelas rimas feitas por Lu Afri, passaram,
também, a cantar e, quando não estavam ensaiando o
sapateado no chão, mandavam as rimas de uma forma
consciente, entretanto, por terem de ajudar em casa
com as tarefas domésticas, a presença delas não era
tão constante, mesmo que abrilhantasse a cultura que,
até aquele momento, havia sido, praticamente, masculina na comunidade.
Contudo, a exemplo de certas garotas da escola, algumas delas deixaram de treinar com tanta frequência e
passaram a namorar firme alguns rapazes, atitude que,
posteriormente, lhes trariam filhos e uma distância
ainda maior da cultura.
As que continuaram envolvidas com o hip-hop tiveram,
assim como eu, vontade de mostrar o trabalho, o que
se concretizou com a proposta de organização de um
evento. Mas, para ser um evento bacana, que chamasse
atenção, precisava ser beneficente, que além de entreter trouxesse benefício à comunidade.
Por intermédio de cartas e telefonemas rápidos, grupos
de outras cidades receberam convites para participar do
evento. Os desafios do evento iam muito além de conhecer bastante gente e repassar convites. Era preciso arrumar um som emprestado, autorização para que o evento
acontecesse e termos em mente a garantia de que não
teriam brigas e nem depredação do espaço público.
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Traficando conhecimento
Reuníamo-nos todas as tardes para discutir como o
evento seria montado, que nome teria, como receberíamos os convidados, onde encontraríamos troféus, e cada
um ficou responsável por uma parte. A falta de dinheiro
da condução para ir até o centro da cidade, a conciliação da escola e do trabalho com a organização do evento,
tudo isso, se transformava em entraves e, justamente por
isso, é que o desejo de fazer uma grande festa crescia.
Decidimos que o nome seria apenas Hip-Hop Sul, por
estarmos na Zona Sul e por ser simples, fácil de ser
assimilado.
A notícia correu entre os amigos da região e, logo, todos
aguardavam ansiosos o domingo, dia escolhido porque a
presença poderia ser maior.
O poliesportivo se transformou, então, em palco de uma
das maiores festas da periferia, com as competições de
break e os shows e batalhas de rap.
O brilho nos olhos de cada um da organização, inclusive nos meus, que, naquele dia, trancei o cabelo liso ao
estilo rasta para tentar incorporar um pouco da cultura
negra no staff do evento.
Claro que o amadorismo deixou algumas falhas e algumas
pessoas acabaram entrando sem deixar como ingresso o
quilo de alimento, mas, nem por isso, o evento deixou de
ser um sucesso, tanto pelos sons novos, que foram apresentados, quanto pela constatação de que foram feitos
com a mão de obra mais preciosa da periferia: a dificuldade do dia a dia.
Sem qualquer briga ou desentendimento, as rachas de
break se seguiram por horas, com jurados e premiação
em troféus, que mesmo simples, imprimiam a qualidade de algumas crews, tanto da cidade como de fora.
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Tal qualidade era medida pela quantidade de tempo que
cada uma treinava e a que realizava o evento, por se
considerar acima dos que se apresentavam, ficou como
jurada e apresentação final. Feliz por estar lá, mesmo
sem saber qualquer passo do break, continuava encantada pelos passos, pelas gírias, pelos discos riscados
pelos DJs e pelas competições de gírias.
Como nada é perfeito, para um evento montado por
jovens que não tinham 18 anos ainda, até que estávamos muito bem, quando alguns gritos do lado de fora
atraíram a atenção de quem estava do lado de dentro.
Dois grupos, vindos de fora, se desentenderam e distantes da proposta do evento, queriam resolver a diferença
com violência. Proibidos, pelos garotos da crew local,
um deles mudou o foco e queria briga com ele, naquele
momento. A apreensão por ter o evento finalizado com
brigas corporais fez a roda aumentar ainda mais em
torno dos dois, quando ficou resolvido que uma racha de
dança tiraria a diferença.
Uma observação positiva é que os grupos de fora trouxeram garotas junto com as crews, o que significava
uma presença maior do grupo feminino na cultura e um
fortalecimento desta parte na região. Abstraí o preconceito da família e de alguns colegas de escola, que
diziam que os b.boys estavam lá apenas para encerar
o chão – que era, obviamente, liso e apropriado para
dança – do poliesportivo.
Foi apenas o primeiro evento e as creches da região
comemoraram a chegada de 500 Kg de alimentos, arrecadado como cobrança de ingresso para o evento. Naquele
domingo voltei para casa leve e feliz: as manifestações
encheram minha alma e a sensação de realização me
trouxeram a certeza de que, com muito trabalho e desejo
de construções positivas, tudo era possível.
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Traficando conhecimento
Da segunda vez que uma festa foi organizada, conseguimos convidar outros grupos de rap e break de outras quebradas da cidade. A escolha da data para acontecer foi a
mesma, um domingo durante a tarde, e o Centro Comunitário se tornou palco de um grande encontro.
Com a experiência da outra vez, o evento foi batizado
como Hip-Hop Sul II, mas trouxe os mesmos entraves,
como crews que tinham desejo de tirar a diferença com
brigas e não com rachas. Resolvido o problema, o clima
lembrava os bailes Black da década de 1970 e a chegada
do break ao Brasil. Ao redor das rodas observavam-se
garotos, garotas e desta vez, alguns pais, que foram
convidados a assistir a apresentação dos filhos, e também algumas crianças no local.
Conseguimos, mesmo que, na época, sem idealizar isso,
trazer para a nossa quebrada uma opção de lazer aos
domingos à tarde que não fossem os programas televisivos como Faustão e Sílvio Santos.
Não fomos atrás e, também, não recebemos nenhum
tipo de apoio ou incentivo do poder público ou privado.
Além da cessão do local, que tínhamos direito a usar,
não pedimos mais nada e, mesmo assim, fizemos uma
grande festa. Devagar, ambulantes trouxeram os carrinhos para a porta do local e tiveram uma renda diferente naquele domingo.
Além dos benefícios para os jovens das periferias de
toda cidade, as creches ficaram, novamente, felizes por
conta dos alimentos recebidos. Não foram 500 kg como
da outra vez, mas representaram que, além do resgate
na vida de cada um daqueles jovens, poderiam ser, também, revertidos em prol da comunidade e assim foram.
Novos eventos nos mesmos moldes foram realizados,
além dos treinos diários e incessantes, na tentativa de
competir em outras cidades da região ou mesmo em
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nível nacional. Sem internet ou divulgação televisiva, o
acesso a novas informações surgia pelas experiências
de quem viajava aos grandes centros ou pelas revistas
segmentadas da época.
Não demorou para que a literatura marginal entrasse em
nossas vidas por meio das revistas, “zines” e publicações acerca do hip-hop. Os primeiros textos de identificação chegaram alguns anos depois, pelo lendário escritor Ferréz. Uma revista encontrada, ao acaso, por alguém
do grupo. A atenção despertada por um texto escrito de
forma diferente. Uma linguagem nova despontava na
periferia e trazia temas recorrentes na nossa realidade.
Longe de qualquer ligação criminosa, o termo literatura
marginal refere-se apenas à condição em que, não só a
literatura, mas o hip-hop se encontram. À margem da
sociedade e à beira de mudanças positivas, os textos
dos poetas do gueto, denunciam, de uma forma “romanceada”, a violência e a miséria experimentas na periferia. Começa assim uma nova fase na cultura marginal
poços-caldense, envolta de conhecimento e sabedoria.
As letras de rap se tornaram mais conscientes e o número
de grupos foi aumentando. Os locais onde as festas beneficentes aconteciam foram se alternando, ora acontecendo no poliesportivo, ora no centro comunitário, localizado à poucos metros de distância. Nos bolsos das
calças largas, vários manos traziam em papéis amassados, encontrados ao acaso, espalhados pela casa, novas
letras de rap e alguns arriscavam até mesmo alguns contos, textos e crônicas, que entoavam a lembrança de tantas tardes passadas no poliesportivo em meio aos treinos
de break, as batalhas e os sonhos da juventude.
Poesias românticas eram escritas em pedaços de folhas
de cadernos e os mais ousados tratavam dos problemas
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sociais e da própria realidade. Tínhamos descoberto
uma nova forma de externar nossos pensamentos ao
mundo: a palavra. A revista Rap Brasil se tornou, também, uma referência de conhecimento sobre a cultura
e a cada mês, um somava as pequenas economias e ia
até o centro da cidade para comprar um exemplar, que
trazia sempre o que havia de mais novo no cenário do rap
e algumas pinceladas dos demais elementos da cultura.
Líamos tudo que podíamos sobre o assunto e quem
podia viajar para São Paulo ou Rio de Janeiro trazia sempre um som novo, um passo diferente e novos textos.
Dos poucos que tinham acesso à internet, e eu era um
deles, visitava sites em busca das novidades e de mais
informações sobre qualquer coisa que estivesse ligada à
cultura. Saber mais significava melhorar a comunidade e
trabalhávamos, mesmo sem pretensão, para isso.
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Começava então, uma produção textual na roda, mesmo
por aqueles que não frequentavam mais a escola ou que
escreviam precariamente. Todas as tardes, ao término
dos treinos, quando nos sentávamos para conversar,
contar os acontecimentos cotidianos, os textos eram
lidos. Pena que alguns eram ridicularizados, mas, nem
por isso, deixavam de ser feitos.
Hoje, entre as poucas lembranças que guardei daquela
época, um texto sobreviveu às várias limpezas no
guarda-roupa todos estes anos. Inspirado no que eu lia,
via e observava.
Homem do Gueto
Hoje o hip-hop chora, o homem do gueto foi embora.
Cantou, pregou, tentou. Não conseguiu. Cansou, não
aguentou. Se matou.
Sons de Racionais MC´s, Thaíde e DJ Hum e Sampa Crew
eram os mais ouvidos e serviam como inspiração. O
conhecimento sobre novos passos, novos sons, a existência de uma liga de DJs e o despontar da literatura e produção cultural feitas no gueto vieram, então, da revista.
Mas não se matou assim, de repente, como quem dá um
tiro na cabeça, puxa uma corda no pescoço, se atira dum
prédio e pronto! Não... O homem do gueto morreu aos
poucos, como bom brasileiro que era, pensava que seu
lema era, “não desistir nunca”.
Arrisquei-me, também, a produzir alguns pequenos textos com as cenas que observava diariamente no local.
Escrevia e apresentava aos garotos que treinavam.
Comigo, levava duas das garotas que me levaram até lá
pela primeira vez, onde conheci todo universo mágico da
cultura de rua.
Com 10 anos de idade, quando o homem do gueto ainda
era um menino, viu o pai se separar da mãe e fugir como
um covarde. Alguns anos depois, tomou um tiro de raspão do padastro e carregou a mãe, baleada pelo padastro, até o hospital. Viu a coroa morrer. Chorou, cansou,
mas não desistiu.
Dos textos, lembro que descrevia a segurança que
sentia em estar no poliesportivo observando os treinos e guardando as lembranças. Todos gostavam e me
incentivavam a escrever mais. O sonho era, e continua
sendo, ter as sacadas parecidas com as do Ferréz e a
produção, também.
Se lembrou das madrugadas em que levantava sob a
geada, para apanhar café com a coroa e ajudar a sustentar
o lar. Chorou. Mas não desistiu. Aguentou. “Mãe, fique na
paz, pois seu filho, aqui na terra, te ama demais...”, cantou.
Pensou que fazer umas letras de rap e cantar para a
juventude amenizaria a dor e ajudaria na construção de
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um país melhor, afinal, o homem do gueto era brasileiro e
não poderia, em hipótese alguma, desistir.
brada, eram as ideias que martelavam na cabeça do
homem do gueto, agora, homem feito, maior de idade.
Queria respeito, dignidade, cantar um rap que abalasse
toda a cidade. Não deu. Se fodeu. Leu num livro que não
devia se meter com as drogas, mas foi numa balada, uma
noite qualquer, cantando um rap, que ficou de barato
com a primeira “bola” que deram.
“Periferia mano, é bem diferente, só mano linha de
frente”, dizia.
O homem do gueto, apesar de ser ele mesmo, também caiu
em tentação. Rodou na mão dos “homi”. Acontecia com
todos os manos mesmo, por que com ele seria diferente?
Desistiu. Não de viver, mas da maconha. Continuou cantando. Trabalhando. Acordava toda madrugada. “Não
sabem como faz frio aqui no gueto dessa cidade de desacerto”, pensava. Mas nem pensava no dia que passava,
apenas trabalhava.
Quanto tinha 16 anos, o homem do gueto, que ainda era
um garoto, arrumou uma garota, conhecida como “mina
de fé”, que o acompanhava nas baladas de hip-hop, aprovava o rap, e não fazia cara feia para as novas composições. Uma mina que o chamava de homem do gueto.
Mas a mina de fé, assim como a mãe do homem do
gueto, se apaixonou. Não por ele, mas pelo “vida loka”
que morava na esquina da mesma rua. Ele era melhor
e tinha o “carro do ano”, sem falar que não pagava um
veneno no trampo.
O homem do gueto chorou de novo. Se cansou, mas não
desistiu. No trampo, resolveu chutar o balde, não aguentava mais inveja, cara feia e bronca do patrão. Mesmo
com as contas pra acertar, deixou de trabalhar.
Se jogou no hip-hop. Letras de rap, viagens para São
Paulo. “O berço da cultura do gueto no Brasil”. Decepção.
Histórias, mais letras. Trabalhos sociais, voluntários,
ajudar a molecada mais nova, da rua, da mesma que-
Se enganou. Quando mais precisou de ajuda para botar
os projetos do bem pra frente, não conseguiu. Em cada
porta que batia, era um “não” que recebia. “Por que é tão
difícil correr pelo certo?”, pensava.
E foi assim, sem emprego, vendo a mina com outro, o pai
bebendo como o padastro e quase todos os amigos mortos, por conta das drogas e do crime, que ele morreu. Dia
após dia, com a barriga vazia. Morreu fraco. A fraqueza
da fome o consumiu e todos que o admiravam, hoje, choram, o homem do gueto foi embora!
O interessante é o que aconteceu nos eventos e encontros que se seguiram a essa época. Mesmo mais espaçados e com menos gente, um novo movimento surgiu. O
movimento daqueles que escreviam. Por várias vezes, o
apresentador da festa, ou mesmo o MC, antes de anunciar atrações ou mandar as rimas, lia algum trecho de
texto ou mesmo declamava, deixando a plateia um
pouco confusa quanto à novidade e, ao mesmo tempo,
excitada, com a existência de uma literatura que falava
a língua deles, algo que eles podiam entender.
A falta de dinheiro e apoio nunca permitiram que levássemos cópias dos textos nos eventos para distribuir
entre os participantes. Mas, certa vez, pedi a um amigo,
Elton, um b.boy, que se apresentava em shows no Centro Comunitário do Cohab, para ler o meu texto “Homem
do Gueto”. Mesmo querendo ser jornalista e tudo mais,
tive vergonha de me arriscar no palco. Coisas da idade,
medos infundados, sei lá. Só sei que imprimi o texto em
casa e pedi que ele lesse. No início, houve um certo medo,
um certo receio, mas insisti e ele acabou concordando.
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Traficando conhecimento
A ideia de fazer isso surgiu de um filme, daqueles exibidos
todas as semanas na sessão da tarde, quando estudantes têm um problema, um caso de amor e alguma batalha
para vencer até os 120 minutos finais daquela fita. Observando em um filme, que eu não me recordo o nome, mas
que um garoto interrompia a performance de uma banda
e lia um poema no palco, pensei que, de repente, pudesse
imitar a ação para as nossas festas, entretanto, de forma
mais sutil. Assim, usei o hip-hop para divulgar meus textos e contos e acho que a fórmula deu certo.
Entre uma música e outra o meu amigo, Elton, pediu
licença e leu, não da forma como alguém que declama,
mas melhorou a qualidade de leitura a medida que ia
colocando sentimento nas palavras ali escritas.
O zumzumzum foi desfazendo e as pessoas passaram
a prestar um pouco mais de atenção, fazendo silêncio
e acompanhando o que ele dizia. Aos poucos, a história narrada pelas minhas palavras se desenhou e todos
pareceram gostar. Alguns sorriam, outros estavam emocionados. Eu não aguentei e desabei a chorar. Pelo texto,
por ter escrito algo e tê-lo visto ser lido em público e pela
realidade da história, que acontece todos os dias em
todas as periferias do Brasil.
Não ficou na primeira vez. Sempre que havia qualquer
pequena manifestação envolvendo o hip-hop, lá estava
eu, com meus textos, sempre pedindo para alguém ler
em público para mim.
Aos poucos, a coragem de outros colegas foi surgindo e
eles também passaram a ler alguns de seus textos nos
eventos. Arrependo-me de não ter feito cópias de todos,
mas, basicamente, as histórias seguiam a mesma linha.
Baseadas em acontecimentos na vida de todos eles,
surgiam pequenos contos e textos que incrementavam
Periferia adentro: o hip-hop
63
a abertura dos eventos ou intervalos, porém, a falta de
experiência não permitia que fossem coisas organizadas
e, portanto, sempre se tornavam dispersivas ou o interesse dava lugar a alguma outra coisa, como uma música
ou um grupo novo. Mais tarde tomei conhecimento de
que outros escritores, poetas e até mesmo músicos,
usavam o mesmo artifício para divulgar o que escreviam
de maneira não escrita.
Entretanto, a necessidade de expressão, que acompanha o homem desde os primórdios, com as inscrições
rupestres nas paredes das cavernas, trouxe, junto com
os textos produzidos na periferia, algumas pequenas
pichações nas paredes do poliesportivo, para a grande
tristeza de quem estava esclarecido pela cultura. A boa
notícia é que bairros vizinhos também passaram a promover competições de dança com troféus como prêmio,
e a cultura se consolidava na região.
O centro comunitário de outro bairro serviu como palco
para uma das batalhas de break mais acirradas da
região, além da apresentação dos grupos de raps locais,
que, a cada evento, se mostravam mais profissionais e
traziam novas técnicas, novas rimas e também novos
figurinos, compondo um cenário único naquelas periferias. Curioso observar que todo movimento acontecia
independente de qualquer ajuda, apoio ou mesmo incentivo de órgãos públicos ou iniciativa privada. Diferente
do colégio, onde o objetivo era estudar e não brigar, o
hip-hop promovido em eventos fazia o papel inverso e
transformava as disputas em educação por meio das
manifestações artísticas.
Periferia adentro: o hip-hop
Cotidiano
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O bacana era que as tardes eram sempre embaladas
com muito rap e registradas em pequenos diários de
onde saíam alguns rabiscos de textos também. O ponto
alto era poder ver o Kaio, irmão da Juliana, quase 10
anos mais novo que eu, aprendendo tudo sobre hip-hop
e aprendendo a dançar break. A sensação boa era ver
que ele estava aprendendo a escrever e, entre as primeiras palavras que rabiscava, estavam hip-hop, b.boy
e o próprio nome.
Ainda embalada pelo som do rap, nas tardes em que eu
não estava no poliesportivo, me reunia com algumas
amigas, principalmente as que me apresentaram o hiphop, entre elas a Juliana, que tem papel fundamental na
minha curta existência. Quatro anos mais nova que eu,
nos conhecemos desde o dia que ela nasceu e crescemos juntas, tendo nossas mães como amigas.
As lembranças daquelas tardes são incríveis e apesar
de conviver diretamente com a escassez de recurso do
local onde a Juliana morava – sem asfalto, saneamento
precário, casa sem muro, sem portão, numa rua totalmente deserta, à beira de um rio nada cheiroso, éramos
felizes naqueles momentos. Muitas vezes, nos pequenos cadernos que chamávamos de diários, escrevíamos
como era sair de casa pisando no barro, enfrentando o
mau cheiro do rio ou, ainda, sem ter comido direito.
Sentadas em algum canto da casa dela ou da minha, nos
dedicávamos a falar sobre a vida, sobre sonhos, sobre
as vontades e, também, para comer. O engraçado é que
era muito bom estar na casa dela por conta da liberdade. Como os pais dela nunca estavam, pois trabalhavam fora, podíamos nos arriscar na cozinha livremente,
entretanto, a falta de recursos financeiros sempre nos
deixava com as receitas pela metade.
Ela sempre ficava semanas sozinha, tomando conta do
irmão, enquanto os pais trabalhavam em São Paulo. Com
R$ 10 ou R$ 20, na época, era quase impossível passar a
semana, fazer comida e alimentar dois cães. A luz elétrica
estava sempre cortada pelo departamento de energia da
cidade e os banhos eram sempre frios nestas ocasiões,
mesmo com as baixas temperaturas da cidade.
Nossas preferências eram brigadeiro de panela, tareco
e bolo. Às vezes um macarrão ou batatas fritas faziam
parte do cardápio, mas somente quando a situação
estava boa. Entretanto, na hora de bater o bolo ou o
tareco sempre faltava leite, ou açúcar ou, ainda, os ovos.
Era uma correria boa para buscar na casa dos vizinhos,
contar as moedas para poder comprar e por aí vai.
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De forma sutil, esses pequenos acontecimentos que eu
acompanhava, tão de perto, fizeram crescer a minha vontade de escrever ao mundo as misérias humanas e cotidianas. A vontade de ajudar também foi crescendo e foi
por meio do hip-hop que eu encontrei as maneiras, mesmo
que pequenas, de iniciar um movimento para fazer isso.
Periferia adentro: o hip-hop
Marcando vidas
Foi numa roda formada, depois dos treinos, que suados
e cansados conversávamos para contar os últimos acontecimentos. Pela primeira vez e de forma aleatória, ouvi
a frase que mais me marcou na vida, e chama atenção
até hoje: O hip-hop salvou minha vida.
Valdair Ribeiro, na época com 17 anos, contava como
conheceu a cultura e os benefícios. Envolto por uma aura
de paz que, até hoje, acho que apenas o hip-hop proporciona, ele disse, claramente, que enquanto dançava e
treinava não tinha tempo para pensar em outras coisas.
Assim, soubemos que ele ensaiava alguns raps e riscava alguns discos, além de ter sido convidado, recentemente, para grafitar os muros do colégio do bairro,
onde grande parte estudava. A imagem mais marcante
que ainda vive, debaixo das várias demãos de tinta jogadas por cima, é uma figura de Jesus Cristo com os traços
livres da arte contemporânea das ruas.
Em uma conversa das mais profundas e intensas que já
rolaram naquele espaço público, soube, também, que o
mesmo garoto, loiro, de olhos claros e muitos sonhos,
não conhecia o próprio pai e era criado pela avó, já de
bastante idade, a quem ele chamava de mãe.
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Traficando conhecimento
Vindo de uma infância pobre, Valdair sempre trabalhou,
ora como servente de pedreiro, ora como ajudante em
oficinas e, naquele momento, como chapeiro em um
trailer de lanches do bairro, ao lado de um parceiro,
Charles, também do hip-hop.
O dinheiro suado, ganhado durante seis noites em claro
toda semana iam para as mãos da mãe, que comprava
alimentos e leite para os dois sobrinhos dele. Muitas
vezes, tendo que cuidar das crianças enquanto a irmã
e a mãe trabalhavam, Valdair ensinava a eles os primeiros passos de sapateado. Feliz. Completo. Assim ele se
resumiu com a vida que levava e acrescentou: graças ao
hip-hop e, também, por organizar eventos beneficentes
para a comunidade.
Como a história dele, a dos outros garotos se assemelhava em quase tudo e o movimento era fortalecido, no
entanto, não eram raras as vezes em que éramos surpreendidos pela ausência daqueles que tinham mais de
16 anos. Muitos conseguiam o primeiro emprego, mesmo
sem a carteira assinada, e passavam a garantir uma
renda maior dentro de casa.
Certa vez ele também comentou que, muitas vezes, era
duro trabalhar em prol do hip-hop, arrecadar tantos
quilos de alimento e não ter alimento em abundância
em casa. “Por várias vezes pensei em levar um saco de
farinha ou de feijão para casa, mas não estaria sendo
honesto com o evento e nem comigo mesmo”, comentou
em um certo momento.
Mas, de repente, entendi que a fome, a vontade de comer
algo diferente era de mudar a própria realidade: de fazer
o povo da periferia ser mais consciente.
A história de Digo era diferente. Ele conseguiu um emprego
com registro na carteira. Coisa rara, ainda mais para ele
que, mesmo com a pouca idade, não tinha vários dos
Periferia adentro: o hip-hop
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dentes da frente. Foi zoado por quase todos. O trabalho era de ajudante de coveiro, no cemitério próximo à
comunidade. Ele não ligou e só chegava para participar dos treinos nos fins de semana nos quais estava de
folga ou quando eles aconteciam durante a noite. Mais
tarde, com o dinheiro ganho como coveiro, ele conseguiu arrumar os dentes, encontrou outro emprego e Valdair foi quem assumiu o cargo de ajudante de coveiro.
Certa vez, perguntei a eles se a profissão de enterrar as
pessoas e ficar no cemitério não os incomodava ou se
não achavam um pouco mórbido. Ambos concordaram
que não era a coisa mais prazerosa e que preferiam viver
de uma renda obtida com rap ou break, mas, já que não
era possível nas condições da comunidade, era melhor
garantir o sustento por isso do que aliados ao tráfico.
Concordei e nunca mais toquei no assunto.
Tempos mais tarde surgiu um texto sobre isso na roda.
Foi ignorado. Trabalho honesto e mórbido, mesmo, era ver
uma porção de gente que havia crescido junto conosco
fazendo corre como aviõezinhos do tráfico que se instala
devagar na região.
Periferia adentro: o hip-hop
“Crime
desorganizado”
Inspirados pela vida e as cenas assistidas diariamente
pelas quebradas onde vivíamos, surgiu o convite para a
montagem de uma peça de teatro a ser apresentada em
um evento no Teatro Municipal existente na cidade.
O curso de teatro, a atuação e a produção de uma peça,
que eu havia feito no ano anterior, foram fundamentais para a montagem de “Crime Desorganizado”, uma
peça curta apresentada às escolas municipais de toda
a cidade, durante uma mostra de dança no Espaço Cultural da Urca, o único de uso comum em toda a cidade,
localizado no centro. Com ensaios, todas as tardes no
poliesportivo, na hora de chegar até o local da apresentação, o dinheiro da passagem foi rachado entre quem
tinha uns trocados a mais e quem não tinha nenhum.
Nervosismo antes de entrar em cena. Oração de mãos
dadas. Último repasse das falas. Conferir figurino, que
era muito pobre, com roupas já surradas e até remendadas, imprimindo, automaticamente, a realidade periférica da cidade apenas por isso.
Preferi não atuar por não saber os passos mínimos do
break que seriam usados para compor o espetáculo e
fiquei na montagem e direção de cena. Não que eu soubesse muito sobre isso, mas deu para auxiliar um pouco.
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Desde que eu fosse parte integrante, estava feliz. Com
cenas leves, mas carregadas de realidade, fomos aplaudidos pelo esquete do cotidiano com um assalto mal
sucedido e o aborto da juventude dos jovens da periferia, que escolhem a vida do crime como única opção.
Como lição, até meio óbvia, a peça trazia a moral da história, incentivando a adesão ao hip-hop, ou às culturas
populares, como forma de resgate.
Mas, como em qualquer periferia, o crime crescia em
paralelo e levava consigo alguns dos adeptos, que, cansados da discriminação nas ruas e no mercado de trabalho,
por serem negros, morarem longe do centro da cidade e
se vestirem com roupas humildes, se renderam ao tráfico.
O senso comum leva a vida de todos a continuar envolta
pela cultura marginal.
Cap.02
Passos pela vida
Passos pela vida
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porta que representava uma mínima possibilidade de
emprego na cidade.
No ônibus cheio, tanto na ida como na volta, por cerca
de 40 minutos em cada viagem, continuava com minhas
leituras e passei a me interessar, também, por poesia.
Tudo que era autor eu passei a ler, com destaque para o
chileno, Pablo Neruda. Despertei também um interesse
pela história do revolucionário Che Guevara e tudo que
era comunicação sobre isso, eu lia.
Encontrar um trabalho com carteira assinada. Essa era
a esperança do ano de 2003, que começou promissor,
com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumindo
o país e prometendo melhorar inúmeras coisas para as
classes menos favorecidas, principalmente, a questão
do desemprego, que na época era aterradora.
O último ano tinha sido fechado com uma taxa de desemprego de 11,7%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e todos jovens com mais de 16
anos – como eu – queriam trabalhar registrados.
Seguindo meu coração e instintos, no fim de 2002 prestei vestibular para a faculdade de jornalismo. Fiz a prova
em duas universidades particulares. A mais próxima
na cidade de São João da Boa Vista (SP) – há 40 km de
Poços de Caldas – e a outra em São Paulo.
Optei pela que fica em São João. Poderia continuar
morando com meus pais, comer e dormir em casa e arrumar um emprego na minha cidade. A última opção foi a
mais difícil de ser alcançada. O número de desempregados crescia e o tempo de procura por uma vaga, também.
Frequentar diariamente o poliesportivo já era mais
complicado porque, grande parte do tempo, eu passava
confeccionando e distribuindo currículos em qualquer
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Fiquei assim durante os nove primeiros meses da faculdade, que vale explicar, era paga com uma poupança que
meu pai fez para mim desde que nasci – depositando a
parcela do auxílio natalidade – e mensalmente, guardando um pouco de dinheiro lá. Ela permaneceu intocável até o pagamento da primeira parcela da van, que me
levava até a cidade vizinha. Consegui uma bolsa de 30%,
o que, provavelmente, garantiria o pagamento dos quatro anos do curso.
Por já ter nascido em meio à guerra social travada entre
os ricos e pobres, me senti desafiando o sistema quando
emergi da classe C (ou seria D?) direto para um banco de
universidade. Contrariando as estatísticas, não deixei que
estacionassem a minha mente e, apesar do sem-número
de convites recusados para o uso de drogas, dentro e fora
da faculdade, tentei combater o dia a dia do pobre, sempre sentindo na pele o que é ser uma excluída neste Brasil
que meu povo humilde construiu.
Apaixonei-me logo de cara pelo curso e pela chance de
aprender, cada vez mais. Entretanto, devagar, deixei
o hip-hop um pouco de lado, envolvida pelos textos e
matérias jornalísticas, os trabalhos que tinha que fazer
para o curso e a nova rotina.
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Traficando conhecimento
Passos pela vida
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Aos 17 anos e tomada pelas descobertas da juventude,
passei a me interessar, além da cultura marginal, pelo
rock’ n’ roll e por livros sobre magia e paganismo. Abandonei, de repente, a leitura dos clássicos e adolescentes
e frequentava a biblioteca e as livrarias, em busca de algo
mais obscuro. Nesta fase de transição e mudanças, deixei de atuar com tanta frequência nos eventos de hip-hop
e até mesmo de ler tanta literatura nacional e revistas
sobre hip-hop e, para minha própria decepção, entrei em
uma de ler Paulo Coelho e ouvir Raul Seixas.
Não conseguia encontrar na paz do hip-hop a dose que
eu desejava de rebeldia para marcar, nem que fosse
ao final, a adolescência. Como tudo na adolescência
passa mais rápido, a fase durou pouco e, após uns dois
meses de faculdade, abri a cabeça novamente, abandonei as roupas pretas, o preconceito que o grupo de
“amigos” roqueiros nutria pelo hip-hop e voltei a ouvir
o bom e velho rap, que trazia nas letras a consciência
que eu necessitava para seguir adiante, em meio a tudo
isso, contudo, emprego ainda era um sonho distante e a
entrega de currículos era diária.
Os garotos e garotas da crew que eu frequentava iniciaram um processo de resgate da minha autoestima no
universo do hip-hop e, cheios de novidades, me procuravam para contá-las e tentavam me levar, novamente,
aos eventos.
Novamente, uma fase que durou pouco.
Passos pela vida
Um zine diferente
Meu primeiro emprego foi conquistado em setembro de
2003. Não havia carteira assinada, mas a promessa de
uma renda própria e o trabalho em um jornal, mesmo que
fosse apenas um zine, era um novo horizonte. Comecei
no dia seguinte e seria vendedora de publicidade. Como
não havia uma sede para o Fãzine, eu deveria tomar uma
condução até o centro da cidade, encontrar o “patrão” e
sair para vender os espaços do jornal.
Descobri-me uma boa vendedora, porque os preços eram
exorbitantes e o impresso pouco conhecido. Muita sola
de sapato foi gasta para fazer algumas poucas vendas,
mas encarei seriamente, acordando super cedo todos
os dias, mesmo indo dormir por volta de 1h da manhã –
horário que a van me deixava em casa.
Por cada venda, eu tinha direito a 10% do valor do anúncio
e, no primeiro mês, devo ter recebido uns R$ 100, o que
na época, para mim, era bastante. Oportunidade. Tentei encarar assim e partir para o segundo mês, quando o
sócio do meu “patrão” abriu espaço para que eu fizesse
uma matéria sobre umas noites black que aconteciam
em um pub da cidade.
Animadíssima com a chance, abstraí a falta de experiência e me encontrei com o dono do bar no próprio
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local, durante uma tarde bem quente do mês de outubro e sem um gravador, sentei nos bancos de madeira
e fui anotando tudo que ele falava. Como sempre gostei de perguntar e saber coisas novas, a minha primeira
“entrevista” durou mais de uma hora e fiz muitas outras
perguntas além das básicas que havia anotado.
Ficamos amigos e ele me deu um convite permanente
para entrar no bar quando eu quisesse. Voltei a curtir
as músicas black por conta dessa entrevista. Levei dias
para escrever uma página de matéria e fiquei extremamente frustrada com as correções feitas pelo “editor”,
mas feliz porque na edição seguinte teria meu nome
assinado.
Como era um zine, a circulação entre roqueiros, rappers
e outros adeptos de vários estilos, era grande. Assim que
chegou aos locais de distribuição gratuita, recebi alguns
telefonemas comentando o meu trabalho na área jornalística. Como uma forma de encontro entre mim mesma, e
o que mais gosto de fazer, com a cultura hip-hop, passei a
fazer minhas primeiras reportagens sobre o tema.
Na edição seguinte surgiu uma nova oportunidade. Uma
matéria exclusiva sobre rap. Pesquisei, batalhei pela
matéria e, novamente, assinei a pequena reportagem.
Estava retornando ao meu mundinho de paz, amor, diversão e união quando o grupo de pessoas que ia comigo na
van para a faculdade, cada um de um curso diferente,
resolveu criar uma banda de forró.
No auge do forró universitário no Brasil, descobri a
chance de adquirir um pouco de ritmo e aprender a dançar, pelo menos o forró, que era bem menos complicado do que o break ou o street dance. Como sempre,
a rivalidade entre as tribos urbanas marcou também
este período e me equilibrar entre universos musicais e
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Traficando conhecimento
ideológicos diferentes, era um desafio. A crew não aceitava me ver comentando sobre os forrós e reggaes novos
que havia conhecido e os forrozeiros se divertiam ao
tirar sarro da minha paixão pelo hip-hop.
Tentava, então, me dividir entre o forró, o hip-hop, o
trabalho e os estudos. Nesta época agitada, mais um
acontecimento me levou de volta a cultura marginal.
Um ponto importante é que, na faculdade, assim como
no colégio, eu era obrigada a conviver com o livre uso de
drogas na porta, dentro, fora, nas esquinas e a recusar
convites a todo o momento. Nunca tive a curiosidade
de saber como era fumar maconha, cheirar pó e, tampouco, pedra. Mas via, num ambiente em que eu jurava
ser acadêmico, muita gente – cujo pai ralava para pagar
a faculdade – queimando o dinheiro investido nas aulas
em drogas para fugir da realidade.
É claro que, no meu bairro, o contato com as drogas arrebanhava quase todos os jovens da minha idade, mas nem
isso me fez desistir da caminhada. Não quis saber. Disse
não e prossegui à minha maneira. Não achei tentador
trocar todos os sonhos por uma pequena viagem, que
segundo o que eu lia, duraria, no máximo, um minuto.
Conheci um rap, originalmente, poços-caldense e mais,
feito na Zona Sul, do ladinho da minha casa.
Surgiu, novamente, uma pequena reportagem no Fãzine.
Passos pela vida
Rap de dentro
Contradizendo sua história de vida, G do Gueto, o MC da
região afirma: “Eu tinha aquela visão, assim, que fazer
rap em Minas não tem jeito, aqui não tem morte. Até
então eu pensava que rap era só falar de morte, tiro,
treta, e aqui não dá. É uma cidade pacífica”, diz.
“Doa a quem doer”, é desta maneira que ele se lançou
na cidade e se tornou conhecido pela faixa 8 do CD. Intitulada “Fatos Reais”, contando a história de um garoto,
que muito novo, trabalhou em lavouras e na sequência
levou um tiro e perdeu a mãe, assassinada pelo padrasto.
Com o álbum gravado dentro de casa, através de programas de computador e uma mesa de som, G fez as
próprias bases, contou com a participação de outros
rappers como Suburbano, Lu Afri e Leopac, que sustenta esse apelido pela semelhança física com o rapper
norte-americano.
Sábado, oito da noite, a rua está totalmente escura e
pouco habitada. Há casas somente de um lado. O outro
é ocupado por extenso matagal que prejudica a visão.
A iluminação é precária e é necessário utilizar os faróis
altos do carro para poder enxergar. É impossível sair do
carro sem atolar o pé na lama da chuva que caiu à tarde.
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A descrição é da casa dele, periferia de Poços de Caldas, Zona Sul da cidade. Há quatro anos ele mora num
sobrado e tem seu quarto num cômodo acoplado. O dormitório tem personalidade própria, mesmo sem qualquer luxo, é aconchegante e acolhedor.
Para fazer a divulgação, ele conseguiu criar uma “bolacha adesiva” com a própria foto estampada. Com o
disco caracterizado, encartaram de forma caseira e
distribuíram entre os amigos da região. Diariamente era
possível ver G no poliesportivo, distribuindo o CD. Imediatamente, o micro-system da crew deixou de tocar as
batidas próprias para dançar break e deu lugar às composições do amigo.
Em pouco tempo, as letras sobre os problemas locais e
com críticas ao cotidiano estavam na boca dos moradores dos bairros da região sul da cidade. A grande sacada
foi quando G conseguiu espaço para vender em um torneio de golf, no Golf Club da cidade, onde ele fazia bico
nos fins de semana como Ked – garoto que recolhe as
bolinhas. “O cara abriu espaço para eu vender lá, levei
os CDs e vendi a dez reais para os golfistas né, porque os
caras têm dinheiro”, conta com entusiasmo. Com essas
vendas, G conseguiu levar o rap até a alta sociedade e
introduzir, quem não conhecia, no universo periférico do
hip-hop. Em mais ou menos três ou quatro meses, G conseguiu vender uma média de quinhentos CDs em Poços,
o que o deixa, até hoje, muito feliz e orgulhoso. Impossível não me sensibilizar com a história e as letras feitas
por ele. O lançamento do álbum marcava um novo tempo
no hip-hop da região sul da cidade.
Os eventos continuavam a acontecer e, agora, além da
dança, que era o forte da região, contavam também
com shows de rap e as letras de G eram a sensação,
seguidos pelo UClanos, que sempre estavam dispostos
a cantar em nossos bailes.
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Traficando conhecimento
Como eu continuava no Fãzine, soltei uma matéria sobre
o lançamento do CD do G, e a repercussão continuava.
Enciumados pela minha “atenção jornalística” ao rap, o
grupo de forró da minha van me pediu uma matéria, e eu
não tinha desculpas. Novamente, uma matéria sobre os
sons do meu cotidiano.
Ganhei uma coluna fixa no zine e fiquei relativamente
conhecida neste meio, no entanto, a grana que rolava
das propagandas ficou cada vez mais escassa e vender
se tornava ainda mais difícil.
Passos pela vida
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Passos pela vida
Jornalismo no zine
Além das pequenas matérias, ganhei um espaço para
publicar alguns artigos. Era bom poder expressar algumas
ideas e saber que existia um público, embora pequeno,
específico para ler minhas primeiras linhas.
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O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos.
Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das palavras não cresce a cada dia – como ocorre com os legumes
no mercado – posto que todas são de graça. Ademais, os
dicionários podem ser guardados na estante da sala, o
que seria impossível fazer com um mercado – não por
sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários,
mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a
estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo
em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e
sim, escrever um texto). Há uma diferença básica entre
os mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem assim que ficam velhos, no
segundo não se encontra um só artigo novo, pois, ser
velho, é condição para estarem ali.
Um dos primeiros que escrevi foi sobre o dicionário.
Apesar das considerações anteriores, é impossível provar logicamente a superioridade de um mercado sobre
um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos
tanto encontrar dicionários em um bom mercado, como
mercado em um bom dicionário.
O poder do dicionário
Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis e voltemos ao tema, o poder de um dicionário.
Tenho a clara consciência de que evoluí muito e, obviamente, devo continuar em processo constante de aprimoramento, mas, na época, era o que eu conseguia.
Poucas pessoas o sabem, muitas o desconhecem, somente
algumas sabem manuseá-lo com eficácia.
Estou falando dele sim. Quem? Você também não o
conhece?
Pois é, ele está bem ali. Poderoso e capaz de salvar muitas vidas, trocando apenas algumas letras.
Livre de qualquer comparação, ele é único, rico, culto,
e faz questão de transmitir isso para quem quer que
esteja interessado.
Sempre interessada em desbravar o jornalismo, ainda
bem cru para mim naquela época, saiu isso:
A pauta de hoje é a ECONOMIA
Ele é o dicionário. Em suas mais variadas formas e
cores, só recorrem a ele os inteligentes, que reconhecem sua ignorância.
Se vamos ao mercado quando precisamos de ingredientes para uma sopa, para nós, jornalistas, quando vamos
escrever um texto, vamos ao dicionário.
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As coisas mudaram de nome, segundo Mário Prata, abajur passou a ser luminária, e não vai demorar muito até
que jornalista seja jornaleiro.
Dá mais lucro e credibilidade.
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Traficando conhecimento
As redações estão se tornando multimídia, e os jornais
todos estão padronizados, presos a uma fórmula chamada lead, em que todos os repórteres respondem as
mesmas perguntinhas básicas, e, nas bancas, encontram-se todos os dias, as mesmas notícias, contadas
do mesmo jeito, sem novidades. O furo jornalístico foi
substituído pela igualação das redações.
A pauta do dia é economia, economia nos jornais. Cortam-se os gastos, as notícias, e os profissionais. Ao
final sobram só as publicidades, às quais todos se renderam para sobreviver. Daqui a pouco o repórter será
desnecessário, o computador fará todo o serviço dele.
As matérias serão apenas formulários a serem preenchidos com palavras claras que responderão com objetividade a apenas cinco questões: quem, onde, quando,
como e por quê?
O diploma será descartado em breve, e com uma experiência de cinco anos vendendo jornal, podermos fazê-lo,
inclusive.
Ou o jornalista passará a vender o jornal, ou morrerá à
míngua, soterrado pelas publicidades e pela economia.
Pela falta de criatividade no mundo jornalístico, saiu este.
Cadê a ideia que estava aqui???
— Cadê a ideia que estava aqui? – alguém berra, lá dentro na redação.
Acontece, todos os dias, toda hora, em todos os lugares.
Roubo?
Chacrinha já dizia que, na TV, nada se cria, tudo se copia.
Eu ousaria afirmar que na vida é assim, tudo é copiado.
As ideias são roubadas em toda parte. No jornalismo,
então, é de praxe. Além do roubo há o plágio de ideias,
matérias, programas, enfim. Uma rivalidade que não
acaba nunca.
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Traficando conhecimento
Passos pela vida
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Andam dizendo por aí que é antiético roubar ideias e plagiar redações. Um exemplo disso é o livro de Luiz Maklouf,
“Cobras Criadas”, que relata casos escabrosos e ditos
como “antiéticos” de nosso país. Só há um defeito no livro,
é que o Maklouf esqueceu de citar ali o caso da “operação
mela PT”, no qual ele esteve envolvido e foi abafado. Neste
episódio, que renderia uma ótima história nas páginas de
“Cobras Criadas”, Maklouf plagiou uma matéria inteira
de um jornal de pequeno porte em Campinas, escrita por
duas jornalistas recém-formadas, na época. As jornalistas abstiveram-se do caso, mas o jornal em que elas trabalhavam moveu uma ação, que deu em nada.
leitor não pode perder tempo, só a informação, prazer da
leitura e do conhecimento.
Portanto, a ética mesmo, só existe na teoria e na relatividade individual, e enquanto isso não for mudado...
Onde?
- Êpa, cadê a minha ideia na linha acima???
E, por fim, algo sobre o vazio da vida, do jornalismo.
(x . y) + z = vazio
Vazio. Sim, vazio jornalístico. É o que encontramos nos
jornais, um total vazio.
A investigação jornalística, o dito jornalismo investigativo, sumiu de vez. Nas redações a única coisa que se
encontra são jornalistas indiferentes que apenas transcrevem releases prontos.
O gosto pela profissão vai se esvaindo ao encarar as fórmulas prontas, que são chamadas de objetivas.
Cujo objetivo é desinformar. O jornal apenas desinforma,
ou traz nas suas páginas assuntos que já conhecemos e
que não merecem destaque algum.
A novidade, o inusitado, ficou por conta dos veículos mais
rápidos, como a TV ou o rádio. O texto aprofundado é literatura, quando muito, revista muito centrada. No jornal
não, as coisas devem ser rápidas, práticas, factuais. O
Daqui a pouco, o jornalista não mais precisará se deslocar
das redações para as ruas em busca de notícias quentes,
de furos. Os jornais já se aliaram. Daqui a pouco, vão apenas comprar de um publicitário bem criativo, um texto
que seja curto e objetivo. Neste texto existirão lacunas a
serem preenchidas, e o repórter terá, então, que passar o
tempo apurando no texto de três parágrafos dos releases
as seguintes informações:
Quem?
Quando?
Como?
O porquê ele não terá de responder, senão toma
muito tempo e não fica pronto para a gráfica antes do
fechamento.
Antigamente, estas cinco perguntas básicas eram
nomeadas de lead, ou “cabeça da matéria”. Hoje é,
simplesmente, coisa de jornalista que não tem cabeça e
que banalizou a profissão.
Passos pela vida
Tempo de mudanças
Como o tempo passava e nada parecia tão estável, a
condição para que eu continuasse escrevendo no zine
era vender propagandas e o dinheiro que gastava com
a condução era maior do que o lucro com as vendas.
Resultado: estava pagando para trabalhar.
Conversei com minha amiga de classe e parceira de profissão, Anita, de quem me tornei amiga logo no primeiro
dia de aula, e, depois de uma série de ponderações, resolvi
desistir do zine e continuar buscando um novo emprego.
Era final de 2003 e aquele ano tinha sido marcado por
descobertas. Continuava na linha entre o hip-hop, o forró
e o reggae. O rap me seduzia pelas letras e vinha acompanhado dos demais elementos que formavam a minha
cultura local. O forró me embalava pela dança, que eu
podia aprender e o reggae pelo sentimento de paz que
surgia nas músicas.
Entre as várias baladas que frequentava, percebi que
cada vez menos pessoas se interessavam pela organização dos Hip-Hop Sul e mais jovens deixavam de frequentar as reuniões diárias, porque, assim como eu, estavam trabalhando ou em busca de um trabalho. Outros
já haviam entrado para a vida do crime e não apareciam
mais nos eventos ou no poliesportivo.
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95
A cena foi mudando e a montagem de grupos grandes
de dança de rua se fortaleceu. O fim da época da crew
aconteceu poucos meses depois, quando o poliesportivo foi fechado para uma reforma da prefeitura. Os
treinos, bem menos frequentes, aconteciam no centro
comunitário ou em um gramado existente na frente do
poliesportivo, mas era possível praticar apenas os saltos e movimentos importados da capoeira.
A falta de um local fixo de encontro me afastou ainda
mais da cultura, que passou, de forma inédita, a conquistar a área central da cidade, quando grupos de
dança usavam uma fonte, em frente a um prédio tombado pelo patrimônio histórico, como local de treinos.
Alguns jovens da antiga crew migraram para lá, unindo o
patrimônio cultural ao edificado da cidade e inovando a
história do hip-hop e das periferias locais.
Passos pela vida
Patrimônio cultural
e histórico
A união entre o local, tombado pelo patrimônio histórico
e cultural da cidade, e a cultura hip-hop, marginal e propriedade do gueto, feita do povo e pelo povo, trouxe uma
nova marca na história local.
São oito horas da noite de sábado. Tanto faz o sábado,
desde que não esteja chovendo. Lá estão deles, misturados, compondo um espetáculo de dança que faz todas
as pessoas que passam por ali pararem. Turistas ficam
maravilhados com a cena observada. A mistura entre
um local histórico e os movimentos da dança nascida
nas ruas, ao som da música composta com as mazelas
do cotidiano, desperta a atenção de quem passa pela
cidade para uma nova visão.
De São Paulo, a artista plástica, Sueli Magalhães Piva,
comenta com o marido que precisou viajar quase 300 quilômetros para reparar na arte urbana em contraste com
os locais históricos. “Eles estão escrevendo a própria
história por meio de uma que já existe e isso é magnífico.
Vai muito além de ser apenas uma dança, uma música ou
um movimento. É parte da identidade escondida de uma
cidade”, afirma enquanto observa e tira fotos.
Resgatando as origens da dança desde o início. Assim
teve início o grupo The Power Dance, para onde quase
96
97
todas as crews de dança dos bairros migraram. Tanto
os garotos como as garotas que praticam a dança nas
escolas, nos centros comunitários e nas ruas – tal como
no início da cultura hip-hop em Nova Iorque – resolveram
integrar o grupo, que trazia na ideologia, e também na
prática, a essência da cultura.
Com ensaios em uma praça de Poços de Caldas, um
ponto turístico, ao lado de uma fonte de água, o grupo
treina passos, se desenvolve e forma, assim, os dançarinos. A cada dia a crew ganha novos adeptos, que chegam
de saias até o local do ensaio. Tempos depois, o grupo
mudaria os ensaios para outro local, também público,
e passaria a competir dentro e fora da cidade, além de
promover anualmente o Poços Fest Dance, sempre com
o foco no hip-hop.
Os exemplos da cultura nos eventos despertam também
o interesse em outros jovens, que criaram uma nova
crew e passaram a treinar no antigo ponto do The Power
Dance, na fonte, conhecida como fonte do leãozinho.
Trazem no nome o que o grupo quer passar a quem os
assiste: Origens. E, por meio da comunicação, da informação e dos textos, tentam descobrir os primórdios da
dança e da cultura de rua. Minha participação se tornou
esporádica e quando tinha algum evento, ou quando,
durante as noites de treino da crew, eu passava pelo
local, parava para apreciar e voltar, mesmo que por
pouco tempo, literalmente, às origens.
Contudo, embora entre todas estas transições, voltei a
escrever algumas coisas. Abaixo um dos textos escritos
nessa época, como a verbalização de uma saudade:
100
Traficando conhecimento
Uma brasileira
Lavando roupa, limpando a casa, dando banho no filho,
esquentando a janta, pensando no trabalho do próximo
dia, aguardando o amanhã...
“Será que algum dia será diferente?”
Na cabeça, algo além do lenço que prende o cabelo
chama atenção. Talvez seja o sonho. A esperança. Ou a
nova rima que está tentando compor para gravar mais
uma música de rap.
Assim é Maria Lúcia, uma brasileira, mais uma, do tipo
mais comum que existe. Morena, bonita e de cabelo
crespo. Pobre.
Foi criada pela avó na periferia de uma cidade do interior de Minas Gerais. Uma criança comum, brincava na
rua e cantava na igreja, onde todos diziam que tinha
uma voz linda.
Ficou mocinha e casou-se por amor. Apaixonou-se por
um homem branco, pobre, humilde e cantor de rap.
Em comum? Eles tinham um sonho. Cantar rap e levar
uma mensagem positiva aos jovens do gueto. “Eles precisam de palavras de incentivo para seguir suas vidas
correndo pelo certo”, diziam.
Mas correr pelo certo nem sempre era fácil. Assim sentia-se o casal, com um filho de três anos para criar.
Acordar às 4h da manhã e, na hora de ir para cama, sentir
que o dia não passou é coisa de gente pobre, do gueto,
que se sente um nada quando chega o final do mês, nada
para comer. Palavras de incentivo alimentavam, dentro
da pequena casa nos fundos de um quintal, cômodos
pequenos, apertados, aconchegantes, como só as casas
da periferia têm.
Passos pela vida
101
Mais dia. Menos dia. A mesma coisa sempre. A falta de
mistura era motivo de briga. O casal que se amava, passava a se insultar. A barriga vazia trazia a desesperança
e a fraqueza, impedia que a caneta se movesse sob forma
de letras e novas composições de rap.
Como milhares de outros casais, esse era só mais um,
que, durante a brava guerra da sobrevivência, tinha que
optar por continuar ou por sonhar.
Tão iguais e tão diferentes, cada um resolveu seguir seu
caminho. De comum eles continuaram compartilhando
somente a cama.
Maria Lúcia quis continuar sonhando e, de tanto sonhar,
se esqueceu de trabalhar, de buscar alguma forma de se
alimentar e deixou o filho para o marido cuidar.
Já o marido, que não sabia como era o preconceito do
racismo, mas sentia o da pobreza, desistiu de sonhar
para poder continuar vivendo.
Ambos morreram. Não que eles tenham sido sepultados
ou algo parecido. É que um já não sonha mais para continuar vivo e outro de tanto sonhar se esqueceu de viver.
E assim eles prosseguem. Mais um casal, com filho para
criar, e uma vida que passa distante do verbo em ação.
Contudo, apenas escrevi. Já não encontrava mais espaço
para divulgar os textos nos eventos, embora o desejo
de gritar para o mundo minhas palavras continuasse
cada dia maior.
Passos pela vida
Monitorando a
infância e o futuro
Sentada no ônibus, lendo um texto de Ferréz na revista
“Caros Amigos”, tento encher a cabeça de novas ideias e
novos conhecimentos e, assim, conseguir um emprego.
O sonho de ter a carteira assinada ainda continua sendo
apenas um sonho.
Para continuar comprando livros, CDs, estudando e
indo a algumas festas nos fins de semana não desisto
da busca. Nas poesias e contos que leio diariamente,
encontro um pouco de alimento para a alma, faminta de
saber e de vida de verdade.
Sou chamada para um freela. Infelizmente, em uma área
bem diferente da que eu estava estudando. Devo ser
monitora infantil num hotel da cidade. A parte boa: estar
em contato com as crianças, coisa que eu adoro, e poder
levá-las ao cinema e, assim, assistir o que há de novo nas
telas da cidade. Conversar com crianças de vários estados também significava conhecer mais sobre as diferentes regiões, o que não deixava de ser aprendizado.
Quando não estava no hotel, fazia outros trabalhos
temporários e, desta vez, era para entregar panfletos
na principal rua da cidade. Por diversas vezes fui questionada por parentes e pessoas da faculdade se eu não
me sentia envergonhada de fazer isso. De jeito nenhum.
102
103
Se eu não tinha um emprego formal, o jeito era me virar
como podia e, para bancar meus pequenos hobbies, o
esquema era esse.
Das culturas musicais e urbanas eu estava distante. Até
mesmo do forró da banda da minha van. Com quase 19
anos, queria mesmo era um emprego fixo. Ainda não era
hora e fui chamada para trabalhar em um buffet infantil,
também como monitora. Não tinha carteira assinada,
mas era fixo. Quando tinha festas, eu era chamada.
Ganhava ao final de cada mês. A quantia era inferior a um
salário mínimo, mas a diversão no trabalho era garantida.
A curiosidade é que, na entrevista – e até para esta vaga
havia disputa —, uma das perguntas foi decisiva para eu
garantir o emprego. “Cite seus três livros favoritos”. Tive
de pensar bastante, porque foram tantos. Citei “Feliz Ano
Velho”, “Quarto de Despejo” e “Chatô – O Rei do Brasil”,
inspirada pela faculdade. Não pude deixar de citar que
diariamente eu lia revistas, outros livros e muita literatura que começava a ser produzida na periferia. Já havia
sido apresentada à Ferréz muitos anos atrás e não perdia
a paixão, tampouco deixava de frequentar o blog dele.
Mais tarde, fui informada de que, por conta disso, garanti
o emprego que durou oito meses. Com a redução da procura por festas, os freelas ficaram mais espaçados e já
não compensava mais ficar à disposição por tanto tempo
sem saber se iria ou não trabalhar no dia seguinte. Saí
fora e caí dentro de outras tentativas de sustento.
Passos pela vida
105
Do desemprego
ao mais perfeito
possível
Chamou-me novamente para trabalhar com ele. Não
podia pagar nada. Nem tinha o esquema das propagandas, mas existia a chance de mexer diretamente com
jornalismo cultural, algo que eu gostava demais.
Entre reuniões, com muita comida, refrigerantes e bingos, topei vender tuppeware – aqueles potes que na
década de 1980 faziam sucesso entre as donas de casa,
mas que em 2005 eram impossíveis de comercializar.
Competir com os plásticos úteis vendidos nas lojas de
R$ 1,99 parecia injusto e elitista, principalmente em um
bairro onde a maior ocupação das moradoras era como
auxiliares de limpeza ou domésticas.
Foi durante esse período, de efervescência cultural
por todos os lados, que comecei a ler Clarice Lispector,
Paulo Leminski e Charles Bukowski. Mesmo na busca por
um emprego e diante de todas as dificuldades, a leitura
e a poesia continuaram fazendo parte do meu dia a dia.
Sem ter sucesso com os potes mais caros do Brasil,
fui chamada por uma vizinha para vender filtros d’água
supermodernos, uma empresa japonesa se instalava no
Brasil e precisava de vendedores. Como sempre, os trabalhadores entravam com o dinheiro da condução, dos
telefonemas, do lanche, a cara e a coragem para tentar
vender algo fora da realidade do mercado. Tanto pelo
preço, quanto pela cultura dos consumidores.
Sem dinheiro e já desanimada, prestes a terminar meu
curso de inglês – pago pela minha irmã que estava em
uma situação boa, na época – e seguindo com a faculdade, já não sabia mais o que fazer, quando o cara que
trabalhava como meu “chefe” no Fãzine abandonou o
zine e resolveu montar uma toalha de mesa cultural.
Como aquelas do MC Donald´s, mas com dicas e agenda
cultural da cidade.
104
Jogo rápido. Aceitei. Esse era, também, o nome da mídia
distribuída em vários estabelecimentos da cidade, para
onde fiz várias matérias sobre exposições, mostras de
arte, lançamentos de livros e dicas culturais. Eram textos pequenos, mas que me permitiam a flexibilidade que
precisaria, mais adiante, ao mexer com jornalismo.
Estimulada por estas culturas, por frases sábias, pela
descoberta de novos horizontes, descobri em mim mesma
a capacidade de produzir um texto mais livre, mais solto,
mais com a minha cara, dentro daquilo que eu acreditava. Passei por assuntos variados e me apaixonei ainda
mais pelo jornalismo cultural e foi nessa fase, graças
à minha paixão por livros, que conquistei meu primeiro
emprego com carteira assinada.
Passos pela vida
Entre livros
107
momentos mais interessantes eram as chegadas dos
livros. Abrir a caixa dos lançamentos era como abrir um
presente.
Atender os clientes também estava entre o que eu mais
gostava de fazer. Sugerir leituras, presentes e trocar
informações sobre o universo literário se tornaram um
hobby e não apenas um trabalho com carteira assinada.
Imersa nas letras do livro que estava relendo — “Feliz
Ano Velho” —, no ônibus, tentava pensar no que dizer
ou justificar meu interesse em trabalhar em uma livraria. Encontrei a resposta na própria cena. Reconhecime como uma leitora compulsiva e, naquele inverno de
2005, de férias da faculdade, fui admitida na Livraria
Alfarrábios, de propriedade de uma amiga que sempre
ia comigo aos shows de MPB que aconteciam na cidade.
Juntas, tínhamos certeza que trabalhar seria diversão e
não obrigação. Eu poderia começar no outro dia. Deveria abrir, limpar e organizar a livraria. Quando não estivesse atendendo os clientes poderia ler alguns livros. Se
fossem livros repetidos poderia levar para casa e ler no
ônibus e antes de dormir. Logo na primeira semana li um
livro por dia e estava amando estar ali.
Em estilo europeu, com apenas uma portinha e um
espaço aconchegante, a livraria atraía diferentes pessoas e muitos turistas que se hospedavam em um hotel
bem próximo.
Demorei três anos para conseguir este emprego, mas,
como disse um amigo da época, “se eu tivesse que imaginar um emprego perfeito para você seria exatamente
esse”. Perfeito e que me deixava imensamente feliz. Os
106
Logo na primeira semana, satisfiz minha curiosidade
sobre o nome da livraria — “Alfarrábios” — através dos
livros mesmo. O nome veio inspirado no filósofo Al-Farabi,
que viveu em Bagdá no século IX e vivia absorvido no
estudo, além de trabalhar com os livros.
O convite desse trabalho não poderia ter vindo em
melhor hora e o contato com a literatura, de forma tão
íntima, fez surgir na minha mente prateleiras de ideias
em volumes, feito a organização dos livros na loja.
Empolgada com os inúmeros livros que poderia ler e com
as amizades que poderia fazer no trabalho, fui pega de
surpresa, em um sábado de manhã, antes mesmo de ir
trabalhar, com um telefonema me avisando que a Adeine
— patroa — tinha sofrido um acidente de carro e estava
hospitalizada. Mesmo assim fui para a livraria, afinal, ela
não poderia ficar fechada no dia de maior movimento.
Receosa por ser a primeira vez que eu iria fazer tudo
sozinha no local, fui acudida pelo irmã da minha patroa,
que, logo cedo, me levou troco para o caixa e ficou me
fazendo companhia, ansiosa para receber notícias sobre
o estado da irmã.
Por volta de meio-dia, quando a loja estava cheia, ficamos sabendo que o estado era grave. Ela havia quebrado três vértebras e deveria passar por uma cirurgia
na manhã do dia seguinte. Até lá, não deveria se mexer
para não agravar o quadro.
108
Traficando conhecimento
Passos pela vida
109
Desde esse dia, passei a tocar a livraria “sozinha”, apenas com a ajuda do sobrinho da minha patroa, que fazia
serviço de office boy e me ajudava em várias coisas, além
de fazer companhia.
Uma semana depois, chegou a notícia de que o quadro de
saúde dela era bem mais grave do que parecia e que ela
deveria passar por outras cirurgias para operar as vértebras, e ficar afastada por tempo indeterminado. Foi,
também, neste período, que o pai dela passou a ficar
mais tempo na loja, e, mesmo doente, me ajudava e trabalhávamos em um ambiente muito bom, sem falar que
era a chance que tinha de aprender muito.
Oportunidade. Assim eu encarava o meu emprego e, por
incrível que pareça, o hip-hop voltou à minha vida. Muito
por meio dos livros, de literatura marginal, que não paravam de chegar contando histórias de várias periferias de
toda parte do país.
A loja ao lado da livraria, que trabalhava com pijamas,
contratou uma das garotas que faziam parte da crew da
zona sul, assim que eu conheci o hip-hop. Passávamos o
tempo vago na porta da loja lembrando daquele tempo e
conversando sobre a cultura. Como eu comprava livros
com descontos, passei a oferecer a ela grande parte da
literatura que eu li na época, como: “Cabeça de Porco”,
“Literatura Marginal”, “Capão Pecado”, “Memórias de
um sobrevivente”, “O povo Brasileiro”, “O Invasor”,
entre tantos outros.
Com muita ânsia de conhecimento, nos primeiros seis
meses de trabalho li quase 60 livros. A preferência era
pelos que traziam alguma alusão à periferia ou à literatura marginal, embora eu lesse de tudo e sobre tudo, o
que facilitava na hora de fazer uma sugestão ou venda.
Voltei a escrever e, quando cansava os olhos da leitura,
110
Traficando conhecimento
escrevia alguns textos no computador da livraria. O meu
remorso foi não ter salvo em algum outro lugar e ter perdido todos em uma pane do computador.
Lembro que eram textos sobre o cotidiano, sempre mesclando o jornalismo e a literatura marginal, tentando
dar estilo à minha maneira de escrever. Como eu estava
quase terminando meu curso de inglês e, para chegar
até o fim da faculdade com ele concluído, mudei de horário passando a frequentar as aulas na hora do almoço.
Passos pela vida
111
tração total, sempre recheados com muitas músicas,
que eram de vários estilos.
Foi, durante a faculdade, que aprendemos a confeccionar o jornal laboratório – Entrelinhas – e minha primeira matéria foi sobre grupos musicais independentes.
Claro que, no meio, apareceu os grupos de rap da minha
região. Época em que o UClanos se fortalecia e programava a gravação de novas músicas.
Acho que foi a época mais tumultuada, em questão
de tempo, que já vivi. Acordava às 7h, tomava banho,
pegava o ônibus — torcendo para achar um banco vazio
e me sentar para ler durante todo o trajeto, ou mesmo,
anotar as ideias, que não paravam de surgir — e chegava
na livraria pouco antes das 9h.
A volta para Poços de Caldas acontecia às 23h, quando
saíamos de São João. A van me deixava na porta de casa
por volta de 00h50. Neste horário tomava outro banho e,
por muitas vezes, fiquei estudando ou fazendo trabalhos
da faculdade. Dormir era considerado um período muito
raro, contudo, o desejo de aprender, de viver, de me entregar à época e ao que eu poderia fazer eram mais fortes.
Fazia a limpeza matinal diária, cuidava da parte dos
livros vendidos, comprados e, pouco antes do almoço,
me sentava para ler um pouco, alternando entre um
cliente e outro. Devagar, algumas amizades foram surgindo e sempre algumas pessoas passavam pela manhã
na loja me deixando cafés, pães de queijo e algumas
palavras de bom dia.
Sem tempo para organizar os eventos, buscava, em
alguns domingos, eventos espalhados em partes diferentes da cidade e ia curtir um pouco do hip-hop, afinal, minha paixão tinha voltado com tudo e não poderia
mais abrir mão de me encontrar com a minha verdadeira
essência: a periferia e a cultura produzida dentro dela,
do povo para o povo.
Na hora do almoço, voltava para casa, almoçava e já saía
correndo novamente para a livraria. Às terças e quintas
meu pai levava uma marmita e me levava até a escola de
inglês, comia rapidamente, assistia a aula e voltava para
a livraria. O horário de saída era às 18h20 e eu ia direto
pegar a van que me levaria até São João da Boa Vista.
Muitas vezes lamentei ter de ir para a faculdade sem
banho. Comer antes de viajar já não era um problema
e tudo que gostaria era de poder tomar um banho e
mudar a roupa. Os momentos na van eram de descon-
Passos pela vida
Despejo no quarto
Um livro pequeno e com um título que, a primeira vista,
não me chamava a atenção. Mas bastou uma folheada
para eu ter vontade de não vender a encomenda de uma
cliente. “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus,
o primeiro livro no Brasil escrito por uma favelada me
abriu, um tanto mais, a mente e a vontade de produzir
algo sobre e para a periferia.
Ressaltando a fome, a miséria que oprime e o que é
viver numa favela, a guerreira Carolina brindou o mundo
todo com o livro — traduzido para mais de 13 idiomas
— recheado com histórias reais de quem cozinhava
ossos para fazer sopa aos filhos e quase não dormia
para poder sobreviver e, mesmo assim, mantinha um
sonho: transformar as letras que anotava em um livro
que denunciaria todo o sistema.
Lançado pela primeira vez em 1960 o livro fez sucesso
na minha vida quarenta e cinco anos depois, quando
constatei que os problemas continuaram os mesmos ao
longo de todo o período.
Lendo o que ela escreveu, lembrei de todas as histórias contadas por meus pais, que foram tão pobres
quanto, embora nunca tenham vivido na favela, passaram fome e foram obrigados a se alimentar com restos deixados no lixo.
112
113
“Eu me alimentava com comida azeda”, é o que conta
minha mãe, todas as vezes que vê alguém torcendo o
nariz para um prato de comida. “Eu catava balas pisadas
e sujas ao lado de uma fábrica perto de casa”, diz meu
pai com frequência.
Até então, nunca tinha dado tanto valor as palavras
deles. Foi quando vi o desafio de uma mulher que transformou a fome em inspiração para escrever e levou ao
mundo um pouco da própria história. Fez do pão duro a
poesia do dia a dia.
Se ela, que não tinha o que comer, conseguiu transformar — de alguma forma — a própria realidade, embora
alguns parentes e amigos meus ainda vivessem com
fome, eu também tinha o direito e, sobretudo, o dever
de fazer o conhecimento chegar até quem nunca tinha
sabido de sua existência, de alguma maneira.
Passei a pensar em infinitos projetos que poderia desenvolver relacionados aos livros, como criar minibibliotecas, promover saraus, doar livros, imprimir textos e distribuir para as pessoas.
Infelizmente, no ano que se seguiu, quase nada foi possível, exceto uma pequena arrecadação de livros usados
que promovi na própria livraria. Entre os clientes que
se tornaram amigos. Fui pedindo alguns exemplares,
ganhei outros do meu patrão e ainda tive de guardá-los
durante um bom tempo antes de poder pôr em prática
tudo que eu tinha vontade de fazer.
Concepção
CON
CEP ÇÃO
Cap.03
Concepção
Concepção
117
Quando recebi meus textos me reconheci na mesma hora.
Feliz por já ter lido a maioria deles há vários anos, quando
conheci a revista “Caros Amigos” e, na sequência, os textos da literatura marginal, além de acompanhar também
a nova cena editorial, com livros originais, de autores
naturais do gueto, com textos singulares sobre o tema.
Em discussão, foi a primeira vez que tive a oportunidade
de falar abertamente – e com quem tem entendimento –
em sala de aula sobre minha paixão pelo hip-hop, os eventos organizados anteriormente e a paixão pela literatura.
Com os olhos apertados e enxugando as lágrimas, a professora Rosa Helena Carvalho Serrano, responsável pela
disciplina de Antropologia para o curso de Jornalismo,
se desculpa pelo choro em plena banca examinadora de
um trabalho de conclusão de curso.
A emoção é justificada pela surpresa de sequer imaginar
que, algum dia, um tema tratado naturalmente em sala
de aula poderia se tornar um livro-reportagem ou, ainda,
um trabalho junto à periferia e um caldeirão de efervescência cultural dentro e fora do curso.
E a pergunta dela na banca examinadora foi: “Após o trabalho, o que ficou e mudou na vida de vocês?”.
Para chegar nesta cena, vale voltar no tempo a um
ano antes. Na sala de aula, durante uma abordagem
comum, esta mesma professora entregou aos 32 alunos um chumaço de folhas contendo inúmeros textos
do escritor Ferréz.
A sugestão do assunto em sala de aula surgiu de um
outro aluno que trabalhava com jovens de periferias e foi
apresentado aos textos produzidos pelo escritor, morador do Capão Redondo.
116
Um momento singular. Assim pode ser definido o tempo
da aula em que os textos de Ferréz foram lidos em voz
alta por alguns alunos e debatidos de forma acadêmica.
A periferia foi explorada e questionada por quem ainda
a desconhecia. Tomei a palavra por várias vezes e contei parte das minhas experiências com o hip-hop, com a
literatura e com o local onde vivo. Novamente, a cultura
entrava na minha vida de forma sutil. Eu mal sabia que
desta maneira, seria “para sempre”.
Os textos fariam parte da prova no fim do ano e, em uma
manhã, que parecia como qualquer outra, eu fui para o
trabalho estudando dentro do ônibus. Peguei-me quase
perdendo o ponto em que teria de descer com lágrimas
nos olhos ao ler um texto do escritor paulistano.
Ele falava sobre hip-hop de uma forma tão natural que eu
senti muita falta do universo que fez parte da minha vida
no início desta década. Chorei por saudade, por vontade
de fazer parte novamente, movida por um desejo enorme
de voltar a realizar eventos e beneficiar creches e instituições da região. Naquela noite eu decidi. Meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) seria sobre hip-hop e
eu voltaria a integrar a cultura, independente do que eu
precisasse fazer.
118
Traficando conhecimento
Concepção
119
120
Traficando conhecimento
Fui embora feliz, mas nem por isso consegui me afastar do meu cotidiano. A faculdade, de certa forma, “distante” dos problemas periféricos, me deixava algumas
poucas horas por dia longe da minha quebrada, mas,
todos os dias ao voltar para casa eu era obrigada a despertar do mundo “universitário”, ao qual apenas 1% da
população brasileira tem acesso, e enfiar o pé no barro
quase todas as noites, ao descer da van, passar pelos
moradores de rua que sempre buscam abrigo na marquise de um comércio na porta da minha casa e ouvir os
barulhos de tiro se confundirem com as letras dos livros
que eu lia antes de pegar no sono para repor as energias
e enfrentar mais um dia lotado de afazeres e sonhos.
Para completar, mesmo cursando o nível “superior” de
ensino, não deixava de pegar o ônibus cheio e enfrentar
o massacre diário que todos os trabalhadores são obrigados a tolerar no transporte público e foi justamente no
“aperto do busão” que dias depois da aula com os textos
da literatura marginal me bateu o estalo: “Vou fazer um
livro-reportagem sobre o hip-hop.”
Com as lembranças da melhor fase da minha adolescência, de quando eu conheci a crew de break e todo o universo mágico do hip-hop é que eu cheguei a pensar no
que poderia fazer como projeto experimental. Naquela
manhã, dentro do ônibus, enquanto pensava na prova
que faria à noite, em que os textos de Ferréz seriam
objetos de interpretação antropológica, senti que minha
vida estava ali e que não poderia ser diferente.
Após a prova, comuniquei à Anita, pessoa fundamental
durante meus quatro anos de faculdade, de altos e baixos, brigas, momentos de paz e muita troca de conhecimento. A melhor amiga que tive na vida. A pessoa com
quem melhor trabalhei até hoje. “Vou fazer um livroreportagem sobre hip-hop, decidi. Você vem comigo
Concepção
121
nessa?” e foi exatamente assim que eu falei e vi os olhos
dela brilhando. “Sim. Hip-hop rola demais como TCC, fala
de pessoas, é super social e jornalismo puro no relato
do cotidiano.” Essa foi a resposta dada por ela. Poucas
palavras que soaram como alívio após meses de discussão sobre qual tema poderíamos fazer para o TCC – trabalho que assombra todos os alunos de jornalismo e que
decidimos, desde o segundo ano, que faríamos juntas e,
caso isso não desse certo, faríamos sozinhas.
Convicta. Assim eu estava. Certa de que abordar o
hip-hop no meio acadêmico de uma cidade do interior
era novidade e falar dele na região seria inédito. Abracei a causa e sozinha, ou com a Anita, eu decidi pelo
livro-reportagem que traria elementos como DJ, MC,
Break, Grafite e Conhecimento.
Concepção
Caldeirão de ideias
Outubro de 2005: o final do terceiro ano de faculdade
e a mente fervilhando de ideias. Saímos em disparada
no preparo inicial do livro-reportagem. Ainda com a
mesma ânsia por conhecimento que sempre me acompanhou, durante toda a vida, fiz uma lista com a bibliografia que poderia ser útil para a execução do trabalho
e saí à captura de toda e qualquer informação técnica a
respeito da cultura.
Decidi: faria do livro a melhor reportagem da minha vida.
Troquei as comédias românticas e muitos livros técnicos
pela literatura brasileira e por toda aquela, que poderia
ser utilizada como forma de conhecimento no processo
de entendimento da cultura brasileira.
Por trabalhar em uma livraria, aproveitei para encomendar vários livros e, assim, poder comprá-los com desconto – já descontados em folha. Por meio das leituras,
passei a me identificar ainda mais com as manifestações culturais e sociais vinda da periferia e, diferente de
quando eu tinha 15 e 16 anos, compreendi melhor como
tudo isso funcionava no país, em todos os termos.
Em pouco mais de um mês, senti despertar o desejo de
reportar o hip-hop nacional e local em um livro, com todas
122
123
as faces, passando pelas dificuldades enfrentadas pelos
militantes da periferia, com o descaso existente em qualquer gueto, com a ligação entre pobreza e cultura marginalizada e com o prazer que cantar as próprias mazelas
produz em quem compõe as letras de rap e faz com que
muitos dancem ao som deste ritmo diferente.
Ao mesmo tempo, senti minha perspectiva mudar e, diariamente, me sentava com a Anita para falar sobre isso,
comentar sobre o tema, discutir que rumos poderíamos
dar ao trabalho e de que forma, na prática, aplicaríamos
o universo que estávamos descobrindo.
Após o término das provas e aprovadas para o 4° ano da
faculdade, ficamos os meses de dezembro e janeiro distantes – ela morava em Mogi Mirim, estado de São Paulo
e, assim como eu, viajava diariamente para estudar – mas
prometemos estudar e pesquisar ainda mais para o TCC.
Concepção
O despertar
Nem tudo foi fácil nesta trajetória. Descobri, diariamente,
como é difícil crescer na vida. Como é complicado fazer
uma faculdade quando saímos de um local pobre. Como
é duro ter de contar cada centavo para poder tirar uma
cópia, comer um lanche na hora do intervalo e ainda assimilar isso tudo e se sentir no céu por fazer parte de uma
sociedade “elitizada” que nem mesmo a minoria de onde
eu vim tem acesso.
Ser jornalista num país como o Brasil é uma guerra diária.
Ser estudante de jornalismo, assalariado, ainda mais. Vir
de uma periferia e sentir a juventude vibrar no peito pela
vontade de mudança sem nada a fazer é duro.
Eu precisava fazer algo na prática. Ainda não sabia como
poderia aproveitar os livros que arrecadei na livraria, mas
tinha uma certeza: queria fazer com que tantas histórias
chegassem até o meu povo. Ao menos, até aqueles que
soubessem ler. E foi neste ponto também que um desespero imenso tomou conta de mim: o analfabetismo.
Sei que, para os que estão do lado de fora, muito se julga
sobre o hip-hop e a literatura da periferia quanto à falta
de normas cultas, de pontuação, de palavras escritas da
forma correta. Entretanto, se esquecem de que milhares de seres humanos não sabem ler. O analfabetismo
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também mata. Mata de desgosto e tristeza aqueles que
querem compreender o que assinam, que querem ver um
filme, mas não compreendem as legendas, que passam
pela banca de jornal e não entendem como o homem
pode gastar dinheiro em algo que é de papel e que se
acaba rapidamente, sendo bom apenas por um motivo:
aquece as noites de frio.
Eu não poderia alfabetizar a todos e me sentia extremamente mal porque nem todos poderiam ler o livro que eu
escreveria. Se eu falaria com o povo, como eles entenderiam? Mas jornalismo não é apenas palavra escrita e
eu encontraria uma forma de transmitir isso de alguma
outra maneira, qualquer que fosse.
De desgosto agi da única forma que consegui naquele
momento e com a única arma que tinha: o hip-hop para
reportar.
Com o relógio marcando 20h e o horário de verão ainda
deixando uma claridade, mesmo quando já é noite, saio
da livraria e vou até o ponto do ônibus. Já estava trabalhando até mais tarde por ser mês de dezembro, por
conta das vendas de Natal. Observo um grupo formado
numa roda no ponto do ônibus e paro para observar. Surpreendo-me ao ver que é uma crew de break se apresentando, como parte das comemorações natalinas, patrocinadas pela prefeitura.
Interpreto como um sinal positivo para o bom andamento
do projeto e me convenço, cada dia mais, de que o hiphop realmente é meu caminho. Foi neste tempo que me
lancei novamente nas reuniões das crews e nos shows
de rap em busca de personagens e representantes da
cultura na cidade e também no sul do Estado.
Tirei do arquivo as antigas Rap Brasil e listei quem eu
poderia entrevistar, que teria algo interessante para
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Traficando conhecimento
acrescentar ao livro. Mais do que isso, com um novo
olhar — talvez o de uma jornalista em processo de formação —, passei a notar mais do que um simples grupo
reunido para curtir uma música, uma dança ou uma arte.
Percebi que cada uma daquelas pessoas trazia histórias
únicas e que se fundiam em um ponto comum, que era
a marginalização dos que vivem nas periferias e guetos.
O desejo de conhecer a fundo o movimento foi ao encontro da vontade de fazer algo para, na prática, promover
mudanças nos guetos onde estava acostumada a frequentar. Na semana seguinte, um novo evento de dança
marcou meu calendário e o contato com novos grupos
– que surgiram durante o tempo em que estive distante
– foi sendo firmado.
A volta às aulas foi marcada pela divisão dos grupos e
a definição oficial dos temas. Ao explanarmos o nosso
objeto de pesquisa e o tema que seria praticado no livroreportagem, fomos tolhidas pelo coordenador do curso,
que achou ser algo que não dizia respeito à proposta
acadêmica da universidade.
Como não? O tema era livre, desde que rendesse uma
boa reportagem e, muito antes do ano letivo começar, já
estávamos empenhadas nas pesquisas. Outro ponto: se
o assunto já havia sido debatido em sala de aula, como
poderia fugir da proposta acadêmica?
Como sempre, fomos teimosas e persistentes, batemos
o pé e não recuamos. O nosso tema seria o livro-reportagem sobre hip-hop, seria o TCC e pronto.
Uma nova briga começou com a escolha do professor
orientador. O designado pelo orientador do curso não
gostou. Tentou, mais uma vez, nos fazer mudar de ideia
e trocar de tema. Sem sucesso. Tentou junto ao coordenador que outro orientador assumisse o trabalho.
Concepção
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Não conseguiu. O único jeito era trabalhar no assunto e
definir a linha de pesquisa. Resolvemos que Anita faria
a parte do relatório técnico, que é semelhante a uma
monografia, com a coleta de dados e referências teóricas e eu ficaria responsável pela parte das entrevistas e
escrita do texto que entraria no livro.
Já cansada das baladas universitárias, do forró e de
outros estilos, me envolvi novamente com as leituras e
procurei saber mais sobre cultura popular. Nesse embalo,
passei a fichar tudo que encontrava referente ao tema, ou
mesmo, à cultura popular e, por mais que já estivesse,
desde a adolescência, inserida no contexto da cultura,
descobri novos aspectos e vertentes que me fizeram
mudar um pouco o pensamento e despertar a vontade de
mudar a realidade em que vivia.
Concepção
Traficando
informação
Beats dos anos 1970 e 1980 foram escolhidos a dedo
para serem a vinheta de abertura do programa de rádio
que teríamos de montar para a disciplina de radiojornalismo. Como sempre, fiz dupla com a Anita e já dá para
ter certeza de qual foi o tema escolhido para o programa.
É claro que falaríamos de hip-hop. Não poderia ser algo
muito longo. Um pequeno documentário para o rádio,
com entrevistas, músicas e vinhetas. O programa, Traficando Informação, levou a toda a universidade um
pouco de informação sobre o que é o hip-hop. Pela primeira vez, sentimos o impacto disso. Primeiro diante do
técnico de som do laboratório de rádio, na sequência
pelos alunos da nossa turma e depois, por todos que
ouviram o documentário.
Algumas entrevistas já estavam sendo feitas e foram aproveitadas para abrir o programa, além de levar para dentro
da universidade elementos e manifestações da rua. A vantagem do programa de rádio era falar a todos, sem exceção.
O nome surgiu da música do rapper MV Bill, que também foi escolhida como vinheta de algumas partes do
documentário. A alusão era ao tráfico de informações da
rua para dentro da universidade, sempre combatendo o
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preconceito, que era grande, por parte de professores e
muitos alunos.
A intenção foi mudar a visão destas pessoas através de
um retrato da realidade. Entre as entrevistas do programa estavam um b.boy que fazia parte da crew que
eu conheci no poliesportivo perto de casa e que se dispôs a usar o horário de almoço para me dar a entrevista na livraria onde eu trabalhava. Outro caso era de
uma espectadora do movimento e também universitária, estudante de jornalismo, que, depois de fazer uma
matéria sobre um festival, se apaixonou pelo tema.
Na sequência, uma visão antropológica da professora
Rosa Helena para amarrar o documentário. De forma
simples, ela contextualizou o que queríamos dizer sobre
a expansão do movimento no Brasil. “A desigualdade
social é tão danada. É tão intensa, que não temos como
ver movimentos como este diminuindo. Temos mais
de 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da
pobreza, é natural que este tipo de movimento cresça.”
Esse era o início da mudança de realidade que levava
histórias reais e marginais para pessoas que sempre
taparam o ouvido para isso. Em breve seriam as palavras
documentadas em livro.
Concepção
Preparando o
terreno
Em uma noite fria, típica em Poços de Caldas, em um final
de domingo, decidi ir até a casa de um dos b.boys que
tinha conhecido há mais de seis anos, numa tarde qualquer, e que mudou tanto a minha concepção de mundo.
Sentados na calçada em frente à casa dele ainda não
terminada, Valdair me contou que havia se afastado um
pouco do hip-hop por ter que trabalhar para ajudar no sustento da casa, onde ele vivia com a avó que o criou e a tia,
a quem ele chamava de irmã, junto com dois sobrinhos.
Contou-me ainda como começou no hip-hop e os sonhos
que tinha, de montar oficinas e competições para ensinar os garotos tomados pelo ócio do local. Aquela conversa se transformou em uma matéria para a disciplina
de Técnicas de Reportagem II na faculdade. Mais tarde
entrou para o livro.
Esta foi a primeira entrevista que surgiu, de forma
espontânea, como um bate-papo e definiu a linguagem
usada em todo livro — o new jornalism ou, como também
é chamado, jornalismo literário — com a descrição de
cenas, pensamentos e personagens que, como Valdair,
foram explorados e explanados em meio ao colorido de
muitas histórias e o preto e branco de outras tantas. A
trajetória dele me inspirou e foi se somando as que eu
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ouvia diariamente, tanto durante as pesquisas como no
ônibus, na livraria e na faculdade.
As dificuldades do povo que vive nos guetos, nas quebradas, se revelaram dentro do hip-hop, contida nas
letras dos raps, na forma de dançar dos b.boys e b.girls,
na forma de se vestirem e nas linhas de vários escritores brasileiros.
Li Ferréz novamente. Li Marçal Aquino. Li Plínio Marcos. Li Luiz Eduardo Soares, Darcy Ribeiro, João Ubaldo
Ribeiro e até mesmo Gay Talese.
Minha vontade de mudar meu espaço e minha quebrada
ficava a cada dia maior, entretanto, eu sabia que trabalhando, fazendo faculdade, inglês, pesquisando e escrevendo o livro ficaria difícil elaborar algo ainda aquele ano.
Contudo, a cada entrevista que fazia – como uma que
rolou com um b.boy e rapper dentro da livraria –, quando
eu precisava de depoimento para um programa de rádio
da faculdade, me sentia mais inserida no movimento e
com mais vontade de permanecer e fazer acontecer.
O prazer em gravar as entrevistas era algo que alimentava
minha alma e me dava uma certeza: eu seria jornalista,
sim! Decupar as fitas e montar o texto também me faziam
pensar muito e me deixavam inspirada a conhecer, ainda
mais, sobre esta cultura popular tão fascinante.
Sem perceber, havia voltado a fazer parte da cultura e
frequentar os eventos por toda parte. Onde havia qualquer vestígio de hip-hop, eu estava lá. Cacei todos os contatos e visitei todos os colegas da época do poliesportivo.
Shows de rap, apresentações de break, eventos beneficentes e qualquer música nova composta eu fazia tudo
que podia para estar presente. Descobri que, durante o
tempo em que fiquei afastada, muita gente nova surgiu e
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Traficando conhecimento
estava fazendo a diferença. Descobri outro estilo de rap.
Voltei a aprender e fazer parte.
Ansiosa e um pouco receosa, entrei no teatro municipal da cidade, que estava lotado de gente vinda de toda
circunscrição. Pessoas ocupavam os assentos, o chão
e se apoiavam na parede em volta. Todos muito estilosos, aguardando o início das apresentações. Cacei um
lugarzinho bem na frente e me sentei. Do meu lado, um
garoto de São Paulo puxou conversa e me contou um
pouco sobre o grupo do qual ele fazia parte. Com um
nome diferente – Silêncio Crewativo – ele me contou
como funcionava. Por coincidência foi o primeiro grupo a
se apresentar e, embora não tenham sido os campeões,
apresentaram uma coreografia com uma proposta bastante diferenciada.
Grupos de cidades como Caconde (SP), Campestre (MG),
Vargem Grande do Sul (SP) e Cabo Verde (MG) também
se apresentaram, além dos tradicionais de Poços de Caldas. Ao término das apresentações procurei fazer mais
contatos e algumas primeiras entrevistas.
Por incrível que pareça, tive a sensação incrível de me
sentir muito bem enquanto estava cercada pelas manifestações culturais da periferia. Como se uma espécie
de paz diferente me invadisse e me fizesse sonhar com
coisas melhores, me injetasse ânimo para lutar e me
fizesse ver que coisas boas ainda eram possíveis e que
pessoas boas ainda existiam.
Tive vontade de, novamente, entregar alguns textos
a conhecidos e pedir que eles lessem antes do evento
ou durante os intervalos, mas, como estava voltando
naquele momento, não poderia ir com tanta sede ao
pote. Talvez depois do livro pronto.
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E, quando eu menos esperava, o primeiro semestre terminou, o livro continuava sendo feito e a tão esperada viagem a São Paulo – berço do hip-hop no Brasil – aconteceu.
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Traficando conhecimento
Concepção
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Concepção
Hip-hopeando
Debaixo de uma forte chuva, que caía fora de época – em
julho – embarcamos para São Paulo onde passaríamos
uma semana para apurar um pouco mais sobre a chegada do hip-hop ao Brasil e as diferenças dos grupos da
maior cidade do país para os grupos do sul de Minas.
Mesmo sem conhecer a metrópole e deslumbradas com
a vida que, em São Paulo, não para nos lançamos em
uma aventura pelo Largo São Bento, galeria 24 de maio
e outros locais famosos por terem sido “oficialmente” o
berço da cultura.
Entre a Casa do Hip-Hop em Diadema, alguns rolés por
quebradas como Jaraguá na Zona Oeste, uma favela no
Morumbi e os ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), que retornaram justamente naquela semana,
entrevistamos muitas pessoas, anônimas ou renomadas, dentro da cultura e aprendemos tudo que poderíamos naquele curto espaço de tempo.
Personagens como um vendedor de loja na galeria 24 de
maio que trocou as drogas pelo hip-hop e passou a compor e cantar rap gospel nos fez avaliar um tanto do propósito cultural e muito do propósito da vida.
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Em razão do tempo em que passei afastada, muita coisa
nova havia sido lançada e todo dinheiro que economizei
durante meses não foi suficiente para que eu comprasse
todos CDs e DVDs novos que iriam me ajudar no trabalho,
além de atualizar a indumentária e passar a ser reconhecida, esteticamente, como alguém do movimento.
Com as entrevistas, passamos a entender mais como
uma cultura pode mudar a vida de muitas pessoas,
transformando-as sempre em ex-viciados, ex-criminosos ou dando um sentido ao ócio. O engraçado foi que
essa, como algumas outras entrevistas, surgiram de
forma inesperada, enquanto tentávamos entender mais
sobre esse universo. Caminhando entre as lojas, fomos
abordadas por conta da camiseta que vestíamos, em
que se lia “Jornalista por formação”.
Neste mesmo rolé encontramos o telefone de um DJ na
porta de uma loja. Ele procurava um back vocal. Talvez
fosse um sinal, pensamos. Ligamos naquele mesmo dia
e marcamos uma entrevista para o dia seguinte. Sem
nunca ter andado de trem, embarcamos em vários até
cruzar a cidade e chegar na Zona Oeste. Um bairro agradável se revelou aos nossos olhos, embora muito pobre
e com vários barracos. A semelhança com o local onde
moro foi detectada logo no início. Cenas que só podem
ser vistas na periferia. Nenhuma praça inteira, nenhum
centro cultural, nenhuma biblioteca e o posto de saúde
mais próximo há muitos quilômetros de distância.
Crianças empinando pipas, correndo pelas ruas e vielas, sempre em meio à falta de saneamento básico e de
infraestrutura para abrigar diversas famílias. O som que
ecoa também é o mesmo: letras de rap que relatam o
cotidiano. O trabalho era incrivelmente prazeroso. Parecia festa. Em todos os cantos, parávamos para tirar uma
foto, registrar tudo para botar no making of.
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Traficando conhecimento
Personagens como um DJ que deixou as drogas para se
dedicar a arranhar os discos na Zona Oeste de Poços
de Caldas que, tão logo percebeu que poderia ser feliz
sem estar muito louco, recebeu um convite para tocar
junto ao grupo UClanos. Também como o professor e
arte-educador, Éder, que deixou os empregos com carteira assinada para ensinar break e dança de rua para
as crianças da cidade, ocupando também a Fonte do
Leãozinho e mantendo a tradição de unir os patrimônios
materiais e imateriais da cidade.
As lágrimas nos olhos de Stephanie, com 13 anos na
época, me fizeram segurar o choro enquanto a entrevistava. Indo ao encontro da proposta de Éder, que era
tirar as crianças e jovens das ruas, evitando que eles
se envolvessem com o crime, ela me contou que optou
por aprender a dançar e preencher as noites de sábado
com as aulas para se ver livre das drogas e da saudade
do irmão que morreu, após uma parada cardíaca provocada por uma overdose. “Meu irmão é exemplo. Eu acho
que se ele fosse envolvido com hip-hop, estaria com a
cabeça ocupada.”
Mais uma vez senti a certeza do caminho certo pulsando
no meu coração. E eu? Se não estivesse trabalhando com
hip-hop e cultura, estaria fazendo o quê? Se não tivesse
sido seduzida pelos livros e por uma cultura popular, o
que estaria fazendo?
Relatos como os de um grupo que arrecadava cada centavo para ajudar as crianças e jovens que estavam nas
ruas e como espaço usavam uma sala de uma casa de
repouso onde viviam idosas em fase terminal ou como
as de King Nino Brown ao tentar cuidar para que o hiphop fosse retransmitido de forma certa são parte do
livro e que me emocionam muito. Bem como a história de André Du Rap, que sobreviveu ao massacre do
Carandiru e encontrou no hip-hop um caminho longe do
Concepção
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crime e de resgate me fizeram ter um objetivo: trabalhar com hip-hop e levar o projeto do livro adiante.
Mesmo sem saber como, a emoção que sentia quando
ouvia todas aquelas histórias que desenham a cultura
como ela é, foi o que me fez ser parte integrante da cultura novamente e de uma forma muito mais ativa. Vale
lembrar que isso se deu mesmo sem que eu soubesse
cantar, dançar, riscar discos e tampouco grafitar.
Concepção
Um grito de
emergência
Retornei à Poços de Caldas e Anita ficou em Mogi Mirim.
Cheguei à cidade cheia de ideias e vontades para aplicar e montar projetos locais. Toda experiência em São
Paulo e também em Poços me fizeram constatar que,
realmente, as periferias eram tratadas como “Quartos de Despejo”, de acordo com o que relatou Carolina
Maria de Jesus no primeiro livro brasileiro escrito por
uma favelada. Era para lá que eram jogadas as pessoas
sem renda alta, sem grandes perspectivas, analfabetas, negras, feias, e tudo aquilo que a elite não queria
“sujando” a sociedade “bem organizada”.
Perto disso tudo e louca de raiva, de fúria, senti o mesmo
ímpeto de todos aqueles que usam o hip-hop como arma:
gritar e mostrar ao mundo, de alguma maneira, o quão é
cruel tratar seres humanos como lixos. Como não saberia fazer isso através de letras de rap, ou sequer cantando, como inúmeros dos grupos que entrevistávamos
faziam, tampouco conseguiria dançando ou grafitando,
realmente a única forma era escrever. E assim foi, me
lancei a escrever tudo que vi, ouvi, vivenciei através do
hip-hop para pôr no livro.
Cada palavra digitada, pensada, rascunhada, foi posta
ali, com todo coração, numa tentativa de dar ainda mais
voz àqueles que eram calados diariamente pela fome,
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pelo descaso, pela falta de informação, pela falta de
acesso de cultura.
Descobri o hip-hop como uma ferramenta capaz de ajudar na luta diária pela sobrevivência dos guetos e foi,
justamente, em cima disso que tentamos trabalhar no
texto e no relatório técnico.
Como um grito de dor, uma emergência. Assim descobri
a existência da Cooperifa. Um sarau poético, um movimento da periferia, um local de uma energia singular e
capaz de mudar tantas vidas.
Surgiu na Zona Sul de São Paulo como um desespero em
levar poesia e literatura até donas de casa, metalúrgicos,
estudantes e cidadãos. Cidadãos de qualquer raça, sexo
ou credo. Cidadãos “marginais”, que nunca haviam pego
um livro ou lido uma poesia. Arte e cultura não existiam no
jargão periférico de tráfico, opressão e sofrimento.
Como um quilombo cultural foi criado o sarau que funciona no bar do Zé Batidão. Este movimento não poderia
ficar de fora do livro e, por meio de uma apuração que
me tomou bastante tempo, consegui traçar um pequeno
perfil do movimento, que, mais tarde, me inspirou totalmente na criação de projetos e na forma de colocá-los
em prática. Fazendo mais e pensando menos.
O que mais me chamou atenção na história do sarau é
que muita gente, que nunca havia pego em um livro ou
sequer sabia ler e escrever tinha voltado a estudar e
estava escrevendo a própria história através de reuniões
semanais em um bar onde a única exigência era o silêncio em forma de prece e respeito ao poeta.
Dessa maneira, verbalizar a opressão e o descaso social
se transforma em valorização das lutas que moradores da periferia vivem diariamente e a Cooperifa abre
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Traficando conhecimento
espaço para esta realização, funcionando como a academia de letras do subúrbio. Esta ideia inspira outros
saraus pelas periferias de São Paulo, a maioria em botecos, com gente simples e humilde, e que transforma
todo conteúdo sofrido do dia a dia em poesia.
O principal da Cooperifa é a transformação social. Gente
que não sabia ler e, agora, já está escrevendo livros.
Fez-me acreditar que as mudanças podiam realmente
acontecer. A proximidade disso tudo com o hip-hop?
Total. Descobri o Sérgio Vaz ligado à cultura marginal,
à pessoas envolvidas com o hip-hop e, por conseguinte,
à literatura. E por ser também uma forma de manifestação, um novo elemento da cultura.
Com esta história contada de forma tão real e citada
no pré-projeto do livro, um mês depois da viagem a São
Paulo, Anita e eu fomos aprovadas na pré-banca e bastante elogiadas pelas professoras que analisaram o projeto. Na apresentação básica mostramos o que poderíamos contextualizar através do livro e durante a viagem
constatamos o que já vinha observando há tempos. Parafraseando Mano Brown, periferia é periferia em qualquer
lugar. Seja em São Paulo, em Poços de Caldas ou em qualquer outra cidade. Mudam as gírias, o sotaque e a localização geográfica, mas os moradores se assemelham da
mesma forma e carecem das mesmas coisas.
A falta de estudo e a desinformação acarretam diversas
consequências, bem como a falta adequada de condições de vida. Os jovens aliam-se às drogas, e, por não
conseguirem empregos dignos, passam para o tráfico,
quando o dinheiro vem fácil e rápido. As garotas são
mães muito cedo, e viram donas de casa e chefes de
família muito cedo. Os moradores da quebrada também
não costumam levar o estudo adiante devido às pesadas
jornadas de trabalho, na maioria das vezes, em troca de
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Traficando conhecimento
um salário mínimo. E quase sempre estão cansados ao
anoitecer, quando é hora de ir para a escola.
No fim do dia, os moradores da favela preferem conversar na porta de suas casas, namorar, ir a eventos próximos – a maioria de hip-hop ou samba –, igrejas e bares.
Antropologicamente, todos os autores discutem isso em
livros, teses e dissertações e as atitudes aqui retratadas são as mais típicas dos guetos, e deles, o país está
repleto. De repente, é isso que faz com que as periferias
sejam tão mágicas, mas, ao mesmo tempo, faz com o
que o povo seja cada vez mais miserável, principalmente
no que diz respeito à parte cultural.
O livro foi, então, tomando forma e ganhando corpo. Cada
fonte foi trabalhada de forma individual, e em um conjunto, constatamos, pelas histórias, que grande parte
nunca foi a uma biblioteca e nem sabe onde elas ficam,
uma vez que as mais próximas, ficam a quilômetros de
distância, assim como as demais opções de lazer, que
terminam, mais uma vez, restritas aos bares, biqueiras
e televisão.
Desta forma eles desenvolvem uma cultura própria, que
inclui linguajar, vestimenta, comportamento. São as
subculturas ou a cultura popular, visto que este povo,
excluído e humilhado, ainda sente na pele a mesma coisa
que os escravos. O gueto é apenas a senzala moderna e
eles vendem a mão de obra por um prato de comida, ou,
muitas vezes, nem isso. A dignidade fica esquecida, a
identidade perdida.
Vítimas dos constantes descasos governamentais, aos
moradores das periferias restam apenas uma válvula
de escape: a confiança em suas próprias forças. Buscar dentro deles as afirmações culturais, as ideologias e
uma saída para tantos problemas sociais que os afligem.
Concepção
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Desta forma, as situações de exclusão transformam-se
em indignação, em um grito preso na garganta, oprimido,
triste, sofrido. Um berro prestes a explodir. Os moradores dos guetos necessitam encontrar um espaço para
expor toda a indignação.
O hip-hop é uma destas saídas. Ele reúne manifestações
culturais expressivas. É um movimento que nasceu da
necessidade do povo em expressar sua arte.
Concepção
Citação do
caminho certo
Recordo-me que, durante todo processo de feitio do
livro, Anita e eu comentávamos que nosso sonho era
ver nosso trabalho citado em algum outro trabalho acadêmico. Apesar de todo prazer da execução queríamos
também reconhecimento e se fôssemos referência em
algum trabalho, ficaríamos extremamente felizes. Eis
que já quase no mês de outubro fui procurada, na internet, por uma garota de Goiânia-GO, conhecida como
Kaká Soul, que estava se formando em Relações Públicas e fazendo uma monografia acompanhada de um
documentário como TCC.
Ela queria algumas referências. Tornamos-nos amigas,
trocamos livros, filmes e todos os materiais que tínhamos sobre hip-hop. De tão parecidas, passamos a nos
tratar como “mana”, como se fôssemos, realmente,
irmãs perdidas e mesmo tanto tempo depois, permanecemos irmãs de cultura, de hip-hop, de afinidade popular. Como o trabalho dela seria apresentado somente em
dezembro, deu tempo de enviar o nosso pronto a ela e
vê-lo citado nas páginas da monografia que ela escreveu.
Emoção completa. Lembro-me, também, que pela internet nos falávamos todos os dias e trocávamos ideais
sobre projetos que poderíamos montar nas periferias
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que vivíamos. Apesar de algumas poucas diferenças de
costumes, elaboramos algumas ações, como oficinas.
Kaká foi um anjo na minha vida. Com valores bem parecidos, me mandava mensagens dizendo para me acalmar
em meio ao caos que a minha vida estava, ela tinha certeza que daria tudo certo. Aquelas simples mensagens me
faziam um bem enorme. Saber que meu trabalho poderia
ajudá-la me fazia pensar que ele não era, enfim, tão ruim.
Ela, como dançarina, reuniria os amigos e daria aulas
para crianças carentes, além de trabalhar a parte do
conhecimento, da leitura, das bibliotecas comunitárias.
Eu deveria fazer o mesmo aqui, assim que 2007 invadisse
o calendário, e fomos seguindo, trabalhando, estudando
e registrando um pouco mais sobre a cultura marginal.
E assim, diante de vários problemas financeiros, a livraria em que eu trabalhava estava prestas a falir. A luz foi
cortada. Poucos livros preenchiam as prateleiras e eu
estava, há um bom tempo, sem receber meu salário.
Na hora do almoço saía para procurar outros empregos. Ir para a faculdade diariamente já se tornara insuportável, afinal, aguentar viajar durante quatro anos
seguidos em vans e chegar em casa super tarde não
era mais tão divertido.
Escrever o livro era prioridade e a falta de tempo começava a pesar. Sem energia elétrica na livraria – ou seja,
não podia usar o computador – e sem muito que fazer,
escrevia em folhas de caderno e, como era impossível
trabalhar até às 18h20, por conta da falta de luz, saía
mais cedo, ia até uma lan house e digitava o que já tinha
escrito a mão. Trabalho dobrado. Por várias vezes pensei
que não daria conta de terminar no prazo. Fiquei três
noites inteiras acordada acompanhando a diagramação
– na companhia de Anita – e fiz os últimos acertos, como
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Traficando conhecimento
Concepção
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introdução e legendas, na última hora. O diagramador,
publicitário e amigo, Guilherme Dore, que foi fundamental
durante toda minha trajetória profissional e sempre me
deu muita força na área pessoal, também, teve a disposição de ficar acordado nas madrugadas, mesmo tendo
de trabalhar no outro dia, para diagramar o livro comigo,
além de toda paciência quando resolvia mudar algum
detalhe e bagunçava toda ordem das páginas.
Com todo profissionalismo e amizade, ele conseguiu terminar a diagramação, e começamos uma corrida contra
o tempo para encontrar uma gráfica e imprimir o trabalho, antes do prazo final de entrega. Na última noite, com
o livro quase pronto, descobri que não tinha ainda um
texto para a orelha e tampouco um texto de abertura.
Às pressas, mandei um e-mail para Mirella Domenich,
autora do livro “Hip-Hop - a periferia grita”, que nos inspirou muito, e pedi uma orelha. Acho que meu tom desesperado e urgente surtiu efeito. Meia hora depois ela me
mandou uma orelha tão precisa que a sensação era de
que ela havia lido o livro inteiro naquela meia hora, realmente. Quanto ao texto de abertura, sentei, peguei uma
folha de rascunho e pensei: o que sair aqui será o texto.
Não dá mais tempo de mudar. E assim foi:
HIP
Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,
vontade, luta e marginalidade.
A força que vem do lado negro, pobre e inferiorizado e
atinge toda a sociedade com sua forma, sua arte e sua
cor. O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho,
debater as questões controversas de uma sociedade que
se finge de surda para este grito de protesto.
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Traficando conhecimento
Hip-hop é um terno que vai além. Significa cultura, mas
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor,
soluções, lutas e igualdade de direitos.
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta
proteger os que já nascem condenados à morte. Personagens reais, cercados pela miséria, fome, desinformação, violência, crueldade, desemprego, drogas, descaso,
desabrigo, armas de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio
a tantas armas que eles podem escolher no jogo real do
“matar ou morrer”, o hip-hop escolhe a maior de todas
as armas: a cultura. Uma cultura marginal, mas que não
é propriedade dos grandes, não é da elite nem da burguesia. É a cultura de quem foi capaz de criá-la e levá-la
adiante. É a cultura das ruas, do povo.
O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente no
gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e, hoje,
auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta cultura
marginal traz de volta os sonhos daqueles que carregam
o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva a autoestima daqueles que antes eram forjados de estorvo pela
sociedade.
Através de expressões artísticas intensas, o povo da periferia encontrou no hip-hop a vontade de viver, a motivação
e a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop propõe com suas manifestações e expressões que mudam e
desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconceitos.
Livro diagramado. Às 18h40 consegui pegá-lo na gráfica
e estava sem a última página! “Ai meu Deus, serei reprovada”, pensei. E, desesperada, fizemos uma gambiarra na
própria gráfica e deu certo, imprimimos a última página,
que amarrava todo o texto, concluía todo o livro e o trabalho de mais de um ano.
Uma hora depois e ele estava entregue. Faltavam apenas
alguns dias para a banca final e era o tempo que tínhamos
Concepção
155
para preparar a apresentação, as roupas, a decoração.
Finalmente, consegui fazer um acordo na livraria e ter
pouco mais de uma semana para finalizar o trabalho.
Lembro-me desta época como a única da minha vida em
que eu não estava lendo absolutamente nada, apenas
escrevendo. Não havia tempo. Era preparar o material da
apresentação. Revisar. Fazer os convites. Revisar. Ajustar o detalhes. Revisar. E tentar controlar a ansiedade
até o dia 31 de outubro de 2006, quando apresentaríamos o trabalho. Seria o último de toda turma. Fecharíamos as apresentações daquele ano. Anita se tornou jornalista. Eu me tornei jornalista!
Concepção
Do povo para o
povo: “Hip-Hop – A
Cultura Marginal”
São 22h. Preparo-me para dormir. Pela primeira vez na
vida tomo um calmante. Na verdade é um remédio homeopático, mas que eu engulo com fé e pensando que vai
me fazer dormir mais tranquila. Esta é a véspera da
apresentação do TCC. Tento pensar que está tudo certo.
Que ninguém na banca sabe mais sobre o tema do que
nós – Anita e eu – afinal passamos o último ano inteiro
nos dedicando a ele.
Durmo a noite toda, mas acordo cedo. Seria querer
demais dormir até tarde. Ainda faltam algumas coisas.
Como pouco. Quando fico ansiosa não consigo comer
muito. Ainda falta um violão para o grupo que vai tocar
e dançar como show durante a apresentação. Ligo para
Anita. Ligo para todas as pessoas que conheço. Entro
em desespero e, por fim, consigo três violões.
Por volta de 15h, saímos de casa. O casal Lu Afri e Suburbano, que integram o UClanos vão comigo e mais uma
amiga. Minha mãe vai dirigindo. Meu pai fica em casa para
ir mais tarde, levando o outro integrante que sai do serviço
às 18h. Ele vai matar aula para estar na apresentação.
Chegamos a São João. Anita chega logo em seguida.
Montamos todo nosso cenário. Erguemos nosso painel
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grafitado com o nome do livro e em poucos minutos, chamamos atenção de quem passava pelo local. Pelo menos
no campus, falar de hip-hop de forma tão explícita era
novidade. Uma boa sacada do coordenador do grupo foi
colocar nossa apresentação na sequência da apresentação de uma colega de classe que produziu um livroreportagem sobre congadas na região de Poços de Caldas. Ambos os trabalhos traziam cultura popular como
tema. Ambas as culturas produzidas do povo para o povo
e congregando os negros, excluídos socialmente.
Após tudo decorado, subimos para o banheiro mais sossegado da faculdade para tomar um banho de gato, trocar de roupa, passar maquiagem e ensaiar uma última
vez toda a apresentação. A ansiedade era quase palpável. Sentimentos de alívio, medo e conquista eram visíveis no nosso comportamento.
Um último ensaio. Quem fala o quê. Quem dá boa noite
para a banca. 21h. Hora de encarar o auditório, que
estava movimentado por conta do intervalo, do término
da primeira apresentação e de quem aguardava a nossa.
Vestidas como os hip-hoppers, nos posicionamos, colocamos o CD com a apresentação no computador e nos preparamos para aquele que seria, sem dúvida, o momento
mais importante de toda nossa trajetória dentro da universidade. Ainda muito nervosas, demos início a apresentação e, aos poucos, conseguimos nos soltar, entrar
no tema e adentrar novamente no mundo que vivemos
durante todo último ano, além de eu ter vivido durante
um bom tempo na adolescência, diariamente.
Conforme fui falando, senti dentro de mim o desejo de
realmente ser parte de tudo aquilo, de continuar pesquisando, de permanecer estudando a cultura. Contamos
de forma resumida toda a trajetória, como o livro foi concebido, pesquisado, escrito e formatado.
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Traficando conhecimento
Concepção
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Traficando conhecimento
Concepção
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Traficando conhecimento
Finalizada a apresentação, as considerações da banca.
Algumas pequenas observações e pedidos de esclarecimentos sobre trechos do livro vieram de uma professora
que, durante todo o tempo também, nos apoiou, direta e
indiretamente, sobre a escolha do tema. Da outra professora, a antropóloga Rosa Helena, apenas uma pergunta. A que deu início a todo este capítulo e que, talvez,
deu sentido a todos os projetos envolvendo literatura e
conhecimento que existem hoje.
A banca pediu que nos retirássemos para decidirem a
nota. Por normas da universidade, as notas não poderiam mais ser divulgadas para os alunos durante a
banca, somente após o fechamento oficial do ano letivo.
Fim. A apresentação terminou. Fomos aprovadas. Hora
dos parabéns, dos abraços, dos cumprimentos, de tirar
as últimas fotos da turma toda reunida. Estávamos
todos formados. Agora seria a vida profissional. O mercado de trabalho. O mundo lá fora.
Posei para as fotos e cumprimentei todos. Com a certeza
de que continuaria trabalhando com hip-hop e ansiosa
para pôr todas as minhas ideias em prática. Ainda não
sabia como faria para executar tudo o que eu tinha vontade, mas a certeza na alma me mantinha apaixonada e
ligada à cultura negra, ao hip-hop e a literatura.
Hora de voltar para Poços de Caldas. Suburbano me
olha nos olhos e dispara: “Foi a melhor apresentação que já fiz com o UClanos.” Emocionada, pergunto:
“Por quê?” E ele: “Porque antes de tudo foi trabalhado
o conhecimento. Você explicou o que é a cultura, sem
falar que nos apresentou como os tios do hip-hop. Foi
muito gratificante”, disse.
Concepção
165
Já não cabia mais em mim de tanta felicidade por ter
feito a apresentação, por ter chegado ao fim desta etapa
e por saber que eu continuaria. Abracei meus pais e os
agradeci, por terem dividido comigo os quatro anos da
faculdade e por terem apresentado o trabalho ao meu
lado, além de terem passado várias noites perguntando
o que poderiam fazer para me ajudar a terminar o livro.
Claro que fizeram por mim muito mais, começando pelo
sacrifício em poupar durante dezessete anos e depositar para que eu pudesse cursar a faculdade, por terem
me incentivado a escrever, a ler, a ser a pessoa que sou e
por acreditar naquela que eu gostaria de me tornar.
Por fim, respondendo a pergunta da professora: o livro
mudou tudo e na vida ficou a vontade de mudar, de fazer
diferente, de construir projetos, de ajudar quem nos
ajudou, de abrir nosso coração e nossa mente cheia de
ideias para aqueles que abriram suas vidas e portas de
suas casas para nos receber e nos deixaram conhecer
um pouco mais do hip-hop e desta cultura marginalizada.
O choro de Rosa foi justificado quando eu e Anita dissemos, em coro, que nossa vontade era fazer pós ou mestrado em antropologia, para dar sequência. Pude então
usar a frase que mais me marcou durante toda a trajetória: o hip-hop também salvou a minha vida.
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Traficando conhecimento
Concepção
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No ar: o hip-hop
Cap.04
No ar: o hip-hop
No ar: o hip-hop
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— Sim. Claro que vou. Que horas preciso chegar?
Às 10h da manhã de sábado, subi a escadaria que me
levaria até o estúdio AM da emissora. Aline foi uma
colega de classe, também fã do hip-hop, que, inclusive,
usou alguns dos personagens do livro para uma matéria
do programa de televisão que o grupo dela produziu para
o TCC. Ao chegar no local, me lembrei do dia em que fui
lá pedir emprego ainda no segundo ano e recebi um não.
Pensei que, realmente, o mundo gira.
A tênue linha entre o crime e os cidadãos de bem é cruzada diariamente por milhões de jovens que vivem nos
guetos de todo país. Na minha quebrada não é diferente
e o livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal” revelou-se uma
arma. Diferente das empunhadas pelos soldados do
tráfico, a munição veio em forma de palavras, que passaram a chamar a atenção dos jovens em oficinas promovidas nas escolas, centros comunitários e sedes de
Organizações Não-Governamentais (ONGs).
Assim, o desejo de voltar à cultura marginal e levá-la
adiante se tornou realidade. Não foi possível iniciar pós
ou mestrado em antropologia, mas dar sequência no que
tinha vontade, foi algo vital.
Meu telefone toca.
— Alô?
— Oi Jéssica. Aqui é Aline Bertolli. Você pode participar
do programa da Tereza no sábado de manhã aqui na Rádio
Difusora, onde trabalho?
— Posso. Mas para falar o quê?
— Sobre o seu livro.
Pensei um pouco. Um friozinho na barriga e na espinha
me fizeram hesitar por um breve momento. Claro que eu
iria participar. Uma primeira oportunidade oficial para
divulgar o livro. Não teria porque recusar.
172
Uma senhora muito simpática me recebeu e disse que
seria mais um bate-papo o que não me tranquilizou nem
um pouco. Não por falar no rádio ou num microfone,
porque isso, eu adorava, mas por saber que a emissora
AM era uma das mais ouvidas na região, principalmente
naquele horário e eu falaria sobre algo relativamente
novo até então para aquele público.
Com uns três copinhos de água na minha frente, o operador da mesa de som me deu bom dia e pediu para ver o
livro. O sorriso no rosto dele me deixou mais confortável.
Ele aprovou a capa e o design. Meio caminho andado.
Três. Dois. Um. No ar. A entrevista começou e ela me apresentou como uma jovem, recém-formada, com um livro
em mãos e me perguntou tudo sobre o trabalho. Pela primeira vez tive a oportunidade de expressar, de forma tão
simples – pelo meio de comunicação mais democrático –
a emoção que senti ao conhecer a cultura, ao me envolver,
ao me distanciar e ao voltar, para fazer o livro.
Narrei várias aventuras em busca do produto final e li
alguns trechos, acompanhada por ela, que de forma
muito sagaz, se declarou uma nova fã do movimento e
porque não dizer, uma nova adepta, segundo ela própria.
Quando recebi o convite, imaginei que duras horas em
uma rádio era tempo demais. A leveza da conversa me
174
Traficando conhecimento
fez perceber que o tempo foi ínfimo perto de tudo que
poderia ser dito. Para finalizar, li o texto de introdução e
ela fez questão de ler a poesia “Jorginho” de Sérgio Vaz,
que usei para destacar a Literatura Marginal no livro.
Ainda naquela manhã, quando deixei a rádio recebi vários
telefonemas de conhecidos e muita gente que sequer
sabia que estava envolvida com o movimento. Vibrei com
a repercussão e me senti realizada em poder, de alguma
maneira, levar o conhecimento através do hip-hop até
mesmo para quem não sabia ler ou escrever. Minha paixão pelo rádio começou a crescer, também, neste dia.
No ar: o hip-hop
175
No ar: o hip-hop
Agora sim,
profissão repórter!
Novamente a busca por um emprego com carteira assinada fez parte da minha rotina, entretanto, com muito
mais seriedade. Agora eu estava formada e precisava
encontrar algo na minha área para não enlouquecer.
Saí pela cidade munida com currículos e não me limitei.
Embora minha vontade fosse trabalhar com jornalismo,
procurei emprego em lojas, supermercados e restaurantes. A única coisa que não queria era voltar a viver de freelas e não ter estabilidade.
Com o vento soprando a favor, pelo menos desta vez, consegui um emprego na segunda semana do ano. Após um
teste de três dias, garanti a vaga para ganhar um pouco
mais que um salário mínimo e trabalhar de segunda a
sábado com horário de entrada e sem horário de saída.
Aceitei, pois era melhor do que nada, sem falar na chance
de aprendizado. Pela primeira vez vi o livro me proporcionara um retorno. Durante a entrevista, mostrei o que tinha
produzido de concreto e, no teste, a experiência com as
reportagens do livro foi fundamental para o desenvolvimento das reportagens para o jornal.
Fui contratada no dia 16 de janeiro de 2007. A partir
daí, com a rotina bastante mudada, precisei encontrar
algum tempo e forma de divulgar o livro, de implantar os
projetos na minha região, enfim, de fazer tudo aquilo que
havia prometido a mim mesma.
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Logo de cara, marquei um estilo próprio, sempre aproximado do jornalismo literário, optava sempre pelas pautas mais humanas e que lidavam com comportamento,
regiões, problemas periféricos. Na primeira reunião de
pauta, sugeri uma série de reportagens nas comunidades. Dispus-me a visitar um bairro por semana e captar
todas as necessidades em cenas, palavras, expressões
e imagens.
Com um patrão durão e elitista, fiquei surpresa ao ver que
ele havia apoiado a ideia e colocado a minha disposição o
carro do jornal ou, em último caso o motoqueiro-faz-detudo, que também era fotógrafo. Iniciei a série pela Zona
Leste, do outro lado de onde eu residia, e só para confirmar o que já sabia, os problemas eram os mesmos.
Crianças soltas pelas ruas sem uma quadra, parque ou
centro de lazer decente, nenhuma biblioteca e apenas
um posto de saúde em total deficiência. Isso sem falar
na pavimentação, inexistente em 80% das ruas. Com
material suficiente para encher uma página de jornal,
batizei a série que acabava de ser lançada como “JP
Comunidade”, lembrando o nome do Jornal de Poços de
Caldas e dando voz aos moradores das quebradas.
Ficou combinado que as matérias sairíam toda quintafeira e minhas quartas ficaram lotadas. Passei a receber ligações de vários outros bairros que pediam a visita
da reportagem no local. Na segunda semana visitei
um bairro na Zona Sul. Não o que vivo, mas um vizinho
e assim por diante, fui dando voz aos moradores que
sofrem com a dureza da vida, o mau cheiro dos esgotos,
a falta de asfalto, de saúde e do básico.
Entre uma visita e outra aos bairros, durante as entrevistas com moradores, por diversas vezes, me deparei com adeptos da cultura hip-hop e lamentei não ter
178
Traficando conhecimento
dinheiro suficiente para fazer diversas cópias do livro e
distribuir entre eles. Foi aí que a internet entrou como
peça fundamental para a divulgação do trabalho e para a
emissão de um outro tipo de voz: a que canta as mazelas
através do rap, que grita as injustiças nas cores que tingem o muro e que relata a dureza cotidiana nas palavras
das poesias marginais.
No ar: o hip-hop
Salvando vidas
181
— Como assim?
— Ela morreu esta noite. Teve uma parada cardíaca. Ainda
não sabemos direito. Será enterrada em Mogi Mirim, mas
ainda não sei o horário do enterro.
Tentei desligar o mais rápido possível.
Ainda não são 8h da manhã e me reviro na cama ao
ouvir o toque do telefone. Terça-feira. É feriado. Pelo
menos até às 18h, quando vou sair de casa para cobrir
o desfile das Escolas de Samba campeãs do Carnaval
de Poços de Caldas.
Desejo que não seja para mim. Tinha planos de acordar
umas 10h e dar sequência em um trabalho de decupagem de entrevistas para uma prima da Anita. Ganharia
um dinheiro legal e, como tinha uma boa experiência com
isso, topei fazer o freela. Fui interrompida pela minha
tentativa de voltar ao sono. A ligação era para mim. Do
outro lado da linha era a mãe da Dani, a moça para quem
eu estava fazendo o trabalho. Estranhei.
— Alô?
— Jéssica, desculpe te ligar tão cedo. É que tenho uma
notícia não muito boa para te dar...
Será que ela vai cancelar o trabalho? Foi meu único pensamento naquela hora, ainda entre o sono e o despertar.
— É que a Nitinha se foi...
Era assim que eles chamavam a Anita. Tomei um susto e
me obriguei a raciocinar.
180
Como a minha amiga, uma das pessoas mais importantes da minha vida, poderia ter morrido? Ela tinha apenas 25 anos, se formara oficialmente há apenas 15 dias
e tínhamos o livro e diversos outros projetos para cuidar. Sem falar que ela começaria um emprego novo no
dia seguinte. Se eu não estivesse trabalhando, estaria
passando o Carnaval com ela.
Como ela estava morta? E todos os nossos sonhos, projetos, planos? E as vontades dela, os pensamentos, o
talento para a escrita? Como eu seguiria sozinha? Éramos amigas desde o primeiro dia de aula, quando tomamos o trote da faculdade juntas.
Consegui pensar tudo isso enquanto desligava o telefone,
dava a notícia ao meu pai e começava a chorar de forma
descontrolada. Quando tinha nove anos, uma amiga
minha, que na época tinha sete, morreu atropelada e a
dor foi terrível. Conhecia a dor de perder uma pessoa tão
querida e tão próxima. Apesar de todas as nossas brigas e
arranca-rabos diários, éramos amigas mesmo. O que faria
sem ela? Como prosseguiria com o livro, com os ideais de
criar projetos sociais e jornalísticos?
Tentei responder tudo isso e chorei durante meses,
todos os dias. No mesmo momento, um amargo terrível
me subiu do estômago à boca e me lembrei da frase que
mais ouvi durante toda a trajetória: o hip-hop salvou a
minha vida. Infelizmente, não salvou a vida da Anita.
Talvez não a tenha cativado com tanta força, como me
cativou e salvou. Como atuou na vida de tantas outras
pessoas de quem colhi depoimentos ou convivi.
182
Traficando conhecimento
Não acreditei que ela estivesse morta. Durante muito
tempo fiquei em estado de negação e quando soube a
causa, me senti uma comunicadora muito impotente.
Diante de tantas informações, como ela poderia ter morrido inalado gás propano butano de uma daquelas buzinas barulhentas usadas durante o Carnaval?
Ouvi relatos de que o gás, quando inalado, provoca um
barato ao estilo do lança-perfume, entretanto, com riscos imensos, sendo que, um deles leva, a pessoa à morte.
Lancei-me em campanhas sobre o assunto, fiz matéria
para o jornal, procurei entender e orientar as pessoas. Até
a data — 19 de fevereiro de 2007 — cinco pessoas, contando com a Anita, haviam morrido da mesma maneira
no país. Vi ainda algumas matérias televisivas que divulgaram o caso, os perigos e tudo mais, mas as notícias de
morte pela mesma causa continuam chegando.
Durante muitas noites, que passei em claro tentando
entender como faria para seguir adiante, sozinha, sem
ela para me dar conselhos sobre como poderia enriquecer uma matéria, um título. Sem ela para ouvir minhas
histórias pessoais, compartilhar os raps recém-lançados, tirar fotos dos grafites pelas cidades afora, divulgar
o livro, me perguntei como poderia usar o hip-hop e a cultura marginal para impedir que mais pessoas morressem
de uma forma tão estúpida. Questionei-me por que tantas pessoas morrem e nós perdemos a batalha da vida
para o mundo das drogas. Não compreendi como ela,
uma jornalista com um livro tão rico sobre uma cultura
marginal, pôde esquecer todo conhecimento e embarcar
num prazer momentâneo que lhe roubou a existência.
Ainda procuro a resposta, mas me consolei por saber que
ainda tenho a cultura onde posso me amparar e também
desenvolver tudo que me faz doer a alma. Naquela mesma
época, precisei imprimir alguns poucos exemplares do
No ar: o hip-hop
183
livro e não sabia como fazer. Ele não era mais da forma
como concebemos. Faltava um pedaço. No livro, na minha
vida, na da família dela e nas minhas lembranças da vida
universitária, que eram só nossas e nunca mais puderam
ser compartilhadas.
Resolvi escrever um texto para ela. Publiquei no jornal
onde trabalhava, no jornal de Serra Negra, cidade onde
ela morreu e resolvi que seria uma espécie de dedicatória
no livro. As pessoas que receberam a segunda remessa
dos exemplares puderam conhecer um pouco do que ela
representou para mim. Senti, novamente, o meu rosto
molhado pelo meu choro. Senti o hip-hop chorando por
ter perdido mais uma pessoa para o mundo das drogas
e mais uma vez foi ele que me salvou, que deu rumo e
sentido a minha vida. Foi nas manifestações artísticas e
culturais que senti força para seguir adiante.
Por que ela se foi?
“Ela tinha acabado de se formar, cheia de vida, cheia
de planos, cheia de sonhos. Tudo era perfeito: família, amigos, ia começar a trabalhar naquela semana.
Aconteceu, injustamente, mas aconteceu. Fazer o quê?
Ela se foi, e como diz a música, cedo demais. Ela não
poderia ir assim, sem dizer adeus, sem escrever os livros
que queria, sem conhecer os lugares que havia prometido, sem realizar tudo que pretendia. Ela simplesmente
não poderia deixar para trás tantos sonhos... Mas deixou!
Por mais que tentemos explicar a vida, ela tem seus
mistérios que só o outro lado pode nos fazer entender.
Quero me lembrar de uma menina de olhos azuis, que
me olhava nos olhos quando falava, que ria de tudo, que
me abraçava quando as coisas não estavam bem, que
me passava cola nas provas e que, assim como eu, tinha
um sonho: ser jornalista.
184
Traficando conhecimento
Vou me lembrar eternamente de uma amiga de verdade
e de quatro longos anos de cumplicidade dividida. Vou
me lembrar da gente brigando e discutindo sempre,
mas sem sair uma do lado da outra. Nunca nos abandonamos. Quero me recordar da melhor amiga que fiz
naquela faculdade, da grande pessoa que ela foi. Uma
menina corajosa, sonhadora, idealizadora, que, um dia,
sonhou com uma profissão que pudesse mudar algo e
deu o melhor de si por ela. Vou sempre me lembrar de
uma menina que me ensinou muito, não só profissionalmente, mas sobre a vida.
Sempre terei no coração a lembrança de uma pessoa que lutou pelo hip-hop, “correu pelo certo” e que,
mesmo num curto período de tempo, fez história, como
grande jornalista que foi.
Anita, aqui não dá espaço para eu citar todas as coisas
boas que você representa, tudo que a gente viveu e
nem cabe em palavras o quanto eu te amo, os grandes
momentos que vivemos, as loucuras que dividimos e
tudo que construímos.
Tá doendo muito não poder mais dizer o quanto eu te amo,
saber que nunca mais vou ouvir sua voz me xingando ou
brigando comigo, saber que nunca mais vou te fazer ouvir
um rap diferente, ou tirar uma foto em um grafite. Saber
que nunca mais vou te pedir conselhos, contar meus
sonhos, discutir os caminhos do hip-hop ou planejar um
mundo melhor e mais humano.
Como você gostava de ser chamada e me chamava:
“Kbça, o hip-hop chora por você e sente sua falta. Desculpe por não ter conseguido te impedir de ir embora,
também acho que você se foi cedo demais. Tô com saudade e tá doendo muito. Vai com os anjos, vai em paz.”
Valeu a pena!!!
No ar: o hip-hop
Blog
Assim como a dureza do pão que alimenta milhares de
famílias nas periferias do Brasil, a vida também é rígida
e não para. Mesmo com muita dor e saudade da Anita,
deveria prosseguir e prometi a mim mesma que faria
tudo que pudesse para divulgar nosso trabalho.
Preciso de um nome para um blog. Foi o que pensei ao
perceber que não poderia usar meu espaço – diário virtual – pessoal para propagar o livro. Optei por Cultura
Marginal. Soava tão semelhante ao livro e dava espaço
também a quem não era necessariamente ligado ao
hip-hop. Passei a escrever textos quase diários sobre
os assuntos que via, lia e ouvia falar, mas, sempre, com
um toque de opinião, impossível no meu trabalho como
repórter no Jornal de Poços de Caldas.
Como já havia mantido blogs na internet, mas nem sempre sobre o assunto, não foi tão difícil divulgar e encontrar um público-alvo específico. Ao mesmo tempo, descobri o site “Leia Livro”, mantido pela Secretaria de
Estado de Cultura de São Paulo, em que um programa de
incentivo à leitura chamou muito a minha atenção.
O leitor poderia enviar uma resenha de algum livro e se
esta fosse inédita e bacana, poderia se tornar um boletim
de rádio, divulgado em algumas emissoras conveniadas.
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O prêmio era um livro novo, enviado gratuitamente pelo
correio ao vencedor.
Resolvi participar e, ao resenhar o livro “Crack – o caminho das pedras”, de Marco Antônio Uchôa, simplesmente para ver se seria publicado, ganhei um livro novo.
O texto se tornou um boletim. Inspirada, resolvi divulgar o programa por meio dos meus amigos que gostavam de ler e, também, pelo blog. Encontrei também no
site o escritor Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa, e que,
durante o TCC, me inspirou muito. Entre os textos dele
e de outros escritores, fui desenhando, mentalmente, o
que gostaria de criar em Poços.
Outras resenhas surgiram e me fizeram ganhar mais livros
novos e inéditos. Era uma chance de ler e aprender mais
sobre novos assuntos também. De presente, dei o livro a
alguns conhecidos e ganhei um maior ainda. Uma resenha
sobre a minha obra publicada no “Leia Livro”.
Confira, abaixo, o que foi dito sobre meu trabalho naquela
época:
Hip-Hop, esta cultura marginal
por Gabriel Barbosa Machado (ator)
“Paz,amor, união e diversão”, essa é a proposta do livro
“Hip-Hop – A Cultura Marginal”, que é, o tempo todo, fiel
à história do hip-hop no Brasil e no mundo.
Com uma linguagem jornalística das grandes reportagens,
clara, doce, dinâmica, eficiente, coloquial e informativa,
marcada por histórias singulares com uma riqueza de
dados surpreendente. Definitivamente é um livro que
traz o retrato de uma cultura urbana, emergente das
classes populares das metrópoles. Uma verdadeira aula
de hip-hop, que já começa no título, nos fazendo questionar, que cultura é essa? Que marginal é esse?
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Traficando conhecimento
É um livro gostoso de ler, com conteúdos específicos, poesias, histórias e curiosidades únicas. Um material que é,
com certeza, um registro histórico-cultural, daquele que
é o maior movimento social dos últimos 30 anos. Esta
obra, contribui, inegavelmente para dar mais visibilidade
a uma cultura que carrega em sua face, o olhar do preconceito, da ignorância, da desigualdade e da exclusão a
partir daqueles que desconhecem, rotulam ou ignoram.
Afirmo que é louvável a produção das jornalistas que se
lançaram a campo para registrar a voz de um movimento,
ritmo e cultura, certificando que, mesmo numa forma de
deficiência, a universidade ainda forma seres pensantes,
que estão à frente na análise das manifestações culturais e fenômenos sociais, muito antes do que qualquer
meio de comunicação. Elas dizem assim, no capítulo inicial: “Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro
que emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais
mais pobres, o grito desesperado de quem vem da periferia. Chega ao asfalto carregado de protesto, indignação,
carência, vontade, luta e marginalidade”. Para adentrar
no mundo do hip-hop e conhecer faces totalmente ignoradas da hiphoptude, o livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal” é um bom começo.
Como não conseguia parar, peguei umas revistas Rap
Brasil emprestadas com a Lu Afri e em uma delas uma
entrevista com o Alessandro Buzo me fez tremer. Ele criticava os acadêmicos que escreviam teses e livros sobre
hip-hop e dizia que tais pessoas não tinham propriedade
para tratar do tema.
Descolei o e-mail dele, não lembro onde e nem com quem,
e mandei um texto até meio mal-educado, questionando a
postura e apresentando a minha versão. Eu havia escrito
um livro. Mas tinha toda propriedade que qualquer outra
pessoa, pois havia vivenciado tudo na pele. Recebi a resposta no mesmo dia, após uma troca de e-mails, chegamos
No ar: o hip-hop
189
a um pedido mútuo de desculpas e nos tornamos amigos.
Trocávamos mensagens diárias a respeito da cultura, dos
nossos projetos e de nossas vontades.
No ar: o hip-hop
Ciranda
Como na música da brincadeira de roda infantil, descobri um site que faria o saber circular e por intermédio da
“Ciranda Internacional de Informação Independente”,
consegui publicar alguns artigos com todas as opiniões
que tinha sobre o mundo, sobre as opressões, sobre o
hip-hop e sobre o jornalismo, que não podia ser praticado em sua totalidade no órgão em que eu trabalhava.
Quando um jovem de 17 anos presta vestibular para jornalismo, ele tem um sonho. Grande parte quer aparecer na televisão e ser famoso. O restante quer mudar o
mundo. Eu me enquadrava na segunda opção. Mas, na
prática, mudar o mundo com minha visão era bem mais
complicado e eu já sabia, claramente, que não seria
através do jornal que faria isso.
Já neste site poderia publicar meus textos de forma livre.
Escrevi alguns artigos e enviei, todos foram aprovados.
Era gratificante ver meu nome circulando na rede. Consegui, também, aprovação para colocar o livro disponível
para download no site “Overmundo” e, assim, várias pessoas puderam ter acesso a ele.
Mas foi cerca de um mês depois que uma bomba estourou em todo universo do Hip-Hop. A jornalista da Folha de
São Paulo, Bárbara Gancia, criticou uma verba do governo
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federal para a cultura e questionou: “Desde quando isso
é cultura?”. Como resposta, recebeu vários textos de
Sérgio Vaz, King Nino Brown e outros adeptos. As pessoas ligadas à cultura através do 5° elemento – conhecimento – puderam, então me conhecer, e, a partir daí, as
coisas começaram realmente a acontecer. Com um texto
para botar mais lenha na fogueira, consegui chamar
a atenção de vários adeptos e passei a receber alguns
convites para participar de outros blogs e publicações.
No ar: o hip-hop
O hip-hop não foi
inventado
Frente às discussões provocadas pela jornalista Bárbara
Gancia e o escritor Sérgio Vaz, sinto-me na obrigação de
botar mais lenha na fogueira.
Além de fazer das palavras de Sérgio Vaz as minhas,
gostaria de esclarecer algumas coisas. Estive lendo a
declaração de Alessandro Buzo na revista Rap Brasil, em
que ele afirmava que era um escritor marginal porque era
marginalizado, mas agia preconceituosamente em relação às teses acadêmicas sobre o hip-hop.
No meio do fogo cruzado, postei no meu blog assim,
adaptando do texto dele: “Me considero uma escritora
marginal porque sou marginalizada. Se chegamos atrasados no trampo, o patrão olha torto. Somos escravos
modernos. Hoje não existe escravidão, mas existe salário, que nunca dá para o que precisamos, o transporte é
mó veneno. Essa vida é marginal. Se escrevo e vivo nessa
vida, sou uma escritora marginal. É original porque vivo
isso, apesar de ter feito faculdade e escrito uma tese
sobre a periferia, esse é o meu dia a dia.”
Para os hip-hoppers, que acham que acadêmicos e estudiosos não podem ser da cultura porque não passam os
mesmos venenos. Puro preconceito. Sou uma jornalista
que vive o hip-hop no dia a dia e luta para preservar a cultura. Sou uma jornalista que foge à regra, ando de busão
194
195
trem lotado, não é porque estive em uma sala de aula de
um curso superior e escrevo sobre política, arte e filosofia que sou diferente ou elitizada. Não é porque carrego
um diploma debaixo do braço que deixo de carregar a
marmita amassada na bolsa. Também estou nesse país
vendendo o almoço para pagar a janta, por mais contraditório que isso pareça.
Para a “jornalista” (que envergonha a classe) Bárbara
Gancia, eu escrevo para enganar a fome e boto no papel
as indignações que é ser um “escravo moderno”. Respondendo a sua pergunta, em seu próprio texto “Desde
quando hip-hop, rap e funk são cultura?”. Desde que
você deixou sua ignorância tomar conta e não se informou para escrever.
Em primeiro lugar, hip-hop é uma cultura. Uma cultura
marginal, porque é feita pelo povo, vivida pelo povo e
difundida pelo povo. É marginal porque está à margem
da sociedade em todos os sentidos, porque é vítima do
preconceito, explícito ou velado, porque é excluída e congrega os excluídos, dando-lhes oportunidades.
Portanto, o hip-hop é uma cultura marginal, nascida na
periferia, como um grito ensurdecedor de protesto, que
fere, machuca e atinge. Até então o hip-hop reflete o
comportamento de uma classe social, uma grande parcela da população e por fim, de uma cultura com personalidade própria, singular. Esta cultura carrega consigo
a força do protesto e da indignação. Ela sobrevive e se
opõe ao obscuro mundo da criminalidade, contra a exclusão e incluindo, mesmo que ainda na marginalidade, toda
uma nação, num misto de alegria e tristeza, a cultura hiphop sobrevive, marca e faz história para quem se sente
maravilhado por tudo que o hip-hop proporciona.
Continuando, o rap é uma manifestação artística dentro
da cultura hip-hop, através do MC (Mestre de Cerimônias), assim como o break, o grafite e o DJ.
196
Traficando conhecimento
O hip-hop é uma cultura desde o dia 12 de novembro de
1974, quando o DJ Afrika Bambaataa o batizou, no bairro
do Bronx, gueto de Nova Iorque, na tentativa de congregar os negros do local para atividades artísticas, substituindo as brigas entre as gangues pelas rachas entre
as crews (grupos) de break ao som do DJ, da voz do MC,
sob os grafites nos muros. Quando Bambaataa resolveu
batizar o hip-hop (termo em inglês que, na tradução literal, significa saltar movimentando os quadris, mas que,
na prática, vai muito além disso), o fez na esperança de
disseminar: “Paz, amor, diversão e união”, segundo as
palavras do mesmo.
Quem sabe, se antes de julgar, sejam jornalistas ou
hip-hoppers, as pessoas pensassem, observassem,
pesquisassem e praticassem as palavras de quem criou
uma cultura?
“Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,
vontade, luta, marginalidade.
A força que vem do lado negro, pobre, inferiorizado.
Atinge toda sociedade com sua forma, sua arte e sua cor.
O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho, debater as questões controversas de uma sociedade que se
finge de surda para este grito de protesto.
Hip-hop é um termo que vai além. Significa cultura, mas
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor,
soluções, lutas e igualdade de direitos.
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta
proteger os que já nascem condenados à morte. Personagens reais, cercados pela miséria, fome, desabrigo, armas
de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio a tantas armas
que eles podem escolher no jogo do “matar ou morrer”,
No ar: o hip-hop
197
o hip-hop escolhe a maior de todas as armas: a cultura.
Uma cultura marginal, mas que não é propriedade dos
grandes, não é da elite, nem da burguesia. É a cultura de
quem foi capaz de criá-la e levá-la adiante. É a cultura
das ruas, do povo.
O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente
no gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e,
hoje, auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta
cultura marginal traz de volta os sonhos daqueles que
carregam o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva
a autoestima daqueles que antes eram forjados de
estorvo pela sociedade.
Através de expressões artísticas intensas, o povo da periferia encontrou no hip-hop a vontade de viver, motivação e
a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop propõe com suas manifestações e expressões que mudam e
desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconceitos”. Texto retirado do livro “Hip-Hop - A Cultura Marginal”.
O que mais dizer senão minhas próprias palavras no
capítulo de abertura do meu livro, resultado de mais de
um ano de trabalho árduo para concluir, com muita dificuldade o curso de jornalismo. Fugindo da generalização
de que os jornalistas são elitizados, cá estou, militando
pelo hip-hop e gritando, com ardor, o que eu penso sobre
o texto da jornalista Bárbara Gancia.
Salve!
Paz, amor, diversão e união.
Jéssica Balbino
O número de comentários sobre o texto foi expressivo e o
de amizades e contatos que fiz, também. A jornalista da
Folha continuou com a mesma opinião e eu, com os mesmos sonhos. Entre a polêmica, me dedicava ao jornal
que estava trabalhando. Ralava, no mínimo, dez horas
por dia e tinha pavor de perder o emprego.
198
Traficando conhecimento
Para me especializar, fiz a inscrição em um curso de extensão universitária na faculdade existente na cidade. Seria
durante quatro sábados das 12h às 18h. Empolgada com
a possibilidade de aprender um pouco mais sobre antropologia, a disciplina que era carro-chefe do curso, me inscrevi e aguardei com total ansiedade o início das aulas.
Combinei com a editora do jornal que trabalharia até 12h e
voltaria após às 18h, além de adiantar algumas matérias
frias para não deixar ninguém na mão. Mas, no sábado
marcado, logo no terceiro mês de emprego, me descobri
uma escrava moderna. Com uma raiva que não cabia em
mim e me fazia lembrar e recitar mentalmente trechos
do livro “Manual prático do ódio” do Ferréz, eu, que já
havia escrito seis matérias naquele dia para deixar o trabalho adiantado e não pude ir no curso por pura implicância e jogos de poder, escrevi para o site Ciranda o
seguinte texto:
Escravidão Moderna
Hoje não existe mais escravidão. Será que não mesmo?
Acredito naquilo que chamamos de “escravidão moderna”.
Ela atinge a todas as raças, negros, brancos, índios ou
amarelos. A escravidão foi substituída pelo salário, que
nunca dá para o que precisamos. Se chegarmos atrasados no serviço, o patrão olha torto. Com endereço da
favela ou da periferia, ninguém consegue emprego. Se
o pé estiver sujo de barro da enchente da noite anterior
então... Esquece.
As universidade formam milhares de analfabetos todos
os anos e a mídia continua afirmando que “sobram vagas
no mercado de trabalho, o que falta é qualificação profissional”. Como é que é mesmo?
Um círculo vicioso. Se o negro está desempregado, não
consegue pagar para se “qualificar” e consequentemente,
está cada dia mais, fora do mercado.
No ar: o hip-hop
199
Grande mercado, que, quando emprega, escraviza. Tem
gente que trabalha dez, doze horas por dia, sem falar do
horário em que levanta, para pegar as conduções e chegar cedo no trabalho, antes que o patrão olhe feio.
A capa da revista “Carta Capital” (que pouca gente lê,
porque é cara, linguagem culta, não fala para o povão) –
e as revistas de fofoca são mais interessantes, nos tiram
da rotina maçante – deste mês traz jovens diplomados
que não conseguem emprego. Em determinado trecho da
reportagem, alguns jovens da classe média, atualmente
em crise, dizem que não farão estágio, tampouco vão
trabalhar por um salário de R$ 1 mil. “Isso seria o mesmo
que prostituir a minha profissão.” É o que dizem, porque
pensar, ninguém pensa mesmo.
Já na capa da “Caros Amigos”, que menos pessoas leem,
traz a reportagem “Como é a cabeça dos estudantes de
jornalismo”. A resposta está dentro da reportagem. É uma
cabeça vazia, alienada e na maioria das vezes, elitista.
Agora eu pergunto, como é a junção da cabeça de um
estudante de jornalismo, com os baixos salários que
pagam aos recém-formados, somada a uma jornada de
no mínimo dez horas de trabalho diários (isso inclui fins
de semana), que mora na periferia???
É, sobreviver ao sistema é difícil. Sou jornalista, recémformada, ganho muito aquém do que eu paguei, com
muito esforço, por mês na faculdade, trabalho, em
média, dez horas por dia (sem horário de almoço), paro,
no máximo, vinte minutos para comer a marmita esquentada, que carreguei dentro da mochila, toda amassada,
no busão lotado. Fico com medo do patrão chegar e brigar
porque esquentar a comida deixa todo o prédio do jornal
cheirando. Não tenho a menor condição de fazer um curso
de aperfeiçoamento da profissão. Preciso trabalhar, me
manter. Se for na área, pagam menos, mas gosto do que
eu faço, preciso adquirir experiência no campo prático.
200
Traficando conhecimento
Queria me qualificar. Paguei um curso que poderia fazer,
quatro sábados à tarde. Mas eu trabalho no sábado à
tarde. Talvez se eu ficasse doze horas por dia durante a
semana, adiantando as minhas matérias e mais umas
quatro horas no sábado, eu conseguiria ir para o curso
sem que meu patrão percebesse ou me xingasse. Arrisquei. Paguei o curso, relativamente caro, perto do que
ganho. Animei-me em conhecer um pouco mais sobre
um determinado assunto. É na área que eu pretendo
mestrado. Fodeu. Meu patrão está descontente. Quer
um jornal feito só para ele. Estrutura? A gente tem que se
virar, no final do dia ele quer matéria polêmica. Sábado à
tarde... Fiquei sem o curso, sem a grana e frustrada. Na
cabeça dos estudantes de jornalismo não passa muita
coisa. Na minha, que já me formei, milhões de questionamentos, dúvidas, incertezas e uma imensa tristeza, por
não conseguir sair do lugar, dentro do nosso sistema. Se
estiver animada, à noite vou a um evento de hip-hop, buscar na minha cultura, marginal, algo que ainda me faça
sonhar... E se estiver animada, escrevo uma matéria.
O texto continua no ar e recebe comentários até hoje. É
normal que pessoas que frequentam o site tenham opiniões parecidas, sobre luta, desigualdade e escravidão mental. Naquele dia entendi que não há parto sem dor e que o
descaso é a melhor arma para que saiam bons textos.
Fui convidada pelos moderadores da “Ciranda” a escrever textos com uma periodicidade maior. Topei. Afinal,
era meu trabalho sendo reconhecido. A partir daí, percebi que havia voltado a escrever como deveria ser. Com
a alma, com o coração, com a experiência da quebrada.
Como uma manifestação de amizade ao Buzo, após as
brigas por conta da entrevista numa revista, resolvi fazer
uma matéria com ele e soltar no blog, no “Ciranda” e muito
tempo depois ela também entrou no jornal como parte de
uma série especial que criei.
No ar: o hip-hop
201
Gosto bastante do texto porque foi um dos primeiros em
que pude misturar jornalismo e literatura marginal numa
mesma fórmula e que deu certo. Eu podia imaginar, mas
não tinha a certeza de que, mais adiante, muitos textos
e construções semelhantes me aguardavam.
Poeta do gueto
Hip-Hop, literatura marginal e o sistema são discutidos
pela escritor da periferia Alessandro Buzo.
Palavras... pedras... duras palavras que mais parecem
pedras e que ecoam dos lugares mais distantes, lá da
favela, como um grito ensurdecedor, sem ligar para
regras gramaticais, a poesia da periferia transforma
as letras em desabafo, em poesia e recria um estilo: a
literatura marginal.
“É um tapa na cara do sistema”, afirma o escritor Alessandro Buzo, 34 anos, ao se referir ao estilo de escrita
dos poetas do gueto.
O escritor, que teve seu primeiro contato com a cultura
hip-hop quando esta chegou ao Brasil, há mais de vinte
anos, é autor de quatro livros independentes no país. O
primeiro deles é intitulado “O Trem - Baseado em fatos
reais”. O segundo, traz o nome que Buzo usa na sua marca
e no blog no qual relata seu cotidiano e as indignações
contra o sistema: “Suburbano Convicto - O Cotidiano do
Itaim Paulista”.
Em 2005, Buzo lançou seu terceiro livro, chamado “O Trem
- Contestando a versão oficial”. Em 2007, lançou “Guerreira”, o primeiro romance de uma série de fatos reais e,
por último, em 2008, o “Favela Toma Conta”. Quando questionado sobre a maior dificuldade em ser um escritor marginal, Buzo afirma: “Minha maior luta é conseguir vender
os livros de mão em mão, de mano em mano.”
202
Traficando conhecimento
No ar: o hip-hop
203
204
Traficando conhecimento
No entanto, ele conta, feliz, que o livro “Guerreira” será
relançado no meio deste ano por uma editora grande,
com distribuição nacional nas livrarias. Fora os trabalhos
independentes da literatura, Buzo participou de coletâneas como “Rastilho de Pólvora - Antologia poética do
Sarau da Cooperifa” e “Literatura Marginal - Talentos da
escrita periférica”, organizado por Ferréz.
Informação é fundamental
“Hoje, 90% do que eu ouço em casa é rap nacional, desde
que me envolvi mais com a cultura, passei a promover
eventos, vender shows de grupo, só depois de pesquisar
e me informar sobre o movimento através de jornais e
revistas é que eu virei escritor”, conta Buzo, lembrando
que a boa informação dentro do hip-hop é fundamental.
Ao referir-se ao real significado da cultura, o escritor,
que dedica-se a vários eventos e projetos sociais,
afirma que a palavra que lhe vem primeiro a mente é atitude. “Quem é do hip-hop não fica rebolando a jaca nem
ouvindo modinhas, são jovens mais instruídos”, afirma.
Dentre os trabalhos atrelados ao hip-hop, Buzo conta
que promove o evento “Favela Toma Conta”, que já teve
11 edições, em que grupos de rap, famosos da cena paulistana como o extinto RZO, De Menos Crime, Thaíde,
DMN, Expressão Ativa, Tribunal MC’s, Cabal, entre outros.
“Geralmente são festas na favela, sem cobrar ingressos. O
objetivo é promover o entretenimento para a periferia”, diz.
Através do conhecimento, o 5º elemento do hip-hop,
incorporado na cultura posteriormente, pela Universal
Zulu Nation, Buzo montou uma biblioteca comunitária no
bairro onde mora, a fim de levar informação e entretenimento, através da literatura, para as crianças e jovens
carentes do Itaim Paulista, Zona Leste da cidade de São
Paulo, onde vivem 320 mil habitantes. “Pelo 5º elemento
eu também participo como colaborador de vários sites e
No ar: o hip-hop
205
blogs ligados ao hip-hop e atuo, também, como repórter
colaborador para a revista Rap Brasil. Tento ajudar de
várias formas”, conta.
E no dia a dia...
“Meus contos são ficção, mas sempre relatam histórias
que poderiam ter acontecido. Vejo acontecer parecido na
minha quebrada”, informa Buzo, quando questionado a
respeito de como é a literatura marginal que ele produz,
e diz ainda: “Me baseio no meu cotidiano, passo para o
papel as dificuldades do dia a dia”. Para o escritor, a literatura marginal assusta o sistema, porque segundo ele:
“A elite pensava que não sabíamos nem ler e, agora, estamos escrevendo livros. Só tem conhecimento quem pisa
no barro, quem sobe e desce o morro, quem atravessa
suas vielas. Acho que a literatura marginal é importante,
porque a cena está forte e não é só modinha.”
Buzo, atualmente, tem uma rotina tranquila, um pouco
diferente até do que da maioria dos moradores do Itaim
Paulista. “Acordo cedo, passo a manhã com minha esposa
e meu filho de sete anos, pois gosto de tomar café em
casa, tranquilamente, com eles. Depois vou trabalhar
na DGT Filmes, uma produtora de vídeos, onde faço o
horário de 12h às 19h. No meio tempo, escrevo minhas
colunas, atualizo meus blogs e faço palestras e oficinas.
Assim é meu dia a dia”, relata o autor, que diz adorar
música, cinema e leitura, mas “detesto orkut, programas
de fofoca, novelas, reality shows, falsidade e gente que
só reclama”, desabafa.
Dos problemas e soluções
“A elite precisa entender que não dá para se morar em um
palácio ao lado de uma favela, então, é utopia acreditar
no fim da desigualdade social”, afirma Buzo, convicto. O
escritor não vê o fim da desigualdade social no Brasil,
alegando que ela sempre existiu, mas acredita em uma
206
Traficando conhecimento
redução. “Precisamos de programas de distribuição de
renda, de empregos com melhores salários”, reivindica.
Durante a entrevista, Buzo é questionado sobre a notícia
publicada pelo jornal Folha de São Paulo que dizia que
mendigos da Praça da Sé serão retirados do local durante
a visita do Papa Bento XVI ao Brasil e afirma: “Acho que
deveriam tirar os mendigos não só da Praça da Sé, mas
de todo o Brasil e levá-los para lugares limpos, onde eles
possam retomar suas vidas e não só tirar porque o Papa
vem, porque o Bush vem e depois devolvê-los para as
ruas, sem nenhuma perspectiva de vida”, reflete.
Para ele, a saída dos problemas sociais seria mais estudo
e leitura. “O povo tem que parar de se alienar através da
TV e ler mais, o hip-hop é uma porta para isso, pois é uma
cultura que vive constantemente em movimento. É a cultura dos favelados e não vão tomar o hip-hop da gente,
ele é nosso”, diz.
Planos para o futuro
Sem nunca parar, o escritor está abrindo uma loja,
Suburbano Convicto, e diz que terá mais um “corre” no
cotidiano, além de estar se dedicando a um novo livro,
com o título provisório de “Profissão MC” e a um outro,
praticamente pronto: “Do conto à poesia”.
Tudo isso sem deixar de lado as palestras e oficinas
sociais, sempre disseminando a cultura hip-hop na
cidade de São Paulo e em todo país. Ao deixar uma mensagem, Buzo é direto: “Desligue a TV e leia um livro.”
Era chegada a hora de procurar os eventos e iniciar o
que já estava planejando há tempos. Voltar a ler os textos de literatura marginal nos intervalos dos shows.
Com muito mais propriedade do que quando o meu
primeiro texto foi lido em uma roda de amigos de uma
crew ou em um evento de bairro, passei a frequentar os
No ar: o hip-hop
207
festivais de hip-hop, de dança, as batalhas, novamente
e sempre levando um pouco do meu trabalho. Os poucos
exemplares do livro que tinha, sempre pedia que anunciassem em sorteios ao final das competições. O bacana
era ver a cara de espanto de muitos jovens da periferia
de Poços de Caldas ou das cidades vizinhas, que vinham
em excursões para as competições. Eles sempre exclamavam: “Puxa! Existe um livro sobre hip-hop. Foi escrito
por alguém do nosso meio.”
Toda lisonjeada eu fazia questão de parar para conversar, cumprimentar, além de sempre acompanhar quando
alguém subia no palco e lia um texto, sempre alguns dos
antigos, dos produzidos na época na faculdade sobre
jornalismo e outros sobre periferia, dos que havia guardado. Diferente e inspirador. Assim eu via os textos
sendo lidos e o pessoal, sempre na plateia, observando
e se perguntando de onde surgira aquela novidade.
Mesmo quando eram eventos pequenos, com pouco
mais de 100 pessoas, eu ficava encantada por participar. Por um lado eu gostava de estar rodeada pela cultura e por outro porque era uma chance de divulgar o livro
e alguns textos. Ainda sem um movimento específico,
minha cabeça não parava de fervilhar de ideias.
Mais rápido do que imaginava, minha pequena obra se
tornou conhecida e alguns eventos beneficentes do
bairro passaram a me convidar para aberturas e para
ler alguns textos, que sempre versavam sobre os menos
favorecidos socialmente. Conciliando com o trabalho no
jornal, que, de alguma maneira, também rendia alguma
popularidade, eu podia frequentar os eventos e somar,
apresentando sempre algumas pequenas frases relacionadas à periferia.
Oficinas
Em roda, uma meia dúzia de alunos esperava, de forma
dispersa, que alguém começasse a lhes falar sobre literatura – talvez uma das matérias que eles menos gostassem por ter de ler e escrever, hábito muito distante
da realidade na periferia.
Sem expressão de contentamento, eles me receberam
pela primeira vez, desde que propus ao diretor da instituição de ensino algumas oficinas voluntárias àquelas crianças e jovens sobre literatura. Claro que, para
não assustá-lo e colocá-lo no pano do preconceito, não
revelei, logo no início, que era uma oficina sobre literatura marginal/periférica.
Com o livro nas mãos, era impossível disfarçar o nervosismo e tudo que havia pensado para falar parecia um
ponto distante naquele momento. Não sabia como encarar, pela primeira vez, aqueles alunos que pareciam não
estar gostando nem um pouco de estar ali, aguardando
uma manifestação minha. O pior era quebrar o silêncio. Não havia nem um zunzunzum para eu esperar ou
mesmo relembrar a programação mentalmente.
Devagar e improvisando – como as melhores coisas
acontecem – me apresentei e expliquei o porquê de estar
ali. Li o texto de introdução do livro e me senti lendo em
208
210
Traficando conhecimento
voz alta no meu quarto. Nenhum murmúrio. Propus uma
roda e um bate-papo. Cansei de ouvir minha própria voz.
A sensação era de que os garotos queriam testar minha
vontade e disposição de voluntária para lhes apresentar
à literatura feita nas quebradas.
Com a persistência nata de quem vem do gueto, mantive o sorriso no rosto e a mesma garra com a qual idealizei utilizar o hip-hop para mudar vidas. Mudei a abordagem e contei uma história pessoal. Notei uma leve
mudança de expressão. O tempo da oficina daquele
mês estava acabado.
Foi assim que comecei e, logo na primeira vez, me senti
não exatamente triste, mas decepcionada, porque os
estudantes não se mostraram exatamente empolgados. Não tive muito tempo para chorar e, tampouco,
alguém para me consolar. No meu universo de convívio, as pessoas que estava lidando achavam loucura eu
perder o pouco do tempo livre que tinha com garotos
que, segundo elas, não tinham qualquer futuro, e tampouco interesse pela literatura, mesmo que ela fosse
ligada a uma cultura marginal.
Como vim de onde eles estavam julgando e talvez, em
algum momento, tenha sido também uma estatística ou
alguém que, para eles, não deveria estar estudando ou
mesmo apreciando a leitura, dei a cara para bater e continuei, sem esmorecer.
Na segunda vez, passei a notar que o motivo da falta de
interesse era muito além das oficinas que eu propunha.
A escolha de quem iria participar era feita de acordo
com aqueles que se recusavam a assistir as aulas e causavam algum tipo de transtorno na escola, então eram
obrigados a ir, uma vez por mês, no período noturno,
assistir a uma oficina. De forma simples, comecei com
No ar: o hip-hop
211
alguns textos do livro e alguns materiais colhidos nas
pesquisas, como textos em revistas, letras de musica e
histórias de personagens reais do hip-hop.
Quando passei a falar a linguagem deles fui aceita de
forma melhor e quando lhes mostrei o texto “O homem
do gueto”, muitos passaram a se interessar. A oficina
era básica. Líamos, numa roda formada, os textos que
levava e discutíamos alguns aspectos. Na sequência, lhes passava algumas atividades e perguntas para
serem respondidas em casa e levadas na próxima vez.
Mesmo com as dificuldades do espaçamento das oficinas, o saldo estava sendo positivo. Pelo menos comigo,
todos eles mudaram a postura e se mostraram mais
interessados. Claro que isso aconteceu de forma gradativa, quando fui mostrando que já havia enfrentado as
mesmas dificuldades financeiras, os preconceitos, mas
sempre com uma diferença: a de gostar de ler e escrever. Algum tempo depois um garoto trouxe um pequeno
texto. Devia ter umas oito linhas e falava sobre o pai
bater na mãe, mas escrito de uma forma bem sutil, então
o incentivei a escrever mais e, exceto pelos erros gramaticais, que até eu tenho, aos montes, ele estava escrevendo muito bem.
Sem que eu, os professores ou mesmo aqueles jovens
percebessem, a literatura já havia tomado parte na vida
deles e o velho estigma de que o brasileiro não gosta
de ler estava sendo deixado de lado. Por serem iniciantes, além dos textos que distribuía, sempre retirados de
livros do Ferréz, Sérgio Vaz, do blog do Buzo ou ainda que
eu mesma havia escrito, gostaria que eles lessem muito
para as próximas oficinas e fiquei bem feliz por ver que
a sugestão que dei, adequada para a idade deles, foi a
coleção do Pedro Bandeira, autor brasileiro que trazia
a história de um grupo de adolescentes aventureiros e
212
Traficando conhecimento
acostumados a resolver problemas incríveis, chamados
“Os Karas”, que tinham uma garota como parte do grupo,
foi bem aceita.
Quase todos conseguiram pegar, na biblioteca da própria escola, os livros do Pedro Bandeira e pela história
ser também próxima da realidade, passaram a discutir
entre si e, assim, chegaram com a novidade:
— Olha, dona. Você falou que ler é bom e, realmente, é mesmo.
Estamos nos sentindo os Karas dos livros, tem mais alguma
indicação, é?
Puxa, já não cabia mais nos meus 100 quilos, de tanto
orgulho e felicidade. Eles, que nunca haviam tido interesse por qualquer tipo de leitura, estavam me pedindo
sugestões. O bacana mesmo era observar que aqueles
jovens, até então sem qualquer perspectiva de futuro,
estavam adquirindo senso crítico através da leitura, formando a própria vida com caráter e humildade, além de
muita coragem para seguir adiante, vencendo as dificuldades diárias do submundo periférico.
A vida é mesmo engraçada. Nestes momentos que eu
lembrava de palavras de agitadores culturais que sempre
me incentivaram. Eles diziam que, com pouco, podemos
fazer toda a diferença e bastaram poucas oficinas para
que aquela meia dúzia de garotos com comportamento
ruim estivessem dedicando boa parte do tempo à leitura.
Em outro encontro um deles veio me contar que tinha
encontrado um livro do Ferréz na biblioteca da região,
onde ele havia feito uma ficha para empréstimo, e que
estava tentando ler e entender mais. Percebi que a literatura tinha ganhado a quebrada e ambas nunca mais
seriam as mesmas. Pequenas conversas como estas me
faziam ter mais ânimo de prosseguir e, por ser uma pessoa do bairro, talvez tenha facilitado também as coisas.
No ar: o hip-hop
213
No jornal, em curtos períodos, matérias sobre voluntariado e pessoas que praticavam o bem em comunidades
carentes eram frequentes e foi durante uma entrevista
que descobri uma associação em outra parte da minha
quebrada.
No Jardim Kennedy II, uma senhora mantinha uma sede
onde mães aprendiam tricô, crochê e pintura em panos
de prato, tendo a chance de aprender algo e ampliar a
renda familiar, ao mesmo tempo em que os filhos ficavam como monitores, recebendo aulas de capoeira ou
dança. Propus a ela um evento pequeno de hip-hop, talvez em um domingo – quando tinha mais tempo – e as
opções de lazer e ocupação para as crianças eram nulas.
Organizei, junto com os amigos da antiga, um evento
pequeno. Apenas um minishow dentro da sede com
alguns textos lidos e distribuídos. O ponto alto foi quando
dois dos garotos da oficina apareceram no local, conferindo o que estava acontecendo e me reconheceram
nessa ação. De repente, senti que um resultado, mesmo
que pequeno, estava surgindo, sem qualquer exigência.
214
Traficando conhecimento
No ar: o hip-hop
215
No ar: o hip-hop
Uma letra, um beat
Vendendo meu próprio peixe, colocava tudo que podia
na internet e através de sites, blogs e comunidades do
orkut, além dos amigos, fazia questão de propagar o meu
livro. Não me lembro como, mas ele chegou ao conhecimento de Bruno, um garoto da minha idade, que vive em
Belo Horizonte que me pediu que lhe enviasse o texto
em pdf. Assim o fiz e ele me escrevia todos os dias para
dizer como o hip-hop era bom para ele e como ele estava
crescendo após ler um pouco mais sobre o surgimento e
propósito da cultura.
Os e-mails se tornaram mais longos ao passar dos dias
e, quando ele me perguntou sobre a outra autora —
Anita —, eu lhe contei de forma resumida toda a história. Notei que ele se entristeceu e, mais uma vez, ouvi a
frase que pontua toda esta caminhada: o hip-hop salvou
a minha vida. E me disse que fez ele enxergar com outra
perspectiva o futuro e não se aliar às drogas, apesar dos
convites, que tanto ele como eu sabemos que chegam
aos montes e quase diariamente.
MC do grupo Elemento.S, que, na ocasião, estava começando, ele me pediu autorização para gravar o texto
de abertura do livro. O objetivo era transformá-lo em
introdução para o CD do grupo. Como eu sempre ficava
216
217
pesarosa por aqueles que não sabiam ler, que eram
analfabetos e não entendiam o propósito do livro, não
acreditei quando recebi o convite. É claro que eu topei
na hora. Era mais uma oportunidade de divulgar o trabalho de uma forma não escrita e que daria a mais gente a
opção de entendimento.
Uma vez autorizado, ele me manteve informada sobre
o andamento do CD, da gravação, da escolha de outras
músicas e sempre contando episódios sobre a própria
vida e novas descobertas feitas através do hip-hop e
da literatura, que ele começou a tomar gosto. Sem que
eu percebesse, ficamos amigos. Claro que apenas virtualmente, até aquele momento, mas um elo foi criado e
graças a essa cultura, que vem dos locais mais pobres,
que está sempre à margem e que congrega tanta gente.
O Bruno é um amigo entre os muitos que fiz ao longo da
estrada, sempre na cultura periférica.
No ar: o hip-hop
Sacolinha,
vídeo-documentário
e TCCs
Ele era cobrador de lotação e, para passar o tempo,
começou a ler dentro do trem entre Suzano e São Paulo.
Com pouco mais de 20 anos já tinha o primeiro romance
escrito e renovava, também, a cena da literatura periférica do país. De codinome curioso, Sacolinha chamou
minha atenção através de um blog e de uma entrevista
para uma revista. Embora não se considere como autor
marginal ou periférico, despertou meu interesse pelos
livros que ele mesmo escreveu.
Através do contato que alguém me conseguiu, escrevi
para ele, que me passou o telefone e travamos contato
em tempo real. Ele me explicou como fez para editar o
primeiro romance “Graduado em Marginalidade”, que
traz uma história de lugar-comum, mas de forma completamente diferente. Um dos críticos o considerou um
enxadrista, pelas sacadas geniais do texto e o xequemate da narrativa. Assim o vi também, e me apaixonei
pelo texto, pelo blog, pela história de vida e pela amizade. Mais uma travada através da internet e que só veio
a somar para as minhas vontades e iniciativas.
Agitador cultural e disseminador da cultura no Brasil, através de e-mails e envio de materiais, Sacolinha me ensinou como eu poderia, de repente, mesmo à contramão
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de tudo, trabalhar com literatura de forma voluntária e
ainda, editar meu livro de forma independente. A troca
de ideias me trouxe mais um amigo de literatura, de
resistência, de movimento, de futuro.
O Sacolinha foi uma pessoa que me deu total apoio e
em agradecimento, fiz uma resenha bem bacana sobre
o livro “Graduado em Marginalidade” e publiquei no site
“Leia Livro”. Ganhei um incentivo a mais, para me tornar, quem sabe, crítica da literatura marginal, avaliando
talvez as histórias escritas por quem é massacrado nos
ônibus, em casa, nas bebidas, na panela vazia, no bolso
furado e na janela sem esperança. Pensei sobre isso e
continuei a ler , recebendo com enorme carinho os materiais de Suzano que ele me mandava, como livros editados através de programas da cidade, revistas e materiais de autores também iniciantes.
Minha maior surpresa – e satisfação – é que eu já não
tinha mais exemplares, dos poucos que fiz, do meu próprio livro para distribuir, doar, vender, enfim, fazer nada e
mesmo assim, o trabalho era reconhecido e cada dia mais
pessoas chegam até mim em busca de informações sobre
hip-hop, ora para fazer trabalho, ora por curiosidade.
Uma das pessoas que chegou até mim, também em
busca do livro para usar no TCC, foi a Érica Guimarães,
na época, estudante de jornalismo em Campinas. Junto
com uma turma ela estava fazendo um vídeo-documentário sobre hip-hop para o TCC e me pediu o texto
do livro para servir como referência bibliográfica. O
mais engraçado é que, quando ela me mandou o texto
pronto, eu comecei a ler e reconheci uma frase, sem dar
conta de que era minha mesma, retirada do livro, numa
das contextualizações sobre o rap.
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Traficando conhecimento
Imensurável o tamanho do orgulho que senti, por ver
meu trabalho, mais uma vez, sendo utilizado de forma
positiva e acadêmica. A minha tristeza foi não ter mais a
Anita por perto para dividir o momento. Mas, como a vida
segue, logo na sequência, um outro grupo de estudantes solicitou minha amiga para responder algumas perguntas sobre o hip-hop. Mandei o livro, mas não adiantou. Eles tinham pressa de montar um documentário e
queriam algo de forma mais resumida. Fiz isso para eles
e, daí em diante, os convites para gravações em novos
documentários e os pedidos de livros não pararam de
chegar. Era a revolução acontecendo, pelo menos, ainda
que de forma modesta, na minha vida.
No ar: o hip-hop
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No ar: o hip-hop
Mixando
Um assunto bom, novo, que chame atenção, renda interesse e se transforme em venda de jornal, de espaço
publicitário na rádio e que nos deixe com a sensação de
dever cumprido. Este é o desafio diário de ser jornalista.
A notícia fica velha com uma rapidez incrível e encontrar
coisas novas, a todo o momento, é uma tarefa incrivelmente árdua e absurdamente prazerosa.
Com poucos meses de trabalho no jornal, fiz amizade
com grande parte da imprensa local. Algumas pessoas
eu já conhecia da época da faculdade, então, somando
forças, formei uma parceria com o jornalista Eduardo
Correia, que trabalhava na Rádio Difusora e, também,
na TV Plan, duas empresas de um mesmo grupo e com
parceria com o jornal em que eu estava. Assim, saíamos
juntos no carro da rádio todas as manhãs para fazer as
matérias. O mínimo eram três matérias, algumas vezes
conseguíamos mais, outras menos. A união tornava a
prática do ofício ainda mais estimulante.
Também, na mesma rádio, trabalhava a editora do jornal.
Pela manhã ela fazia produção na emissora e apresentava um programa na FM e à tarde, editava o jornal. Como
estava sempre com o Eduardo, quase todos os dias passava pela rádio e foram momentos fundamentais, que
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223
me ensinaram muito sobre a arte do radiojornalismo. O
Edu foi um grande professor e muito do que sei hoje na
prática, eu devo a ele.
Logo nas primeiras semanas da nossa parceria, fui com
ele até a rádio gravar uma entrevista e um dos apresentadores do programa da FM estava atrás de um jornalista para participar como convidado do dia. Como o programa durava até às 13h e invadia o horário de almoço do
Edu, ele passou a bola para mim e disse que eu me sairia
muito bem no programa – Mix 104+ – que reunia informação e bom humor.
Sempre dada aos desafios profissionais, topei no ato
participar e a pauta ficou em torno do meu trabalho como
recém-formada e mais, a minha atuação com o hip-hop.
Pude, em uma segunda vez, na mesma rádio, contar
um pouco da minha trajetória, dos meus objetivos e do
trabalho que desta vez estava ainda mais consolidado.
Exemplos vividos nas oficinas, trechos do livro lidos
durante o programa e inúmeras perguntas marcaram
a minha primeira participação no quadro. Enquanto eu
dava a entrevista no programa de duas horas, o apresentador Francis, que mais tarde se tornou um grande
amigo e incentivador, lia alguns textos e eu fiquei impressionada com o poder do rádio. O programa permitia participações ao vivo e muita gente ligava querendo saber
onde comprar um exemplar ou como fazer para implantar oficinas, conhecer mais, enfim.
Prometi outras participações e a Neusa, que trabalhava
lá e editava o jornal, disse que não me deixaria escapar
tão facilmente das programações. Na semana seguinte
fui novamente convidada para participar do programa,
desta vez para ajudar a entrevistar uma pessoa. Fiquei
bastante lisonjeada. Eu não ganhava nada para estar
lá e, na maior parte das vezes, sacrificava o horário de
224
Traficando conhecimento
almoço e ainda tinha que almoçar em restaurante, o que
descontrolava o orçamento, mas, mesmo assim, era
muito bom poder falar para um grande número de pessoas e fazer parte do programa mais ouvido da rádio.
Durante a segunda participação também pude falar
mais sobre os projetos sociais das oficinas, eventos de
hip-hop e mais sobre o livro, a experiência de vivenciar e
reportar esta cultura marginal e também, como era ser
repórter recém-formada e tudo mais. Eram duas horas
que passavam tão rapidamente que eu ansiava por
novos convites.
O pessoal da rádio gostou das minhas participações e
apenas alguns dias depois a Neusa me convidou para
fazer parte de um programa matinal da AM que tinha o
nome de “Debates Populares”, quando assuntos daquele
dia eram postos em pauta e discutidos com jornalistas, políticos, apresentadores, populares. Tinha quinze
minutos de duração e era apresentado pelo Ricardo Luiz,
locutor, ex-dançarino de street dance – começou no hiphop no início dos anos 1990, assim que ele chegou na
cidade – e, também, gerente geral da rádio. Pelo ponto
em comum – a cultura hip-hop – também nos tornamos
colegas e eu passei a participar, ao menos uma vez, dos
“Debates Populares”.
Com participações simultâneas na AM e FM da rádio,
fiquei um pouco mais conhecida na cidade, o que facilitou as minhas incursões em outras escolas, centros
comunitários e bairros para pequenas oficinas, mesmo
com um único dia ou período de duração, mas que, pelo
que podia observar, transformavam a realidade daquelas crianças e jovens.
Sempre acreditei – e já mencionei aqui – que vejo o rádio
como o veículo de comunicação mais democrático que
existe, pois enquanto as pessoas ouvem o rádio podem
No ar: o hip-hop
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estar envolvidas com outras atividades e ele não atrapalha em nada, além de ser super dinâmico – é possível
entrar ao vivo, pelo telefone ou celular, de qualquer local
e passar uma informação em tempo real – e ter uma linguagem coloquial, entendível por qualquer pessoa, seja
ela alfabetizada ou não. Enquanto ele é tudo isso, o jornal impresso é mais profundo, mais detalhista, com uma
notícia mais apurada, mais firme, mais consistente: um
documento.
Foi uma época de muito encanto, quando podia me
envolver com as duas atividades e me deliciar com
cada uma delas. Eram dias de muito trabalho e super
lotados de afazeres, entretanto, eu tinha de fazer tudo
naquela época. Várias vezes, no Mix, o Francis me deixou ler textos meus, feitos recentemente, ao vivo, além
de divulgar textos em blogs, sites, no jornal e sempre
comentar das oficinas.
Pelo MSN, onde mantínhamos contato direto, sugeria
entrevistados e pautas e sempre puxava sardinha para o
lado do hip-hop, claro, como quando pude levar, pela primeira vez, o UClanos para participar do programa e tocar
ao vivo algumas das novas composições do grupo. Outra
vez foi quando Francis me ligou desesperado pedindo
que eu participasse do programa que iria um grupo novo
de rap na cidade e que ele queria alguém que entendesse
para entrevistá-los.
Após este programa, a dona de uma autoescola que fica
em frente ao estúdio da rádio conseguiu meu telefone
pessoal no jornal e me ligou pedindo o contato do grupo,
que fez uma música que se trata de um alerta sobre
o trânsito e a direção perigosa e ainda fez questão de
comprar um livro, me fazendo prometer que quando eu
lançasse um segundo, guardaria um exemplar para ela.
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Traficando conhecimento
No ar: o hip-hop
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Traficando conhecimento
O reconhecimento do rádio também era uma coisa que
me deixava bastante feliz. Por ser tão abrangente, muita
gente ficava se perguntando como eram as pessoas que
atuavam lá. O Francis, a Neusa, outros apresentadores e até eu mesma e quando descobriam orkut, MSN,
e outras ferramentas virtuais, não paravam de escrever
querendo ver pessoalmente e tudo mais. Aí então percebi o valor e a responsabilidade das informações.
Minha parceria com o Edu continuou, estávamos sempre
juntos, fazendo as matérias pela manhã e tentando praticar um jornalismo responsável no município, quando,
numa segunda-feira bem cedo, meu telefone toca.
— Alô.
— Jéssica. Bom dia. (reconheci a voz bem impostada de
locutor de rádio).
Interrompi:
— Fala Francis! O que você manda?
— Você pode me salvar? A Neusa está doente e não
vem trabalhar hoje. Estou desesperado, não sei fazer o
programa sozinho.
— Claro, pode contar comigo. Às 11h, estarei aí.
E assim foi. Cheguei na rádio também ansiosa, afinal,
eu sempre participava ajudando nas entrevistas, mas
nunca havia sido âncora. Tomei coragem e fomos para
o estúdio. No ar o programa fluiu tranquilamente e ao
término conseguimos arrancar elogios dos donos da
rádio. Embora eu não ganhasse um só centavo por estas
participações e tudo mais e muita gente me criticasse,
achando que eu deveria cobrar ou então abrir mão, eu
ganhava bem mais que isso. A experiência em trabalhar num programa de entretenimento ou de participar
de debates era algo incrível. Nenhum dinheiro poderia pagar tudo que eu estava aprendendo. Aos poucos,
fui também arriscando algumas matérias para a AM.
No ar: o hip-hop
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Quando eu ia sozinha, no período da tarde, entrevistar
alguém, no outro dia passava esta entrevista ao Edu e
elas iam ao ar, com as minhas perguntas, intervenções
e com a minha voz.
Outro fator positivo era a popularidade concedida pelo
rádio, que me impulsionava ainda mais a buscar outros
trabalhos voluntários e sempre ligados à cultura marginal.
No ar: o hip-hop
Pelas periferias
do Brasil
Entre pautas, e-mails, MSN, telefone tocando e gente
berrando, numa cena típica de qualquer redação de jornal do Brasil é que eu recebi, de forma bastante natural,
o convite para participar da coletânea “Suburbano Convicto – Pelas Periferias do Brasil”.
Era o início do projeto e o Buzo me disse ter gostado de
alguns textos meus que circulavam na rede e queria que
eu somasse ao livro. Quase sem reação – mas explodindo de felicidade – aceitei no ato e pensei em como
a vida é engraçada. Poucos meses antes eu estava trocando farpas com ele via internet e agora ele me convidava para participar de um livro que seria mais um
ponto de mudança na minha existência. A regra para
participação era morar na periferia, estar envolvida, de
alguma maneira, com a cultura marginal e ter ou participar de algum projeto social, além de ser iniciante no
mundo da literatura, ou seja, não ter nada publicado
por alguma editora grande. Inicialmente eu atendia os
requisitos e estava dentro.
O desafio era produzir ou usar textos já feitos, mas que
versassem sobre o tema que eram as periferias. Quanto
mais perto da realidade da própria quebrada, melhor.
Aos poucos o Buzo montou uma lista de e-mails coletiva
que era praticamente um fórum, onde todos escreviam,
perguntavam e trocavam mensagens. Fiquei surpresa
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por ver que eu era a segunda mulher do livro. Além de
mim, do sexo feminino havia apenas a Mary do Rap, do
Rio Grande do Sul.
Curiosa por conhecer cada um dos outros 12 autores de
outros seis Estados do país, passei a responder alguns
e-mails e tentar firmar amizades. É incrível como a afinidade virtual acompanha a da vida real e cada pessoa
reagiu de uma forma, mas todos me escreveram. Minha
maior curiosidade era saber, por meio dos textos, como
era a periferia e a vida de cada um. Alguns prazos foram
dados para envio dos textos e também das fotos (com
qualidade) para compor o livro, uma vez que cada autor
teria o rosto estampado antes dos textos.
No prazo final, mandei os textos, paguei a pequena participação de cada um e aguardei a resposta, quando veio
um e-mail do Buzo lamentando e dizendo que faria de
tudo, mas que outra parte da organização estava barrando meus textos. Fiquei tão desnorteada que nem
lembro direito o motivo. Talvez fosse porque os meus
projetos sociais fossem espaçados e não tivessem ainda
um nome específico. Apesar das oficinas e eventos que
eu participava como idealizadora e tudo mais, talvez não
fosse suficiente para aprovação para ter o nome do livro.
Três dias depois – de pura agonia durante a espera – Buzo
me mandou um novo e-mail, dizendo que havia batido o
pé – e na mesa também – praticamente exigindo a minha
participação e apoiado no meu texto “Olhar para o hiphop que ...”, feito para a introdução do livro-reportagem
“Hip-Hop – A Cultura Marginal” e que ele havia gostado,
por isso, se tornou parte do Suburbano e, também, com
o texto “Será mesmo uma ironia”, produzido com base
numa charge do Angeli que toda a turma de jornalismo
do 4° ano, isso na época da faculdade, devia analisar e
escrever um texto sobre. Inspirada pelos textos da revista
“Caros Amigos” naquela época, produzi o seguinte:
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Traficando conhecimento
Será mesmo uma ironia?
Casas sem reboco, dependuradas nos morros e encostas,
vielas sujas e abandonadas, o mau cheiro dos esgotos a
céu aberto misturam-se com o mau cheiro da violência.
Milhares de crianças estão sem escola, envolvidas com o
tráfico de drogas. A violência é generalizada. Exploração
do trabalho. Subemprego, ônibus, trens e metrôs. Chacinas e invasões policiais.
Este é o retrato da senzala moderna, mais conhecida
como favela, periferia ou gueto. Crianças estão jogadas,
largadas por todos os cantos, tentando fazer do duro e
sofrido dia a dia algo mais leve e alegre. Os campinhos de
futebol estão presentes em toda parte, na terra batida,
com traves improvisadas e bolas roubadas.
“— Aqui não era para ser um campo de futebol?” perguntam alguns garotos ao se depararem com um cemitério
clandestino no meio da favela.
Sim, a sociedade promete, a elite ironiza, e a guerra continua. A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco
de quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo,
como indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas
desesperadas, de quem já previa o futuro do filho.
A cena é típica em qualquer “submundo” brasileiro. E, por
mais que os habitantes dos morros gritem por socorro, a
resposta vem como um tiro de fuzil, disparado por policiais, toda semana na quebrada.
Aliás, a polícia e a sociedade matam mais do que a AIDS.
Uma situação irônica? Acho que mais triste e desesperadora do que qualquer outra coisa.
Que futuro tem a criança que dribla a bola em meio aos
corpos caídos na favela? Pelos becos e vielas também
há outros, esperando uma vaga no novo “cemitério” que
está sendo construído.
No ar: o hip-hop
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Do lado de lá, no asfalto, a “burguesia” delicia-se com o
fato irônico, tentando explicar como ele foi descoberto,
contanto piadas acerca da situação. A imprensa adora,
é mais sangue estampado na primeira página. É uma
branda denúncia ao sistema?!
A solução? Ninguém conhece. Se conhece, desconhece.
O menino que queria o campo de futebol prometido sonha
a noite, com uma bola nova, um par de chuteiras, e um
campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de esperar, crescer para poder virar ladrão, traficante e respeitado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele não
morrer e cair na cova de mais um cemitério que poderia
virar quadra esportiva.
E mesmo contra a vontade de alguns, eu pulei para o
lado de dentro do muro. O próximo passo era aguardar
a impressão e acompanhar os passos por e-mail. O feitio da capa. Cada autor também deveria responder uma
entrevista para o Buzo, que iria para o site Buzo Entrevista e em uma das principais perguntas, sobre como
estava sendo participar da coletânea, eu disparei: “Só
é positivo” e ainda pontuei ser por conta dos amigos feitos, a chance de praticar a profissão e também de fazer
bons e grandes amigos. E foi justamente isso que ficou,
até porque os 30 exemplares recebidos por cada autor
acabariam rapidamente, mas as portas abertas e os
contatos feitos seriam por toda jornada.
E assim foi. No dia 25 de setembro de 2007 – data do
aniversário do Buzo – estava marcada a festa de lançamento na Ação Educativa, em São Paulo. Tudo era
novidade. Embora os autores marginais estivessem lançando livros com uma frequência cada vez maior, ainda
não era semanalmente e o lançamento fez um pouco de
barulho e chamou atenção.
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Traficando conhecimento
No ar: o hip-hop
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Traficando conhecimento
Antes de ir comuniquei aos garotos das oficinas e todos
ficaram muito orgulhosos, afinal, o que eu falei logo nos
primeiros encontros estava realmente acontecendo e
era época de colher os frutos e um trabalho bastante
árduo. Para faltar ao emprego, tive de deixar matérias
frias prontas e pedir, meses antes e com muito jeitinho
ao meu patrão, que eu sabia, não gostaria que eu fosse.
Não havia como não ir.
Emoção. Assim pode ser resumido, seguramente, um
dos dias mais felizes da minha vida. Entre muitos livros,
revistas e publicações de todos os cantos do Brasil, eu
deixei a sede da ONG Ação Educativa mais de 0h, acompanhada pela minha família e com a alma leve. Eu havia
conseguido e o livro “Suburbano Convicto” estava publicado, pronto para ganhar as várias periferias brasileiras.
Este dia tão importante começou na terça-feira pela
manhã. Fiz uma extravagância para o meu salário e
fui ao salão de cabeleireiro. Tingi e fiz escova. Pintei
as unhas. Poucas foram as vezes em que fiz isso fora
de casa. A verba curta não permitia, mas para o lançamento de um livro era obrigatório.
Durante a viagem até São Paulo me deixei chorar por
um longo trecho, principalmente quando passamos por
Mogi Mirim, cidade onde vivia a Anita. Lamentei de verdade o fato dela não estar mais viva e não poder partilhar da minha felicidade.
Seguimos e o tempo voou até o horário do lançamento, às
19h, no centro. Levei toda a família — pais, irmã e sobrinhas gêmeas, na época com seis anos — além de convidar alguns amigos que nunca tinham ouvido falar em
literatura marginal, primos que cruzaram toda cidade
apenas para me ver e prestigiar o lançamento, além de
um amigo de muito tempo — do litoral — que não via há
No ar: o hip-hop
237
anos e uma amiga que conhecia pela internet há exatos
dez anos, com quem já havia trocado todo tipo de confidências, mas nunca tinha visto pessoalmente.
Em uma noite cheia de primeiros encontros e também
reencontros, me lancei ao fundo de mim mesma e reencontrei minha essência, meus sonhos, minhas verdades. Nos olhos de cada um dos participantes que sei que
estavam ali após um dia duro de trabalho e que, mesmo
assim, estavam produzindo literatura, e falavam de suas
vidas por meio dos livros. Registravam com palavras,
poesias e lançamentos de livro nossa história de guerra
urbana, civil, de opressão e descaso. Encontrei-me com
o povo que quero ao meu lado e em que acredito. Percebi o tipo de trabalho que queria fazer e a urgência com
que isso precisava acontecer na minha quebrada. Fiquei
emocionada com cada autor que Buzo chamou ao palco
e antes de entregar o microfone, falou um pouco da “biografia” e da quebrada da pessoa. Não senti meus pés no
chão quando foi a minha vez, mas não me esqueço da
cena. Embaixo do palco, meus primos me fotografavam.
Minha amiga-irmã que era de Poços de Caldas e estava
morando em São Paulo para tentar “ganhar a vida” me
olhava cheia de ternura. Minhas sobrinhas se deslumbravam com toda a cena e meus pais e irmã sorriam
orgulhosos. Os espectadores se expressavam curiosos e
atentos. Estavam ali porque queriam, ninguém os tinha
forçado a nada e era o nosso sarau, o nosso lançamento,
a nossa poesia e a nossa vida.
O Buzo sempre fez questão de frisar que nosso livro
deveria ser o livro e não apenas mais um livro que falasse
sobre periferia. Não sei para os outros 12 autores, mas
para mim foi exatamente o que aconteceu. Chegou para
somar e mudou tudo, para melhor.
238
Traficando conhecimento
Numa festa com cerveja, refrigerante e amendoins, paramos para conversar com todos, trocar informações sobre
as quebradas e nos conhecermos um pouco mais. Espantei-me quando alguém pediu que eu assinasse o livro e,
ainda mais, para tirar uma foto comigo. Fiz toda a cena
conforme deveria ser e fiquei ainda mais emocionada
quando o Buzo veio comentar o fato de eu ter levado minha
família, cheia de crianças, para conhecer mais a literatura.
Ele me disse “puxa, é superimportante ver as crianças
tão à vontade num ambiente assim, em meio aos livros”.
E foi realmente superimportante. Meu primo mais novo –
na época com oito anos – fez questão de conversar com
cada um dos autores e também tirar fotos, além de pedir
que todos autografassem o exemplar que ele comprou.
Outra cena marcante, e também inspiradora, foi ver que
um amigo do meu pai, convidado por ele, foi até o lançamento. Os dois se conheceram aos 18 anos, enquanto
serviam o exército e quarenta anos depois se encontravam para bater papo e acompanhar o lançamento. O
mais bacana é que o amigo do meu pai, um descendente
de japonês, nunca tinha ouvido falar em literatura periférica e ficou deslumbrado. Comprou dois livros e ainda
me pediu um exemplar do “Hip-Hop – A Cultura Marginal”.
Neste mesmo momento conheci o rapper e escritor Renato
Vital. Da Zona Sul de São Paulo, ele chegou de mansinho,
pediu para tirar uma foto, trocar uma ideia. Ficamos amigos, trocamos e-mails e um tempo depois, confidências.
Ganhei um texto de presente dele:
No ar: o hip-hop
Jéssica Balbino
por Renato Vital
Seu sorriso encanta
Sua coragem é tanta
Tem na mente e no coração
Armas para revolução
Sua beleza é mais do que isso
Beleza inteligência no nível
Com sua inteligência ativa
Muda as pessoas a quem cativa
Ama o Hip-Hop de coração
Considera de verdade os irmão
Vive a vida na correria
Sempre batalhando no dia a dia
Cabelos longos
Longos como a jornada
Jornalista do Jornalismo
Jornada imensa, imenso caminho
Jéssica Balbino
Seu olhar brilha
Seu rosto que penumbra
Através da luz
A caneta na sua mão
Vai desenhando o futuro
Carimbando com sua inteligência
Todo e qualquer ser imundo
Sua beleza faz parte
De sua ideologia
Que também é bela
Justiça aqui na terra
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Traficando conhecimento
Quando anda pelas ruas
As flores sentem seu cheiro
O vento sopra mais leve
E o sol ilumina seu jeito
As palavras em seu nome
Se transformam nas palavras
Desse humilde poeta
Que corteja sua face
Ela vai caminhando
Em busca de seus objetivos
Com seu charme mineiro
Olha para mim sorrindo
O seu sorriso faz parte
Da sua pessoa então
Que complementa sua beleza
Junto com sua simpatia
Jéssica és bela
Suas palavras te cercam
Seu sorriso se preza
É uma linda guerreira aqui na terra.
Incrível como uma noite tão mágica pode proporcionar
tantas mudanças e ao mesmo tempo desperta mais
interesses.
No ar: o hip-hop
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No ar: o hip-hop
Do lado de dentro
da periferia
Do lado de cá. O lado que poucos conseguem enxergar
e que é colorido pela magia das ruas, das casas simples, das pessoas cheias de vida e da realidade encoberta e deturpada pelos noticiários e donos do poder.
É deste lado que eu sempre estive e fazia questão de
estar. Estas pessoas cheias de vida são as que eu queria defender com as armas que me foram dispostas: o
hip-hop e as palavras.
Como lugar de repórter é na rua, em uma manhã eu
estava com meu parceiro de trabalho Eduardo Correia,
repórter da Rádio Difusora, quando caçávamos uma
pauta boa para o dia e nos deparamos com um menor
que abordava quem passava pelo local. O frio na cidade
era de rachar e havia chovido durante toda a noite, deixando as ruas todas molhadas. Resolvemos descer do
carro e conversar com o garoto, que quando nos viu mais
próximos ficou receoso e tentou fugir. Numa conversa
rápida ele nos contou o que estava fazendo em Poços
de Caldas e o que sonhava para a própria vida. Ainda de
forma rápida, nos disse que gostava muito de cantar e
que seu estilo preferido era o rap. A cena que já havia
chamado a minha atenção causou revolta. O jovem de 17
anos, com documentos enfiados num saquinho plástico,
roupas maltrapilhas e a voz falha de anos consumindo
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crack me fizeram ligar o gravador e propor a ele uma
matéria para o jornal. O Edu fez o mesmo e propôs uma
matéria em conjunto para o rádio.
A maior indignação é que, dias antes, o prefeito e o vice
tinham aparecido em toda mídia local anunciando que
Poços de Caldas havia sido considerada a 4ª melhor
cidade do país em qualidade de vida. Mas se havia qualidade na vida daquele menor, onde ela estava? Embasados nestas perguntas passamos a questionar o jovem.
Para o jornal, a reportagem abaixo é que foi escrita:
Problemas sociais são detectados em Poços de Caldas
Por Jéssica Balbino
Participação Eduardo Correia
“Quando eu ficar mais velho, quero arrumar um serviço e
ser gerente. Quero trabalhar, ganhar meu dinheiro e não
precisar mais ficar na rua. Quero alugar uma casa para
morar, se Deus quiser”, conta Lucas Pedro da Silva, 17
anos, mas pela baixa estatura e os traços infantis aparenta ter bem menos.
Engana-se quem pensa, ou afirma, que em Poços de
Caldas não existe moradores de ruas ou mendicância.
A reportagem do Jornal de Poços pode comprovar isto
através da história de Lucas.
Durante a fria manhã de terça-feira (17), o garoto está no
Parque José Affonso Junqueira, atrás do Palace Hotel,
“trabalhando” como fl anelinha ou “guardador de carros”, como ele diz.
Lucas conta que veio da cidade de Caconde, interior de
São Paulo, para Poços de Caldas há pouco mais de um
mês e que está morando na rua. “Eu saí de casa porque
meu pai morreu já faz tempo e minha mãe bebe, não
dá para ficar com ela, ela me agride. Então eu vim para
244
Traficando conhecimento
Poços, pedindo carona e hoje eu moro na rua. Durante
o dia eu guardo os carros e à noite eu fico embaixo de
alguma ponte ou cobertura.”
O garoto, que usa roupas e sapato folgados para o corpo
e tem o cheiro de quem não toma banho há bastante
tempo, diz que com as moedas que ganha olhando os carros, compra comida. Os banhos são tomados em postos
de gasolina e as roupas foram ganhas na rua.
Para suportar as baixas temperaturas do inverno poçoscaldense o garoto diz que tem um cobertor e que deixa
guardado embaixo dos trailers que vendem lanches na
praça.
Para os moradores da cidade, como o motorista particular Wellington Silva Alves, encontrar crianças moradoras
de rua em Poços de Caldas é uma situação estranha. “Eu
me surpreendi muito ao ser abordado por este garoto,
porque eu sempre trago meu patrão aqui na praça e esta
é a primeira vez que eu vejo alguém na situação dele.
Infelizmente a desigualdade social está no Brasil todo e
a gente pode ver que a tendência é piorar cada vez mais.
Poços de Caldas sempre foi vista como uma das cidades
com o maior Índice de Desenvolvimento Humano e agora
está recebendo este tipo de coisa, vemos muitas pessoas por aí andando de carros importados, mas também
vemos que a pobreza está cada vez mais intensa aqui na
cidade, infelizmente”, diz.
Ao ser questionado sobre a vida na rua, Lucas diz que é
feliz com a vida que leva e conta que nunca foi agredido
por outras pessoas, nem pela polícia. “Acho que a polícia até ficou feliz em saber que estou aqui olhando os
carros, porque, antes, os garotos murchavam os pneus,
riscavam, eu não, fico só olhando mesmo, este é o meu
trabalho”, defende.
Ele conta também que já usou drogas, como maconha,
mas que parou há algum tempo. “Hoje não uso mais nada,
também não estudo. Já tentei procurar um emprego nor-
No ar: o hip-hop
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mal, mas não acho serviço. Quero sim, poder trabalhar e
alugar uma casa”, reforça.
O psicólogo residente em Poços de Caldas, Fábio Rimenschneider, acredita que o que faz a criança ou adolescente
abandonar o conforto do lar, por mais humilde que seja, e
viver na rua são um grupo de fatores como a questão econômica e a questão das relações interpessoais. “Ao lidar
com menores carentes e infratores, ao checar a história,
descobrimos um lar absolutamente caótico, rompendo
com o equilíbrio familiar e, se esse cuidado básico não
vem, a criança tende a comportamentos delinquentes ou
vai às ruas, buscar algum reconhecimento, e isto leva a
uma perversidade e estas crianças acabam sendo vítimas de organizações e facções criminosas. Surpreendeme que isto tenha chegado em Poços. É duro sermos tão
fatalistas, mas quando uma criança sai às ruas e tem de
sobreviver ali, já há um rompimento com o futuro dela.
Não estou generalizando, mas na maioria das vezes é
assim que acontece”, pontua.
Assistência Social
A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas)
tem um trabalho chamado Atendimento Cidadão, que
recolhe as pessoas em situação de risco das ruas da
cidade e as encaminha para centros de tratamento e de
Desenvolvimento Humano.
Por intermédio de telefones emergenciais, a Semas
presta o serviço de recolher as pessoas. No entanto,
nesta manhã, o número de telefone divulgado pela Semas
foi chamado para prestar atendimento ao garoto, no
período de uma hora, nenhuma mobilização ocorreu por
parte da Semas.
Procurada pela reportagem, a coordenadora do setor emergencial da Assistência, Rosa Fleming, informou que desconhece o fato. “É muito estranha esta história. Não chegou
ao meu conhecimento este fato. Estou surpresa”, afirma.
246
Traficando conhecimento
Ela diz ainda, que, em casos semelhantes, envolvendo
menores de idade, o Conselho Tutelar é acionado e
procura entrar em contato com a família e cidade de
origem da criança ou adolescente, buscando o melhor
encaminhamento.
O Conselho Tutelar do município também disse desconhecer o fato e informou que, em situações como esta, o Conselho Tutelar da cidade de origem é procurado e enquanto
as informações são levantadas, a criança ou adolescente
é mantida em abrigos. “Por isso estamos lutando por uma
casa de passagem para crianças e adolescentes aqui na
cidade. Fatos como este não são frequentes, mas já aconteceram e a nossa instrução é para que o Atendimento
Cidadão seja chamado”, diz Sandra de Fátima dos Santos
Lapa, coordenadora do Conselho Tutelar.
A Guarda Municipal, que é o órgão que recebe as ligações
através do plantão de emergência da Assistência Social
afirma que apenas recebe as ligações e as encaminha
para a viatura do atendimento social que fica pelas ruas
da cidade realizando o patrulhamento.
“O que observamos é que os chamados aumentam durante
o inverno, pois muita gente fica penalizada de ver pessoas
na rua com o frio que faz na cidade. Porém, um dado interessante que temos aqui em Poços é que não há moradores
de rua. Existem, sim, pessoas morando na rua, mas em
todos os casos, são pessoas que têm famílias e que por
algum desentendimento acabam indo para a rua”, conta o
inspetor Marcelo Bastos, da Guarda Municipal.
Contudo, a Assistência Social disse que irá averiguar
a situação de Lucas e encaminhá-lo ao melhor tratamento possível.
Apesar da reportagem não ser nenhuma novidade nos
grandes centros urbanos do país. No centro da cidade de
Poços representou uma cena pouco comum. Mais além,
No ar: o hip-hop
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enquanto lugar-comum, passa despercebido aos olhos
de toda a população e se ninguém gritar ao mundo que
estes seres tratados como invisíveis existem, eles vão
realmente se tornar ocultos no corre-corre do dia a dia e
nada será feito, fazendo com que as cidades do interior
se transformem, mesmo que em pequenas proporções,
em abrigos de problemas, como as capitais.
Para tentar defender isso e garantir não apenas ao Lucas,
mas a outros menores que enfrentem a mesma situação,
tentamos fazer algo.
Há muito tempo eu já me espelhava em profissionais
como a Eliane Brum, que enxergava, enquanto jornalista, além do óbvio e sempre retratava histórias comuns
de uma forma recheada de poesia e transformava a realidade, nos fazendo enxergar mais do que uma pessoa
inserida em uma estatística ou problema social. Sempre
busquei trabalhar como ela e ir além da pauta, além do
que todos vão dizer, além do que todos já sabem, além
da situação visível.
Esta foi uma primeira tentativa e dar voz a um ser marginalizado e me deixou extasiada. A repercussão também
foi boa e, no dia seguinte, enquanto Edu e eu enfrentávamos mais um dia frio em Poços de Caldas, ouvíamos
o rádio onde um ex-vereador da cidade apresentava um
programa matinal e discutia a manchete do jornal, que
havia sido a reportagem do garoto e chamava a atenção
das autoridades para o problema.
A matéria foi também tema no “Debates Populares” e,
desta vez, o Francis não aceitou o horário de almoço
do Edu como desculpa e praticamente exigiu que participássemos do Mix. O que era para ser uma simples
matéria de rádio AM se transformou quase em um minidocumentário, com trilha sonora e tudo, que o próprio
248
Traficando conhecimento
Edu gravou e que foi ao ar durante todo aquele dia, também na FM, através do Mix. O assunto rendeu durante
todo o programa e o pedido de intervenção para o problema rendeu ligações de políticos e participações ao
vivo também no quadro.
Acho que o mais comovente era a voz do garoto e o jeito
dele falar quando sonhava em alugar algo e não precisar mais viver na rua. O sonho de Lucas era o mesmo de
mais de 10 mil crianças que vivem nas ruas. Embora elas
fiquem de fora dos censos feitos pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), uma pesquisa do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda) estima que, entre crianças e adolescentes,
mais de 10 mil vivem pelas ruas de todo país.
Pode ser pouco, pode ser quase nada, mas foi o que deu
para fazer com aquela primeira matéria que, mais tarde,
inspirou uma série de reportagens.
No ar: o hip-hop
249
No ar: o hip-hop
Plano B
E se o que planejamos não der certo? E se surgirem
imprevistos? Devemos sempre ter um Plano B. Foi assim
que li em um livro com este título e, desta forma, começou a apresentação de um grupo de estudantes da
minha classe para o TCC.
Foram aprovados com a nota 10 porque a 11 não existe.
Só por terem feito algo inédito na faculdade: um programa televisivo com formato de revista eletrônica com
o público-alvo, em Poços de Caldas, de 18 a 24 anos. Foi
louvável.
Uma das três matérias do programa era sobre hip-hop,
na fonte de Leãozinho, onde surge a união entre o patrimônio material e imaterial da cidade. Com isso, o grupo
conseguiu apoio de uma produtora e comprou um horário nas tardes de sábado com reprise no domingo na
recém-fundada TV Plan.
O programa, assim como a TV, era uma promessa de
entretenimento e fui convidada pelo idealizador, Jorge
Junior, que era também o apresentador, para montar um
quadro onde eu percorreria todas as periferias da cidade
e falaria com as mais variadas tribos urbanas e expressões de cada quebrada, a começar, é claro, pelo hip-hop
e as oficinas de literatura na Zona Sul.
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251
Como ele já tinha alguns programas gravados, fui para
estúdio apenas para gravar uma participação sobre o
livro, uma breve explanação do que é a cultura marginal e para anunciar que a melhor frase sobre o programa
concorreria a um exemplar do “Suburbano Convicto”.
Como minhas afinidades eram, até então, com jornal impresso e eu estava descobrindo o rádio naquele
tempo, não sabia como me sairia na TV, mas acreditei
que poderia tentar, elaboramos um roteiro e empacamos um nome para o quadro. Após várias reuniões de
brainstorm, me inspirei no nome do CD que o UClanos
estava gravando e disparei: Pelos Cantos. O quadro vai
se chamar Pelos Cantos, pois vou percorrer cada quadradinho da periferia de Poços.
A ideia era trazer para a nossa realidade algo parecido
com o quadro Central da Periferia, feito pela Regina
Casé, no Fantástico, mas havia um único inconveniente.
Meu patrão, senhor dos escravos modernos, não queria que eu participasse de programas televisivos e nem
fizesse freelas, alegando que eu deveria ser funcionária
exclusiva do jornal, podendo fazer apenas algumas participações na rádio.
Mas, como eu já estava de saco cheio da imposição de
regras sem pé nem cabeça, resolvi arriscar. Contudo,
antes de começarmos as gravações para valer, a TV saiu
do ar por falta de uma concessão do Governo Federal
e não dava para manter o programa e nem para levá-lo
para a outra emissora da cidade. Como demorou mais
do que os dois meses previstos para que a concessão
saísse, o Jorge abandonou o sonho que tinha e se mudou
para São Paulo, onde iria trabalhar em uma empresa
multinacional. Lamentei não ter podido colocar em prática o quadro, que seria quinzenal dentro do programa.
252
Traficando conhecimento
As poucas edições que foram ao ar fizeram sucesso e o
quadro que eu participei, sorteando o livro, me trouxe
um pouquinho mais de publicidade, o que ajudou na articulação de projetos que eu tinha na mente, além de ter
dado o livro de presente a um garoto que morava na Zona
Leste da cidade.
Quando ele foi até o estúdio retirar o prêmio, nos cumprimentou e disse: “Que ‘da hora’ a iniciativa do programa.
Nem imaginava que existia gente em Poços para escrever sobre hip-hop. Tô bem feliz com o presente.”
Assim, apesar do pouco tempo em que o sonho durou,
valeu a pena ter tentado e as ideias ficaram para uma
próxima oportunidade. Quem sabe de uma outra vez.
No ar: o hip-hop
Cultura Marginal
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positiva que só a periferia tem e que só os talentos da
quebrada conseguem proporcionar através das próprias manifestações artísticas.
Claro que eu gostaria que o evento tivesse reunido a
região toda, que as pessoas fizessem fila para entrar
e que fosse um verdadeiro estouro, naquela tarde de
domingo, contudo, mais uma vez, não tive tempo para
lamentar porque a urgência em conseguir tocar novos
projetos adiante era enorme.
Durante as tempestades de ideias para dar um nome
ao quadro que não foi ao ar, ficamos bastante tempo
com o nome temporário de Cultura Marginal, até surgir
o Pelos Cantos e trocarmos, mas a expressão não deixou de me acompanhar. Primeiro porque faz parte do
nome do meu primeiro livro e segundo porque resume
exatamente o que o hip-hop e a literatura são, juntos.
Há tempos eu precisava de um nome para o projeto
social das oficinas, das pequenas palestras e de todo
o trabalho que eu pretendia realizar. O ano de 2007 já
estava no final e para 2008 eu pretendia ainda mais atuação nesse sentido.
Resolvi batizar o último evento daquele ano como Cultura Marginal. No centro comunitário do Cohab, onde
aconteceu a primeira leva de encontros do Hip- Hop
Sul, no início da década, formamos uma turma de colegas que dançavam e cantavam e tentamos atrair os
garotos da oficina da escola do bairro e mais quem quisesse. Apesar de não ter tido um comparecimento em
massa, foram mais de 100 pessoas, o que é pouco para
o local. Continuamos a ler nossos textos em um sarau
improvisado e sem muitas regras, mas com a energia
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Em foco
Cap.05
Em foco
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Marginal” e “Suburbano Convicto”. Garanti que no final
do evento alguns participantes ganhariam exemplares
deste segundo.
“Cinco elementos, humildade e talento, b.boy, DJ, Grafite, MC e Conhecimento... E conhecimento.”
Com este pequeno refrão eu fiz a abertura do 1° Hip-Hop
em Foco, que lotou o Teatro Municipal durante o Viva
Urca – evento anual de atrações locais.
Os mais de 700 lugares – poltronas e em pé – foram
ocupados por jovens dos quatro cantos da cidade que,
cheios de expectativa, pagaram o ingresso ao preço de
R$ 3 que seria revertido para manutenção do Espaço
Cultural da Urca e aguardavam, ansiosos, o início do
evento que promete tudo que o hip-hop tem. As cinco
manifestações reunidas em uma única noite, de forma
histórica na cidade.
Representando o 5º elemento da cultura – o conhecimento – subo ao palco com o nervosismo natural da
“primeira vez que estou fazendo isso” e dou boa noite
à casa cheia.
Tremendo por dentro e tentando me controlar por fora.
Digo baixinho para a emoção “fique ali do lado, na
coxia e me observe, depois a gente comemora juntas o
sucesso desta noite”, dei prosseguimento, explicando
que estava ali em nome da literatura periférica, do meu
trabalho com oficinas e dos livros “Hip-Hop – A Cultura
258
A cada manifestação que subia no mesmo palco, intercalando a dança, o grafite, o DJ, o conhecimento e o rap,
eu apareço para explicar o que aquilo significa, como
surgiu e para o que serve. De uma forma simples e não
professoral, a noite se transforma em uma enorme
palestra-show sobre a cultura periférica de Poços que
deu a oportunidade a todos os grupos, inclusive àqueles
que nunca se apresentaram para tanta gente.
Um beat, uma batida, um passo sincopado, um movimento mais forte e uma racha de break estão formados. Duas crews de diferentes regiões se confrontam no
pequeno espaço do palco e arrancam suspiros da plateia
que está ali. É visível que muitos turistas estão em contato com a cultura do hip-hop pela primeira vez na vida
e alguns comentários como “eu só vi isso pela televisão”
podem ser ouvidos.
Mas, nem mesmo as explicações sobre a proposta inicial do hip-hop, de paz, amor, diversão e união para acabar com as brigas de gangues nas ruas consegue parar
alguns representantes das duas crews, que se estranharam durante a dança e quando foram interrompidos
pelo mediador partiram para uma discussão do lado de
fora do espaço. Foi neste momento que alguns integrantes do Concepção Urbana que fazem parte do staff do
evento, foram até lá para tentar apartar uma briga prestes a ser iniciada. Voltaram e comentaram que alguns
dos garotos estão alcoolizados e foram mantidos do
lado de fora do teatro.
Volto ao palco com mais uma intervenção do 5° elemento
e explico que é exatamente este tipo de comportamento
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Traficando conhecimento
Em foco
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que a cultura hip-hop visa acabar e que ele pode ser
alcançado através de qualquer uma das manifestações,
dispostas como armas, feitas para combater a guerra
diária travada entre grupos rivais, seja entre jovens,
adultos, classes sociais ou grupos políticos.
Enquanto falo, um jovem grafiteiro pinta, ao meu lado, a
palavra PAZ em um painel de madeirite. Com destreza,
ele conclui o desenho ao mesmo tempo em que eu me
retiro, dando lugar a mais uma demonstração de dança.
O inconveniente provocado pela briga entre as crews
foi esquecido quando um grupo de rap subiu ao palco e
desrespeitou o tempo limite de apresentação. Também
estavam alcoolizados e deixaram de cumprir o acordo
firmado com a organização, além de ferir os ouvidos do
público com letras improvisadas de forma distante do
verdadeiro hip-hop.
Contudo, mesmo com esses vexames, o evento prossegue e eu já digo à emoção: “Não se entristeça. Estamos
indo bem. Não é nossa culpa. A falha de algumas pessoas não deixa de ser poesia dura e marginal.”
Produzir amor onde não há e cantar belezas onde não
tem era exigir demais daqueles grupos que estavam
despreparados para o evento. A falta de conhecimento
do 5º elemento, que versa, justamente, sobre a sabedoria é o que culminou para cenas tão lamentáveis.
As competições entre crews continuam, as apresentações de rap também e o DJ Dunha trabalha firme nas
pickups para a minha entrada com algum dado e fato
histórico que recheia o evento com um tanto da compreensão acerca da cultura marginal.
Após quase três horas ali, a emoção que latejava no meu
peito tinha conseguido se acalmar e quietinha, em um
canto, me observa. Sou interrompida por Nando, que
deveria estar no camarim se aprontando para fechar
262
Traficando conhecimento
as apresentações da noite com uma coreografia montada especialmente para o evento. Ao lado de Mário,
diretor do grupo, agradeço a presença de cada pessoa
no público e espero, de coração, que o hip-hop em foco
daquela noite tenha agregado coisas positivas.
Nando me abraça, toma meu microfone e passa a ler,
como quem representa – afinal, iniciamos juntos no teatro
há alguns anos – o texto “Olhar para o hip-hop” e quando
termina o público que ainda resta o aplaude em pé. Claro
que essa euforia é quanto à performance empregada por
ele e outro tanto pelo texto, que me enche, novamente,
de orgulho. Não um orgulho explosivo, mas uma felicidade
concreta por saber que, naquele fim de noite, muitas das
pessoas que pagaram para estar ali deixariam o teatro após ouvir um pouco da nossa cultura pelas minhas
palavras, escritas em uma largada de emoção, pressa e
urgência em reportar toda a grandeza desta cultura.
Para agradecer ao público presente, já no embalo do
clima de sarau improvisado criado pelo Nando, sorteamos três exemplares do “Suburbano Convicto” e as pessoas que ganharam o livro puderam levar para casa um
pouquinho de cada uma das 13 periferias espremidas
entre as letras e fotos daquelas páginas do livro. Criamos, também, uma forma de agradecer os grupos que
estiveram no evento e separamos troféus para os três
melhores lugares de cada categoria: dança e música.
Todos os participantes também ganharam um certificado de agradecimento e participação.
Já com as cortinas abaixadas, grito a minha emoção, que
sai de onde estava escondida e vem ao meu encontro.
Pula sobre mim e me abraça, rodopiamos pelo teatro já
com as cortinas abaixadas e corremos para abraçar a
minha família, meus amigos e os grupos vencedores, que
posam para fotos exibindo os troféus. O evento chega ao
fim e o hip-hop, de uma forma ou de outra, apesar dos
contratempos, esteve em foco naquela noite.
Em foco
263
Em foco
3... 2... 1 gravando!
A ideia de produzir TCCs sobre hip-hop para as universidades de todo Brasil ainda estava em alta e a cada
mês, grupos de diferentes regiões entravam em contato,
sempre através do blog, com pedidos de dicas, sugestões e tudo mais.
No início de 2008 um grupo de São Paulo estava gravando
um vídeo-documentário sobre a produção cultural na
periferia e queria unicamente o capítulo que eu falava
sobre literatura marginal, o sarau da Cooperifa e as iniciativas do Ferréz, do Buzo. Travamos contatos e mais
uma vez a troca de experiências se relevou fundamental. Aos poucos os DVDs e outros trabalhos já produzidos
foram chegando em minhas mãos e passei a separá-los
para poder aplicar em oficinas.
Vídeos como o produzido pela Kaká Soul, de Goiânia,
e o produzido pela Érica Guimarães, de Campinas, se
tornaram parte dos momentos em que eu passava na
companhia dos alunos, desta vez pouco mais de meia
dúzia, também selecionados pelos professores e diretores da escola para frequentar, uma vez por mês, as
oficinas no período noturno.
Exibir coisas produzidas por gente da periferia sobre a
nossa cultura se tornou parte, também, da formação
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265
crítica desses estudantes, o que eu considerava fundamental para o sucesso das oficinas. Oficinas essas que
deixaram de ser na escola e passaram a ser cada dia em
um local, ora na quadra do bairro, ora na casa de alguém,
ora no poliesportivo e assim por diante, de maneira
informal, mas bastante produtiva.
Outro ponto foi o lançamento de novos livros escritos
por autores periféricos. Logo no início do ano surgiu um
produzido pelo selo Elo da Corrente, que trazia a literatura do sarau comandado pelo Michel e pela Rachel, com
textos e contos de gente superimportante para a quebrada. O livro “Prosa e Poesia Periférica” se revelou mais
uma arma para o arsenal que estávamos montando em
nossa quebrada.
Alimento. Assim eu encaro as novas produções e, mesmo
morando a pelo menos 280 km de São Paulo, onde a produção literária realmente acontece, acompanho por meio
da internet o que surge de novo e sempre que posso compro os exemplares – e graças à amizade muitas vezes os
ganho – e tenho a oportunidade de conhecer o que há de
mais fresquinho saindo dos fornos periféricos e mostrar à
turma de estudantes que, para que as coisas aconteçam,
basta que nós tenhamos vontade de transformação.
Com alguns exemplares do “Suburbano Convicto” em
mãos o trabalho também ficou mais fácil. Resultados
palpáveis chamam atenção dos jovens e em pouco
tempo, pequenos textos também estavam sendo produzidos por eles.
Com muita luta e confiança, pude – de forma bem real
– mostrá-los à infinidade de blogs existentes na rede,
todos tratando de hip-hop e literatura, sempre com novidades incríveis sobre o universo marginal.
266
Traficando conhecimento
O que ouvi foi “da próxima vez que eu for à lan house vou
visitar o site” e também “vou deixar de jogar country
strike e ler um pouco mais”. Frases como estas, soltas
em meio às oficinas me fazem crer que as transformações são possíveis.
Com o recurso audiovisual dos documentários e da confiança em cada um dos garotos para emprestar os meus
materiais e deixá-los circulando na roda, de mão em
mão, ficou mais fácil, também, verbalizar um pouco do
contexto. Trabalhar com tudo isso em um horário tão
ingrato como o que eu tinha de tempo disponível era
como um brinde, uma promoção incrível, um número
acertado na loteria.
A maioria dos garotos que participava tinha entre 9 e 13
anos e todos pediam mais clipes de rap, mais vídeos e em
um dos encontros um pedido inusitado mexeu comigo,
chamou minha atenção. Um dos garotos me lembrou que
fazia tempo que não trazia um texto novo, feito por mim.
Um conto talvez. Eu já havia lido “O homem do gueto”,
“Uma brasileira”, os que estavam no “Suburbano” e algumas partes do livro-reportagem, sem falar nos textos do
Elo da Corrente, do Sacolinha e do Buzo.
O questionamento me fez reparar que eu estava tão
embalada no Jornal de Poços, cobrindo a editoria de polícia que eu havia assumido no Carnaval e que não gostava
nem um pouco, que não tinha mais tanta disposição para
atualizar o blog ou mesmo escrever meus contos da literatura marginal. Percebi também que o tempo estava
passando e que eu precisava, com urgência, me dedicar
mais ao hip-hop. Reformulei o blog, fiz um layout diferente e soltei na rede textos novos. Produzi o conto “Periferia Adentro”, inspirado em uma realidade que observei
durante as pesquisas do TCC e cheguei na oficina do mês
seguinte toda feliz, mostrando o texto:
Em foco
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Periferia adentro
Quarta-feira, uma hora da tarde. O trem para. Estação
Jaraguá, Zona Oeste, São Paulo, capital. Para sair do
trem é um sofrimento já que ele está parado muito longe
da plataforma e é preciso pular. É mês de julho, inverno.
Mas o sol está muito quente. Passa dos 30°C. É preciso
caminhar um quarteirão e tomar um ônibus para a Praça
Panamericana. Uma praça bonita, porém, sem muito
verde. Tem uma pista de skate toda grafitada, denunciando a presença do hip-hop por ali.
Em frente ao supermercado Panamericano também há
vários muros e fachadas de estabelecimentos comerciais
exibindo seus grafites. Subindo uma ladeira íngreme dá
para entrar em uma viela, cheia de casas próximas. É
uma quase-favela. O real retrato do gueto, da periferia.
Aliás, estas são as palavras que mais aparecem na literatura ou em qualquer coisa relacionada ao hip-hop e são
quase endeusadas pelos autores e ativistas.
Mas o gueto é ali mesmo, naquelas casas, com seus
“muros” de madeira pichados e grafitados, com seus
aparelhos de som “top de linha”, contrastando com a
pobreza do lugar, e tocando rap no último volume. O rap é
a trilha sonora deste pessoal, que encontra nas letras de
protesto uma forma de gritar para o mundo, de chamar
atenção da sociedade para seus problemas cotidianos.
É nessa poesia urbana que eles encontram uma forma de
extravasar tudo que lhes oprime.
Saindo dessa rua, uma escadaria enorme tem de ser
enfrentada e os moradores locais reclamam diariamente
deste percurso. No topo do morro tem um portão branco e,
descendo vários degraus, está à casa de Pow, 28 anos, integrante de um grupo famoso na cena do hip-hop paulistana.
Ele anda o mais rápido que pode, vai se encontrar com o
MC Eduardo, do grupo de rap e vão compor alguns sons
para tocar no próximo baile da quebrada.
Em foco
269
Numa das vielas o cheiro de sangue fresco ainda é forte.
São os vestígios de mais uma morte “da noite de ontem”.
— Aqui não era para ser um campo de futebol? — perguntam alguns garotos ao se depararem com mais um
corpo em um dos inúmeros cemitérios clandestinos no
meio daquela favela.
Pow não liga para os comentários. “É só mais um corpo”,
pensa. Ele já está acostumado com a cena. “Corpo jogado
na vala da periferia é o mesmo que moleque batendo bola
no campinho. Faz parte do dia a dia, corre e volta a pensar na letra que está compondo.
“Falta alimento em nossas mesas e o país é culpado”,
cantarola baixinho.
A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco de
quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo, como
indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas desesperadas, de quem já sabia o futuro do filho.
A indiferença está em quem passa. Pode ser conhecido
ou não o corpo de quem está em uma das valas. Não
vale a pena.
A bola batendo entre os corpos transforma as covas em
mais um campinho de futebol, entre os muitos já existentes nas periferias.
Nos jornais, na banca em frente à Praça Panamericana
estão diários, com manchetes como “Integrante de grupo
de rap é morto após confronto com traficantes”, “Bandido
é alvejado no Panamericano” e “Jovem rapper é morto por
envolvimento com tráfico”.
As fotos, ainda piores que as manchetes, trazem detalhes
do corpo do jovem em meio às valas e a mãe, chorando ao
lado. O menino que queria o campo de futebol prometido
sonha à noite, com uma bola nova, um par de chuteiras,
e um campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de
esperar, crescer para poder virar ladrão, traficante e res-
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Traficando conhecimento
peitado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele
não morrer e cair na cova de mais um cemitério que poderia virar quadra esportiva.
Após enfrentar o morro e chegar em casa, Pow desembrulha
a carne que comprou e no jornal vê o corpo do MC Eduardo.
O grito, em forma de rap, ecoa por todas as vielas e chega
ao ouvido dos mais desatentos: “Falta alimento em nossas mesas e o país é culpado.”
Surpreendi-me ainda mais quando aquele mesmo garoto
me trouxe um texto feito por ele. Era mais uma redação e
dizia sobre o que ele gostaria para a vida dele no futuro.
Desinibido e diferente de todos que eu já havia trabalhado
até então, não teve objeções quando disse a ele para ler
o texto em voz alta. Com a voz impostada, Rodrigo contou ao grupo que, antes das oficinas, tinha vontade de ser
músico e depois, a vontade havia aumentado. Tinha vontade de ser músico e escritor.
Como eu me senti? Não preciso nem relatar que absurdamente feliz e lisonjeada. Embora ele tivesse alguns erros
de português e uma construção ainda um pouco precária,
era ótima para a idade dele e pela falta de leitura também.
A exemplo da oficina anterior, sugeri que ele passasse
a ler um pouco de Pedro Bandeira, que tinha tudo a
ver com a realidade e, novamente, o formato deu certo.
Outra sugestão que resolvi trabalhar com os meninos
foi o “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus.
Sempre considerei uma grande obra e levei alguns trechos. Nas mãos dos garotos senti maior firmeza quando
eles revelaram a identificação com a autora.
Outro texto fundamental e que pode ser atrelado ao
audiovisual foi “Cidade de Deus”, de Paulo Lins. Primeiro o livro e, por último, a exibição do filme. Um pouco
antes havia também estourado no Brasil o documentário
Em foco
271
“Falcão e os Meninos do Tráfico”, acompanhado do livro,
algo que também se tornou importante para as oficinas e
passou a ser trabalhado em salas de aulas de todo Brasil.
Outros projetos com hip-hop e literatura passaram a usar
os exemplos também para promover mudanças nas vidas
dos jovens locais, e mostrar, com a clareza existente no
documentário, o quão ruim é a vida do crime e o destino
quase único que ela leva.
Sucesso pela linguagem utilizada pelos autores e idealizadores. A mesma falada em qualquer roda de amigos de qualquer bairro de qualquer periferia de qualquer
cidade de qualquer estado de todo este Brasil. Diante
da empolgação desta turma, convidei o grupo anterior
também, para voltar no mês seguinte e apreciar um dos
encontros, reunindo as informações e vivências.
Para incrementar, usei da experiência no jornal para
sugerir que produzíssemos algumas matérias sobre
nossa própria quebrada. Nem que fossem apenas notas
e fizéssemos uma espécie de folheto, um minijornal,
apenas para exercitar a arte da escrita e também da
apuração. Alguns gostaram, outros preferiam continuar
nos textos e documentários. Fizemos uma experiência,
mas como tudo tinha de sair do meu bolso e do meu salário de miséria, não deu muito certo, mas, valeu pela tentativa e experiência.
Não precisava ser um projeto perfeito. Bastava que fosse
feito e vivido de todo coração e que acrescentasse algo
àquelas vidas. Era suficiente que um encontro mensal
despertasse nos jovens – nem que fosse um deles – a
vontade de driblar o péssimo ensino e a desinformação,
mudando as consequências e os planos já traçados pela
elite, que se interessa pela ignorância do povo, que sempre plantou frases feitas como “o pobre não tem vez”, “o
pobre não tem estudo”, “o pobre nasceu para sofrer” e
272
Traficando conhecimento
“brasileiro não gosta de ler”, “esse povo não tem nem o
que comer como vai comprar livros”. A elite esqueceu-se
que a fome é um ingrediente a mais na inspiração e que o
sofrimento é doce para o poeta que transforma a própria
desgraça em revolução.
E as mudanças — mesmo que pequenas como árvores
que começam a florescer bem antes de dar frutos —
eram inspiradoras para que o fantasma da desistência
passasse bem longe do desejo de comer a fruta no pé,
debaixo da árvore frondosa em tarde quente de verão.
Assim se seguiram as oficinas de 2008, com mais facilidade e experiência que as de 2007, e a expansão para
outros bairros tornou-se um projeto a ser pensando,
contudo, eu precisava trabalhar e fazer pelo menos o
dinheiro das cópias dos textos e da condução para os
eventos de hip-hop.
Por outro lado, o trabalho no jornal me favorecia em contatos e amizades com os colegas da imprensa, que sempre me prestavam favores, como a gravação de matérias
sobre os livros e desta vez sobre as oficinas.
No encontro preparado entre o grupo de 2007 e o de 2008
recebemos a visita de uma equipe de reportagem da TV
local. Para driblar a vergonha e excitação dos garotos,
fizemos um laboratório prévio em que expliquei que esta
era a oportunidade que tínhamos — e muito rara — na
nossa existência de falar num microfone, através de
uma reportagem que seria exibida no “horário nobre” da
cidade sobre os problemas do nosso bairro e da nossa
tentativa de melhorá-los com a produção literária.
Convidei Rodrigo, autor do texto sobre o que ele gostaria
para o futuro, para ler, em frente às câmeras, a produção
que ele havia feito. Foi preciso cortar e começar de novo.
Em foco
273
3...2...1... gravando! Gaguejando de vergonha e felicidade, ele parou, se recompôs e como um poeta em um
sarau daqueles movimentos do início do século, sendo
revivido atualmente pela Cooperifa, Elo da Corrente,
entre outros, ele declamou tudo que havia escrito com
naturalidade surpreendente. A equipe de reportagem
me fitou e como quem não acredita que um estilo literário e o incentivo a leitura tenham feito aquilo, perguntaram a ele o motivo do texto.
A resposta: “A dona nos incentiva a ler e a escrever o que
estamos sentido igual a ela mesma e aos autores que ela
traz os textos. Pensando nisso em casa eu resolvi tentar
e saiu esse texto aí.”
Em foco
Caixinhas poéticas
E se toda poesia do mundo coubesse em uma caixinha?
E se ela fosse achada, ganhada ou entregue na forma
de um presente? E se a literatura presente na vida de
alguns poucos brasileiros pudesse ser encontrada, casualmente, em um banco de praça, em um orelhão, no meiofio, no balcão de um bar, dentro do ônibus, na fila de
espera de um posto de saúde, no meio de uma balada,
em um restaurante, no trânsito ou comprando pão de
manhã na padaria?
A expressão sisuda de um senhor que se encaminhava
para o trabalho em mais uma manhã se transformou em
sorriso e o dia dele mudou. Quando parou em um orelhão
qualquer da rua para fazer uma ligação encontrou uma
caixinha. Pequena, formato 4x4 cm, feita com papel reciclado, toda colorida. Abriu e encontrou dentro um pedaço
de esperança, de sorriso, de solidariedade, de gentileza.
Um trecho de poesia selecionada com cuidado foi depositado dentro da caixinha, que imitando as atitudes gentis de José Dantrino, conhecido como profeta Gentileza
e inspirada pelo filme europeu “O Fabuloso Destino de
Amélie Poulain”, soltei pela cidade, inúmeras delas feitas a partir de cartões postais de propagandas, com poesias dentro. Ajudada em ideias pelo meu amigo e também
poeta, Eduardo Herrera, que tem no projeto Gentileza
uma grande referência, o objetivo maior era transformar o
274
275
dia das pessoas e lhes chamar atenção às pequenas coisas da vida. Mesmo correndo contra o tempo para chegar
ao trabalho em um horário bom e acompanhar todas as
ocorrências policiais do dia, perdia — neste caso ganhava
— alguns minutos observando de longe quem seriam as
pessoas a pegar as caixinhas e qual seria a expressão.
Com o olhar atento ao que se passa ao redor, elas procuram pelo dono da caixinha e, como no mar de gente que
inunda as ruas, é impossível identificar quem é dono do
que, acabam por levar a caixinha na mão e deixavam no
ar a expressão de um sorriso.
Arrisquei-me, algumas vezes, a deixar caixinhas em
alguns espaços da delegacia. Tive medo de ser presa
ali mesmo, por tentativa de mudança, disseminação do
saber e incentivo a alegria e gentileza.
Além da brincadeira e do prazer terapêutico em recolher os cartões e confeccionar as caixinhas durante
horas o melhor era poder semear, de uma forma tão
poética, a literatura.
Com frases, poesias e pensamentos escolhidos, cuidadosamente e retirados de anos de muita leitura, guardava cada trechinho impresso nas caixinhas, embaralhava, colocava na bolsa e saía pela rua na distribuição.
Pensei inclusive em levar a ideia às oficinas, mas o
entrosamento do grupo poderia, de repente, ruir, se
mais alguma atividade fosse proposta. Ensinar o processo de confecção das caixinhas toma tempo e não
seria tão simples fazer isso em apenas 1 hora e meia de
encontro mensal.
Apenas mencionei o projeto e deixei em aberto, se alguém
quisesse me auxiliar com sugestões de frases e poesias
para pôr nas caixinhas ou, ainda, na arrecadação de cartões postais, seria uma ajuda e tanto.
276
Traficando conhecimento
Já esquecida da proposta me surpreendi quando, no
mês seguinte, quase todos apareceram com cartões e
papéis que poderiam servir para as caixinhas e algumas frases. Na maioria eram retiradas de contos do
escritor Ferréz, por quem eles demonstravam nítida
preferência, talvez por ter sido o primeiro que conheceram, contudo, até mesmo letras de rap eles sugeriram e
não é que muitas se encaixavam?
Resolvi aderir e a segunda leva de caixinhas e ela circulou pelas ruas com letras de rap e MPB.
Uma observação é que as pessoas, sempre imersas na
cultura da pressa, passavam de forma despercebida
pelas caixinhas, que só faltavam pular e gritar: “Olá, sou
o seu presente”, em analogia ao tempo. Curiosamente
os seres “invisíveis” eram os que melhor enxergavam e
acabavam contemplados com as poesias. Moradores de
rua, catadores de lixo, bêbados, prostitutas, varredores
e anônimos, sem a necessidade urgente de correr contra
o tempo para alcançar – ou seria fugir – deles mesmos.
Notar as caixinhas e poesias beneficiando estas pessoas era como vencer uma das batalhas nessa guerra
da vida. Um presente encontrado, no presente, era como
lhes restaurar parte da dignidade, tão afetada pelo desprezo dos demais.
Gostaria, porém, de nunca ter me deixado vencer pela
pressa, pelo individualismo e egoísmo, pela necessidade de trabalhar, trabalhar e trabalhar e ter parado de
confeccionar as caixinhas poéticas e distribuí-las, contudo, durante um tempo em 2008 estive fechada no meu
mundinho jornalístico-e-policial e não me dediquei à
muita coisa mais.
Em foco
277
Em foco
Às margens da
sociedade
Talvez por ser nova. Talvez por ser boba. Talvez pela falta
de experiência. Uma sequência de talvez é o que eu consigo para justificar a minha ausência, mais uma vez, nos
eventos de hip-hop, a falta de entusiasmo para as oficinas e a pausa na produção literária. Quase corrompida
pelo sistema, deixei de usar as armas — o hip-hop e a
literatura — que sempre estiveram ao meu alcance para
driblar os adversários que jogam a favor do sistema.
Esgotada por trabalhar quase doze horas por dia e passar a maior parte do tempo atrás de sirenes de polícia,
bombeiros e Samu, sempre montada na garupa de uma
moto — com sol, frio ou chuva — deixei, mesmo que por
um período de tempo pequeno, de acreditar que poderia
mudar alguma coisa e me rendi à escravidão moderna
de trabalhar em troca do salário, que nunca dá para o
mínimo e aguentar esculacho de patrões bem abonados
que tentavam me demover da ideia de ser eu mesma, de
correr pelo meu povo oprimido, de escrever as minhas
injustiças e de gritar para o mundo, através de cinco
manifestações criadas há mais de trinta anos, o quão
interessante pode ser a vida periférica.
Esgotada por não ter nem o mínimo, que seria a dignidade
no emprego e ter de comer marmita fria, ser obrigada a
trabalhar bem vestida mesmo depois de um temporal
278
279
tomado enquanto estava na garupa da moto perseguindo
a polícia, que perseguia os bandidos, e ainda ser ferida
nos direitos morais, esmoreci durante um tempo da luta
diária contra a desigualdade social.
Nunca achei que o pobre devesse ser rico, mas sempre
lutei pela melhor distribuição de renda, pela panela cheia
de comida e a cabeça cheia de ideias e ideais. Sempre
defendi a democracia e a liberdade de expressão, por
acreditar que já nos privam de tanta coisa, o que faremos
se nos tirarem também o pão da poesia marginal?
Mas, como tudo na vida muda e, graças a Deus, passa.
Uma semana depois, em uma manhã em que eu era,
mais uma vez, massacrada dentro do ônibus cheio, percebi que era hora de fazer como tantos guerreiros da
nossa história. Virar o jogo. Lutar com o que temos nas
mãos — e eu tinha um espaço no jornal, as palavras e a
mente fervilhando.
Ao meu lado, 90% dos passageiros do ônibus iam para
o trabalho e, deste percentual, quase todas diaristas e
empregadas domésticas, vivendo de salários de fome e
acreditando em dias melhores.
Anunciei no jornal que, naquela semana, estava criada a
série de reportagens “Às margens da sociedade” e traria
matérias especiais em todas as edições de domingo com
perfis e fatos inusitados vividos pelas pessoas invisíveis.
A intenção da série era contar as histórias reais de personagens com faces desconhecidas ou ignoradas que
frequentemente são forjados de estorvo e marginalidade, em uma guerra diária pela vida.
Inspirada pelas manhãs cotidianas, a primeira reportagem da série foi sobre as diaristas, que teriam o dia
comemorado justamente naquele domingo, 27 de abril.
280
Traficando conhecimento
Lavar, passar e cozinhar – Empregada Doméstica
Vidas que se cruzam nos ônibus, elevadores — de prédios
pobres e residenciais chiques —, supermercados, venda,
feira e pelas estradas da vida. As empregadas domésticas
são muitas e algumas trazem o ofício na história da família, com a profissão passada de mãe para filha.
Tema de muitas discussões, histórias e estórias, as
empregadas domésticas já viraram filmes, documentários, textos e personagens de um Brasil real, que não foge,
seja onde for, capital, interior, cidade de médio porte,
praia, montanha, sertão, riacho, as domésticas sempre existiram, promovendo a limpeza e o bem-estar dos
patrões, em um ofício insubstituível e, quem sabe, eterno.
Apesar do corre-corre da profissão e do dia a dia, muitas
empregadas domésticas exercem a função além das oito
horas diárias e não são aquelas que moram no emprego,
são as que saem dele e voltam para casa, onde são ainda
“donas de casa” ou “do lar”, e realizam o mesmo serviço
por duas vezes no mesmo dia.
É um trabalho difícil e, por estas e outras, as empregadas
domésticas vêm sendo, cada vez mais, valorizadas hoje
em dia. Com isso, conseguem fazer valer seus direitos. A
recente conquista do depósito do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço — FGTS — mesmo que opcional para o
empregador, é sinal de que os tempos mudaram.
Guerreira
Parece título de livro. E é neste ramo mesmo que ela quer
trabalhar.
Um exemplo de uma vida corrida de empregada doméstica é o caso de Marilice Bagesteiro, conhecida como
Mary, 45 anos, que trabalha há dois como diarista,
depois de ter deixado de comercializar roupas usadas
de porta em porta.
Em foco
281
Atualmente, Mary se levanta às 7h, entra no serviço às
9h e trabalha até às 17h. Apesar da violência no ônibus,
prefere usar este meio de transporte, na ida e na volta, a
caminhar até o serviço. No entanto, anteriormente a isso,
quando trabalhava como vendedora de roupas usadas,
aceitando inclusive doações, fazia disso seu ganha pão e
a pé, caminhando trechos longos por dia, economizava o
dinheiro da passagem para comprar comida.
Aos 15 anos, Mary foi mãe do primeiro filho, Eduardo, que
hoje tem 30 anos. Também é mãe de Adriana, 25 anos.
Relata que sempre trabalhou para poder sustentar os
filhos, visto que o primeiro casamento não deu certo.
“Eu sempre trabalhei, saía cedo com as roupas para vender e só voltava à noite, quando conseguia trazer algo de
comer para meus filhos. Saí de casa quando vi que meu
casamento não daria certo e trabalhei com fome, a base
de feijão e polenta no estômago, para aguentar. Nesta
época, eu ainda trabalhava com roupas usadas e dormia
em um casebre, no chão, até ganhar uma cama. Digo isso
para as outras mulheres, para que elas saibam como é a
força de uma mina com vontade de vencer. Temos que ter
uma conexão com a vitória. O que eu gostaria de colocar
é que, mudanças são necessárias, e é assim que eu vejo,
nosso país está precisando de gente corajosa para fazer
grandes mexidas”, relata.
Ela diz, ainda, que, hoje em dia, chega a ganhar R$ 30 por
dia, o que dá para o seu sustento porém, fala com tristeza que a patroa reduziu os dias de serviço na semana,
fazendo, consequentemente, a renda diminuir. “Eu ia
todos os dias, agora, vou trabalhar apenas três vezes por
semana e não sei como vai ser. Tenho muitas contas para
pagar, colocar comida em casa, coisas do tipo. Pretendo
continuar trabalhando como doméstica, mas a renda
está curta até para sair e procurar emprego”, conta.
282
Traficando conhecimento
Mary afirma também desconhecer que exista um dia
no calendário nacional que comemore a profissão que
ela exerce, mas, deixa como mensagem, que as mulheres devem lutar para alcançar os objetivos e lugares na
sociedade, independente da profissão.
“Eu quebrei muitas barreiras, aquelas que são impostas
na vida das mulheres. Eu tenho um filho que tem a idade
do cara que eu vivo hoje, o Bagé, de 30 anos, e eu quero
dizer que funciona cheio de moralismos e falsos valores
que não nos levam a nada. Impedindo as mulheres, principalmente as domésticas e diaristas, de serem livres
e felizes. Nós temos que ter, hoje, uma livre expressão
do corpo, da alma e, ainda mais, do pensamento, para
podermos nos expressar e lutar pelos nossos sonhos e
direitos”, acrescenta.
Além de trabalhar como doméstica, Mary escreve letras
de rap e participa de sites e blogs — diários virtuais —
que difundem a literatura marginal.
Há vinte anos na profissão, com prazer
“O preconceito é frequente, muita gente torce o nariz
quando digo a minha profissão”, é o que afirma a doméstica Maria Benedita Marcondes de Lima, 56 anos, conhecida como Dita, que trabalha como empregada doméstica e diarista há mais de vinte anos.
“Por vestir-me bem e estar sempre arrumada, as pessoas
não acreditam que sou doméstica. Ainda tem aquela visão
de que empregada está sempre malvestida, o que não é
verdade”, destaca.
Para criar os quatro filhos e ajudar a pagar, inclusive a
faculdade de um deles, Dita, sempre trabalhou como
doméstica, sendo registrada em um serviço e fazendo
alguns bicos após o expediente.
Ela levanta-se todos os dias antes das 6h, enfrenta o ônibus lotado da manhã em um trajeto de 10 quilômetros e
trabalha até às 15h. Dali, sai e trabalha como diarista em
Em foco
283
outros locais, aumentando o orçamento, visto que cobra
R$ 30 por diária em apartamentos e casas.
Satisfeita com a profissão escolhida, Dita relata que há
sete anos está trabalhando na mesma casa e diz que a
patroa sempre foi muito boa com ela.
“Gosto muito de onde eu trabalho. Eu que determino
como será o meu dia de serviço. Quando eu chego, a
primeira coisa que faço é tomar café, depois, começo o
meu serviço normal, mas, em um dia eu lavo, no outro eu
passo e assim por diante”, diz.
Desconhecendo o dia instituído para comemorar a profissão, Dita garante que é feliz na profissão escolhida. “Sinto
prazer em ser doméstica. Me acostumei, embora exista o
preconceito, eu gosto bastante do que faço. As pessoas
sempre me dizem ‘Você não tem cara de doméstica!’, e eu
retruco ‘E para ser doméstica, precisa de cara?’”, destaca.
Da história...
Uma outra história, de uma também guerreira não apenas
poços-caldense, mas do Brasil, é a vivida por Laudelina
Mello, que nasceu em Poços de Caldas, em 12 de outubro
de 1904 e começou a trabalhar com 7 anos de idade em
casas de família, como era típico na época.
Aos 16, inicia a militância em organizações de mulheres
negras e atua, principalmente, em atividades de lazer
e cultura. Para ela, essa era a porta de entrada para a
consciência de classe, gênero e raça.
Na década de 1930 muda-se para Santos (SP) e começa
a atuar em movimentos populares e reivindicatórios,
filiando-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1936,
funda a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos do país, na qual foi presidenta até 1949. No mesmo
período ajuda a fundar a Frente Negra Brasileira, a maior
organização da história do movimento negro, que chega
a ter 30 mil filiados.
284
Traficando conhecimento
Alguns anos depois, muda-se para a cidade de Campinas
(SP), e participa, também, do movimento negro e de atividades culturais e recreativas. Sua liderança, consciência
de classe e disposição para a luta a levam a organizar e
incentivar o surgimento de diversos sindicatos da categoria, projeto interrompido em 1964 com o golpe militar.
Instalada a ditadura, Laudelina é presa, entra para a
clandestinidade e, posteriormente, passa a atuar em
comunidades eclesiais de base, formadas pela ala progressista da Igreja Católica.
Por conta de problemas de saúde e disputas políticas,
afasta-se, durante os anos 1970, do movimento das
empregadas domésticas, mas volta à direção do, hoje,
Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Campinas, em
1982. Nesse período, entra para o Partido dos Trabalhadores e incentiva a filiação de seu sindicato à recém-fundada
Central Única dos Trabalhadores.
Laudelina morre em 12 de maio de 1991, tendo como
único patrimônio uma casa em Campinas, que deixa de
herança para o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos.
Ali é fundada a sede a entidade.
Na batalha do dia a dia
Na luta diária pela vida e sobrevivência está Elizabeth
Camilo, 47 anos, trabalhando há dois anos como empregada doméstica, após ter se separado do marido.
Para garantir o sustento, Elizabeth acorda todos os dias
também antes das 6h e vai para o trabalho, além de ter
que se dividir entre o emprego e os cuidados com a filha
caçula, de 7 anos.
“Eu me separei e tive que arrumar um serviço e como a
idade não facilita, de emprega doméstica fica mais fácil
e como eu era do lar, já tinha prática, acabei me tornando
empregada doméstica”, conta.
Em foco
285
Elizabeth afirma ainda desconhecer o dia de comemoração da empregada doméstica, mas diz sentir-se bem em
ser doméstica, apesar das dificuldades.
“Com a minha filha, de 7 anos, é que as coisas se complicam em razão do horário. Eu tenho que deixar café pronto,
arrumar alguém para dar almoço para ela, tenho que sair
do serviço e pegá-la na escola, tudo é mais difícil”, relata.
A única coisa da qual Elizabeth reclama é de ter de fazer
o serviço no emprego, para a patroa e depois fazer o
serviço em casa.
“São duas vezes a mesma coisa e, às vezes, é bastante
cansativo, mas é a luta pela sobrevivência. O que importa
para mim é o meu crescimento pessoal”, conclui.
No cinema
Existentes por todas as partes, as domésticas, que
sempre fizeram um papel de pano de fundo no cinema,
passaram às telonas, em “Domésticas - O Filme”, como
protagonistas da própria história, deixando de ser as
figurantes de bandeja na mão, como as donas dos conflitos e tramas.
O filme se passa em São Paulo na capital, centrado
no cotidiano, nos anseios e nas expectativas de cinco
profissionais do lar. E, na mão dela, não só o cafezinho,
mas o cardápio completo: humor, tragédia e poesia.
O fato é que, nas telonas, ou na tela diária da vida real,
as empregadas domésticas são peças fundamentais do
dia a dia brasileiro, seja para uma fonte de renda, para
a família, ou para quem elas prestam serviços. Guerreiras, ou não, as empregadas domésticas assumem suas
formas, seus lugares e merecem destaque, neste dia
dedicado à profissão.
Encontrei, mais uma vez, nas mazelas humanas, a força
para abandonar o meu próprio limbo e voltar a lutar
286
Traficando conhecimento
Em foco
287
pela minha vida, a “correr pelo certo”, como quem é do
hip-hop costuma falar.
acabando, morrendo aos poucos”, relata, soluçando e
com os olhos inchados de tanto chorar.
Para a segunda edição da série, preparei uma reportagem sobre as mães que têm filhos presos, dependentes
de drogas e que, nem de longe, passam um dia feliz no
segundo domingo do mês de maio.
Lucas usa drogas há sete anos, ou seja, desde os 13 e
a mãe não sabe dizer o que levou o filho a enveredar-se
pelo caminho tortuoso dos tóxicos.
Infeliz Dia das Mães
A história única das mães que amam, sofrem e choram
com os filhos por problemas com drogas e dependência química.
Nesta data, a reportagem traz histórias de mães desconhecidas. Mães como todas as outras, que só querem
o maior bem do mundo para seus filhos, mas que nem
sempre ouvem um “Feliz dia das mães” na data de hoje.
Em uma guerra diária pela vida, são alvos de preconceito ou, até mesmo, descaso por parte da população,
mães que têm filhos desconhecidos e sofrem, pelo amor
que têm neles.
Os nomes das fontes foram preservados, portanto, alterados para nomes fictícios.
Mãe do vício
“Lágrimas, medo, sobressaltos e cansaço”, isto é o que
marca a rotina de Marta P., 52 anos, nome fictício da mãe
de Lucas P., 20 anos, e que vive o drama de ter um filho
dependente químico em casa. A família mora na Zona Sul
da cidade e, chorando, ela conta como é o dia a dia de um
usuário de drogas e de como a família fica comprometida
em razão do vício do filho.
“Uma mãe sempre quer o melhor para seu filho, mas,
chega em um ponto em que o cansaço é tremendo, ficamos sem saber o que fazer. Não aguento mais ver meu
filho usando drogas, devendo para outras pessoas, se
“É estranho e ao mesmo tempo intrigante, porque além
do Lucas, tenho um outro filho de 18 anos, porém, o outro
sequer bebe. Não consigo encontrar onde eu possa ter
falhado na educação ou criação dele que o levou a usar
drogas. Na infância ele sempre foi um bom filho, muito
carinhoso, mas, ao entrar na adolescência, mudou um
pouco o comportamento, e eu demorei a perceber que
ele estava usando drogas. É difícil, porque não sei onde
falhei com ele”, comenta a mãe.
Atualmente, Lucas não trabalha, porque perdeu o emprego
que tinha, como entregador de mercadorias para um
supermercado. Passa o dia todo dormindo ou ouvindo
música e, assim que a noite cai, vai às ruas, em busca
de drogas. Quando não as consegue, volta para casa e
conta histórias mirabolantes à mãe, para convencê-la
a dar-lhe dinheiro.
“Geralmente eu choro muito, não sei o que fazer e acabo
dando o pouco do dinheiro que ganho, fazendo faxinas.
No grupo que frequento, com ajuda psicológica para
mães que têm filhos dependentes químicos, já fui instruída para não dar mais, mas, quando vejo meu filho
sofrendo, desesperado, acabo dando a droga. Sei que
estou financiando pequenas doses de morte para ele e
isso me deixa muito deprimida”, conta Marta.
Sem conseguir dormir enquanto o filho não chega, Marta
passa quase todas as noites acordada, temendo o pior
para Lucas. “Não adianta, é coração de mãe. Sempre fico
pensando que vou receber uma má notícia. Já pedi até
que desligassem o telefone da nossa casa, porque fico
sempre achando que vão me ligar dizendo que meu filho
foi preso, morto”, desabafa, chorando.
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Traficando conhecimento
Em foco
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Ao ser indagada sobre o filho estar envolvido com o tráfico, Marta destaca que não sabe sobre isso, mas prefere acreditar que não. “Ás vezes eu acho que ele está
envolvido, outras acho que não. O que eu sei é que, várias
vezes, os traficantes foram até a porta da minha casa
cobrá-lo, ameaçando toda a família e eu acabei pagando
a dívida, mas, geralmente, são dívidas pequenas, que
ficam entre R$ 20 ou R$ 30”, conta.
Marta destaca que as drogas consumidas pelo filho, que
ela tem conhecimento, são crack e maconha. Ela conta
que várias vezes já encontrou os dois tipos da droga nas
coisas do filho, enquanto limpava ou separava roupas.
“Quando ele era mais novo, fazia questão de esconder,
agora não esconde mais. Parece que ele também perdeu
o sentido na vida e vive apenas por conta da droga”, relata.
A mãe acredita, também, que o filho não se envolve com
furtos e roubos, dizendo que se isso ocorresse, ele já
teria sido preso, contudo, o grupo de apoio às mães com
filhos dependentes já lhe alertou para o fato de que nem
sempre os usuários de drogas são pegos praticando
pequenos delitos, mas, que, na maior parte das vezes,
eles furtam para financiar a droga.
“Em casa ele já roubou quase tudo. Dinheiro, televisão,
DVD, aparelho de som e, inclusive, coisas do meu outro
filho. Agora, já tomamos o cuidado de não deixar as coisas pela casa e eu conversei com ele, pelo menos a TV e
meu radinho ele deixou”, afirma.
Ela diz ainda que perdeu muito da autoestima por conta
do filho. Embora tenha um outro filho, Marta se deixa
levar pelo sofrimento causado pela conduta de Lucas.
“Eu sei que meu outro filho sofre por me ver assim,
mas ele nem comenta nada. Eu não tenho mais ânimo
para nada. Trabalho porque devo trabalhar. O pai deles
também sofre bastante com isso e sente-se culpado de
alguma forma”, diz.
290
Traficando conhecimento
No auge do desespero, Marta procurou uma entidade
assistencial da cidade, que pode tentar encaminhar Lucas
para uma internação, mesmo que involuntária, para tentar
sanar o problema tão desgastante para a família.
“Faz uns dois dias que ele disse ter parado de usar drogas e afirmou, chorando, que a única solução seria uma
internação forçada, mas nunca sabemos se isto resolverá de fato, ou se ele irá recair. Ele sempre afirma que
acabou, mas sabemos que este é um discurso comum.
Creio que, se ele ficasse internado, talvez resolvesse,
mas, eu também preciso fazer algo mais por ele, porque
com meu coração de mãe, eu acabo atrapalhando, ajudando a financiar a droga”, cobra-se Marta.
Mesmo culpando-se por não ser mais firme quando precisa, Marta não esconde seu amor por Lucas e chora a
todo momento, ao relatar episódios em que o filho lhe
pediu dinheiro, mesmo que inventando histórias, e ela
cedeu, ou quando o filho passou por uma situação difícil.
“Há um ano ele perdeu um filho. Em um namoro adolescente, ele engravidou a namorada, ela resolveu ter o
bebê e, quando estava no hospital, ainda com 2 dias, teve
um problema no coração e morreu, o que deixou Lucas
ainda mais triste e depressivo, daí em diante, ele começou a ficar menos em casa, parou de trabalhar e de certa
forma, fica se culpando também”, conta.
Para Marta, seria um sonho ver o filho se recuperando,
bem, namorando, trabalhando e pensando em formar
uma nova família, porém, sem autoestima, ela diz que
não se permite sonhar.
“Eu tenho esta fantasia e, ao mesmo tempo, deixo de ter.
Só queria ver meu filho bem, que voltássemos a ser uma
família, sabe?”, finaliza, chorando novamente.
Em foco
291
Do outro lado da grade
Uma outra mãe que sofre pelos problemas que tem com
o filho e, mesmo assim, não perde as esperanças é Olga
B., 67 anos, uma senhora baixinha, gordinha, de cabelos
brancos presos em um coque e uma sacola pendurada no
braço, ela vai até a cadeia de segurança pública, visitar o
filho que está preso há um ano, Pedro B., 28 anos.
Mãe de quatro filhos, ela conta que esta é a segunda
vez que o filho cumpre penas em regime fechado. Da
primeira vez, Pedro foi preso por roubo e após ser solto,
ficou seis meses em liberdade, sendo preso novamente,
por tentativa de homicídio. Tudo isso se dá porque o
filho já foi usuário de drogas e ela diz que não sabe se
ele parou de usá-las.
“Desde muito jovem o Pedro usa drogas, começou com
cigarro e bebida, depois maconha e, de uns tempos para
cá, até mesmo drogas fortes como o que eles chamam de
pó e um famoso mesclado, que parece que é a mistura da
maconha com outra substância mais forte”, relata.
Os outros filhos de Olga trabalham e são encaminhados
na vida, dois deles já se casaram e moram fora de casa.
Ela acredita que o motivo da prisão do filho e do uso
desenfreado de drogas se deva ao fato de que, quando
ele era criança, ficava apenas com sua filha mais velha,
que hoje tem 35 anos, para que ela fosse trabalhar.
“Somos de uma origem pobre, então eu tinha que trabalhar para ajudar no orçamento de casa. Depois que o pai
dos meus filhos também faleceu, por beber demais, fiquei
sozinha para terminar de criá-los e não tinha como ficar
com eles, ou mesmo vigiar e aconteceu isso. O Pedro se
desencaminhou, começou a usar drogas, ficou agressivo,
começou a roubar em casa, depois na rua, ficou preso. Eu
pensei que ele fosse melhorar quando saísse, mas não,
fez ainda pior e agora eu estou aqui”, conta, emocionada.
292
Traficando conhecimento
Olga destaca ainda que é bastante humilhante ter um
filho preso, ter de ir visitá-lo na cadeia, passar por revistas e todo o procedimento exigido.
“Eu fico muito envergonhada, até mesmo para andar na
rua, pegar um ônibus, parece que todos me apontam
como mãe de um marginal. Meu filho não é marginal, ele
errou, sei disso, mas eu também errei com ele e me sinto
tão culpada por tudo isso. Não sei nem de onde eu tiro
forças para continuar vivendo, vir aqui na prisão vê-lo,
trazer coisas para ele, é tudo muito triste”, relata, já com
lágrimas nos olhos.
Na pesada sacola que Olga carrega, em direção à cadeia,
ela leva alimentos, sabonetes e toalha para o filho e diz
que, mesmo sabendo que ele errou, ora todas a noites e
pede que Deus tenha piedade dele, além de tentar, com
pouco, zelar pelo bem-estar de Pedro, dentro da cadeia.
Com um olhar triste, Olga comenta que espera ansiosa
pelo dia em que o filho sairá da cadeia, e faz planos para
poder sentar e conversar com ele. Ela destaca, também, que pretende procurar alguma ajuda, para tratar a
dependência química dele.
“Sou sozinha, as coisas são difíceis, mas espero conseguir tratar a dependência química do meu filho. Vou buscar ajuda, e quando ele sair da cadeia, penso em procurar
um serviço e ter uma vida normal. Sei que não é fácil, mas
se eu não sonhar, fica ainda mais difícil”, diz.
Ela fala ainda sobre o preconceito que enfrenta, até
mesmo para encontrar emprego, ou no bairro onde
reside, na Zona Leste da cidade, onde, segundo Olga, os
vizinhos, ao saberem das mazelas do filho, lhe viraram as
costas e a julgaram.
“Muitos nem sabem como foi difícil criar meus filhos e
dar pelo menos o que comer a eles, sem pedir nada a ninguém. Julgam-me e isso é fácil, mas só eu sei a dor que
é ter um filho preso, não poder vê-lo sempre, ou mesmo
Em foco
293
protegê-lo, como eu gostaria de fazer, afinal, mãe é mãe
e não deixa de ser porque o filho está preso, usa drogas,
tentou matar alguém, sempre vou amar meu filho. Não
posso dizer que nunca fiquei decepcionada com ele,
senão, estaria mentindo, mas o amo da mesma maneira,
mesmo ele errado”, desabafa.
Para o Dia das Mães, Olga diz que não está totalmente
feliz, por saber que Pedro passará longe dela, na cadeia,
mas, pretende fazer um almoço para os outros três filhos
e a família deles. “Vamos almoçar em casa, fico feliz
pelos meus outros filhos, mas, no fundo do coração,
sempre tem aquela dor, aquele desespero, porque eu
queria que o Pedro estivesse conosco”, lamenta.
Ouvir e relatar histórias como estas me fizeram deixar o
esgotamento pela rotina de lado e voltar com tudo para
as oficinas. Percebi que poderia fazer jornalismo e literatura ao mesmo tempo, trabalhar com as ferramentas
do jornalismo literário nos meus textos, produzir literatura marginal por meio dos fatos reais que assolam
nosso povo, cercados pelo preconceito, pelas situações
limite, pela linha invisível do tráfico, pelo desejo de liberdade e pelo descaso social.
Levei os dois primeiros textos produzidos para a oficina
e bolei, mentalmente, oficinas futuras, além de voltar a
atualizar o blog e colaborar com o Literatura Periférica,
mantido pelo amigo Buzo.
Voltei, mesmo que ainda endividada, a comprar livros
de literatura marginal. Primeiro para alimentar a minha
alma e segundo para usar no trabalho com as crianças
e adolescentes da oficina fixa e também do projeto itinerante que eu estava pensando em criar. Com um novo
layout, o Cultura Marginal voltou a fazer jus ao nome,
e ao projeto, e a receber textos quase diários, além de
matérias semanais, sempre reproduzidas na coluna Às
Margens da Sociedade.
294
Traficando conhecimento
A terceira reportagem da série foi a história de um andarilho.
Pelos acostamentos da vida
Mochila surrada nas costas e cantil pendurado no ombro.
Assim segue Osmar, 53 anos, andarilho pelas estradas do
país. Um homem de rosto queimado pelo sol e a pele desgastada pelo tempo passado às margens de estrada, diz
não se recordar do sobrenome e conta que está há mais
de trinta anos perambulando pelo Brasil.
Em uma manhã quente, ele deixou a cidade de Triunfo, em
Pernambuco e seguiu, a princípio de bicicleta, para São
Paulo, onde pretendia encontrar um emprego, naquele
que chamam de o maior centro empresarial do país.
Enquanto ainda carregava sonhos na mochila, Osmar
deixou a família no interior de Pernambuco e foi, pedalando e vivendo a vida das estradas, até chegar na maior
cidade brasileira, a capital do estado de São Paulo.
Após viajar meses, com histórias peculiares sobre o trajeto feito entre Triunfo e São Paulo, Osmar lembra que
foram meses sofridos, porém, guarda boas lembranças.
“Eu ainda era moço quando saí de casa, então, tinha
um certo charme que a juventude deixa. Não me faltava
nenhum dente e tudo mais e eu conheci uma moça, assim
que saí de Triunfo, num bar. Ela era a garçonete. A danada
atrasou a minha viagem para São Paulo”, se diverte, com
um sorriso no rosto e os olhos brilhando.
Ele conta que, por causa da moça, ficou bastante tempo
em volta do bar, gastou boa parte do dinheiro que tinha
guardado e levado para a viagem e o romance não deu
em nada.
“Eu saí de casa para achar um trabalho, então, era isso
que tinha que fazer. Tive que deixá-la para trás. Era um
tempo bom, apesar dos medos da estrada e dos perrengues que passei”, destaca.
Em foco
295
Na estrada
Já na estrada, Osmar lembra que, para comer, gastava
o dinheiro que havia levado. A princípio, pensou que as
economias conseguiriam mantê-lo até São Paulo, mas se
enganou e já no interior da Bahia o dinheiro estava praticamente no fim, o que o obrigou a arranjar bicos em bares
e restaurantes de beira de estrada, bem como postos de
gasolina e oficinas mecânicas. “Eu trabalhava horas em
troca de um prato de comida, para tentar chegar até a
próxima cidade e prosseguir a viagem”, diz.
Foi então, que uma noite, em uma cidade baiana da qual
não se recorda do nome, que Osmar teve a bicicleta furtada enquanto dormia em um posto de combustível. A
bicicleta, estacionada junto a outras, no mesmo lugar,
foram levadas por ladrões durante a noite.
Ao acordar e não encontrar mais meios de se transportar, Osmar lembra que ficou desesperado. “Eu não sabia
o que fazer como chegar a São Paulo. Sem dinheiro, sem
a bicicleta, sem ter onde dormir e com medo de continuar
na estrada. Mas também, não tinha mais como voltar,
então tive que prosseguir com a viagem. Foi um período
difícil, mas me lembro que fiz grandes amigos”, afirma,
deixando transparecer a saudade.
Mesmo sem a bicicleta, ele foi seguindo a viagem, a pé
e da mesma maneira, fazendo bicos para conseguir se
alimentar.
Amizade feita na estrada
Foi nesta época também que Osmar conheceu um grande
parceiro, chamado de Pernilongo, que o acompanhou
durante a viagem, a pé.
“Eu conheci o Pernilongo, como a gente o chamava, no
mesmo lugar onde furtaram a bicicleta. Levaram a dele
também e, conversando, ficamos amigos. Ele estava
indo para o Rio de Janeiro e fomos andando e seguindo
296
Traficando conhecimento
juntos, mas, por fim, ele acabou indo para São Paulo
comigo”, relata.
Durante anos, os dois viveram juntos e se ajudando.
Fazendo bicos em troca de comida e caminhando a pé.
Osmar, já não se recorda de quanto tempo levou para
chegar a São Paulo, mas ele acredita que caminhou por
mais de um ano.
“Era difícil, porque não conseguíamos ir muito longe
ou caminhar por muito tempo, por falta de comida e
tudo mais. Tínhamos receio de pegar muitas caronas.
Às vezes íamos até determinado ponto de carona com
alguém que conhecíamos nos postos ou bares que ficávamos parados”, conta.
A amizade com Pernilongo durou até pouco tempo, quando
no Rio de Janeiro, este faleceu. Osmar acredita que foi
uma vítima da dengue.
“Ele ficou bem doente, achamos que foi dengue. Tentei
levá-lo para um albergue, mas ele faleceu. Também, já
estava velho, mesmo assim, sinto falta de ter um companheiro para caminhar comigo”, diz.
Seguindo viagem
Mesmo com a morte de Pernilongo, Osmar continuou
peregrinando pelo Brasil afora e conta que já esteve em
estados como a Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito
Santo, Paraná e, atualmente, em Minas Gerais.
Porém, desde que saiu de casa, nunca mais teve notícias
da família ou mesmo retornou para Pernambuco. “Sinto
saudade, me pergunto como minha família pode estar,
mas não tive como retornar. Nunca tive trabalho fixo ou
residência. Permaneço, há mais de trinta anos nesta vida
de andarilho. Já passei em albergues e tudo, mas é difícil
me acostumar, ou ficar muito tempo num mesmo lugar,
penso que o meu propósito de vida é andar até chegar a
minha morte”, acrescenta
Em foco
297
Por cada estado e cidade que passou, Osmar guarda
uma passagem ou alguma coisa. Por não saber ler, nem
escrever, ele diz que se perde muito pelo caminho e
ainda esclarece que prefere andar a pegar carona com
caminhoneiros ou viajantes. “Eu gosto mesmo é de caminhar, como não tenho um destino certo, vou parando.
Sempre peço um pouco de comida, como, levo um tanto,
esquento em fogareiros que eu mesmo improviso e procuro me abastecer com água, assim, vou caminhando,
observando cada paisagem, que é diferente por cada
lugar que eu passei e isso me dá uma paz de espírito e me
sinto mais perto de Deus”, destaca.
Questionado sobre a fé, Osmar ressalta que crê bastante
em Deus e que se sente próximo a ele enquanto caminha
pelo país afora. “Enquanto ando, vou rezando, conversando com o criador deste mundo tão grande e bonito,
que apesar das desigualdades, também tem belezas.
Basta saber enxergá-las.”, acredita.
Em Poços de Caldas
Osmar diz que chegou até Poços após vir caminhando
pelo interior de São Paulo e conversando em bares, onde
adquiriu um gosto especial por tomar pelo menos uma
pinga por dia em cada local que passa. Assim ele descobriu que aqui é uma cidade com águas termais e veio até
aqui, conhecer.
“Parado em um bar no estado de São Paulo, passou um
caminhoneiro que disse que viria para Poços e que a
cidade era bonita, com águas quentes e tudo mais e eu
senti vontade de conhecer, peguei carona com ele e aqui
estou, acho que já tem umas duas semanas, porém,
pretendo ir embora semana que vem rumo a Belo Horizonte”, conta.
Em Poços, ele conta que se alimentou, nos primeiros
dias, com o caminhoneiro que o trouxe, depois, fez amizade com outros moradores de ruas e passou a comer
com eles, do alimento que os mesmos pediam em resi-
298
Traficando conhecimento
dências e cozinhavam em uma casa abandonada, a qual
eles invadiram e habitavam.
“É uma vida diferente a que eles levam, foi bom, ficamos
amigos, conheci a cidade, mas agora já sinto vontade de
ir embora, talvez um dia eu volte, pois gostei do lugar, das
pessoas, dos amigos que fiz”, destaca.
Desta forma, seguindo por cada cidade, Osmar vai
vivendo e permanecendo na estrada, e pelo que ele
afirma, durante toda vida. “Não vejo porque mudar de
vida, sou feliz assim”, finaliza.
Comovida por relatos de luta e coisas inusitadas, como
as contadas por Osmar, me abriram os olhos, fazendo
ver que a vida vai mais além e que de repente, era tempo
de deixar algumas coisas para trás, como o tronco de
escrava ao qual eu estava presa. Na segunda-feira após
o fim de semana em que a matéria foi veiculada, enchi
uma pasta com vários currículos e visitei os demais
órgãos de comunicação, inclusive os que ficam na
mesma rua e calçando a cara, pedi um emprego.
Fui bem recebida em todos e, como resposta, a promessa de que assim que surgisse uma vaga, ela seria
minha. Esperançosa, continuei à minha maneira e para
descontrair resolvi encarar a produção de mais um
evento de hip-hop, desta vez, com um sarau, ao melhor
estilo dos da capital paulista. Porém, enquanto trabalhava nos preparativos, não deixei de produzir as reportagens, com o intuito de, mais tarde, transformá-las em
outro tipo de publicação para além do jornal e do blog.
Minha vontade continua sendo fazer pós-graduação em
jornalismo literário e mestrado em antropologia, justamente para abordar o jornalismo em conjunto com a realidade e a literatura, principalmente no relato cotidiano
presente na literatura periférica que usa o submundo
como pano de fundo. Confira algumas reportagens:
Em foco
299
300
Traficando conhecimento
Por amor: bandeira arco-íris
Na linha entre o amor e o preconceito, casal de gays
conta como vive e relata as particularidades da vida
entre dois homens.
“Eu amo ser homossexual e quero é pregar a felicidade,
porque eu sou feliz assim. Eu respeito, mas também
quero ser respeitado”, é o que afirma Daniel Sampaio
(nome alterado), personagem desta edição da série Às
Margens da Sociedade que fala sobre a vida de um casal
gay, preconceito e orgulho da causa que abraça, que vai
em defesa de homossexuais.
Em foco
301
“Não demorou um mês e estávamos morando juntos no
nosso apartamento”, comentam.
O casal vive em um apartamento pequeno, porém muito
bem decorado, por Caio, que gosta bastante de explorar
o próprio lado artístico. “É para fazer jus. Dizem que todo
gay se dá bem com decoração”, se diverte.
Em uma sala bem decorada e limpa, eles contam as particularidades de um mundo que nem sempre é exposto
e, poucas vezes, é compreendido. Falam de preconceito,
aceitação e felicidade.
O primeiro momento
Aos 27 anos, Daniel vive com um outro homem, Caio Paschoal*, 26 anos. Ele conta que eles se conheceram em
uma boate voltada ao público gay na cidade de São Paulo
e não se desgrudaram mais.
“Eu não gostava muito de sair e ir à boates gays, mas
naquele dia, há quase cinco anos, resolvi sair da toca e
fui nessa boate. Assim que botei os olhos no Caio e ele
em mim, nos aproximamos. Ficamos a noite toda conversando e bateu, ficamos amigos já com terceiras intenções”, brinca, ao lembrar.
Quem continua a narração do primeiro encontro é Caio,
que lembra que, logo de cara, se deram bem. “Eu sempre
fui muito reservado e a empatia que surgiu com o Daniel
foi incrível. Na primeira noite, contei toda a minha vida a
ele e ele me contou muita coisa também. Combinamos de
nos encontrarmos no outro dia para caminhar e estamos
juntos, caminhando, até hoje”, conta.
Daniel é funcionário público e Caio cabeleireiro. O casal
conta que na ocasião em que se conheceram, Daniel
estava passando um feriado em São Paulo com amigos.
Antes mesmo do fim de semana chegar ao final, os dois
já estavam de volta a Poços, para que Caio conhecesse a
cidade e talvez se mudasse.
Para ambos, é difícil falar do momento em que se aceitaram e assumiram como homossexuais e cada um tem
uma história diferente.
Daniel relata que sempre teve a famosa “tendência” e
nunca se deu muito bem com os garotos de sua idade em
época escolar. “Eu não gostava de jogar bola, brincar na
rua e coisas desse tipo, mas não entendia o porquê. Na
pré-adolescência, eu me forçava a fazer estas coisas
e, até mesmo, namorei garotas, para me enquadrar nos
padrões sociais. Quando fiquei adulto, percebi o grande
erro que cometi comigo mesmo. Eu não era feliz”, comenta.
Já Caio relata que desde muito novo, assumiu a homossexualidade. “Eu era garoto e contei, inocentemente para
minha mãe, que gostava de outro garoto. Claro que foi
um choque para toda a família. Passei pelos psicólogos,
terapeutas, psiquiatras, familiares, irmão mais velho e
nada adiantou. Aceitei-me e meus pais tiveram de fazer o
mesmo. Não adianta lutar contra algo que é da natureza,
sabe? Nunca namorei mulheres. Claro que já estive com
algumas, mas acho que foi mais para desencargo de consciência, para constatar que eu gosto mesmo é de homens.
Hoje, gosto do homem que é o Daniel”, diz, bem-humorado.
302
Traficando conhecimento
Daniel, contudo, diz que contar em casa a natureza preferencial por homens e não por mulheres foi um processo
doloroso. “Sempre tive medo de magoar e decepcionar
meus pais, mas eu estava sendo infeliz em fingir que
era algo que não era. Contei primeiro para minha mãe,
morrendo de medo da rejeição e para minha surpresa,
embora tenha ficado chateada, ela me apoiou, disse que
me amava e que gostaria de me ver feliz. Já com meu pai
foi diferente. Ele esbravejou, tentou me fazer mudar, mas
como adiantaria? Hoje ele aceita, mas mantém uma certa
distância. Por exemplo, ele nunca veio à minha casa, por
saber que eu vivo com o Caio”, relata.
A vida à dois
Ao serem questionados sobre a vida à dois, o casal
comenta que, assim como um casal hétero, existem as
dificuldades de um casamento. Eles dão risada ao se
atacarem sobre as preferências domésticas de cada um e
Daniel brinca com Caio. “Sempre discutimos sobre o modo
de apertar a pasta de dentes ou arrumar a cama”, ri.
Porém, mesmo com as pequenas diferenças domésticas, eles afirmam que vivem bem e sem brigas. “Claro
que temos ciúmes, crises, momentos difíceis, mas nos
damos bem. Acho que nos completamos, sabe? Não
imagino minha vida sem o Caio. Somos o que falta um no
outro e somos muito felizes. Temos vida de casal, pessoal e social”, acrescenta Daniel.
Para selar a união, eles contam que não fizeram festa,
casamento ou recepção, porém, ambos tatuaram uma
lua azul nas costas, como prova de amor. “Acho que é
uma marca. As pessoas dizem que é loucura marcar o
corpo e tudo mais, porém, eu penso que, mais do que o
corpo, marcamos nossa alma ao nos unirmos e isso não
tem laser que apague”, reflete Caio.
Em foco
303
Preconceito
“O preconceito deixa marcas”, afirma Daniel, que diz que
já sofreu vários tipos de preconceito, na rua, em antigos
empregos e em situações corriqueiras.
“Não tem como um gay dizer que não aparenta ser gay.
Claro que alguns demonstram mais, outros menos, mas
as diferenças de comportamento são visíveis e o preconceito, mais visível ainda”, destaca.
Já Caio acredita que, dentro do que é classificado como
preconceito, o que mais deixa marcas é no que diz respeito à parte psicológica. “Já deixamos de frequentar
vários lugares pela forma como somos tratados. Não
temos doenças contagiosas ou coisas do tipo. A única
coisa que difere é que a pessoa ao meu lado é o Daniel
e não uma mulher, mas temos amor em nossa relação,
coisa que muitos héteros não têm. Mas é um fato, o preconceito dói. As piadas na rua, a forma de tratamento,
a discriminação. Enfrentar o preconceito é muito difícil.
Mas é o preço de ser diferente, de ser feliz”, destaca.
Sobre ser xingado nas ruas, Daniel comenta que várias
vezes, há alguns anos, parou para discutir com as pessoas. “Hoje vi que não vale a pena. Penso que por meio
de campanhas temos mais chances de atingir estas pessoas do que parando para discutir na rua. Recordo-me
de uma vez que estava andando pela rua e um monte de
adolescentes começou a me xingar. Parei e fui discutir
com eles. Um deles retrucou e me disse que o pai dele
tinha horror a homossexual e disse que contaminávamos a sociedade. Percebi que ali existia muito mais a
ser combatido do que provar que eu sou feliz e não faço
mal. Desisti da discussão após alguns minutos e quando
saí, este mesmo adolescente atirou objetos contra mim.
Não parei para ver e quando cheguei em casa, desabei.
O meu consolo foi o amor do Caio. Desde então, aprendi
304
Traficando conhecimento
que podemos lutar contra o preconceito utilizando nossa
maior arma, que é o amor. Mesmo, muitas vezes, sendo
taxados de marginais pela sociedade, o amor nos fortalece e obriga a lutar contra este preconceito gritante”,
desabafa Daniel.
Iniciativa
Discretamente, pois onde Daniel trabalha, nem todas as
pessoas sabem de sua vida com Caio, o casal se organiza em manifestações e campanhas contra a homofobia e o preconceito.
“Quando vamos a São Paulo visitar a família do Caio,
nos engajamos em ONGs e buscamos o conhecimento
para aplicá-lo em Poços também. Claro que é mais difícil, pois tenho que manter a discrição que meu cargo
público exige, mas não estou impossibilitado. Através
da Internet trocamos ideias, informações e agitamos
uma campanha virtual”, conta.
Caio afirma também que sua afinidade com a arte vai
além dos fantásticos cortes de cabelo e da decoração do
apartamento onde vivem.
“Estou desenvolvendo um projeto. Pretendo ir às periferias, me encontrar com jovens carentes e que também são taxados de marginais e com eles, montar uma
peça teatral para tratar justamente da homofobia e do
preconceito, da invisibilidade social e gritante desamor.
Ainda não tenho nada pronto, mas posso garantir que
assim que conseguir implantar e desenvolver este projeto, muitas pessoas conhecerão o amor e os milagres
que ele é capaz de fazer”, pontua.
Vida contemporânea x vida nas estradas
“Pela estrada da vida”, assim vive o casal de hippies, Marcelo Pivovarte Camargo, 30 anos, e Tamayra de Andrade,
22 anos, conhecidos como Pivô e Tayta, que passam via-
Em foco
305
jando Brasil afora, vendendo bijuterias ou biojoias (bijuterias feitas com materiais naturais como pedras, folhas de
árvores secas, sementes) como são conhecidas e sobrevivendo, ou como eles dizem, vivendo o real sentido da vida.
A história do casal se confunde com a da maioria dos
brasileiros, porém, com o diferencial de que ambos
abandonaram o conforto da vida contemporânea para
viver na estrada. Aos 30 anos, Pivô já fez curso de torneiro mecânico pela escola profissionalizante, SENAI e
abandonou tudo isso para ser hippie, vivendo já há dez
anos na estrada.
“O que me levou a ser hippie foi a busca pela liberdade.
Viajar, conhecer, não ter patrão. Ganhar meu dinheiro
honestamente e curtir a vida, como os hippies de antigamente”, conta. Com um sotaque de paulistano, ele
conta ainda que sofre até hoje os preconceitos de viver
às margens da sociedade. “É o rapa, a galera, a falta de
cultura, tudo isso é muito, somos muito discriminados
porque queremos ser felizes”, afirma.
Já Tamayra conta que vivia em Manaus (AM), quando
conheceu Pivô em um bar, onde ele fazia bijuterias e se
encantou pela história e estilo de vida do mesmo. “Na
verdade eu abri mão de tudo, do sistema. Eu tinha uma
vida totalmente diferente da que eu levo agora, mas
estou satisfeita. No início, larguei tudo por amor e arranjei um outro, que é o amor pela estrada. Estou viajando
direto e sou realizada do jeito que estou”, destaca.
Antes de se tornar hippie, Tamayra cursou até o 5° período da faculdade de administração de empresas, trabalhou no banco HSBC e conseguiu, inclusive, comprar um
carro com o próprio dinheiro. “Eu abri mão pela felicidade
mesmo, fora do sistema”, acrescenta.
Ambos definem o dia a dia como uma correria, não muito
diferente dos milhões de brasileiros que se adequaram
às normas da sociedade.
306
Traficando conhecimento
“Contudo, continuamos sempre firmes. Nem pensamos
em desistir. Nosso ganha pão são nossos “trampos”, que
fazemos com muito amor e cada um tem uma história”,
conta Tamayra.
Ao serem indagados sobre a quantia adquirida mensalmente com a venda dos trabalhos artesanais, os hippies
ressaltam que não têm noção, uma vez que assim que o
dinheiro entra, já é gasto com comida e bebida.
“Um dia é maré alta, outro dia maré baixa, mas, investimos o dinheiro em nossa história, além de alimentação,
temos um dinheiro guardado, para ser investido numa
terra em Manaus.”, diz Pivô.
Desmistificando
Em foco
307
O hippie conta, também, que já passou por 16 capitais
brasileiras, o que o torna um ser humano feliz e cheio de
histórias vividas em locais diferentes do país.
Mesmo vivendo, aparentemente, sem regras ou controles,
os hippies buscam conhecimento e se interam de fatos atuais do país, não somente os culturais, mas também política
e democracia e, contudo, tecem críticas ao sistema.
“É muita discriminação, burocracia e ninguém respeita
as leis, porque temos o livro da constituição que traz
que quem faz seu trabalho honestamente, artesanal,
tem direito a um metro quadrado em cada terra, só que
a lei municipal passa por cima da federal e continuamos
nessa luta. É Brasil, né mano?”, acrescentam.
Apesar de viverem pelas estradas, acampando nos
campings, praças e locais públicos, o casal destaca que
também tem casas, como a dos pais, onde passam algum
tempo quando a saudade aperta.
Um misto entre lucidez e doideira, esta é a impressão causada por quem conversa com o casal ou fica perto durante
algum tempo. Com garrafas de vinho tinto na mão, logo às
9h, eles dizem que bebem para suportar o frio que é estar
nas ruas durante os meses mais gelados do ano.
Atualmente, em razão de uma cirurgia na hérnia, Pivô não
tem viajado grandes distâncias, ficando concentrado no
sudeste, com paradas regulares na casa da mãe, que vive
em São Paulo, na capital.
Além das garrafas, eles têm nas mãos os apetrechos
necessários para confeccionar bijuterias, que podem
ser do gosto do cliente, feitas na hora, ou as que já estão
prontas, nos mostruários.
“Minha mãe mora no Ipiranga, eu fico por lá, mas sei
lá, de repente é como se não estivesse, porque ela não
admite o meu jeito, a minha vida. Mas, eu tô vivendo a
minha vida, honestamente”, destaca.
Ao abordar as pessoas, eles sempre ressaltam que o
dinheiro pago é para ser investido em mais uma garrafa de
vinho. “É para fortalecer o vinho da manhã”, dizem. Da concepção social e do senso comum de que os hippies estão
às margens da sociedade, Tamayra adquire uma postura
concisa e forte a respeito disso. “É coisa de gente leiga,
estão por fora, são sem cultura. Hippie é só alto astral, só
felicidade. Aprendi a viver fora da cultura do sistema, vivo
bem, não passo fome, bebo o quanto quero, curto o quanto
quero e tento passar isso adiante”, acrescenta.
Contudo, o casal faz questão de ressaltar que não tem
planos ou mesmo rotina e afirmam que a vida é o dia a dia.
“Não tenho grandes ambições como o carro do ano, uma
TV de Plasma, eu só quero curtir a vida. Se eu tiver um
pedaço de terra onde morrer, já é válido. Eu armo minha
barraquinha no meio do terreno e já era”, comenta Pivô.
308
Traficando conhecimento
Amizade
Acompanhando o casal está uma amiga, também conquistada na estrada. É Kelly da Silva Pereira, 23 anos, que saiu
de Alagoas para viajar pelo país. “Conhecer o movimento
hippie foi uma revolução na minha vida. Há cinco anos que
eu estou vivendo assim e é muito bom. Massa”, diz.
O dia a dia dela é bastante parecido com o do casal.
Ela faz o que sente vontade no momento e mantém a
mesma postura de pregar “paz e amor” e a vida fora dos
padrões sociais.
Segundo os hippies, uma das vantagens deste estilo de
vida é o fato de que, pela estrada, muitas amizades são feitas e levadas por toda a vida, como a história dos mesmos.
O movimento hippie
Em foco
309
mais espetaculares (e mais ridículas) um numeroso
grupo de hippies rodeou o Pentágono (sede do aparelho
militar americano) e tentou fazê-lo levitar apenas com a
“força da meditação”.
Estabeleceu-se um “estilo hippie”, com roupas coloridas,
túnicas, sandálias, cabelos compridos em ambos os sexos.
A flor foi um dos seus símbolos e chegou a usar-se a expressão “flower power” como designação do movimento.
Desta forma, alguns hippies ainda permanecem pelo
mundo, inclusive pelo Brasil, vivendo em comunidades
específicas ou viajando, pregando o princípio de paz e
amor por onde passam, fugindo das obrigações sociais e
do sistema, que eles consideram injusto e ineficaz.
Profissão: Prostituta
A cultura e movimento hippie nasceu e teve o maior
desenvolvimento nos Estados Unidos da América (EUA),
com uma juventude rica e escolarizada que recusava
as injustiças e desigualdades da sociedade americana,
nomeadamente a segregação racial.
Maquiagem, salto alto, vestido curto e bolsa pequena,
estes são apenas alguns acessórios de Flávia Oliveira,
18 anos, que adotou este nome fictício ao tornar-se
travesti e começar fazer o famoso ponto, nas ruas de
Poços de Caldas.
Na sua expressão mais radical, os jovens hippies abandonavam o conforto dos lares paternos e rumavam para as
cidades, principalmente São Francisco. Viviam em comunidade com outros hippies; noutros casos se estabeleciam
em comunas rurais. Dois valores defendidos: a “paz” e o
“amor”. Opunham-se a todas as guerras, incluindo a que
o seu próprio país travava no Vietnã. Defendiam o “amor
livre”, quer no sentido de “amar o próximo”, quer no de
praticar uma atividade sexual bastante libertária. Podiase partilhar tudo, desde a comida aos companheiros. A
palavra de ordem que melhor resume este sentimento foi
a famosa “Make love, not war” (Faça amor, não guerra).
Conhecida como Flavinha, ela conta que se tornou travesti e prostituta há um ano porque quis. “Ninguém me
obrigou a nada, desde pequena eu queria isso e somente
agora eu tomei esta postura para me assumir mesmo,
entendeu? É uma coisa que quero mesmo”, dispara.
Os hippies apreciavam a “filosofia oriental”, o que significava alguns aspectos da religião hindu misturada com
doutrina da “não violência” de Gandhi. Em uma das ações
Por sempre ter tido uma convivência no meio de mulheres, Flavinha conta que nunca levou jeito para ser hétero,
então começou a tomar remédios e tornar-se mais feminina, além de brincar mais com mulheres.
“Eu fui criada por mulheres, sempre convivi nesse meio.
Os homens da minha casa trabalhavam, então eu sempre
vivi em meio às mulheres. Então, para tornar-me o que
sou hoje, comecei a tomar certos tipos de remédios, usar
coisas mais femininas, desde os meus 12 anos e, até
310
Traficando conhecimento
hoje, me sinto evoluindo. Então, aos 17 anos eu decidi ser
travesti, mas uma travesti de programa”, detalha.
Ao ser indagada sobre o momento em que descobriu ser
homossexual e se decidiu pela prostituição, Flavinha
lembra que teve a primeira experiência sexual aos 10
anos. “Mas eu ainda tinha medo e a incerteza de querer
realmente aquilo para minha vida. Aos 12 anos, quando
cheguei em Poços, vinda da Bahia com a minha família,
vi como é a vida aqui, encontrei-me com pessoas mais
evoluídas e passei a me travestir”, diz.
Flavinha fala também, com certa tristeza, que os pais
não aceitaram de imediato o fato de ela ter começado a
se travestir, aos 12 anos.
“Demorou alguns anos para eles entenderem que eu
havia assumido. Isso aconteceu há uns dois anos apenas, mas foi uma grande batalha”, afirma.
Em foco
311
Contudo, ela detalha, também, os maus tratos, vindos do
preconceito e de pessoas que não assimilam situações
como a que Flavinha vive.
“Claro que existem pessoas maldosas, que me xingam
na rua, mas eu passo de cabeça baixa, não respondo,
porque a melhor a resposta é o silêncio. Mas tento ser
normal, aliás, eu sou uma pessoa normal”, destaca.
O programa
Ao assumir que realiza programas sexuais por dinheiro,
Flavinha faz questão de ressaltar que é por opção e que
faz isso simplesmente porque gosta e sente prazer.
Nas proximidades do Complexo Cultural da Urca, conhecido como “paredão”, é onde Flavinha costuma ficar
durante as noites, em busca de dinheiro atrelado à satisfação sexual e pessoal.
A vida em Poços de Caldas
“Eu costumo ficar ali perto, mas já tenho vários clientes. Espero eles me buscarem em casa, pois, como sou
independente, moro sozinha, eles me pegam em casa
ou, aqueles fixos, que eu já conheço há tempos, costumam entrar”, conta.
“Minha vida é ótima”, conta Flavinha. Vinda da Bahia há
quase oito anos, Flavinha atualmente mora sozinha, no
centro da cidade. Os pais também moram em Poços, mas
não dividem a mesma casa com a travesti.
O preço estipulado por ela vai de acordo com a hora.
Quando o programa é feito em casa, Flavinha cobra R$ 100.
E quando é na rua, o preço costuma ser de R$ 50 por meia
hora, que geralmente é gasta em motéis.
Com uma rotina diferente, até mesmo pelo tipo de vida
escolhida, durante o dia Flavinha arruma os objetos e
pertences em casa.
“Ás vezes chega a acontecer no carro ou mesmo em
alguns outros lugares que eu já conheço, ou que nos
levam, mas que já temos referências”, diz.
“Minha mãe tem um estabelecimento em casa e às vezes
vou para o local, que prefiro não citar, como travesti
mesmo e as pessoas que entram no estabelecimento me
aceitam, me tratam muito bem, da mesma forma que eu
as trato”, enfatiza.
Ela conta, também, que não são todos os dias da semana
em que programas são feitos. A frequência maior é no
final de semana. “Tem dias que eu não vou ao ‘paredão’
pois não estou com cabeça mesmo”, comenta.
Sobre praticar sexo por dinheiro, ela conta que os pais
sabem do fato, mas ainda não assimilam com clareza a
situação.
Há também horários pré-determinados pelos travestis e
garotas de programa que frequentam os locais famosos
312
Traficando conhecimento
por oferecer prostituição. De acordo com Flavinha, o
movimento se intensifica após às 21h de sexta-feira e vai
até antes do amanhecer, por volta das 5h. Nestes locais,
muitas amizades são feitas entre as outras prostitutas.
“Tenho muitas amigas ali, sim, somos bastante unidas, já
passamos por vários desentendimentos anteriormente,
mas isso era quando uma não conhecia a outra e gerava
aquela confusão, agora, somos bastante unidas”, relata.
O inusitado
Ao ser questionada sobre situações ou programas inusitados, Flavinha conta que já saiu para fazer programa
com dois casais heterossexuais. “O que eu observo é que
as mulheres querem ter uma relação sexual com uma
travesti. Já saí com dois casais. Porém, da primeira vez,
não fiz nada com a mulher. Já na segunda vez, eu fiz porque fiquei com vontade, aí aconteceu. Foi a primeira vez
que eu tive relações com uma mulher”, detalha.
Sobre os programas feitos com homens, ela garante que
não existe mais os estereótipos de travesti passivo ou
ativo. “Depende do que os homens querem ou pagam,
mas, no meu caso, o que eles querem, eu faço”, garante.
O “paredão” por ser um local antigo e bastante conhecido, por muitos moradores da cidade, como um ponto de
prostituição, é também alvo de muitos preconceitos por
parte da sociedade e, algumas vezes, até mesmo da polícia, como conta Flavinha. “Já sofremos algumas ameaças de cidadãos e também vários policiais já pediram
para que deixássemos o local, mas eu não entendo, também, o porquê disso. Não é a primeira cidade de Minas
Gerais que tem profissionais do sexo nas ruas, todas as
cidades têm. Muitas vezes tentam nos tirar de lá, nos dão
‘gerais’ desnecessárias e ficamos inclusive constrangidas, porque as pessoas passam, olham, eles reviram
nossa bolsa, jogam nossas coisas no chão, pedem-nos
para tirar a roupa, às vezes”, descreve.
Em foco
313
Defendendo a classe em que trabalha, Flavinha não
acredita que as ações policiais sejam exclusivamente
para zelar pela ordem pública e bem-estar da sociedade,
mas classifica tais atividades como abuso de poder.
“Tem muita gente em Poços que pensa que a prostituição
nas ruas é uma coisa sobrenatural, sabe? São reações
superpreconceituosas, mas, estas pessoas que pensam
assim, por trás disso, são os que vão nos procurar mais
tarde. Na calada da noite, eles mostram a verdadeira
cara. Porque durante o dia, são um tipo de pessoas, à
noite, são outro e isso é o que eu não aceito”, desabafa.
Sobre a procura por programas, Flavinha acredita que o
que leva um homem ou mesmo mulher em busca de um
travesti na rua é a busca pelo prazer. “Muita gente tem
vontade, mas nem todos têm coragem. Eu acho que é
uma fantasia sexual”, destaca.
Já para ela, o maior prazer da profissão é ser reconhecida entre os homens. “Eu gosto da propaganda do boca
a boca, os homens dizem que eu sou boa e indicam, para
que outros saiam comigo. Isso é o que me dá prazer”,
afirma. Além disso, Flavinha não deixa de citar o dinheiro,
que, de certa forma, vem fácil por meio da prostituição.
Os perigos da prostituição
Por semana, Flavinha consegue ganhar em média R$ 350,
ou seja, um pouco menos que um salário mínimo. Porém,
vários fatos tristes também fazem parte da história, pouco
comum, de Flavinha. Ela conta que no Carnaval de 2007,
saiu com um rapaz da cidade vizinha de Caconde (SP).
“Ele começou a passar de carro, que também tinha
as placas de Caconde (SP) e eu não estava na Urca. Na
terceira vez que ele passou, parou. Contudo, ele estava
com uma cara um pouco suspeita, aparentando estar
bêbado”, conta.
314
Traficando conhecimento
Com isso, alertada por uma amiga, Flavinha fotografou
uma das placas, como uma espécie de garantia. Dali,
Flavinha e o rapaz foram para um local já conhecido por
ela, próximo à Avenida João Pinheiro.
“Eu já conhecia e quis ir para aquele local, justamente,
por isso, pensando que se algo acontecesse, eu saberia
para onde correr, fugir ou mesmo pedir socorro”, relata.
Daí em diante, um programa entre os dois foi feito e na
hora de acertar o prazer recebido, o rapaz não quis efetuar o pagamento, sacando uma faca.
“Ele disse que não me pagaria, puxou esta faca, porém,
eu também estava com uma navalha e tentei me defender.
Descemos do carro, começamos discutir e o resultado é
que eu tenho uma cicatriz nas costas, onde ele passou a
faca em mim. Porém, eu também passei a faca nele. Ele
disse que iria registrar um boletim de ocorrência e eu
garanti que quem teria a temer era ele, pois todos saberiam com quem ele havia saído e eu explicaria para a polícia que ele não quis pagar meu programa. Porque, neste
caso, eu acho que a polícia deve ir atrás”, narra Flavinha.
Após estes fatos, Flavinha começou a correr e gritar ao
rapaz que estava com ela que havia tirado foto das placas do carro. Quando chegou no centro da cidade, próximo ao “paredão”, o mesmo rapaz parou Flavinha, pediu
que ela não fizesse nada e lhe deu o dinheiro devido pelo
programa. “Naquele momento aceitei, mas foi um apuro
pelo qual passei”, diz.
Ela relata ainda que nem sempre anda como armas brancas como facas, estiletes ou navalhas e diz que naquela
noite, por sorte, estava com uma navalha.
“Aqui em Poços eu não me armo mais, porque a polícia
já me parou, porque tinham pessoas denunciando que
estávamos armadas, mas só pode ser quem sai com a
gente”, comenta. Porém, Flavinha afirma que, quando
vai para a cidade de São Paulo fazer programas, arma-se
com medo de sofrer alguma coisa.
Em foco
315
Na capital paulista, fato semelhante já aconteceu com ela,
o cara recusou-se a pagar o programa, lhe apontou uma
arma e a deixou no meio da rua. “Ele me deixou no meio do
nada, eu nem sei onde desci, mas graças a Deus eu tinha
dinheiro na bolsa, liguei para um táxi e ele foi me buscar,
mas foi um dia em que eu senti bastante medo”, lembra.
O preconceito
“Tem muitas pessoas que nos apontam nas ruas. Acham
que somos alvo de zombaria”, diz, ao referir-se ao preconceito existente da sociedade com os travestis e, também,
com as prostitutas. Contudo, Flavinha destaca que prefere ignorar o preconceito e levar a vida como está acostumada, sem se deixar abater com o julgamento alheio.
“Eu prefiro esquecer isso tudo, embora alguns falem, eu
vou levando a vida, pois, para conseguir o que quero, eu
devo passar por isso”, afirma. Quando diz que quer chegar
a algum lugar, Flavinha refere-se ao ideal que criou para si
mesma, que é colocar mais silicone no corpo e mais próteses e ela enxerga, como única alternativa para alcançar o
sonho, se prostituir.
Relacionamento
Além dos sonhos já citados por Flavinha e dos planos
para o futuro, Flavinha conta que possui um namorado
em Poços. “Ele é muito bacana comigo, acho que ainda é
a única coisa que realmente me prende na cidade”, conta.
Os dois se conheceram na rua e segundo relatos dela, ele
a aceitou enquanto prostituta. “Mesmo não querendo,
ele tenta entender isso”, afirma.
O dia de hoje... O futuro...
Diferente dos relatos comuns de prostitutas, que iniciaram
na profissão por falta de recursos financeiros, Flavinha
nunca passou por nenhuma necessidade e conta que os
pais sempre lhe proporcionaram bem-estar dentro de casa.
316
Traficando conhecimento
“Eles sempre batalharam, tanto na Bahia como aqui, mas
me prostituir foi uma opção. Não precisava de nada disso
que estou passando, faço porque gosto mesmo, embora
não seja fácil ficar na rua, é algo que quero passar, para
chegar onde quero”, relata.
Ela diz, também, que trabalhar em um emprego convencional, por ora, não está nos planos, visto que a rua
oferece dinheiro mais rápido. Contudo, a travesti relata,
também, que, às vezes, a rua não é tão agradável e sedutora, numerando fatos como não ter clientes todos os
dias, ou fatos desagradáveis com pessoas que fazem o
programa e recusam-se a pagar o preço estipulado.
“Eu já procurei empregos convencionais, mas aqui em
Poços não consegui nada. Acho que os empresários são
preconceituosos ainda. Só existem opções para cabeleireiro e quero trabalhar com moda”, conta Flavinha.
Ela diz ainda que não conseguiu se firmar em um emprego
comum, porque deixou de tentar ao longo do caminho.
Atualmente, Flavinha quer continuar na rua, trabalhando
como prostituta, mas não descarta a hipótese de, futuramente, dedicar-se ao sonho, que é trabalhar com moda.
Sem se esquecer do sonho e que cada dia ou mesmo programa é um passo dado em direção ao futuro, Flavinha
conta que sempre se previne contra Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) ou mesmo da Aids. “Minha
bolsa é lotada de camisinhas, eu tenho a carteirinha no
DST / Aids e me cuido também. Muitos caras chegam até
mim, dizem que são casados, que não têm nada, porém,
eu bato o pé e exijo o uso da camisinha”, relata.
Para finalizar, Flavinha reafirma considerar-se uma pessoa bastante feliz e realizada no que faz. “Eu sou hiperfeliz no que sou, no que faço e com as amizades que tenho
neste mundo. Eu tenho que dizer para as pessoas abrirem
a mente, porque todo mundo é igual, não tem quem seja
diferente, perante Deus, todos somos iguais”, finaliza.
318
Traficando conhecimento
Caminho de pedras
É uma manhã ensolarada de sábado. Os termômetros
marcam algo em torno de 22° C e, apesar da época ser
considerada fria, faz um dia agradável.
Sentado, na porta de casa, Augusto Caetano* (nome
alterado), 19 anos, conhecido como Toquinho, pela baixa
estatura, conta à reportagem que naquela mesma manhã,
assim que se levantou, por volta das 9h30, já havia usado
crack, droga derivada da mistura da cocaína ao bicarbonato de sódio, geralmente fumada em cachimbos e bastante comum nos locais mais pobres das comunidades.
Por ser mais barato que a cocaína, o crack chega mais
facilmente às mãos dos jovens e casos como o de Toquinho são mais raros, visto que os jovens começam a fumar
o crack com idades entre 10 e 12 anos. “É uma droga que
tem um efeito legal, embora dure pouco tempo. Uma
pedra de crack custa R$ 10”, conta, timidamente o rapaz.
Estudos acerca da droga mostram que este é um vício
bastante caro e que de pedra em pedra, os usuários
passam a quantidades maiores, tentando obter o mesmo
efeito das primeiras vezes consumidas.
O crack chega a ser até seis vezes mais potente que a
cocaína, contudo, provoca dependência física e pode
levar à morte por ter uma ação fulminante sobre o sistema nervoso central e cardíaco.
O antes e o depois
“Lutei muito tempo para me assumir como um dependente de crack”, conta Toquinho. “Quando eu era moleque, fumava muita maconha e achava o máximo, até que
com uns 16 anos, fiquei amigo do pessoal que repassa
a droga e entre um repasse e outro, junto com eles,
treinando para ‘aviãozinho’ — pessoa que leva a droga
de um local a outro — eu experimentei cocaína e gostei
bastante. É estranho a gente falar que gostou de uma
coisa que faz mal, né?”, comenta.
Em foco
319
Após usar cocaína e maconha por anos, Toquinho conheceu o crack há pouco mais de um ano e, deste então,
diz que raras foram as vezes em que ele não fez o uso
da droga. “Antigamente usava com um maior espaço de
tempo. Agora, acordo fissurado, como hoje, levantei e já
fumei. Parece que foi ontem mesmo, mas vejo que minha
vida mudou”.
Neste momento, Toquinho abaixa a cabeça e mostra
sinais de estar levemente emocionado. Em seguida, conta
que, antes de usar o crack, saía todos os fins de semana,
namorava e sentia mais prazer em viver. “Como eu contei,
sempre usei drogas, mas agora parece que é pior. Eu me
sinto em função do crack. Uma parte de mim diz que não é
viciado e outra me mostra que sou totalmente dependente
do cachimbo para estar feliz ou mesmo vivo”, declara.
Antes de conhecer o crack, Toquinho, apesar de morar em
um bairro pobre da cidade, trabalhava e levava uma vida,
aparentemente natural, como outros rapazes da idade
dele e que também fumam maconha e cheiram cocaína.
Ao conhecer o crack, se viciou quase instantaneamente
e revela que perdeu o emprego, a namorada e com isso,
muito da vontade de viver.
Sustentando o vício
Segundo o Departamento Estadual de Investigação sobre
Narcóticos (Denarc), o crack é a droga com um dos mais
altos poderes viciantes e uma pessoa, apenas de experimentar, já se torna um viciado.
O efeito do crack passa muito depressa, e o sofrimento
pela ausência do mesmo no corpo vem em 15 minutos, ou
seja, o usuário, a cada dia que passa, faz uso de quantidades maiores e aumenta, com isso, os gastos.
Surge então a fase em que a pessoa faz qualquer coisa
para obter a droga. Isto é confirmado por Toquinho, que,
ao perder o emprego de auxiliar mecânico, passou a atuar
como “aviãozinho” onde mora, para obter um pouco mais
320
Traficando conhecimento
da droga. “Eu sempre tenho que entregar a pedra, algumas vezes, vender e, com isso, ganho algumas. Depende
do meu desempenho. As que eu ganho, posso vender por
conta própria, ou usar. Como eu uso, fico com elas para
mim. Mas, cada dia que passa, me vejo obrigado a entregar ainda mais pedras para usar mais”, conta.
Toquinho revela, também, que, para comprar drogas,
muitas vezes, furtou pequenos objetos em casa ou pediu
dinheiro para a mãe. “Minha mãe trabalha como doméstica, então, por várias vezes, peço dinheiro para ela. Ela
sabe que é para drogas, me xinga, pede que eu procure
um novo emprego, mas eu não quero, quero só a pedra,
fumar o crack, sozinho em paz”, diz.
Outras vezes, para comprar droga, Toquinho furtou CDs,
um par de tênis e blusas do irmão mais velho. “Como ele
trabalha o dia todo, quando bate a fissura, tenho que
fazer isso. Mas não sou um monstro. Eu me arrependo
depois. Conto para ele. Peço desculpas”.
Para Toquinho, o crack é ao mesmo tempo um alívio e um
peso. Como fuga da realidade, ele embrenha-se, cada diz
mais, no uso da substância e não tem intenções de parar,
porém, não sabe o que faz para manter o vício. “Não
vejo sentido em continuar, mas não quero parar. Queria
apenas uma forma de poder ter quanto crack eu preciso.
A sensação que ele me causa é ótima. Não faz sentido
parar”, dispara, se contradizendo.
Sensação
A contradição de Toquinho é comum em usuários de
crack, conforme afirmam muitos psicólogos e pessoas
que lidam com situações semelhantes, como é o caso
de Luciana Marques, estudante de psicologia e estagiária em centros de reabilitação. “O crack gera um prazer
imediato, então, em cerca de dez segundos, o usuário
se sente um super-homem e toma coragem para fazer
abordagens. Mas o fim do efeito vem repleto de senti-
Em foco
321
mento de culpa e depressão, daí a tendência dele usar
de novo, para não enfrentar o desconforto que a droga
provoca”, explica.
Contudo, a sensação do crack é muitas vezes ilusória,
como relata Toquinho. “Ao mesmo tempo em que me
sinto muito bem usando o crack, vejo que perco muita
coisa. Antigamente eu me preocupava com o tipo de
roupa que usava e a forma como me vestia. Hoje, não ligo
mais para isso. Meu único interesse é obter a pedra e
usá-la da melhor forma possível”, conta.
Para Luciana, esta posição denota o processo de “suicídio inconsciente”, em que grande parte dos usuários foge
das responsabilidades e nem cogitam a ideia de deixar o
crack. “É mais fácil se entregar a isso, não querer ficar
adulto, esperar que a morte venha, de uma forma ou de
outra. Pode ser pelo uso prolongado da droga e da degeneração do organismo, ou através da polícia, das dívidas
com os traficantes”, afirma.
Toquinho conta que em uma única noite, já chegou a fumar
até sete pedras de crack. Número considerado alto, até
mesmo entre os usuários. “Foi durante uma festa. Eu
tive várias alucinações. Não sabia se era dia, noite, quem
estava a minha volta, mas, foi uma sensação muito boa
também. Se eu pudesse, fumaria tudo novamente”, afirma.
Medo
Ao ser questionado sobre ter medo da morte ou mesmo da
polícia ou de traficantes, Toquinho hesita e diz que o medo
varia.“De morrer eu não tenho medo. Mas, por outro lado,
tenho dó da minha mãe, sabe? Ela faz tudo por mim. Vejo
que errei na vida. Sinto-me fraco e sem vontade de parar.
É mais forte do que eu. Só quem já fumou crack entende o
que digo. Mas é uma coisa que me comanda. Ao invés de
eu mandar em mim, quem manda é a droga. Imagino que
tentar parar dá mais trabalho do que continuar fumando.
Agora, da PM ou dos traficantes eu não tenho medo. Não
322
Traficando conhecimento
fico dando bobeira. Fumo crack em casa. Ando com pouca
quantidade. Os caras que passam a droga, também, são
meus amigos. É só ficar esperto e não fazer dívidas, mas
sobre isso eu ainda tenho controle”, revela.
Futuro?
Não existe um tempo estimado de vida para os usuários
de crack, mas é sabido que grande parte deles, se não
deixam a droga, morrem por motivos já citados, como
dívidas, presos ou por degeneração do organismo.
Toquinho afirma que não acredita em um futuro para ele,
uma vez que não pretende abandonar a droga.“Quando
eu era criança, tinha muitos sonhos. Pensava em jogar
futebol, em ter uma casa grande, com piscina, em comprar um carro, uma moto. Conforme fui crescendo, percebi o trabalho que eu precisaria fazer para ter tudo isso
e desisti. Assumo que sou fraco e optei pelo lado mais
fácil. Se você me perguntar, qual é o meu maior prazer,
vou te responder ‘fumar crack’, certo? Minha vida é isso.
Nem quero pensar em futuro”.
Às Margens da Rodovia
São 12h15 de uma sexta-feira. É dia 16 de maio de 2008 e
Neusa Bastos, aproximadamente 35 anos, está estendida
às margens da rodovia L-MG 877, rodovia Geraldo Costa
Martins, conhecida também como rodovia do Contorno.
Parcialmente consciente, Neusa está imóvel, caída, com
metade do corpo na estrada e metade no acostamento,
sem conseguir se mexer.
Passando pelo local, a reportagem quer saber o que houve
com aquela pessoa, para ela estar ali, daquela maneira.
Ao averiguar que a pessoa ali estendida estava viva, a
reportagem telefonou para o Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência (Samu) e pediu auxílio e socorro, contudo, devido a localização em que se encontrava, a ligação
foi cortada por falta de sinal no celular.
Em foco
323
Em seguida, o Corpo de Bombeiros foi chamado e após
muitas perguntas e confirmação de nome, endereço e
telefone do solicitante, a reportagem foi informada que
uma Unidade de Resgate (UR) estava a caminho do local.
O relógio marcava 12h19. A vítima, ainda caída ao solo e
imóvel, abriu os olhos e murmurou “eu estou morrendo,
eu fui atropelada” e expressava dor por estar ali, daquela
maneira, sem poder ser removida.
Alguns carros que passaram pelo local pararam para oferecer ajuda. Um deles, de uma empresa da cidade parou.
Uma moça desceu, foi em direção a Neusa, começou a
medir seus batimentos cardíacos, contatando que ela
estava com vida, quando esta afirmou mais uma vez que
estava morrendo.
O homem que acompanhava a moça ligou para o Samu,
desta vez, conseguindo informar o local onde a vítima
estava. No movimento cotidiano pela rodovia, passou
uma viatura da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), que
reduziu a velocidade para observar a cena, uma mulher
caída às margens da rodovia, e foi embora, sem parar no
local para realmente confirmar o que aconteceu.
Poucos minutos depois, para uma Kombi velha, praticamente caindo aos pedaços e descem alguns homens,
acompanhados por uma criança. Um desses homens
apresenta-se como Joaquim, companheiro de Neusa.
Os outros são vizinhos deles e informam que Neusa está
daquele jeito, pois bebeu cachaça com uma amiga, no
bairro vizinho, Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade.
É neste momento que ela abre os olhos novamente e
murmura que foi atropelada. Todos os presentes na cena
param para observar se existe alguma marca de sangue,
que não é encontrada, mas, marcas de freio podem ser
observadas próximas ao local.
Estes homens acompanhando Joaquim afirmam, também, que Neusa tem alguns distúrbios mentais e talvez
tenha tido uma convulsão, por ter bebido. Joaquim se diz
324
Traficando conhecimento
preocupado com a companheira estar caída ali, porém,
em uma conversa com a reportagem, informa que vive
com ela há apenas um mês e que eles não são casados.
“A gente só mora junto”, diz.
E, a partir daí, ele começa a contar um pouco sobre a
vida. Diz que mora em uma casinha, tipo chácara, em um
terreno às margens da rodovia e também, às margens
da sociedade. Ele conta que não sabe a idade exata de
Neusa, mas desconfia que ela tenha 35 anos. Diz, ainda,
que nenhum dos dois trabalha e que apenas ela recebe
aposentadoria.
“Ela é aposentada, mas a mãe dela pega todo o dinheiro
que ela recebe”, relata. Joaquim diz também que não trabalha porque tem problemas de saúde, uma hérnia. “Eu não
posso trabalhar. Então, moro aqui nesta casa que é de um
daqueles rapazes da Kombi. Eu cuido da criação de gansos
que ele tem. Não pago nada para morar aqui”, conta.
Aparentando ter bastante idade, Joaquim contou, também,
que, em razão da hérnia, está tentando aposentar-se. “Eu
já separei meus documentos e a resposta que tive é que
foi para Brasília. Acho que não vou conseguir”, lamenta-se.
Enquanto aguarda a chegada de um socorro, Joaquim
fica em volta de Neusa, dividido entre saber se ela bebeu,
realmente, se foi atropelada e quando ela afirma que foi
atropelada, em um tom de quem sente dor, ele afirma a
ela que é por conta da bebida. Com isso, com bastante
esforço e a respiração forte e ofegante, Neusa mexe-se
da posição em que encontra e vira, no acostamento, com
o peito para cima, tombando a cabeça para o lado.
Contudo, Joaquim permaneceu a seu lado, ora em pé, ora
sentado em uma pedra a beira da porteira, que dá acesso
a casa em que ele reside. Outros carros passaram pelo
local e ofereceram ajuda. Uma viatura da Polícia Militar
também passou e, assim como a viatura da PRE, diminuiu
a velocidade, observou a cena e sequer parou.
Em foco
325
Após longos vinte minutos, chega uma viatura do Corpo
de Bombeiros, com as luzes ligadas e as sirenes desligadas. Assim que se aproximaram de Neusa, o militar do
Corpo de Bombeiros foi verificar se havia sangue em sua
cabeça, momento em que esta despertou e novamente
resmungando, disse que havia sido jogada por um carro
às margens da rodovia.
Cerca de dois minutos após a chegada do Corpo de Bombeiros, o Samu chegou e em conjunto, fizeram o atendimento de Neusa. Enfermeiros do Samu, ao descerem
da UR afirmaram que não estavam encontrando o local
descrito na ligação e, por isso, a demora para chegar e
fazer o resgate.
O nível de glicose no sangue de Neusa foi medido, constando sim, que ela estava alcoolizada. Porém, nenhum
comentário sobre atropelamento foi feito. Joaquim ficou
em volta dos bombeiros e dos enfermeiros do Samu,
aguardando um resultado ou diagnóstico de Neusa.
Ao ver as viaturas do Corpo de Bombeiros e do Samu paradas no local, uma terceira viatura da PM passou e parou,
estacionando o veículo e querendo informar-se sobre o
acontecido. Neusa foi colocada na maca de emergência do
Corpo de Bombeiros e, segundo os militares, seria levada
para a Policlínica Central, onde deveria ser medicada com
glicose e posteriormente liberada.
Uma das enfermeiras do Samu, antes de ir embora,
comentou que Neusa teria tido uma convulsão, mas,
nada comprovado. Joaquim foi solicitado para acompanhar Neusa até o pronto socorro, porém, ele disse que
não poderia, alegando ter muitos afazeres, como guardar
algumas ferramentas. No entanto, foi convencido pelo
Corpo de Bombeiros, o que não foi muito fácil, mas acabou cedendo e informou que guardaria apenas algumas
coisas que havia deixado ali, às margens da rodovia.
326
Traficando conhecimento
A Polícia Militar aguardou, esperou o Samu ir embora, o
Corpo de Bombeiros, e não registrou nenhuma ocorrência. Neusa foi na ambulância afirmando ter sido jogada
por um carro. As marcas no asfalto apresentavam freadas. Nenhum carro. Nenhuma prova. Nenhuma ocorrência. Mais um ser humano jogado, às margens da rodovia,
às margens da sociedade.
Entre outras reportagens estas foram as que mais chamaram minha atenção. Não acho que foram as melhores, jornalisticamente falando, mas, sem dúvida, foram
as histórias que mais me envolveram durante a execução e foram as que fortaleceram a minha inspiração para
trabalhar com a literatura atrelada ao jornalismo.
Sei que não devemos escolher personagens pela profissão e sim pela história, mas desobedecer esta regra,
muitas vezes, foi inevitável. As profissões e ocupações,
além de estereótipos sempre reservaram bons relatos e
como a intenção era praticar o jornalismo literário e, ao
mesmo tempo, dar voz aos que estão às margens, penso
que fiz as escolhas certas.
Do ouvido atento a estes relatos o movimento só amadureceu. Por intermédio de grandes experiências de vidas
captadas num único lugar: a quebrada.
Havia, também, a intenção de reunir material suficiente
para transformar em livro, ou em revista, ou em qualquer
que seja o tipo de publicação, apenas para distribuir de
outra maneira que não o jornal circulando aos domingos.
Mas, para continuar fazendo valer, resolvi, mais uma vez,
embarcar no mundo dos eventos de hip-hop e promover
um ao melhor estilo do Hip-Hop Sul de antigamente.
Após economizar, ir e voltar do “Baile Chique”, palco destinado ao hip-hop, na 3ª edição do evento Virada Cultural
Em foco
327
em São Paulo, apesar do desrespeito, a mente não parava
nem para dormir de tanta vontade de fazer tudo. Porém,
diante da situação de opressão encontrada no local,
escrevi o texto abaixo, que circulou toda internet e virou
notícia em todos os sites ligados ao hip-hop e à literatura.
Opressão e desrespeito com o hip-hop na
Virada Cultural 2008
Revista policial, abuso de autoridade e distanciamento
marcam o Baile Chique, palco destinado ao hip-hop, na
3ª edição do evento Virada Cultural
Após viajar 280 quilômetros de ônibus, depois de ter
trabalhado 12 horas seguidas, cheguei para a Virada Cultural. Fui porque várias atrações prometiam, entre elas,
grandes nomes no palco do hip-hop, como os precursores Thaíde, Dj Hum e o pai de toda esta cultura, Afrika
Bambaataa, como atração de encerramento.
Mesmo sem nunca ter ido a uma Virada Cultural, esperava um evento bem organizado e estruturado, com policiamento para garantir a segurança do público e não para
constranger. Ao chegar, me deparei com vários palcos,
entre eles o principal, onde marcava atrações como Gal
Costa, Zé Ramalho, Teatro Mágico e Marcelo D2, citando
este último como rapper.
Agora eu questiono. Se ele é um rapper, o que estava
fazendo no palco principal do evento? Por que não
estava no palco do hip-hop, ao lado de tantos outros
nomes bons? E reafirmo questionamentos já feitos.
Qual é a representatividade do Marcelo D2, dentro
da cultura hip-hop, para ocupar o palco principal? E o
Afrika Bambaataa? São indagações longe, ainda, de
serem o problema principal deste artigo.
Em um mapa distribuído em vários pontos da Virada Cultural, os palcos de shows eram mostrados, qual não foi
Em foco
329
minha surpresa ao ver que o palco do hip-hop ficava bastante longe dos demais, localizado na praça Cível Ulysses
Guimarães, no Parque Dom Pedro. Pelas informações do
mapa e de moradores de São Paulo, deveria pegar um
metrô, do Vale do Anhangabaú até a Praça.
Contudo, pela inexperiência no evento e na maior cidade
do país, somente ao descer do metrô, percebi que estava
mais longe do local do que se tivesse ido a pé de onde
eu estava anteriormente. Um cidadão ainda me disse que
eu deveria pegar um ônibus da estação do metrô até o
Parque Dom Pedro, pois o caminho feito a pé poderia ser
perigoso, “pelo povo que passava por ali”. Não questionei
e fui. Seguindo um som distante, cheguei próxima a um
local pouco iluminado, onde, para entrar, deveria passar
por um corredor de grades. Mais uma surpresa na noite
e, esta, bastante desagradável, quando vi meus companheiros de cultura sendo revistados por policiais, aliás,
um grande número de policiais, bem maior do que nas
outras concentrações do evento. Não contentes em efetuar a revista pessoal, expondo a cultura hip-hop novamente à margem da sociedade, dizendo, nas entrelinhas,
que somos todos bandidos e que expomos a sociedade
à riscos, os policiais faziam com que colocássemos
as mãos na cabeça, ou estendidas na grade e abríssemos as pernas, para a revista completa. Sem estarem
satisfeitos, boa noite ou bom dia para quê? A estupidez
costumeira tomou o devido lugar, quando os policiais,
cheios de abuso de autoridade, abordavam os manos e
minas que chegavam ao local com o único intuito de curtir a Virada Cultural com o tipo de música preferido. Fácil
notar, também, que a cada árvore do parque havia três
policiais, ou seja, mais policiamento do que público, sem
falar na cavalaria, também presente no maior evento cultural do país. Lamentável. Já me sentindo um lixo, pela
decepção do local do show, o pequeno público e a revista
policial, tirei uma foto da revista e fui lesada nos meus
330
Traficando conhecimento
direitos de jornalista formada por uma cabo, que não
sabia nem falar, mas, abusando da autoridade, me fez
apagar a imagem, me impedindo, não apenas de curtir
meu estilo musical preferido em paz, como de trabalhar
e exercer minha profissão, com todos os direitos previstos pela lei. Nos shows, meia dúzia de gatos pingados,
isolados, discriminados e julgados tentavam curtir o
rap, com uma aparelhagem de som desregulada, o que
denota ainda mais o descaso da organização do evento,
e também da sociedade, com a cultura hip-hop. Contudo,
mesmo sofrendo com as mazelas impostas pela sociedade, o público do “Baile Chique” comportou-se como
deveria, ou seja, como sempre, civilizadamente, porém,
com a dispersão deste, os policiais fizeram questão de
aproximar-se do palco, alvoraçados, como se os negros
e pobres, ali presentes, pudessem, a qualquer momento,
atacar alguém, como animais mitológicos. Não aguentei
e fui embora logo. Fiquei decepcionada por ter viajado e
investido em um evento no qual meu estilo fora desprezado em último grau. Em outras partes da Virada Cultural,
com público estimado de quatro mil pessoas. No palco
da dança, no Vale do Anhangabaú, onde público tinha até
cadeiras, um garoto de uns 12 anos cheirava cola livremente em frente aos policiais que faziam a “ronda” por
ali e, não satisfeitos pela ronda, faziam também vista
grossa para isso. Um pouco mais adiante, um grupo
fumava maconha livremente na cara dos policiais, coisa
natural, e ninguém tomou geral por isso, foi impedido de
fotografar, ou ficou isolado em suas comemorações, em
um parque ‘enjaulado’ e à parte do evento. No outro dia,
voltei para o show do Afrika Bambaataa e fiquei em um
evento, no qual, não havia constatado na noite anterior,
não havia barracas vendendo comes e bebes e, para
tomar uma água, tínhamos de sair do pátio feito pela
organização da Virada Cultural. O pai do hip-hop chegou
para tocar para o maior público daquele palco, algo em
Em foco
331
torno de seis mil pessoas, contra as 50 mil que foram aos
shows do palco principal, na Avenida São João. Quando o
criador de toda a cultura subiu no palco, ficou por mais de
meia hora regulando o som, que estava mal sintonizado,
ou seja, outra vergonha para o público do hip-hop.
Em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário de Cultural
Carlos Augusto Calil justificou o local escolhido. “Houve
uma certa inocência em colocar, no ano passado, o palco
de hip-hop na Praça da Sé, que passa por um processo
de urbanização.” Segundo o secretário, para evitar novos
incidentes, os espaços foram melhor distribuídos e
adequados ao público. “Criamos condições para que o
público de hip-hop, por exemplo, que tem um comportamento diferenciado, possa curtir a festa deles.”
Eu pergunto, que condições? Que público? O que este
secretário entende de hip-hop para fazer isso? Não subestimando, mas creio que não entenda mais do que o preconceito criado acerca da nossa cultura, pois referir-se ao
“comportamento diferenciado” como se fôssemos bichos
agindo por instinto, foi demais. Durante a semana que se
seguiu a Virada Cultural, minha caixa de e-mails fervilhou
de mensagens debatendo o assunto. Vários sites também
publicaram artigos, matérias e indignações. Cada um
mantém a sua opinião acerca dos fatos acontecidos.
Na minha? Culpa dos dois lados. O primeiro, da falta de
comprometimento do hip-hop com ele mesmo. Cadê as
lutas? A prática da pregação de Bambaataa por “paz,
amor, diversão e união”. Quem é que luta por isso? Quem
tenta mudar nossa situação de escravidão moderna? O
que o hip-hop, ou seja, nós mesmos, fazemos por isso?
Só escrever um texto adianta? Publicar várias opiniões
dispersas resolve?
334
Traficando conhecimento
É, eu também estou publicando a minha, e como todos,
acredito que o desabafo e o compartilhamento dos pensamentos possa nos levar a algum lugar. Jogo o desafio
aos manos e minas, que queiram se reunir, na representatividade da nossa cultura, mostrando ao Secretário de
Cultura, aos novos eleitos neste ano eleitoral e à população que não podemos mais ser tratados como escravos e
que a nossa inteligência não pode mais ser subestimada
em revistas policiais. Que temos, sim, direito a trabalhar
e exercer nossas profissões e, ainda mais, de termos o
que os outros estilos musicais têm.
No mais, acho que o que todos queremos é a Paz.
Fiz questão de salvar alguns comentários e, na época,
publicar no blog e apresentar, também, aos garotos das
oficinas e aos grupos da cidade, como uma tentativa de
chamar atenção ao problema e ao fato de precisarmos
nos organizar mais.
Os comentários:
Olá, Jéssica. Parabéns pela visão crítica ao hip-hop e pela
bela coluna escrita. Infelizmente o hip-hop é um movimento quase que falido que não consegue responder mais
às questões, como você mesma fez no seu texto, poucos
que estão no ativismo devem ser respeitados e merecem,
cada vez mais, um suporte para nos tirar deste novo
modelo de escravidão que se perpetua, cada vez mais,
sobre os pobres e pretos deste país. Nossa maior prisão
ainda está na mente e para se livrar dela é necessário mais
do que só o hip-hop, que hoje é sexista, consumista e não
agrega mais valores para melhoria da nossa autoestima e
crescimento sócio-político do nosso povo.
Parabéns e paz!
Ass: MT Ton - CUFA BH / Realistas NPN
—
Em foco
335
Olá, Jéssica,
Seu texto me deixou deveras pensativo. Até quando?
Resolvi disponibilizá-lo para leitura no meu site (www.
gograpnacional.com.br). Pode ser?
Abs,
GOG
—
Olá, Jéssica
Muito bacana e necessário seu texto. É isso aí. Obrigado por
ter me enviado. Havia feito um questionamento em minha
Coluna no Le Monde Diplomatique, mas a realidade foi
muito pior do que eu imaginava. Você foi brilhante nas suas
posições.
Eleilson Leite (Ação Educativa)
—
Li a a sua matéria da Virada; parabéns pela atitude e voz!!
Juntos!
Abços,
Nelson Maca
—
Olá, guerreira!
Eu não estive na Virada Cultural, mesmo morando na
cidade, pois no sábado eu trampei e, domingo, preferi
prestigiar o evento Favela Toma Conta do Buzo, porém
fiquei sabendo de toda a movimentação, em especial sobre
os acontecimentos no palco do hip-hop. Gostei muito da
problematização que contém seu texto e pela descrição
da realidade sobre esse acontecido, por isso quero saber
se posso publicar em dois blogs do nosso coletivo: Elo da
corrente (www.elo-da-corrente.blogspot.com) e o Grupo
Alerta ao Sistema (www.alertaaosistema.blogspot.com).
Aguardo resposta.
Saudações!!!
Michel da Silva
336
Traficando conhecimento
—
Firmeza!
Valeu, Jéssica. O que precisar pode conta conosco, pode
crer? Admiro muito o seu trabalho. Essa conexão é muito
importante.
PAZ guerreira
Elemento.S
Em foco
Pela vida
339
Uma tempestade de ideias, apenas para poupar o tempo
das reuniões foi o que definiu a programação. Shows de
rap feitos com artistas locais e convidados de outras
cidades, apresentações dos grupos de dança, batalhas
de break, batalhas de rimas, exibição de grafite e DJs no
comando. A novidade, até então, explorada apenas de
forma simbólica, seria o sarau literário com a distribuição das caixinhas poéticas.
“As juras de amor não são mentiras, de maneira alguma!
São verdades com prazo de validade.” (Sérgio Vaz)
Sem opção de lazer, o domingo à tarde é o dia escolhido
para a realização de um novo evento de hip-hop. Na
mente as boas lembranças dos primeiros Hip-Hop Sul e
no coração o desejo de transformar a realidade, nem que
fosse por apenas alguns segundos.
“A elite me causa nojo, porque quer exigir, exigir, exigir e
nunca dividir.” (Alessandro Buzo)
“A Humildade de um homem serão as armas para a paz
universal.” (Mano Brown)
“Dou ‘mó’ valor para quem suporta vida dura.” (Gog)
Correndo contra o tempo e, novamente, sem qualquer tipo
de patrocínio, o evento foi realizado e manteve a proposta
de atrelar qualquer atividade a uma ação beneficente. Um
ingresso = um quilo de alimtento. A tentativa era livrar o
hip-hop do preconceito e mostrá-lo muito além do que a
sociedade pensa e propaga. Serve, também, como um
instrumento de amor e de ajuda a quem precisa.
Mesmo com pouco a dar, os hip-hoppers e adeptos fazem
“um corre qualquer” e conseguem o alimento para doar.
A favor da informação e da socialização, o encontro foi
batizado como “Cultura Marginal: Pela vida!” O convite é
único: toda periferia pode participar.
Como influências foram captadas as experiências da
Cooperifa, do Favela Toma Conta, do Hip-Hop em Foco,
das oficinas, dos eventos na cidade vizinha de Pouso Alegre e do sem-número de atividades feitas por parceiros
de outras periferias em cidades e estados brasileiros.
338
“A elite já é suicida há muito tempo.” (Ferréz)
—
“Eita negro!
Quem foi que disse
que a gente não é gente?
Quem foi esse demente,
se tem olhos não vê…
— Que foi que fizeste mano
para tanto falar assim?
— Plantei os canaviais do nordeste.
— E tu, mano, o que fizeste?
— Eu plantei algodão
nos campos do sul
pros homens de sangue azul
que pagavam o meu trabalho
com surra de cipó-pau
…”
(Solano Trindade)
340
Traficando conhecimento
Estas foram algumas das frases que os participantes
puderam ler quando encontraram as caixinhas espalhadas por todo poliesportivo. Claro que havia um número
suficiente para todos participantes, mas provocar a surpresa em quem chegava primeiro era uma forma de brincar com as palavras. Pelas paredes liam-se pequenas
frases, poemas e poesias, afixadas como um jeito de dar
um charme no evento.
Os integrantes das oficinas, tanto das de literatura
como das de dança seriam parte do staff e deveriam
nos auxiliar com som, controle de entrada, arrecadação de alimentos, além de, claro, participar das apresentações nas respectivas áreas. O comprometimento
e o empenho dos garotos das oficinas no evento chamaram atenção. Quando propus que eles fossem inseridos
em oficinas e tomassem gosto pela leitura não imaginava que o desenvolvimento da cidadania, do respeito
e da responsabilidade seria desenvolvido e aflorado em
tão pouco tempo. Cumprindo horários e prazos, eles
apresentavam textos lidos, trechos escritos e sempre
propunham mudanças em tais trechos, em um dado
momento da apresentação, além de colaborar firme na
arrecadação de papel reciclado para as caixinhas.
Quanto ao evento, era impossível saber quando e, se,
aconteceria outro, então era fundamental fazer deste o
melhor possível. Cinco exemplares do “Suburbano Convicto” estavam separados para serem sorteados no
evento. O objetivo era entregá-los a quem se manifestasse no sarau. Pequenos e simples troféus seriam entregues aos vencedores das batalhas.
Não foi preciso montar uma lanchonete no local como
fora sugerido na tempestade de ideias da primeira reunião. Assim que ônibus e vans com grupos das cidades
vizinhas encostaram próximos ao ginásio, vendedores
Em foco
341
ambulantes com carrinhos de cachorro-quente e pipoca
encostaram-se à calçada. Todas as pessoas que, de
alguma forma, estavam ou estiveram ligadas ao hip-hop
foram convidadas e os amigos da antiga crew, aquela
mesma que conheci quando ainda desconhecia a cultura
foram chamados para compor a banca de jurados para
as batalhas de break e de rimas.
Após algumas horas espremidas nos espaços curtos de
vans e ônibus, pessoas das cidades vizinhas deram colorido especial ao poliesportivo. Com figurinos feitos apenas para as apresentações de dança e roupas sempre
chamativas, deixaram o quilo de alimento com a portaria
improvisada e seguiram o som vindo das pickups do DJ.
Figurinos, músicas, dança. Além do clima de paz natural,
o encontro traz a lembrança dos bailes black do início da
década de 1980, propagados por Gerson King Combo. A
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima
entre os afrodescendentes e registra, também, uma
nova fase da história da cultura hip-hop.
“Respeite o próximo, também é nosso, se você pode eu
também posso... hip...hop... hip...hop”, assim o show é
aberto na marcante voz de Lu, que, no palco se transforma em Lu Afri e exibe, diferente das outras vezes,
um penteado black power que lembra a força do movimento nos anos 1970.
Levanto-me de onde estou e, emocionada, começo a
tirar fotos do grupo e cantar junto. Observo um grupo de
garotas que cantam junto no refrão e dançam, tentando
acompanhar as rimas. Do outro lado, um grupo de garotos
também parece bastante animado. Mais de 300 pessoas
já estavam dentro e mães com filhos pequenos resolveram sair de casa acompanhando o som e chegaram até o
poliesportivo. Sem o quilo de alimento para poder doar,
342
Traficando conhecimento
Em foco
343
lamentaram não poder participar do encontro e em uma
pequena reunião entre a organização ficou decidido que
elas poderiam entrar, afinal, o objetivo era promover a
inclusão e 10 ou 20 pessoas a mais não mudariam os
rumos. Era justo que todos pudessem participar. Todos
entraram e era nítido que aquele era o primeiro contato
com a cultura. Crianças se encantam com os dançarinos
de break e suas roupas largas e coloridas. Imitam os trejeitos dos MCs ao cantar e correm soltas pelo ginásio.
Paralelo ao show, b.boys dançam e alguns MC’s se preparam para o confronto em batalhas de rimas, lembrando os primórdios e resgatando a ancestralidade
afro, levanto para todos os presentes o valor da cultura
negra, dos quilombos. O meu estado é de euforia total.
Superemocionada circulo por todo o espaço e me lembro que a prática oral de expressão acompanha a evolução da humanidade e que, naquele momento, estávamos
todos vivendo a nossa história.
Vou ao encontro de algumas das mães com crianças
que entraram e ouço falarem: “Que legal, é bem da paz!
As crianças estão adorando.” Mas é claro que o evento
era da paz e que a intenção era de que as crianças adorassem. Que todos presentes saíssem dali diferente do
que quando entraram e com um sentimento bom, com a
mesma vontade que tínhamos de fazer acontecer e de
mudar a realidade.
Em um bairro periférico e em um espaço nada consagrado, raps da nossa realidade, pessoas próximas e
o hip-hop puro, transformando as atividades em paz.
“Evento muito fera”. “Sem dúvida, animal”. Estas são
algumas frases de um diálogo que ouço próximo a mim.
Aprendi durante os contatos com outras pessoas, também da literatura, que o grande barato não é mudar da
periferia e sim mudar a periferia e acho que, por meio do
evento e das oficinas, era exatamente isso que estava
acontecendo. Nada melhor do que a letra criada pelo
grupo ocasionalmente para refletir e registrar o momento.
Reviver os bailes black faz parte do encontro, do evento e
da união das almas naquela noite, através do hip-hop.
Pela fisionomia de todos, penso em como aquele
momento é importante. Revejo, mentalmente, toda a
trajetória do grupo, cheia de dificuldades, desencontros e agora uma vitória. O CD quase pronto e prestes
a ser gravado. Incrível. Assim pode ser descrita a cena
do grupo sobre o palco, cantando o cotidiano poços-caldense para gente de toda a região.
“Muito bom o som deste grupo”, é o que escuto em uma
outra roda. Vale destacar que, desde os primórdios, a
prática oral de expressão acompanha a evolução da
humanidade e, até hoje, continua sendo um importante
meio de comunicação entre as periferias. Para Suburbano, MC do grupo, o rap feito na Zona Sul de Poços tem
elementos próprios, no entanto, traz na essência, a prática de antigos quilombos. “Os africanos e escravos trazidos ao Brasil utilizavam a expressão verbal e o canto
para transmitir crenças e valores comportamentais através das gerações, o nosso rap de hoje tem a mesma função”. A afirmação do rapper vai ao encontro da situação.
Elas são negras, bem vestidas, de salto alto, mineiras e
de ancestralidade no sangue, daí a química entre os grupos. Elas correm e abordam os integrantes do UClanos,
fazem perguntas, pedem para tirar fotos e requisitam um
CD. “Então vocês gostaram da apresentação?”, pergunto.
“Sim, diz muito sobre a gente”, me respondem. São garotas de um grupo de rap da cidade vizinha de Lavras, que
junto com uma equipe de dança vieram conferir o evento.
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Traficando conhecimento
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Traficando conhecimento
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Traficando conhecimento
O primeiro show termina e classificadas como azul e
amarela, as crews enfrentam-se em grandes disputas. Os olhos dos competidores não negam a emoção
de estarem sendo julgados pela melhor crew de break
brasileira. Na roda, eles colocam todo o nervosismo do
momento e a disputa segue acalorada. A plateia delira
a cada movimento feito. A vencedora da competição é
uma crew de Lavras, interior de Minas Gerais. Chamada
de Action Break, é a crew mais eclética e tem a participação de uma garota dançando e entrando na roda com
os homens. Ela é Poliana, 20 anos, que dança break há
quatro. Especialista no freeze – congelamento do movimento – ela se orgulha de ter vencido os preconceitos de
ser mulher e dançar break.
Além de ter a única mulher na crew, a Action Break também levou ao evento o mais novo b.boy competidor.
Rodrigo, 11 anos, que entra na roda com segurança e
consegue intimidar a crew adversária, além de ser bastante aplaudido pelo público.
A empolgação frenética deu lugar ao silêncio pedido para
o início do sarau, ainda novidade. Apesar de textos lidos
em eventos e de um elemento caminhar com o outro compondo a cultura marginal, muitos visitantes de outras cidades não estavam acostumados com aquilo. Porém, como
no hip-hop o respeito prevalece, todos se calaram quando
o silêncio foi pedido e aguardaram o que viria a seguir.
Enquanto aguardavam, caixinhas com poesia dentro
foram entregues de mão em mão, como um presente
para a periferia. Expressões das mais variadas tomaram
conta dos rostos dos presentes e como da primeira vez
em que espalhei caixinhas aleatoriamente, pude sentir a
emoção em espalhar a cultura, dialogando com os presentes através da literatura. O interesse era promover
a formação crítica para a juventude. De experiências
Em foco
349
anteriores somadas a esta, as ações passam a ser cada
vez mais fundamentadas.
Entregues todas as caixinhas, li pela primeira vez em um
evento o conto “Periferia Adentro” e aproveitei o embalo
do silêncio em sinal de aprovação do público e li um texto
do Ferréz e outro do Sérgio Vaz. A intenção foi mostrar
que Brasil afora estão produzindo e que também podemos fazer isso.
Incentivado pelos textos, Rodrigo, um dos garotos das
oficinas me chamou no canto e disparou: “Oh, dona, fiz
mais um texto e queria ver o que você acha e se eu posso
ler hoje aqui. É que eu quero muito mostrar para a minha
mãe o que eu tô aprendendo.” Como eu poderia negar a
ele esta oportunidade de ler, para um público bacana
e para a genitora, um texto feito por ele mesmo e que
falava, justamente, sobre o amor de mãe, outro tema
recorrente da literatura marginal.
Mesmo tremendo – medo e ansiedade – ele empunhou o
microfone ao melhor estilo de MC e disparou um salve para
a galera, que na mesma hora simpatizou com o garoto.
Tirou do bolso uma folha de caderno amassada e, olhando
para a mãe, que devolvia a expressão terna, declamou:
Quem é essa mulher que na quebrada é bastante respeitada?
Quem é ela que não tem parada, nos dá de tudo e não nos
cobra nada?
Sempre disposta a nos ajudar
Ela tira comida da própria boca para nos alimentar.
Quem é essa mulher que está sempre tão disposta?
E que, no gueto, sempre banca a nossa aposta
Pode ser herói, ladrão, bandido ou mocinho
Para todos ela sempre tem um colinho
Veio ao mundo com a missão de nos cuidar e dar educação
Sem você, mãe, não dá para encarar este mundão.
350
Traficando conhecimento
Apesar de ainda ser um texto cru, o jovem teve a coragem que as oficinas buscavam estimular e o leu. Pediu
licença e, ainda com o microfone na mão, leu um texto
do livro “Cabeça de Porco”. Arrancou muitos aplausos
do público. Convidei algumas pessoas para declamar.
Devagar o MC de um grupo de rap da cidade de Vargem
Grande do Sul foi até lá. Declamou uma letra de rap.
Válido. Mais um quis falar. Mandou uma rima.
Não foram bem poesias. Subi de novo e li um trecho do
“Quarto de Despejo”. Propus um debate acerca da informação fora do palco. Enquanto o próximo grupo de rap
a se apresentar se preparava, formamos uma roda e ao
som das batidas vindas das pickups comentamos sobre
o que acabara de acontecer. Muitas pessoas queriam
mais caixinhas e doamos todas que tínhamos feito para
o evento. Outros queriam aprender a fazer e muitos trocavam as poesias que continuam dentro.
Embriagados com o conhecimento, celebramos, realmente, a cultura marginal pela vida, por meio da difícil existência na periferia. Homenageamos escritores,
sugerimos títulos, sorteei meus volumes do “Suburbano
Convicto” e lembramos toda literatura marginal como
Carolina Maria de Jesus, que iniciou a literatura periférica ao ser traduzida e publicada no mundo todo, para 13
outros idiomas, as mazelas do povo que vive nas favelas
brasileiras. E ainda, alertar a todos aqueles jovens que
estavam ali e como nós, algum dia tiveram um exemplo,
algo para fazer em uma tarde de domingo e um objetivo:
se envolver com o hip-hop e praticar o bem.
Como quem vive na quebrada não tem outra opção senão
se drogar, seja pelos entorpecentes como crack, cocaína
e maconha ou pelas drogas servidas nas bandejas das
TVs abertas, principalmente aos domingos, minha tarefa
Em foco
351
enquanto comunicadora era fazer algo que mudasse, de
alguma maneira, a forma das crianças e adolescentes de
encarar as dificuldades.
Falei sobre o conhecimento, que sempre nos foi negado.
Os pobre já nascem nas quebradas excluídos do mundo
e muito cedo tem que se incursionar numa guerra diária
pela vida, lutando para manter os costumes, as origens
e as tradições, ao mesmo tempo que brigamos para sermos melhores, produzirmos mais e limparmos o limbo
cultural dos guetos. As pessoas não têm acesso à cultura e o grande barato era justamente esse, direcionar
as palavras a estas pessoas que só estão acostumadas
a uma tela colorida que mostra a vida em preto e branco.
Feito: o protesto é contra a massificação da informação
reduzida às periferias. Os pobres e marginalizados também têm direito ao conhecimento e o evento tinha esta
proposta: descentralizar a informações, propagando-a
até as margens invisíveis da cidade.
Com a literatura e as palavras guerreamos contra as barreiras impostas ao conhecimento, discorri rapidamente
sobre a falta de informações nas periferias e o quanto a
elite trabalha duro para nos privar da sabedoria. Minhas
palavras ecoaram como um grito há muito tempo represado e era a minha maneira de dizer a todo aquele público
que podemos fazer acontecer e mudar a realidade, basta
nos organizarmos e trabalhar ainda mais pesado para
transformar a nossa própria maneira de pensar e inserir o
conhecimento no dia a dia das casas e barracos.
O objetivo é romper as correntes que nos aprisionam às
telas da televisão e libertar do salário de fome pelo qual
todos lutam tanto e sequer conseguem comer. Imagino
como uma semente jogada ao vendo que corta os barracos e casas mal acabadas da periferia.
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Traficando conhecimento
Em foco
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Em foco
O que você
está lendo?
“Eu não gosto de ler.” De repente, com a propagação dos
eventos em todas as regiões e o surgimento de novos grupos, bandas e escritores, essa frase foi apagada da boca
da juventude que vive nos mais bairros mais afastados.
Não como quem apaga com borracha algo escrito a lápis,
mas como quem arranca e põe fogo numa página ditada
pelos coronéis da elite. Cópias de autores e poetas marginais passaram a circular entre rodas de eventos e grupos de rap e de dança do hip-hop. Novamente a internet,
blogs e sites foram ferramentas que difundiram o elemento conhecimento.
Um balanço feito pela Divisão de Cultura de Poços mostra que 2007 para 2009 as bibliotecas mostram um
aumento de 24% no número de empréstimos de livros,
sendo que a maior parte é retirada na biblioteca da Zona
Sul, no Cohab, onde as oficinas e eventos do projeto Cultura Marginal acontecem com mais frequência.
Não é mais uma cena gritante ver um jovem lendo dentro
do ônibus, pelas ruas e ainda comentando que pretende
editar os próprios livros, sempre contando a própria historia. Nesta mesma cena, muitos deles rumaram para a
3ª Feira Nacional do Livro e Festival Literário de Poços,
para palestras-show de MV Bill acompanhado de Nega
Gizza e Gabriel, o Pensador.
354
355
Durante dois dias seguidos, os jovens de toda Poços de
Caldas puderam acompanhar tais palestras e se envolver ainda mais com literatura. Ponto para mim, que
consegui que grande parte dos garotos do bairro fosse.
Consequência das oficinas. Todas as partes da cidade
estiveram presentes e o melhor é que cada um doou um
livro pelo incentivo a leitura para poder estar ali.
Para MV Bill, rapper, natural da Cidade de Deus, uma
das comunidades com os mais altos índices de violência do município carioca, inclusive já retratada no livro
de Paulo Lins e no filme de Fernando Meireles, em casos
como o festival literário, o hip-hop representa salvação.
“O hip-hop, neste caso, é um agente que promove a paz.
Não acontece em todos os eventos, mas quando temos
um criado com o ponto central de entretenimento em
paralelo tem educação, inclusão e inserção, criamos um
evento que tem esta aura de paz. Já é um encontro com a
paz intensificada, um ambiente diferente”, coloca.
Tal frase é complementada pelo estudante e aspirante
a escritor Felipe Paulo de Assis. “Palestra com um
cara como MV Bill é diferente. Dá vontade de ler o livro,
saber mais, conhecer mais sobre nossa própria cultura.
Aumentou minha vontade de ser escritor”, acrescenta.
Com letras conscientes e de muito sucesso há quase dez
anos, o rapper, também carioca, Gabriel, o Pensador, traz
uma linguagem um pouco diferente. Embora nunca tenha
vivido na periferia, sempre foi politizado e teve uma infância recheada por acontecimentos divertidos, tristes e de
ensinamentos, como todos os jovens que ali estavam.
Autor de um livro em forma de diário e um infantil, o
músico improvisa e manda a rima ao melhor estilo
Freestyle e se revela conhecedor da realidade nacional. Bastante aplaudido, os jovens tentam somar as
356
Traficando conhecimento
experiências das duas noites e concluem que o caminho
realmente é através do conhecimento e da boa prática
da cultura urbana existente em cada região.
Impulso. Assim as palestras somadas das oficinas podem
ser classificadas para descrever o que os jovens passaram a fazer enquanto multiplicadores. Por meio de blogs e
comunidades, a divulgação se estendeu para outros bairros que passaram a fazer o mesmo.
Em pouco tempo chegou a notícia de que os bairros
vizinhos e, também, mais afastados estavam reunindo
grupos, sempre ligados ao hip-hop, e promovendo estudos sobre a cultura, a literatura marginal e baixando
livros pela internet.
E por aí se seguem os eventos, as oficinas, os saraus,
quando vários outros grupos começam a congregar alunos em períodos diferentes do das aulas e lhes passar
algo sobre a cultura marginal, seja por meio de oficinas
de dança, canto ou literatura. E, finalmente, tornou-se
comum ouvir jovens comentando entre si: “O que você
está lendo?”
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Traficando conhecimento
Em foco
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Cap.06
Estatística
Cap.06
Estatística
Estatística
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Um ano à frente, em 1988, os brasileiros passaram a notar
o mesmo comportamento em cidadãos da maior cidade do
país, São Paulo, onde a droga chegou primeiro. Vinte anos
depois, não há sequer um cidadão que nunca tenha ouvido
falar nas famosas pedras, no crack, na cocaína derivada.
Policiais, médicos, estudiosos, jornalistas, cidadãos
comuns. Todos querem entender o que leva as pessoas
a se acabarem por este caminho. O caminho das pedras
tem dois únicos destinos: a morte ou a prisão.
A manchete do jornal de maior circulação na região diz:
“Envolvimento de menores com o tráfico aumentou
277% no último ano”. A matéria, assinada por mim, inaugura uma nova fase da minha vida profissional no Jornal Mantiqueira, vizinho do Jornal de Poços, porém, com
melhor e maior estrutura. Estes números já martelavam
na minha cabeça desde que eu me aventurei a escrever uma reportagem especial sobre o poder devastador
do crack. Pensei em iniciar o novo emprego com estes
números que, na ocasião, assombravam toda a cidade.
Após ouvir inúmeras músicas de rap que aludiam sobre o
problema da epidemia do crack, da morte de amigos, de
pais e mães e de várias quebradas devastadas pelo problema, me senti na obrigação de escrever algo.
Crack: o caminho das pedras
Um cachimbo. Dentro dele, pequenas pedras porosas,
de um branco sujo, cinza, amarelado, com aparência de
sabão ou cera. Pessoas tremendo e andando rápido com
os olhos vidrados. A cena representa como se comportam
os usuários de crack – droga potente, derivada da cocaína
– que surgiu, de acordo com um primeiro registro histórico, em 1982 nos Estados Unidos, sendo que cinco anos
mais tarde, em 1987, passou a ser considerada e tratada
como uma epidemia no país.
364
Feita em grandes ou pequenas quantidades, as pedras
de crack, que tem este nome devido o estralar que
produzem quando estão sendo feitas ou, às vezes, até
mesmo quando são fumadas, assombram crianças, adolescentes, famílias inteiras e se tornam um peso para a
sociedade. Nas esquinas de qualquer cidade brasileira, e
Poços de Caldas, desta vez, não é uma exceção, existem
histórias dos dependentes de uma droga, que se alastra
como um vírus.
Produção
As pedras podem ser feitas de duas maneiras: com
pasta-base ou cocaína em pó, depende do produto disponível no mercado. As feitas com pasta-base – um produto bruto, não-refinado com éter ou acetona – apresentam uma coloração escura, entre o amarelo e o marrom.
As pedras de cocaína em pó são mais claras. Os viciados
afirmam que a pedra da pasta-base é mais forte e não
esfarela com facilidade.
Para os fabricantes, o segredo de fazer a boa pedra está
em dosar a quantidade de pasta-base ou cocaína em pó,
água e um agente, normalmente o bicarbonato de sódio,
comprado com facilidade em farmácias ou em laboratórios de manipulação. O bicarbonato tem a função de reagir
com a mistura para deixá-la mais consistente, como cristais, além de facilitar a combustão no momento de fumar.
366
Traficando conhecimento
Há ainda as variações, onde os usuários esfarelam a
pedra feita com a pasta-base e misturam o crack com a
maconha, improvisando cigarros conhecidos como mesclados ou brazuca.
O lucro na venda do crack é representado pela grande
quantidade da pedra que o traficante consegue obter
com cada grama de cocaína, visto que com um grama é
possível fazer de três a quatro pedras.
Vidas queimadas em cachimbos
Ouvir o relato de dependentes químicos e de mães que
lutam para que os filhos abandonem o vício é como um castigo. Tido como a pior das drogas pela fulminante dependência que cria e pela brutalidade que provoca no viciado,
traz, cada vez mais, violência para dentro das famílias.
Há cerca de três meses, entrevistado pela reportagem
do Jornal de Poços, Augusto Caetano (nome alterado),
19 anos, conhecido como Toquinho, já estava magro
e com semblante acabado, em razão do uso do crack.
Em um segundo encontro, para realização desta matéria especial, o jovem já está bastante consumido pela
droga. Aparenta ter bem mais idade do que o registro
de nascimento marca e já não tem mais a mesma vitalidade para falar.
Com uma baixa estatura, que parece ainda mais afetada em razão dos efeitos da droga, Toquinho, bastante sonolento, comenta que os últimos dias, os que
se lembra, foram divididos entre dormir e fumar crack.
“Estou fumando cada dia mais. Antes eu pensava em
parar algum dia. Agora, evito esse tipo de pensamento. A
única coisa que penso é em como vou conseguir a droga.
Minha mãe já não me dá mais dinheiro. Eu não trabalho.
Estou tendo que furtar alguns estabelecimentos. Não
quero pensar nisso. Quero fumar minha próxima pedra
em paz”, diz, encostado na mureta do portão de casa,
Estatística
367
com os olhos perdidos e os dentes da frente amarelados, pelo uso constante do crack.
Em uma fase de fissura, ele conta que, para obter a droga,
atua como “vapor” na região onde mora e o que “recebe”,
pega em pedra, para consumo próprio. Na primeira
entrevista, Toquinho ainda era “aviãozinho”, ou seja,
apenas entregava a droga. Atualmente, vende pequenas
quantidades e o que recebe, consome em pouco tempo.
“Como eu uso, fico com o pagamento todo para mim, mas
cada dia que passa me vejo obrigado a vender mais, receber mais, fumar mais”, diz.
Um outro usuário de crack ouvido pela reportagem é
Wallace Rafael de Oliveira, 18 anos, conhecido como Buiú
da Barão, por ser morador da rua Barão do Campo Místico,
no centro da cidade, e que é acusado de ter cometido
vários furtos na área central da cidade. Ele relata que já
furtou e continua furtando diversas residências para sustentar o vício e em um apelo, pede uma internação. “Quero
que alguém arrume um lugar para eu ficar internado, tranquilo e parar de atormentar a população”, pede.
O tráfico de drogas é um crime que repercute nos demais
crimes e, por ser o crack, o que mais atrai os usuários e
daí uma dependência maior, embora antigamente considerado como uma droga barata, ele custa tudo que o
viciado tem e ainda aquilo que obtém de outras pessoas.
Os crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e relacionados à violência doméstica são frequentes em Poços
de Caldas e atribuídos a popularização da droga.
No caso de Buiú, ele comenta que não pode ver uma janela
aberta, que entra para furtar. Embora não cometa roubos
e nunca tenha utilizado de violência contra as vítimas, ele
confessa ter feito inúmeros furtos. “Faço isso para sustentar meu vício, para comprar a pedra. Eu dou preferências às carteiras, mas furtava, também, outros produtos
como computador, tela de computador, capacete, celular,
enfim, o que tem pela frente eu levo embora”, relata.
368
Traficando conhecimento
Ele frisa que o que mais deseja é uma internação em
uma clínica de reabilitação para dependentes químicos.
“Quero ficar longe das drogas”, deseja. A mãe do jovem,
Lúcia Regina de Oliveira Gonçalves, 44 anos, faxineira,
conta o martírio que é ter um filho dependente do crack
dentro de casa. Com a expressão cansada de quem já
não sabe mais o que fazer ou para que lado correr, ela
revela que não tem tempo para si mesma e que, embora
tenha outros filhos, uma moça já casada e uma garota de
8 anos, têm vivido em função do Buiú e na busca de um
tratamento de desintoxicação para o mesmo.
Para controlar as crises de abstinência do filho, ela revela
que, por contra própria, lhe dá remédios que atuam como
calmantes, como Diazepan e Rivotril. “Eu faço isso para
ele dormir, para tentar segurá-lo dentro de casa, para
ver se ele não sai para comprar drogas, para furtar, para
mexer nas coisas dos outros”, conta.
Assombrada pelo medo de receber uma notícia ruim,
assim como vivem os pais de usuários de drogas, Lúcia
afirma que não dorme durante a noite e que passa longos
períodos atrás do filho, chamando-o pela casa e pelo
quintal, desejando que ele volte logo.
A rotina de Buiú é semelhante com as dos demais usuários de crack. Durante a noite, ele consome a droga.
Dorme durante o dia e, no final da tarde, sai para tentar
encontrar um meio de conseguir mais crack.“Minha vida
com ele dessa maneira tem sido muito difícil. Todos os
dias tenho uma reclamação na minha porta. A polícia
vêm até minha casa atrás do meu filho e, muitas vezes,
quem atende é minha filha de 8 anos e tenho medo que
ela possa se envolver nesse caminho também. Dentro
de casa, Buiú é um amor de pessoa. Ele não briga, não
xinga e nos trata super bem. Talvez por isso que eu tenho
vontade de ajudá-lo”, comenta.
Estatística
369
Já chorando, com o coração partido, a mãe do jovem
conta que, no início, quando ele tinha ainda 12 anos e
começou a trabalhar como engraxate e cheirar cola, ela
relutou em ver o vício do filho e só reconheceu quando
este tomou grandes proporções e ele passou a trilhar o
caminho das pedras de crack.
“Recentemente ele foi preso e eu vi pela televisão, a
quantidade de coisas que ele furtou. Eu não imaginava
que meu filho era capaz de furtar tudo aquilo. Eu que
sustento a casa, trabalho quatro vezes por semana e
ganho R$ 30 a cada vez que faço faxina. Não temos muita
coisa, mas ele começou furtando meus cremes, perfumes, mas eu não imaginava que ele tivesse capacidade
de pegar tudo aquilo.”
No último dia 9 de setembro, Buiú foi localizado pela
Polícia Civil e levado para a 25ª Delegacia Regional de
Segurança Pública para prestar esclarecimentos. No
local, ele informou quem são os receptadores do material por ele furtado. Segundo Lúcia, ele já esteve preso
por vinte dias, quando ainda era menor de idade e afirma
que, na cadeia, passou por coisas que nunca imaginou
passar. Na cabeça da mãe, o tratamento policial com o
filho deve ser agressivo. “Ele tem muito medo da polícia,
então eu não acho que a polícia trate ele bem”, acredita.
Com o baixo salário, ela não consegue bancar um tratamento de desintoxicação que busca há quatro anos para
o filho, embora ele já tenha tentado o que é oferecido pelo
Sistema Único de Saúde (SUS), no programa de Álcool e
Drogas, dentro do programa de Saúde Mental, mas que
ele se recusou a continuar a frequentar as consultas psiquiátricas e a tomar os remédios necessários.
“Eu consegui junto a ONG Poços de Luz para interná-lo,
mas eu não tenho recurso financeiro para isso. A internação mais barata fica em torno de R$ 420, mais dez cestas
básicas e eu não tenho condições de dar esse dinheiro,
370
Traficando conhecimento
porque se eu fizer isso, como vou pagar minha água, luz
e fazer compras, se eu tenho uma menininha de 8 anos
para criar?”, argumenta.
Lúcia fala, também, com saudade, de quando o filho
não fumava crack, trabalhava e tinha força e energia de
vida.“Desde que ele passou a fumar esse tal de crack, o
comportamento dele mudou. Ele deixou de comer, emagreceu muito, está só pele e osso. Passa a noite toda fumando
crack, quando levanta, umas 15h, pede um prato de comida
e larga tudo pela metade. Ele está muito acabado.”
Ainda em relação ao uso do crack, a mãe conta que o filho
consome a droga dentro de casa, com o consentimento
dela. “Eu deixo ele usar no quintal, dentro de casa. Faço
isso para evitar que ele faça na rua, com outras pessoas,
e se envolva ainda mais com coisas que não deve”, diz,
chorando novamente.
Durante a entrevista, ela relata, também, que o pai do
jovem já foi usuário de drogas e passou um longo período
preso. Atualmente, pai e filho não têm nenhum tipo de
contato ou relacionamento, e toda sobrecarga dos problemas acarretados pelo crack ficam por conta da mãe,
que mostra, claramente, sinais de esgotamento.
Para ela, já cansada da situação, a internação em uma
clínica seria a única coisa que talvez pudesse salvar
Buiú, que ela considera muito jovem, aos 18 anos. “Eu
sei que meu filho ainda vai ser um grande homem, porque ele sempre trabalhou e tem boa vontade. Quero
ver ele recuperado e me ajudando em casa, financeiramente e cuidando um pouco de mim. Até o momento,
ele concorda com a internação, demonstra vontade de
parar de usar a droga. Meu maior sonho é ver ele recuperado. Eu acredito em Deus e sei que Ele vai me ajudar.
Sei que vou vencer. Falo isso para meu filho todos os
dias, quando me pergunto se agi errado, tentando ver
onde errei, mas não estou conseguindo saber”, encerra
a entrevista, chorando muito.
Estatística
371
Organismo em pedras
O programa de Álcool e Drogas do município também
recebe, diariamente, várias pessoas acometidas pelo uso
de drogas, principalmente do crack. O médico responsável
pelo atendimento clínico, Walter de Abreu, destaca que o
acompanhamento dos pacientes vai desde a parte psiquiátrica, com acompanhamento psicológico, com terapeuta
ocupacional para poder desvincular o paciente daquele
ritmo de vida que ele vem levando.
Quanto aos efeitos do crack, ele destaca que existem
várias maneiras para ser analisado. “Os efeitos que vejo
como médico e os que o usuário pensa. Os que eu penso
são os mais graves, que podem levar à morte, os efeitos que os usuários pensam são porque ele pensa que
está fazendo bem. Outro dia mesmo, eu estava ouvindo
um rapaz falar, na Zona Rural, que todos os funcionários dele estavam usando o crack, porque estavam
desenvolvendo um trabalho muito melhor, trabalhando
assustadoramente, não precisavam se alimentar, não
comiam, não bebiam água, o sol não era motivo de afastamento do trabalho, não precisavam de sombra, chuva
não os impedia. Por quê? O rapaz fica confuso, não sabe
o limiar de dor dele, ferimentos, estas coisas ele não
sente, para ele, aquilo não faz diferença.
Ele adquire uma maior virilidade para o trabalho, fica
mais rápido, ágil no raciocínio, enfim, tudo isso leva o
leigo a pensar que é uma droga boa. As consequências, a
longo prazo, são letargia, o indivíduo começa a ficar apático, diminui o ritmo de trabalho, começa a apresentar
taquicardia, batimento rápido do coração. O aumento da
velocidade do batimento do coração pode diminuir a oxigenação cerebral e o indivíduo começar a ficar confuso,
agitado, agressivo, com ideias suicidas e, até mesmo,
homicidas. Ele pode ter, ainda, colapsos ou infarto pela
própria frequência cardíaca, visto que as irrigações das
coronárias no coração não são benfeitas”, considera.
372
Traficando conhecimento
O tratamento clínico consiste em uma desintoxicação inicial, em que o médico procura afastar o usuário do meio de
convívio que ele se encontra. Walter afirma, também, que
o crack é uma droga em que a pessoa fica viciada quase
que instantaneamente após o uso da mesma. “A pedra, o
usuário pode se tornar viciado em cinco ou dez minutos e a
cocaína vai matá-lo lentamente, já o crack pode fazer isso
rapidamente, visto a agressividade do mesmo”, comenta.
Uma das causas do vício é a rapidez do efeito da droga,
que dura, no máximo, 15 minutos. Inicialmente, a droga,
por ser aspirada pelas mucosas, que fica toda queimada, e
por ser inalatória, há uma maior rapidez de atingir as células neuronais. Ele impede as mensagens que são enviadas
de um neurônio para o outro no cérebro, começa a cortar
como se fosse um curto circuito, bloqueia as mensagens,
o que causa um estado de confusão no usuário da droga.
Por ser inalatória, fumada por um cachimbo, a droga pode
comprometer o pulmão também, visto que torna frágeis
os alvéolos, que são as extremidades terminais dos pulmões, o que deprime as defesas do organismo, causando
pneumonias de repetição ou, até mesmo, tuberculose.
Problema social
Embora o crack esteja diretamente ligado apenas aos consumidores, ou seja, viciados e as pessoas ao redor dele,
toda sociedade fica comprometida pelos problemas que a
droga traz. Além do comprometimento da saúde dos usuários, os problemas sociais também ficam em destaque.
Para falar sobre o assunto, o cientista social e, também,
conselheiro tutelar, Diney Lenon, garante que a disseminação do crack está intimamente ligada com os conceitos pregados pela mídia e pela sociedade como um todo.
O individualismo é fortalecido de todas as formas, gerase a busca pelo prazer imediato por parte dos jovens, o
que os atrai rapidamente ao universo das drogas e, mais
precisamente, ao esfumaçado mundo do crack, onde a
cor predominante é o cinza, sem vida.
Estatística
373
Por atuar no Conselho Tutelar, muitos casos chegam até
ele como apelos e urgentes pedidos de ajuda. Um dos
casos mais chocantes, que ele diz sentir até mesmo dor
no coração ao se lembrar e relatar, é o de um adolescente
cuja digital dos dedos já se tornou imperceptível, por ter
sido queimada pelo contato da pele com o cachimbo utilizado para fumar o crack.
“E vejo o crack inserido no mundo atual onde nossa
juventude deixou de sonhar. A perspectiva de mundo, de
transformação, foi um pouco perdida. E nossos jovens,
hoje, estão muito preocupados com o presente e um
presente não muito agradável faz com que a gente queira
fugir desse presente. A droga é um subterfúgio mais fácil
para sair dessa realidade, que, muitas vezes, não é o que
a TV nos vende. Em relação a Poços de Caldas existe um
surto, hoje, de uso de crack. Até cinco anos atrás, não
tínhamos esse problema tão grave”, considera Lenon.
Para ele, a droga assume o papel à frente de tudo, porque o tudo que deveria estar à frente, na verdade, está
atrás. Em uma comparação confusa e simples ao mesmo
tempo, ele garante que isso seria a garantia dos direitos
básicos, feridos de todas as maneiras quando se fala de
crianças e adolescentes envolvidos com o crack e, até
mesmo, o tráfico.
Como forma de amenizar os inúmeros problemas gerados pelas pedras, ele acredita que uma reorientação
orçamentária e investimentos pesados nas políticas de
prevenção, nos programas sócio-educativos, na geração
de empregos e na garantia de habitação seriam ideais.
“Daria uma anestesiada.”
Já em longo prazo, Lenon é mais pretensioso e crê em
uma discussão e mudança na educação que existe
hoje. “O que leva a uma consciência individualista,
utilitarista e imediatista. Temos que garantir sonhos
para nossa juventude, por meio de um novo modelo de
educação, novos valores, para que o jovem venha a ver
374
Traficando conhecimento
a droga como algo chato e não como algo legal. Muitas
vezes, o bandido é o que é apresentado como referência e isso contribui muito. As crianças sonham em ser
bandidas, traficantes, usuárias de droga, e seria importante mudar este desejo, esta visão”, ressalta.
Trabalho policial
Diariamente, usuários ou traficantes são presos portando
drogas e o que, antigamente, era maconha ou, até mesmo,
papelotes de cocaína, hoje, foi substituído pelo crack.
Nesta semana, a Polícia Militar da cidade apreendeu
crack todos os dias em pontos diferentes do município,
mostrando que a droga, não atinge somente as pessoas
de baixo poder aquisitivo, como também as pessoas das
castas mais elevadas da sociedade.
Não diferente, na Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, o
crack, sem dúvida, é o responsável pelas maiores apreensões. Ainda não existem levantamentos sobre o quanto de
crack foi apreendido, porém, destaca-se que as apreensões ficam em torno da droga. Para falar sobre o assunto,
o delegado Carlos Eduardo Galhardi Di Tommaso destaca
que nos últimos anos, o crack vêm assumindo o papel que
a maconha e a cocaína tinham. “Antigamente, elas eram
drogas muito difundidas, hoje o crack, que é um subproduto da cocaína, assume este papel. Nós percebemos
que a maioria das apreensões ultimamente de drogas é de
crack. Sejam grandes porções, sejam pequenas porções,
já destinadas à venda, ou mesmo o pessoal que é pego
com porte para uso, a maior quantidade é de crack que
assumiu, roubou o espaço da cocaína, que, hoje, vemos
com menos frequência. Em geral, quando apreendemos
cocaína hoje em dia, ela é apreendida em grandes volumes, que provavelmente não se destinariam, a princípio, à
venda, mas para fazer o crack.”
Questionado sobre as razões de um traficante comercializar as pedras de crack, mesmo com a consciência de
Estatística
375
que as mesmas viciam com mais rapidez e, dessa forma,
degeneram, também com mais rapidez o usuário, o delegado acredita que em razão do crack ser um subproduto
da cocaína, o lucro pode ser maior e consequentemente,
em razão dos usuários serem ainda mais viciados, as
vendas crescem. “Se entendermos que com cada grama
de cocaína pode-se fazer três ou quatro pedras de crack
e, se cada uma é vendida por R$ 10, o traficante alfere um
lucro bem maior”, acredita.
Para ele, o que faz com que o número de apreensões
cresça é somente a procura pela droga. “Em geral o crack
é encontrado com pessoas de mais baixa renda, muito
embora o papelote de cocaína e a pedra de crack custem,
a princípio, a mesma coisa, em geral, são pessoas de
menor poder aquisitivo e as pessoas que são pegas, com
cocaína, com um poder aquisitivo um pouco maior, mas
acredito que a forma como as pessoas estão se viciando,
vá se alastrar aos poucos nas classes mais altas”, diz.
O delegado acredita também que a Polícia seja a última
medida no que se referente ao combate às drogas e critica,
também, a Lei nº 11.343, conhecida como Lei de Tóxicos e
que, recentemente, completou dois anos.“A cocaína vem
do sul ou dos países fronteiriços e, para chegar aqui, bastante gente já falhou, né? E a polícia é o último caminho.
A rigor, teria que ter um apoio aos dependentes químicos
mais intenso. Seriam lugares destinados para eles se
livrarem dos vícios. Infelizmente, o que podemos perceber
é que é muito rara, muito difícil, uma vaga, especialmente
em estabelecimentos públicos. Existem clínicas particulares, mas, em geral, boa parte da população que é acometida pelo vício não tem possibilidade de pagar, então a
minha visão é que deveriam existir novos e maiores estabelecimentos para recepção desses dependentes. Esta
seria a saída que cumpriria a Lei por efetivo, para tentar
diminuir a procura pela droga. Mas nós continuamos com
as apreensões de forma estoica”, considera.
376
Traficando conhecimento
Em busca de luz
Como não existe o tratamento previsto na Lei nº 11.343
para os usuários de drogas, os caminhos ficam interrompidos e o voluntariado passa a ser a opção para quem
está na escuridão, grande parte das vezes, provocada
pela fumaça cinza do crack ao sair dos cachimbos.
Segundo Vilma Jorge, voluntária da ONG Poços de Luz, que
há sete anos atua na ajuda aos familiares e dependentes
químicos da cidade, o número de atendimentos relacionados ao crack aumenta assustadoramente a cada dia. Dos
259 casos que estão em atendimento na ONG, 233 são por
dependência ao crack, ou seja, quase 90% das pessoas
que procuram atendimento, são viciadas nas pedras.
“Em Poços de Caldas o número de atendimentos por
crack está crescente. Dia a dia temos novos casos. Todos
os dias nos chegam casos de mães e familiares que vêm
nos procurar para atendimento de desintoxicação, de
internação, mas temos uma dificuldade muito grande
com relação à internação por conta de vagas e do lado
financeiro, porque não existe clínica gratuita. Todas as
clínicas trabalham por pagamento. São clínicas geralmente fora de domicílio, que são aconselhadas para este
tipo de tratamento”, afirma a voluntária.
Para ajudar, a ONG tem parcerias com clínicas do interior de São Paulo e algumas no sul de Minas Gerais, que
trabalham com preços mais acessíveis, visto que as pessoas que procuram a ajuda são de um poder aquisitivo
mais baixo. Dos 233 atendimentos, 93 dizem respeito a
menores de idade. Ela ressalta, também, que o ponto
comum entre as pessoas afetadas pelo crack é a desestruturalização familiar.
De acordo com a experiência adquirida na ONG, uma
alternativa para reduzir o envolvimento, cada vez mais
frequente das pessoas com o crack, seriam atitudes
positivas do poder Executivo e também do Legislativo,
Estatística
377
principalmente em um atendimento específico para o
dependente químico.
“Quando vamos à Secretaria Municipal de Assistência
Social, encontramos sempre um ‘não’. Temos apenas um
atendimento paliativo, emergencial, no Hospital Santa
Lúcia. Se a cidade tivesse mais clínicas, seria importante, visto que a estimativa levantada revela que 30%
dos habitantes poços-caldenses são usuários de drogas
e é um número muito alto”, acredita Vilma.
Embora a ONG trabalhe no sentido de reverter o número
de dependentes químicos, a tarefa não é fácil. O tempo
mínimo de internação aconselhável é de seis meses,
porém, há pacientes que ficam por mais tempo. No
entanto, para a organização, uma oportunidade de
melhora no quadro, seria evitar o preconceito enviado
por todas as camadas da sociedade. “Geralmente, a
sociedade vê o dependente químico como um criminoso,
um vagabundo, um ladrão. Eles se esquecem que aquela
pessoa tem uma mãe, uma família, filhos. Poços de
Caldas está em um estágio que pede socorro. Estamos
travando uma luta que não temos como vencer sozinhos.
Precisamos de apoio”, pede, em apelo, não somente de
uma voluntária do apoio aos viciados em crack, mas de
toda a sociedade, que assiste à degradação dos seres
humanos que resolvem trilhar o caminho das pedras.
A matéria teve boa repercussão e os jovens que faziam
parte das oficinas, não apenas no bairro onde morava,
como em outros, passaram a refletir mais sobre o problema. Porém, o objetivo não era fazer com que a pessoa que já vivenciava isso tivesse consciência, mas
abrir para uma discussão mais ampla, com sugestões.
Pode parecer pouco, entretanto, tinha plena visão de
que o hip-hop atrelado com a literatura, quando levados a sério, promoviam mudanças e não deixavam que
os jovens cruzassem a linha invisível entre o caminho
do bem e o mundo do crime.
380
Traficando conhecimento
A sugestão de leitura do livro “Crack – O Caminho das
pedras” feito pelo jornalista, já falecido, Marco Antônio
Uchôa também pode ser trabalhado e difundido entre os
jovens, que pareciam poucos, mas que, como multiplicadores de informações positivas, eram muitos. Assim,
poderia parecer clichê ou repetição, mas achei necessário falar sobre o problema e surgiu o texto da matéria
no Jornal Mantiqueira, onde estreava minha temporada
com a estatística.
Envolvimento de menores com o tráfico aumentou 277%
no último ano
Levantamento feito pela Polícia Militar mostra o aumento
significativo de crianças e adolescentes que se envolveram com o comércio de drogas em 2008.
Jéssica Balbino
Poços de Caldas (MG) – Repetitivo, porém assustador, o
número de crianças e adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas aumenta diariamente e sem mecanismos
de recuperação ou punição se torna impossível contê-los.
São comuns cenas de adolescentes, recém-saídos da
infância, com idades entre 12 e 13 anos, cometendo
pequenos furtos para sustentar vícios ou ainda servindo
de base e de “laranjas” para o tráfico de drogas.
Todos os dias a Polícia Militar registra diversas ocorrências relacionadas ao tráfico de entorpecentes e de
acordo com um levantamento, de janeiro a novembro de
2008, 34 menores foram apreendidos por tráfico de drogas. Em um comparativo com o mesmo período do ano de
2007, apenas nove menores foram apreendidos, ou seja,
houve um aumento de 277,78% nos casos.
Segundo a ONG Poços de Luz, 93 adolescentes aguardam
tratamento para desintoxicação. Já a delegacia de Tóxicos e Entorpecentes da 25ª Delegacia Regional de Segu-
Estatística
381
rança Pública, chefiada pelo delegado Carlos Eduardo
Galhardi Di Tommaso, recebe em média três denúncias
por dia relacionadas ao tráfico de drogas.
O último levantamento feito pela Polícia Civil em 2008
aponta que 14 adolescentes foram autuados por envolvimento direto com o tráfico e que tiveram 83 ocorrências
de menores que fazem uso de drogas. Além dos adolescentes, no último ano, um menino de 11 anos foi conduzido pela Polícia Militar até a 25ª DRSP, por estar com
drogas dentro de um saquinho de salgadinho na Cadeia
Pública, acompanhado pela mãe, que para fugir do flagrante, fez com que o filho segurasse a droga. O menor,
conforme manda a lei, foi encaminhado a programas de
apoio através do Conselho Tutelar.
“O que percebemos dos adolescentes é que eles são
facilmente seduzidos pelas pessoas mais velhas a fim
de ganharem um dinheiro fácil e terem acesso a algumas
mordomias, ou bens de consumo, que a mídia expõe como
coisas muito interessantes e, então, eles acabam acreditando que tem de ter de qualquer forma, daí o tráfico”,
avalia Tommaso, delegado de Tóxicos e Entorpecentes.
Motivo
Para o delegado, como os pais geralmente não têm condições de entregar aos filhos os bens materiais que eles
almejam, como camisetas, bonés e eletroeletrônicos,
eles terminam seduzidos pelos traficantes mais velhos.
“Essas crianças costumam ficar sozinhas o dia todo, sem
muitos cuidados e os traficantes, mais velhos, sabem
da dificuldade da polícia em apreender esses menores
e mantê-los presos então utilizam, com cada vez mais
frequência, a mão de obra destes adolescentes para realizar o tráfico”, acrescenta.
A psicóloga Mariângela Moura Santos tem a mesma visão
e acredita que o nível cultural e social dessas crianças
é muito ruim. “São crianças muito carentes, sem refe-
382
Traficando conhecimento
rencial paterno positivo, sem referencial materno e que
começam muito cedo na rua, se agrupam com outras
crianças entram muito precocemente nas drogas, sendo
influenciadas por adultos muito cedo”, comenta.
Por não existir um centro de reabilitação em Poços de
Caldas, o envolvimento dos menores no tráfico fica
favorecido e de certa forma, impune. “Quando a Lei dispõe de forma tão diversa da censura aos menores, tem
como objetivo a ressocialização, independentemente da
imposição de uma pena. Só que, para isso, é preciso de
uma estrutura que corresponda a essa expectativa de
reestruturar a pessoa e a maioria das cidades não tem
isso. Nós observamos que não podemos prender estas
crianças e adolescentes, então eles retornam para as
ruas e repetem o ato infracional”, queixa-se o delegado.
De acordo com a psicóloga, tal comportamento por parte
dos menores pode ser atribuído a uma psicopatologia
chamada delinquência. “Ao contrário do que as pessoas
pensam, a delinquência não é apenas um comportamento, é também um desvio de caráter considerada uma
doença como esquizofrenia ou psicose e ela faz com que
os jovens e adolescentes busquem esta vida mais fácil e
isso, somado às influências familiares, contribui para o
ingresso destes menores no tráfico”, explica.
Mariângela compartilha ainda da mesma opinião que
Tommaso em relação à influência da mídia no comportamento dos jovens que ingressam no tráfico.“Acredito na
influência social na questão do ter. Isso contribui, além
da falta de instrução e de carinho”, diz a psicóloga.
Procedimento
A máxima punição aos menores envolvidos com o tráfico
de drogas é a internação em algum estabelecimento de
reintegração social, no entanto, como a cidade não possui
um, em geral, quando os adolescentes são apreendidos, há
Estatística
383
o auto da apreensão em flagrante. Mas, geralmente, eles
são postos em liberdade aos cuidados dos familiares, para
que respondam um processo na Vara da Infância e Juventude por aquele ato infracional. “Via de regra, mesmo após
aplicação de reprimenda final que no máximo é o encaminhamento a uma instituição de recuperação, estes jovens
são orientados a prestar algum serviço comunitário ou
encaminhados a alguma outra instituição para que sejam
atendimentos por psicólogos, mas não sofrem nenhuma
repressão mais intensa”, enfatiza Tommaso.
Questionado sobre o fato de terem crianças apreendidas em razão do tráfico, ele esclarece que os menores
de 12 anos não deveriam sequer ser levados à Delegacia e
a Polícia, e que nesses casos, não se pode fazer nada.“A
única coisa que se faz é não constranger, de maneira
nenhuma a criança e não tomar nenhuma medida policial. Apenas contatar, imediatamente, os familiares e na
impossibilidade de contato, o Conselho Tutelar”, revela.
Opção
Para reverter o quadro cada vez mais alarmante, Mariângela pensa que um trabalho social e de conscientização
feito com as crianças, os adolescentes e os pais poderia
ser uma opção.
“É um caso complexo. Uma falta de tudo. Precisaríamos
de um trabalho muito benfeito que envolva saneamento
básico, alimentação, escola e educação. Talvez instituições que fazem estes trabalhos podem ter algum resultado”, diz. Tommaso acredita que locais para recepção
destes menores pode ser uma opção de ressocialização
e que talvez reverta o quadro: “Um local para que eles
ficassem mais ocupados, fossem reeducados e que não
fossem novamente presas fáceis aos traficantes mais
velhos. Em relação às crianças, eu não sou um defensor da redução da maioridade penal. As pessoas jovens
mesmo não tem essa capacidade de discernimento, de
384
Traficando conhecimento
escolha. Elas são realmente seduzidas. Em vez de ficar
tanto tempo discutindo esta redução, podia voltar as
energias para o desenvolvimento de um plano de recepção desses adolescentes para tentar a ressocialização
da forma que a lei de execução penal e o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) promovem”, enfatiza.
Como conselho, o delegado pede aos pais para que fiquem
atentos ao comportamento dos filhos. “Não devem deixálos muito tempo sozinhos na rua porque é uma idade que
precisa de uma autoafirmação grande e que às vezes se
o pai não está por perto, está um pouco descuidado e os
traficantes chegam, outras pessoas chegam, conseguem
convencê-lo a andar por um caminho errado”, finaliza.
Com o balanço feito e opiniões como a da psicóloga e do
delegado, a ênfase em locais onde os jovens ficassem
ocupados e passassem a pensar por si era uma das alternativas para a redução do envolvimento com o tráfico.
Estatística
385
Estatística
Literatura, pedras
e sementes
Um espaço quase centenário. A precariedade contrasta
com as cores repintadas nas paredes usando a técnica
do grafite. A história dos bailes e do culto aos antepassados negros é presente por meio de quadros, recortes
de jornais e da energia que emana do galpão adaptado
para receber jovens e crianças em situação de risco. O
nome é Chico Rei e a simples menção remete a bailes
realizados na cidade quando a estância ainda recebia
inúmeros turistas para a lua de mel e o espaço se dedicava a receber a periferia. Transforma-se, atualmente,
em Centro Cultural Afro Brasileiro Chico Rei.
Como um resgate, arte-educadores propõe oficinas
durante todo o período da tarde a alguns jovens moradores da região. Um resgate de autoestima, de cidadania,
de consciência. Com um trabalho feito pelos próprios
jovens, toda fachada do galpão foi redecorada com tintas coloridas e grafites, sempre em alusão às oficinas
de hip-hop. Com aparelhagem de som, pickups e muita
rima, o rapper Job passou a ministrar oficinas para a
garotada. Com uma visita, pude conferir o local, o que
estava sendo passado e de forma breve um pouco do 5º
elemento – conhecimento – lhes foi passado por meio
de audiovisual e da literatura.
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Traficando conhecimento
Estatística
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392
Traficando conhecimento
Não há dados científicos ou computados quanto aos
resultados, mas o fato é que, por meio de uma pesquisa
empírica com a arte-educadores e instituições que, de
alguma maneira, nos últimos dois anos tinha trabalhado com hip-hop ou literatura, mais de 1000 jovens já
tinham passado de oficinas itinerantes, onde também
estive presente com textos da literatura marginal, ora
feitos por mim, ora feitos por estudantes e, também,
do cenário nacional. Com lares desfeitos ou abalados
pelo crack, por pais adictos, familiares dependentes do
álcool, todos os jovens integrantes do projeto Chico Rei
são vitimas do desemprego, da humilhação e da falta
de saúde e educação.
Com a mesa desfeita e a barriga vazia, grande parte
estava ali, inicialmente, para receber o lanche oferecido pelos responsáveis pelo programa que mais do
que o estômago, encheu a alma. Completaram-na com
sonhos, com palavras, com arte, cultura e poesia. Em
pouco tempo estavam apegados aos livros e com o senso
crítico fortalecido. Minha visita aconteceu em uma tarde
em que pude fugir do jornal. Com trabalhos feitos a partir
de notícias ocorridas no próprio bairro deles envolvendo
polícia e, não raras vezes, pessoa conhecidas, eles aprenderam a gostar de ler o jornal e entender a importância de
estar por dentro dos acontecimentos da cidade.
Com iPods, MP3 e outros tocadores de músicas, eles
mostram, entre si, durante o intervalo, raps nacionais
novos e, quando pergunto algumas coisas básicas sobre
o conhecimento do hip-hop, eles não hesitam em me responder sobre a origem dos ritmos, da dança e da música.
Pergunto quanto à produção literária e a coordenadora
do projeto mostra algo escrito por eles. A volta do intervalo acontece quando eles podem assistir um filme
exibido num telão conseguido para o centro cultural.
Estatística
393
O filme trata, também, sobre as origens e os antepassados, tema que os adolescentes passam a respeitar
desde que ingressaram no projeto.
Por meio de incentivos assim, muitos que eram ausentes na escola voltaram a frequentar a sala de aula pela
manhã, com melhora no comportamento, na concentração e nas notas. Sou convidada para um dia específico
levar um pouco das oficinas até eles. Combino e marcamos uma noite. Chego e o clima de sarau toma conta do
ambiente. Os garotos chegam e o acontecimento – ficar
horas longe de casa, da televisão e não estar fazendo
algo reprovável, é quase inédito – os mobiliza a ajudarem a arrumar cadeiras, mesa e telão.
Aos poucos o salão lota. Mães, pais, avós e vizinhas.
Muitos vêm saber o que vai acontecer ali. Abro uma
pasta e retiro um caderno do Jornal Mantiqueira. O que
estou trabalhando atualmente e que me permite, vez ou
outra, publicar textos de amigos da literatura marginal.
Começo a ler o texto e só depois que termino, explico.
A presença da mulher na sociedade de hoje
Por Renato Vital
Qual seria sua reação, ao se deparar com uma mulher
dirigindo um ônibus há vinte anos atrás? Muitas pessoas
ficariam, no mínimo, assustadas com a cena, por não
se tratar na época de um fato comum. Ao compreender
o assunto, podemos notar a evolução das mulheres na
sociedade e no mercado de trabalho. Pois, hoje em dia,
é normal nos depararmos com mulheres ao volante,
mulheres escritoras, jornalistas, policiais, bombeiras,
médicas, jogadores de futebol etc.
Especialistas afirmam que elas se destacam por serem
ágeis, organizadas, sensíveis e detalhistas. Outras pessoas dizem apenas que essa evolução feminina se deve
394
Traficando conhecimento
pelo quesito boa aparência. Quer dizer que as empresas,
em vez de contratarem mão de obra masculina, utilizamse da beleza e exuberância da mulher, afim de causar boa
impressão em seus clientes, sócios, associados etc.
Mas as mulheres, por sua vez, alegam que a presença
maciça no mercado de trabalho foi causada pelas diversas
manifestações e piquetes, que aconteceram no decorrer
dos anos. Como sabemos elas conseguiram, na base de
lutas e conquistas, os direitos de voto, atendimento especial nos hospitais e postos de saúde, a Lei Maria da Penha
(que as protege da violência machista), entre outras.
Podemos dizer que a ousadia delas é, na grande maioria dos casos, motivo pelo qual ocupam esse espaço na
sociedade, que, em alguns anos, poderá ser ainda maior.
É uma pena que muitas consigam destaque apenas com
apelo sexual, ao posarem nuas em revistas masculinas
ou mostrarem o corpo de maneira explícita na televisão,
em variados programas (muitos deles dominicais).
É lamentável, também, que muitas delas confundam:
“espaço e direitos iguais” com “liberdade sexual e desvalorização ideológica e de seus próprios corpos”, como
acompanhamos em bailes funks entre outras festas de
apelação sexual feminina. É bom nos apegarmos aos
bons exemplos de mulheres de coragem e firmeza, para
que possamos assimilar bem essa evolução, pois daqui
há alguns anos, será comum irmos a um estádio de futebol e assistir a jogos de futebol feminino.
Escrito pelo rapper e escritor Renato Vital, da Zona Sul
de São Paulo, o texto traz muito do que vivemos aqui,
onde todos andam sujos, como a mente da sociedade, e
trazem — ora no corpo, ora na alma — sequelas de uma
vida miserável. Comento como é possível se expressar
por meio da literatura periférica e como isso pode chegar a um veículo de comunicação. Conto que convidei
o jovem de pouco mais de 20 anos, funcionário de um
Estatística
395
supermercado e que passa os mesmos venenos diários
que todos nós a publicar o texto no jornal.
Mostro que não apenas o Jornal Mantiqueira tem este
espaço, como todos da cidade podem abrir a coluna
Opinião ou Espaço do Leitor para que jovens, adultos e
idosos publiquem o que pensam sobre tudo que os leva
a refletir. Ato contínuo, leio outro texto de Vital, também publicado no jornal.
Não aponta o dedo
Por Renato Vital
Madrugada fria, e não tem desculpa, não tem choro, não
tem pelo amor de Deus, ou levanta para trabalhar ou vai
se ver com o patrão. O patrão também acorda cedo, se
ele, que é patrão, levantou cedo, você não pode fazer
diferente. O trabalhador não tem escolha, o patrão às
vezes também não tem escolha, o presidente, muitas
vezes, não tem escolha, e quem escolhe então? O patrão
acorda cedo, porque sabe que tem pagar os funcionários, ele sabe que tem que pagar imposto, ele sabe que
se não pagar as contas os agiotas vão ligar para ele, o
patrão sabe que precisa vender, o patrão às vezes não
queria, mas é obrigado a pagar pouco, porque é pouco
que lhe sobra, mas, muitas vezes, o patrão também fica
com a parte mais gorda do lucro. O empregado sai de
casa todo dia, rumo ao trabalho, seu descanso é temporário, o tempo menor, talvez o sábado e domingo, ou só o
domingo, ou uma folga por semana, ou cinco folgas por
mês. Hora extra quase não existe mais, é só banco de
horas, tudo controlado pelo sindicato. O patrão chega
em casa e liga a televisão, o empregado chega em casa
e liga a televisão, um assiste futebol, o outro também, o
empregado pega sua camisa pirata do time do coração,
o patrão pega sua camisa oficial do time do coração,
mas que comprou na promoção. Ninguém aponta o
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Traficando conhecimento
dedo para ninguém, no mundo social assim é melhor, na
sociedade em que vivemos nada se pode apontar, nem o
lápis que o menino não quer usar, o futebol é mais atraente que a prova de matemática. Na televisão algumas
pessoas são apontadas como culpadas, temos obras
superfaturadas, temos “big luxo”, casas na praia, a propaganda de turismo pro empregado soou como piada,
enquanto a mulher do patrão interrogou o esposo:
Pra qual praia vamos no próximo recesso?
O patrão pensa sozinho “Não vou para praia, se julho for
lucrativo”. A patroa adivinha o pensamento do patrão
e solta uma exclamação: “Pensando em trabalhar nas
férias de novo? Não cansa não?”. O patrão tenta dizer
algo, mas é novamente abduzido pela propaganda que
mostra cerveja e praia. Quem abre livros para ler no país
do carnaval? O patrão se preocupa com o lucro, o empregado com o salário no fim do mês, e o livro fica dando
sopa para quem? Algum estudante quer saber de Dante,
enquanto mal sabe da sua origem? Os livros vão se empoeirando em alguma estante, empregaram o espanador e
o aspirador de pó e só, ou será que eles, um dia, vão ser
percorridos, com suas páginas já amareladas, mas que
trazem palavras claras e precisas sobre o mundo que
vivemos? Deixa para lá. Se alguém apontar o dedo, dedos
serão apontados, mas o que a gente sabe é que o lucro
virá novamente e as contas, também, e o empregado
ficará com o quê? Não sei lhe dizer!
Com estes exemplos reais e palpáveis, ouvi as colocações dos jovens sobre os textos e deixei em aberto para
que eles me apresentassem os feitos por eles mesmos.
Apenas dois jovens se manifestaram e leram redações
escritas por eles. Recusaram-se a usar a frente da sala
e de onde estavam, engasgando, disseram um pouco
daquilo que pensavam por meio do que fora anotado
algum tempo antes.
Estatística
397
Para não deixar cansativo, no telão, exibi o documentário “Hip-Hop: A Revolução que vem das ruas”, produzido
pela jornalista Érica Guimarães, em 2007, pela Unip de
Campinas. Sem narração, os próprios personagens contam a história desta cultura e conforme o Zulu King, Nino
Brown – representante da Zulu Nation no Brasil – define,
não há hip-hop sem conhecimento, sem saber dos antepassados, sem voltar no tempo e percorrer as próprias
raízes, sem a leitura e sem a escrita.
Nos olhos dos garotos que queriam tudo e não tinham
quase nada, pude ver um rastro de esperança, rondando
aquelas pequenas mentes com corpos tão sofridos.
Senti, novamente, que algo havia mudado. Entretanto, a
maior transformação acontecia dentro de mim, que não
deixava uma escola, um centro cultural, uma quebrada,
sem ter lágrimas nos olhos por ter plantado, mesmo que
bem pequena, a sementinha do conhecimento na vida de
crianças e adolescentes que até então só tinham recebido as pedras da ignorância.
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Traficando conhecimento
Estatística
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Estatística
Do verbo produzir
Mudar de emprego foi a melhor opção feita por mim
desde que ingressei na vida “dos que tem carteira assinada”. Estava ganhando a mesma coisa, entretanto,
havia deixado o tronco e as chibatadas para a liberdade
de produção e qualidade de textos. Profissionalmente o
salto foi incrível. Ingressei em um jornal maior, com mais
estrutura, onde posso aprender, até hoje, diariamente,
as artimanhas do fechamento, da edição e do direcionamento das matérias.
Tenho ainda mais espaço para divulgar os eventos de
hip-hop, os escritores, os movimentos literários Brasil
afora e, ainda, a coluna das opiniões, onde vários amigos já puderam participar com textos e crônicas da literatura marginal. Sem ser obrigada a produzir inúmeras matérias por dia – incumbida de fazer apenas uma,
desde que fosse boa – pude pensar mais no que poderia
fazer em relação às oficinas, em relação à própria vida,
além de ter mais tempo para ler e assistir documentários e filmes relacionados com a periferia.
A ideia antiga de trabalhar, antropologicamente, a literatura produzida nos guetos voltou à mente e mais uma
vez, com ajuda de amigos e através da internet, entrei
em contato com vários autores e comecei um trabalho
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de pesquisa, que sei, ainda vai levar anos, até que seja
admitida em um mestrado de comunicação e possa trabalhar a produção literária vinda das quebradas.
Através de questionários, muitos escritores e afins da
literatura, frequentadores de saraus e agitadores culturais me contaram mais sobre o universo e toparam fazer
parte da pesquisa. Sem parar, me lancei novamente em
oficinas, desta vez em outras regiões e sem a obrigatoriedade de ser com estudantes. Bastava que quem estivesse
a fim aparecesse, até porque quem não quisesse não iria
se dispor a receber dicas de livros, textos e filmes.
Jovens apegados aos livros para o fortalecimento do
senso crítico. Esse era meu objetivo com as oficinas.
Fazer com que eles parassem de achar que porque eram
pobres, muitos deles negros e moradores da periferia
não tinham muito alimento nas mesas, precisavam ser
acomodados e conformados com a existência de miséria
que o sistema nos oferece.
Como exemplo, passei a usar a minha própria vida e trajetória. Encontrar um emprego não é fácil. Ganhar bem é o
mesmo que acertar seis números na loteria. Mas frequentar, mesmo firme, a escola pendenga. Comer, mesmo fria,
a marmita amassada e procurar, mesmo com uma enorme
coleção de nãos. Nunca desisti de me encontrar e continuava, de alguma forma, lutando por aquilo que acredito.
Não é pecado ter a barriga vazia, mas a mente sem ideologia é quase um crime, se não te leva para o mundo do
mesmo. A minha pequena trajetória passou a ser exemplo, citada com a de outros parceiros que também tiveram caminhos parecidos, mas que sempre foram firmes
ao dizer não para os convites às drogas e sim para o convite às leituras. Dispor ideais escritos por mim nem sempre era uma tarefa fácil. Muitos passavam para uma fase
402
Traficando conhecimento
comparativa do tipo: “Mas na sua casa tem tal coisa.
Mas você pode fazer tal coisa. Mas você tem apoio”.
Optei, então, por usar e casar, textos e relatos meus
com os de outros escritores que tem a mesma situação.
Pareceu funcionar e, através de blogs e mesmo do orkut,
que não gosto, mas acho uma ferramenta de inserção e
até mesmo de divulgação, os jovens, e até as garotas,
que, como nas crews, passaram a aparecer um tempo
depois, formaram uma integração e listas de discussões sobre os textos.
Citar MV Bill e Racionais MCs, rapper e grupo dos quais
todos tinham bastante afinidade por conta das letras
também se tornou uma ferramenta importante, até porque, ambos já participaram de saraus, livros, prefácios
e tudo mais. A literatura e a leitura, até então vistas
como chatas, se tornavam coisas importantes porque
os “espelhos” também estavam praticando.
Algo que sempre fiz questão de ressaltar foi um pouco
da vida e luta dos meus pais. Aposentado no ramo da
metalurgia, meu pai começou a trabalhar aos seis anos,
quando levava marmitas, vendia bucha de aço na feira e
ajudava os pais com o orçamento doméstico. Nas horas
vagas, catava balas de goma descartadas ao lado de
uma fábrica. Nunca teve qualquer luxo. Estudou até o 4º
ano primário e fez de tudo para me dar estudo. Sempre
gostou de ler, fazer palavras cruzadas e tem uma mente
incomum para resolver problemas e praticar a honestidade. Enfrentou problemas na capital paulista como
qualquer pessoa pobre enfrenta. Hoje, continua vivendo
em um local pobre, não tem plano de saúde e com diversos problemas, enfrenta horas para ser atendido.
Já minha mãe cresceu sem mãe. Criada pela avó analfabeta até os 13 anos, ficou sozinha no mundo. Também
trabalha desde os 6 anos. Passou fome. Comeu restos
Estatística
403
de lixo para encher a barriga. Orgulha-se de nunca ter
usado drogas e de ter parado de fumar, vício que adquiriu por achar “chique”, ainda adolescente.
Cuidou/cuida dos familiares, até hoje. Tentou a sorte em
São Paulo no ramo da metalurgia, vivendo no caos do
transporte público, nas horas intermináveis trabalhando
feito máquina e botando brioche na mesa do patrão,
retornou a Poços e nem tanta coisa mudou. Assim como
meu pai, cursou até o 4° ano primário e, nas horas vagas,
quando termina de cuidar da casa e preparar a minha
marmita, se senta e lê tudo que encontra pela frente.
Diante das pequenas passagens, que faço questão de
contar para que todos os jovens saibam que as dificuldades existem na vida de todo mundo e que os caminhos
somos nós mesmos que traçamos. Basta termos força
de vontade e discernimento para mudar a própria periferia e as oficinas caminham de forma mais produtiva.
Por falar em produção, após dois anos de trabalho com
as oficinas, somente quando elas se tornaram itinerantes
e através da internet foi possível ver o empenho e desejo
dos garotos em produzir textos. Com o ingresso de garotas
nas oficinas e encontros, a produção ficou ainda maior.
Não sei se são mais sensíveis, mas o fato é que passaram
a escrever ainda mais. Muitos questionam, perguntam,
especulam: “O que pode virar conto, texto, notícia?”
Respondo que as cenas inéditas no papel e cansativas na vida são ótimos começos: a goteira que pinga na
cama, o vizinho que ninguém quer ter, o invisível que ninguém quer ver, o mendigo que todos tropeçam e as crianças que já não sorriem. O pessoal quer saber se relatar
a própria vida funciona... Não existe fórmula e, pelo fato
da literatura estar às margens, tudo vale.
404
Traficando conhecimento
Alguns, que já desistiram da escola, passam a ler bastante e pensando em escrever, ignoram o analfabetismo
e pensando bem, ler e escrever são brindes em um país
de estatísticas. O último levantamento feito pela Secretaria de Promoção Social mostra que a cidade tem cerca
de 500 analfabetos. Menos de 1% da população. E esta é
mais uma estatística, que me inspira um texto. Bem real:
Invisibilidade
Por Jéssica Balbino
O cheiro da sujeira misturada com a pobreza é insuportável. Permanecer poucos minutos nos dois cômodos da
casa é sufocante. As garrafas pet, sapatos velhos, pedaços de madeira, de ferro e muito papel ficam empilhados
e obstruem a passagem para os demais cômodos e dão à
casa um aspecto de aterro sanitário.
Quando é questionada sobre o porquê de tanta sujeira
acumulada, ela tenta se defender e, enrolando a língua,
tropeçando nas palavras, diz que não vai se desfazer de
“suas coisas”, que, para quem observa do lado de fora
(tanto da casa como daquele mundo), não passa de um
monte de lixo e um convite para focos de dengue. É quase
incompreensível o que ela quer dizer. Ela é surda. E, por
ter nascido assim, não aprendeu a se comunicar. Por
causa disso é analfabeta e, dentro desta situação, se
transforma em mais uma estatística. Ou em muitas.
Brasileiros que recebem benefício por incapacidade de
trabalhar. Brasileiros que vivem em situação de risco. Brasileiros que são completamente analfabetos. Brasileiros
que ganham apenas um salário mínimo. Brasileiros que
pagam aluguel. Brasileiros que não podem se alimentar
de forma decente. Que vivem sem higiene. Que tem problemas mentais. Que se transformam em mais um ou são
divididos em vários, por categorias, deixando de pensar,
sentir e, até mesmo, de existir. Vira apenas um número.
Estatística
405
Transforma-se em uma pessoa inválida de guerra, mas
é uma guerra urbana e social, que deixa sequelas de
variados tipos. Ela se transforma em uma aleijada, tipo
aqueles que se arrastam pelas ruas da cidade com seus
passos incertos queixando-se dos muros invisíveis, que
os impedem de serem pessoas – seres humanos.
A maior tristeza que me invade repentinamente, várias
vezes ao dia, é a lembrança de vê-la olhando o jornal e
tentando compreender quais eram as notícias que aquelas folhas impressas com letras, fotografias e infográficos traziam e que, para ela, fazia parte de um mundo
ainda mais distante.
Entristeço-me cada vez que lembro de como deve ser
duro o dia a dia de quem não entende as letras. Penso
que seria, então, um desperdício não incentivar a leitura
daqueles que podem ler e não o fazem.
Todas as vezes que me deparo com esta realidade,
lembro-me da história contada por meu pai. Cheio de
emoção e, também, de angústia ele sempre relata que a
mãe dele – a avó que não tive a oportunidade de conhecer – certo dia estava folheando uma revista de cabeça
para baixo. “Foi duro ver aquilo”, ele sempre comenta,
quando conta a passagem.
E voltando à dona de toda a bagunça – lixo – acumulada em uma pequena casa, por se encaixar em tantas
estatísticas e ao mesmo tempo ficar do lado de fora dos
padrões impostos pela sociedade, foi despejada do local
onde vive sem direito à defesa. Foi atropelada. Não há
quem queira cuidar até que ela se recupere.
Nunca fez mal para ninguém. Nunca teve desejo de riquezas materiais. Nunca desejou ter mais do que tinha. Nunca
conseguiu expressar sua indignação diante de um mundo
“injusto”, que escraviza quem já nasce condenado, por
nascer no meio de pobres e da pobreza. Nunca conseguiu
construir uma identidade. Nunca conseguiu comer carne
todos os dias. Nunca conseguiu se desgarrar da cultura
406
Traficando conhecimento
negra, como foi ensinada – embora sempre tenha sido loira
de olhos claros – nunca conseguiu se “divertir” da forma
como dita a sociedade. Nunca conseguiu ser “alguém” e,
mesmo sendo taxada a vida toda como “ninguém”, teve
quem chorasse quando a notícia chegou: ela seria internada em um hospício. Não, nunca foi louca. Apenas surda
e analfabeta. Quando foi comunicada, não conseguiu dizer
o que pensava, apenas repetia, da mesma forma enrolada
de sempre: “Não quero ir. Não quero.”
Mas, novamente, a invisibilidade social fez com que as
palavras, desejos e vontades dela não fossem respeitados. Todos decidiram o que para eles, seria melhor
para ela, sem saber que ela era feliz da maneira como
vivia. Antes de se despedir, pediu que quem estivesse
chorando enxugasse as lágrimas, prometeu ficar bem
e finalizou: “Deus é grande.” Saiu e continuou invisível.
Todos seguiram suas vidas. Ah, a propósito, ela tem um
nome, embora nem todos se recordem ou se dirijam a ela
da mesma maneira. Geralda Dionésia de Jesus1. E ainda
acredita neste último, embora pareça que ele não acredita muito nela. Continua analfabeta.
O fato de, como no Chico Rei, inserir outros elementos
do hip-hop nas aulas e oficinas só foi positivo para a evolução. Entre uma oficina e outra, a produção literária só
foi crescendo e em comunidades, orkut e blogs é que os
jovens passaram a divulgar os próprios textos.
As garotas tratavam de sentimentos, de letras de músicas, de histórias de amor. Os garotos de descaso, de
problemas sociais, da própria vida. Atitude, assim eles
autodefiniam o trabalho que estavam fazendo. E assim,
realmente, é! Muitos voltaram a estudar, trocaram as
horas de bar e sinuca pelo cinema, pela música, pelos
ensaios, pela produção de novas bases.
1 Texto escrito poucos dias antes de Geralda falecer de forma misteriosa,
em um hospital, sozinha, em uma cidade vizinha. Foi enterrada com marcas
roxas no pescoço e sem laudo médico.
Estatística
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Estatística
Sem parada
O bonde não para. Esta é uma das frases preferidas de
quem está inserido no hip-hop. Trata-se da letra de uma
música de MV Bill que é usada com muita frequência
para aludir que, quem está do lado de dentro da cultura
marginal, não pode estacionar.
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Durante o mesmo período, na capital mineira, onde o rap
ainda é o elemento mais forte da cultura hip-hop, devagar, o conhecimento foi tomando espaço e em tempo
simultâneo o grupo Elemento.S, que, em 2007, havia
pedido para gravar um texto como música, participou de
um sarau no Palácio das Artes.
O evento conhecido como Terças Poéticas, pela primeira vez, reuniu grupos de rap e empurrou a Literatura Marginal elite adentro. Bruno, conhecido como MC
Budog, se uniu aos integrantes Pquena e Rapper Julim
e, com roupas em alusão aos mendigos, leram e encenaram o texto “Olhar para o hip-hop que ...”, publicado
no “Suburbano Convicto”.
Estar em movimento significa fazer algo em prol da
própria quebrada. Mudar a realidade que contorna os
problemas enfrentados na periferia. Há nove anos na
estrada o grupo UClanos, os tios do hip-hop, conseguiram, por meio de uma audição realizada em Poços, participar do programa Astros, do SBT, onde ficaram entre
os três melhores grupos.
Pois é, estávamos vencendo as barreiras geográficas e
do sul do Estado, estava na capital, interagindo com a
sociedade por meio de um texto escrito as pressas para
ser a introdução do livro-reportagem do TCC. Bruno
explicou que o CD estava em fase de produção e que,
em breve, a música estaria pronta, mas fez questão de
filmar a leitura do texto e colocar no youtube. Assim,
mais uma vez, a internet ajudou na divulgação, nos
incentivando a praticar o 5º elemento.
Pela primeira vez conseguiram cobertura de todos os veículos locais e chamaram ainda mais atenção por serem
um grupo de rap, estilo pouco apreciado em competições
e, mesmo assim, terem alcançado uma boa colocação.
Com as portas abertas por conta da participação, ficaram em primeiro lugar no Festival Rap Popular Brasileiro
de Belo Horizonte, como em uma seletiva para o Festival Hutúz no Rio de Janeiro. Para fortalecer, não apenas
o profissionalismo como a amizade, me apresentei como
assessora de imprensa deles e todos ganhamos.
Por ser um evento tradicional na capital, mais de 150 pessoas frequentam o sarau toda semana e saber que o texto
chegou a todo este público foi um ponto bastante importante. Objetivos alcançados. Disseminação de conhecimento e de informação. Lembro do primeiro contato com
o Bruno, quando ele pediu o livro, disse que o que estava
escrito estava mudando a vida dele, que ele queria ler e
conhecer, cada vez mais, sobre a própria história. Como
um filme rápido, enquanto eu assistia a apresentação,
repensava em toda trajetória e enfim, sorri realizada.
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Traficando conhecimento
Como uma maneira de fortalecer o trabalho, fiz uma
matéria que consegui publicar no Mantiqueira e, também, no blog. Confira:
Literatura Marginal entra pela porta da frente no Palácio das Artes em BH
por Jéssica Balbino
Na última semana o MC Budog, 25 anos, do grupo de rap
mineiro Elemento .S participou do evento Terças Poéticas
no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Com os integrantes Pquena e Rapper Julim, o texto “Olhar para o hip-hop
que...”, escrito por mim, do livro “Suburbano Convicto”
foi lido pelo grupo, que caracterizados e em uma performance singular, fizeram uma cena impossível de deixar o
público calado, ou alheio.
Jéssica Balbino - Como funciona o evento?
Budog - O evento se chama Terças Poéticas, é realizado
todo ano nos jardins internos do Palácio das Artes, em
Belo Horizonte, local de grande nome e difícil acesso
aos eventos da cultura hip-hop, mas graças a Deus e ao
esforço dos artistas, as portas para a cultura estão se
abrindo! Os artistas passam por uma seleção e tem um
espaço para estar divulgando seu trabalho, lembrando
que está é a primeira vez que a cultura marginal, ou
melhor, a literatura marginal teve seu espaço e continuaremos batalhando para conquistar cada vez mais.
Como disse a jornalista Janaina C. Melo (Mina Jana) e
Ice band: “O hip-hop entrou nos jardins do palácio pela
porta da frente, da próxima vez, estaremos no Teatro do
Palácio e seremos convidados a entrar.”
Jéssica Balbino - Foi a primeira vez que vocês participaram do evento?
Budog - Sim. Através do rapper Ice Band e de sua esposa,
a jornalista Mina Jana, que abriram esse espaço não só
para o grupo Elemento. S, mas para vários artistas mos-
Estatística
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trarem sua literatura marginal como: Blitz (Crime Verbal),
Leo (Comando Rap Mineiro), Arte Favela, Coletivo Voz,
Gen (Retrato Radical), Black W, Kadu (S3M). E teve, também, uma apresentação do Artista “Novato”, um grande
nome na literatura marginal em Minas Gerais.
Jéssica Balbino - Como foi a performance feita pelo
seu grupo?
Budog - Olha, foi muito louca a performance, mas vou
avaliar de uma forma geral. Seguinte, Ice band abriu o
espaço para todos nós, como disse anteriormente, e em
cima disso ele montou um único espetáculo com todos
os grupos, vestidos como marginais. “Assim a sociedade
julga, né? Apenas pela aparência.” Mas então, estávamos
a maioria de touca cobrindo a face, outros de óculos escuros, jaqueta, alguns sem camisa, pois estava amarrada
em seu rosto cobrindo toda a face. A ideia foi causar um
impacto no público e mostrar que o marginal que eles julgam, também tem talento, e que não deve ser julgado pela
aparência e sim, pelo caráter e pela sua atitude. Enfim, a
performance, em geral, foi um sucesso, foi mil grau!
Jéssica Balbino - Parece que rolou uma homenagem
aos nomes da cultura hip-hop e literatura marginal que
já se foram? Como foi?
Budog - A apresentação foi um tributo feito aos artistas
da cultura hip-hop que já se foram. Cada poeta ao finalizar
a literatura, poesia, prestava a sua homenagem aos mesmos, vitimas do descaso, do sistema, do crime etc. “Acho
que o motivo da morte não importa, são todos guerreiros.”
Alguns citados foram: Anita Motta, Duke (Retrato Radical),
Sabotagem, Alex F(Sistema Negro), Chacrinha(Decreto
Verbal) e vários outros artistas importantes que, com certeza, estão no coração de todos nós!
Jéssica Balbino - Como o público reagiu?
Budog - Eu achei que o público iria reagir de uma forma
preconceituosa, mas não! Fomos recebidos com palmas
414
Traficando conhecimento
e bastante barulho. Ao final de cada literatura, o público
aplaudia, alguns gritavam “Bravo! Bravo!” Por incrível
que pareça, fomos muito bem recebidos no Palácio das
Artes, alguns podem pensar assim ao ler essa entrevista:
“Que bosta, no palácio das Artes, até parece!” Mas para
todos nós é mais uma vitória, também para a cultura
hip-hop, são mais portas se abrindo para a periferia e,
com certeza, isso é muito importante.
Jéssica Balbino - Como você avalia sua experiência?
Budog – Nossa, sem palavras. Primeira vez que recito um
poema, que participo deste tipo de evento apesar de já
estar envolvido no rap que também é poesia, mas dessa
forma sem beat, sem DJ, foi a primeira e confesso que
gostei! Recitei, junto com meu parceiro Rapper Julim, a
sua poesia “Olhar para o hip-hop que...”, eu a gravei com
base, com melodia, mas recitar foi diferente. Comecei a
recitar, aí, do nada, me deu uma vontade de falar cada
vez mais alto, às vezes suspirava, falava mais baixo, é
inexplicável, foi ótimo. Muito interessante!
Jéssica Balbino – Tem algo que não foi perguntado, mas
que você acha importante destacar?
Budog - Agradeço à você, Jéssica, e também à Anita
Motta (in memorian), pelo apoio e por ter confiado no
nosso “trampo”, por ter cedido a sua literatura para gravarmos como introdução do nosso CD e por permitir que
nós, do grupo Elemento. S, possamos recitá-la pelas ruas,
palácios, periferias etc. Agradeço ao Centro de referência
Hip-Hop Brasil pelo apoio e pela oportunidade e, ainda, à
coordenação do evento Terças Poéticas. “Não julgue pela
aparência, julgue pelo caráter.” Aos guerreiros in memorian: “Perde-se um homem na Terra, mas ganha-se um anjo
no Céu.” Descansem em paz, sua missão foi cumprida!!!
Sem parada, o contato firmado com grupo UClanos permite que eu vá a vários eventos e fique sempre próxima
do público que trabalho em oficinas e encontros literários.
Estatística
415
Como o projeto Cultura Marginal tem tudo a ver com a oralidade, o registro do 5º elemento em uma música foi ao
encontro da ousadia de Suburbano, que fez questão de
cantar a história do hip-hop e ainda teve a sensibilidade de
me agradecer, sendo que eles é que sempre me ajudaram.
“Obrigado Jéssica, pelo seu trabalho, com o hip-hop, meu
pit stop, onde eu me abasteço (...)”, assim canta Suburbano na canção “É tudo nosso”, parte de um projeto, também do grupo.
A Cultura Marginal em versos, de Poços para todo o país.
Assim aconteceu a divulgação. Em uma outra música,
cantando, o grupo defende a história do hip-hop e pede
respeito. “Respeite o próximo, também é nosso, se você
pode, eu também posso”, cantou durante o show do
UClanos no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Escolhidos para abrir o show de MV Bill e Racionais MCs,
o clã de suburbanos se deixa levar pela magia existente
debaixo da lona do Circo Voador. É fácil ser sentida e
vários grupos conseguem curtir os embalos da noite. A
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima
entre os afrodescendentes e a utilização de um espaço
“nobre” no centro da cidade registra também uma nova
fase da história da cultura hip-hop.
“Soul, black, funk, afro... Sou da beleza negra”, assim o
show é aberto na marcante voz de Lu, que, no palco, se
transforma em Lu Afri e exibe, diferente de outras vezes,
um penteado black power que lembra a força do movimento nos anos 1970. Pela fisionomia de todos, penso
em como aquele momento é importante. Revejo, mentalmente, toda a trajetória do grupo, cheia de dificuldades,
desencontros e, agora, uma vitória. Quando o Flávio, que
no palco se transforma em Suburbano, exibindo inclusive o pseudônimo em uma tatuagem, pega o microfone
Estatística
417
e faz questão de dizer que é muito satisfatório estar no
Hutúz e, mais ainda, no Circo Voador, lembro que muitos artistas como Cazuza, Lobão, Capital Inicial e Legião
Urbana começaram a carreira debaixo da lona, inicialmente, para 50 pessoas e posteriormente para 3000.
Incrível. Assim pode ser descrita a cena do grupo sobre o
palco, cantando o cotidiano poços-caldense para gente
de todo país em um grande festival de rap. “Mesmo sem
qualquer apoio do poder público ou da iniciativa privada
da nossa cidade, estamos aqui hoje, cantando para
vocês e é um orgulho muito grande”, fala Bebeto, que no
palco transforma-se em MB2, ao microfone, lembrando
como tem valor um microfone na mão de um MC. Assim
pode ser notado pelos gritos da plateia e pela agitação.
Deduzo que isso acontece porque todos têm histórias parecidas e vêm de periferias, que, como diz Mano
Brown, são assim em todo lugar. Canto e danço ao som
de rimas e refrãos que acompanho desde que conheço o
hip-hop e que dizem tanto sobre mim como sobre qualquer pessoa que acompanha uma cultura popular.
Todos os suburbanos que viajaram conosco estão envolvidos pela magia que é ver um grupo da nossa própria
quebrada no palco do Circo Voador, entoando para o
Rio de Janeiro o som produzido na periferia de Poços de
Caldas. Paralelo ao show, b.boys dançam em um palco
alternativo, outros grupos cantam e MC’s se confrontam
em batalhas de rimas, lembram os primórdios, resgatam
a ancestralidade afro e levam para todos os presentes o
valor da cultura negra, dos quilombos.
O meu estado é de euforia total. Superemocionada circulo por todo o espaço e me lembro que a prática oral
de expressão acompanha a evolução da humanidade
e que, naquele momento, estávamos todos vivendo a
418
Traficando conhecimento
nossa história. No centro do Rio de Janeiro, um bairro
boêmio, em um espaço consagrado artisticamente, raps
da nossa realidade, pessoas próximas e o hip-hop puro
transformam as atividades em paz.
“Respeite o próximo, também é nosso, se você pode, eu
também posso”, canto durante o show. Quando abro os
olhos, após ter dançado sozinha e embalada na letra,
me deparo com um garoto na minha frente. Sei que já vi
o rosto dele em algum lugar, mas levo alguns segundos
para me lembrar de onde o conheço.
É ele. Parto para um abraço sincero e carinhoso, que
parece de saudade. Mas, como podemos sentir saudade de alguém que nunca vimos pessoalmente? Nesse
caso é normal. Trata-se de Bruno Eustáquio, conhecido
como Budog MC. Importantíssimo na minha vida por ter
gravado um texto meu como introdução do CD Demonstrativo do grupo Elemento.S, é uma grande satisfação
encontrá-lo pessoalmente.
Ganho um CD, com dedicatória, e uma homenagem para
Anita Motta (em memória) no encarte do álbum. Fico
extremamente feliz por saber que ele está distribuindo
as cópias no Hutúz. Ele pede licença e se afasta para distribuir outras cópias. Afasto-me de choro sozinha. Feliz,
completa, realizada. Neste instante, lembro e canto
mentalmente “tua ausência fazendo silêncio em todo
lugar”, música do Teatro Mágico que, embora não seja
gravada sobre bases de rap, também mistura ritmo e
poesia. Apesar de todo o som rolando, sinto o silêncio da
ausência dela, que poderia estar ali, naquele momento,
somando e curtindo conosco, se emocionando, também,
por ouvir um texto transformado em música.
A “conquista” surgiu naturalmente. Assim que Bruno leu,
em um site, que eu era uma das autoras de um livro sobre
Estatística
419
hip-hop, com textos sobre a periferia de Poços de Caldas, me pediu uma cópia, que, prontamente, lhe enviei
por e-mail. Na época, em 2007, trocávamos e-mails quase
diariamente, quando ele me dizia o que estava achando
do livro e o mais emocionante, comentava que a literatura
e o hip-hop estavam mudando a vida dele para melhor.
Em determinado momento ele me pediu permissão para
usar o texto de abertura do livro, que, posteriormente, foi
usado em uma coletânea de textos de autores periféricos, para fazer a abertura do CD que ele preparava junto
com o grupo. Permissão dada. Mais de um ano depois
recebo via MSN um arquivo em mp3 com a música, que
marca a introdução do álbum demo do grupo.
Extasiada pela noite de hip-hop, só consigo chorar,
quieta no meu canto, pois uma balada precedida por
uma viagem de quase oito horas, um passeio pelo Rio
de Janeiro histórico e um encontro com a essência da
cultura nascida nas ruas e que faz parte do meu dia a
dia periférico, é inesquecível.
Um tempo depois, que não sei precisar quanto, enxugo
as lágrimas, procuro o Bruno, agradeço de forma decente
e recito, mentalmente, o texto, que foi escrito às pressas, em uma noite chuvosa do mês de outubro de 2006,
quando precisava de algo como introdução para o livro e o
diagramador precisava terminar aquele trabalho.
Na sequência, me sento na escadaria que dá para o palco
e apenas ouço o show do MV Bill e um trecho do show do
Racionais MC’s, feliz pelo momento, pela conquista e pela
experiência que posso levar para a minha quebrada e trabalhar lá, reunindo os elementos do hip-hop, que buscam
congregar os perifericamente excluídos de todo país.
Com a gravação da música, mais uma prática oral pode
ser incorporada a oficinas e encontros com jovens.
420
Traficando conhecimento
Resultados. Apresento-a como o resultado de um trabalho de tantos anos. Viver, conviver, me inspirar, escrever
um texto, publicar, divulgar e posteriormente, vê-lo gravado como música.
Quer orgulho maior? A quebrada de Poços de Caldas já
tinha chegado em Belo Horizonte e, agora, estava invadindo o Rio de Janeiro. Com vários CDs demo na bolsa,
Bruno distribuiu todos eles entre pessoas de diversas
partes do Brasil. Mesmo sendo uma cópia demonstrativa fiquei absurdamente feliz por ver meu trabalho
circulando.
Fiz questão de reportar a gravação da música no jornal
e, como os contatos são tudo na vida... A Kaká Soul, irmã
de hip-hop, de TCC e de ideais, me pediu um texto para
o marido dela, Alemão. Ele estava entrando em estúdio
para gravar o CD Identidade e queria uma introdução. Saiu
o texto abaixo, que entrou para o CD e desta vez circulou
no centro-oeste brasileiro, na cidade de Goiânia (GO).
Favela – Identidade
Lá está ela, que vem, que fica.
Conhecida por seus vários nomes. E pode ser gueto, arrabalde, subúrbio, periferia ou favela.
É a cultura das ruas, do povo, surge nos locais mais pobres,
através de rima em um estilo único, misturando formas,
injustiças, cor, desigualdades, paz, dor, amor, guerra,
personagens reais, diversão, miséria e união, assim vem a
identidade da favela, do rap, do hip-hop...
Um caldeirão de misturas e contrastes, que trazem uma
identidade ilustrada por pessoas cercadas pela miséria
combinadas com as batidas do rap, os discos arranhados
dos Djs, os passos quebrados dos dançarinos, nos chãos
Estatística
421
das favelas e o colorido do grafite, que vem, de alguma
forma, colorir a vida periférica.
Aí está a identidade dos excluídos, com suas expressões
artísticas marcantes, que refletem as expressões desenvolvidas a cada dia, atrás da vontade de mudança que
ecoa dos becos e vielas.
A alma do povo que arde nos locais mais pobres, clamando por socorro, vem do lado negro e inferiorizado,
batendo de frente com uma sociedade que se faz de
morta para esta identidade que movimenta-se em seus
contrastes a cada dia, fazendo vibrar o grito desesperado que vem dos guetos.
Sonhos embalados com som de tiros e barulho de fome,
roncando no estômago, registram a identidade, sofrida,
da periferia.
Seja onde for, marcada pelo tráfico, pelo medo e pelo
desrespeito. Ritmada por letras de rap refletem a violência, as drogas e o domínio dos que se julgam mais forte.
Através das misturas controversas, a favela encontrou no
hip-hop um fio de luz que traz a vontade de viver, crescer,
mudar e transformar o gueto num local mais humano, com
uma identidade.
Estatística
Beatz
Um pouco diferente e organizado por outras pessoas
da cidade, um evento de hip-hop gospel foi organizado
também na Zona Sul da cidade e, conforme uma das
organizadoras detectou, o local foi escolhido por ter
uma presença maior de adeptos e mais necessidade de
formas de diversão.
Assim, o evento acontece em uma noite de sábado, talvez mais uma noite qualquer, em uma periferia onde
todas as noites são iguais. O que incomoda é o frio do
final do mês de maio. O vento vem gelado, e, para os
jovens se aquecerem e aguentar mais uma noite fora de
casa, só mesmo o álcool em bebidas.
Em um salão já bem gasto pelo tempo de uso, alguns
jovens fecham-se em rodas e praticam o break, enquanto
o MC Chicão, cantor de rap faz a sua rima no palco,
acompanhado pelo DJ Scooby em sua performance. Eles
integram o grupo carioca Manuscritos. Em meio a um
freestyle, eles levam até os jovens as palavras da bíblia,
referindo-se à Deus. Algo novo, e até um pouco estranho,
principalmente para a sociedade que encara o hip-hop
como uma cultura marginal e desvairada, longe de Deus.
No entanto, o evento, chamado Beatz é exclusivamente
de Holy Hip-Hop. Nome que vem do inglês Holy Spirit
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425
— Espírito Santo. Aqui no Brasil atende também por hiphop gospel e recebe a cada dia mais adeptos, cantando
as dificuldades da classe menos favorecida, dos guetos,
e pregando as palavras bíblicas.
Enquanto os grafiteiros Gal e Eco finalizam a arte que
mostram dois caminhos possíveis de se escolher entre
o crime e o conhecimento, dois jovens aproximam-se do
palco e ajoelham-se perante ele, tiram os bonés e pedem
benção ao Senhor. Sendo, desta forma, abençoados pelo
MC Chicão, que é, também, diácono da igreja que frequenta, Assembleia de Deus.
Participantes de um evento de hip-hop gospel, os grafiteiros presentes também são religiosos, e seguem Deus.
Eco já passou por experiências marginais na vida e conta:
“Antes de começar com o grafite eu pichava muros,
naquela época, eu fui até preso e passei altos sufocos.
Hoje já passou tudo, chegou uma época em que tudo aqui
começou a me fazer mal. Estava fazendo grafite de uma
forma errada, marginalizada, então comecei a buscar o
lance da verdade. Foi na época que comecei a ler a bíblia,
comecei a praticar e ter experiências com Deus.”
Gal também tem uma postura parecida e considera:
“Não faço parte do hip-hop, mas acompanho o Manuscritos porque somos amigos. Além de estar fazendo o
grafite, nosso objetivo é passar uma mensagem do bem.
Não é pregar religião, é, de repente, a questão espiritual
do bem-estar social.”
Quando questionado a respeito do que é exatamente o
hip-hop gospel, MC Chicão afirma: “Deixe-me fazer um
pequeno resumo, o hip-hop é um lance que os negros
dos EUA usaram para poder protestar, reclamar, aquilo
que eles não conseguiam fazer apenas com as palavras.
Eles usavam isso para passar as informações e fazer as
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Traficando conhecimento
pessoas refletirem naquilo que acontecia na realidade
deles. Nós estamos fazendo a mesma coisa. A gente
passa a informação a fim de fazer as pessoas refletirem naquilo que nós vivemos. O que nós vivemos? Uma
vida diferente, com Cristo (...). A gente usa o hip-hop para
falar do amor de Cristo, para pregar o evangelho, é basicamente isso.”
Ao mesmo tempo, enquanto os organizadores do evento
vibram por verem jovens convertidos, do lado de fora do
ginásio alguns deles estão bebendo “tubão”, uma famosa
bebida entre os jovens da periferia, resultado da mistura de pinga com refrigerante. Estes jovens entornam a
bebida, falam muito palavrão misturado às gírias e sequer
param para admirar o grafite que está sendo finalizado.
A festa prossegue, as rachas de break continuam entusiasmando. Os moradores do bairro achegam-se para
“dar uma olhada” no evento. Do lado de fora do portão
do ginásio os policiais “guardam” a segurança com as
armas de fogo em punho.
O grafite fica pronto, o MC Chicão e o DJ Scooby finalizam a mensagem, mandando muita paz e fé em Deus.
Assim como o hip-hop convencional, o gospel também
é baseado em protesto e resistência, mas é transmitido
de uma forma diferente, por outros canais, utilizando a
linguagem bíblica, pregando o evangelho.
MC Chicão conta que, antes de se converter, ele era
“do mundo”, como os evangélicos costumam dizer, ele
fumava, bebia e tinha uma vida como a de muitos outros
hip-hoppers. “Pude ouvir a voz de Deus falando comigo
‘o que você tá fazendo aí?’ Então, percebi que podia usar
o dom que Deus me deu para louvar o nome Dele como
forma de agradecimento. Para mim o hip-hop é isso,
expressa minha vida em versos e melodias.”
Estatística
427
O público presente no evento começa a sair pelas laterais
do ginásio, e a festa chega ao fim com meia dúzia de pessoas. Os viajantes, que acompanharam o grupo Manuscritos, fazem pose em frente ao grafite recém-pintado.
Um dos jovens que se converteu há poucos minutos vem
querendo tirar uma foto, em uma mão ele segura um
cigarro aceso e, na outra, a bíblia. Parece estar bêbado e
sem coerência no que diz, mas promete, com a voz elevada,
que daquele momento em diante, será uma nova pessoa,
seguidora de Deus. O grupo aplaude, e sai contente por ter
conseguido tocar o coração de alguém que estava ali.
Do lado de fora, a festa continua, ainda com muita
bebida, “tubão” e drogas. Os viajantes sobem no ônibus
e deixam o bairro periférico, os vizinhos voltam para suas
casas, e os policias continuam empunhando armas, rondando toda redondeza.
Aquele sábado frio continua sendo apenas mais um
sábado frio, sempre com rap, mesmo que, desta vez, um
rap convertido, mas a trilha sonora é a mesma, a falta
de sonhos, maior. É, justamente, nesta falta de sonhos
que a Cultura Marginal trabalha. Por meio do hip-hop –
seja gospel ou não – e da literatura, promove a autoestima destes jovens que para aquecer o corpo e a alma
usam bebidas alcoólicas. O intuito é que eles usem as
letras, os poemas, o conhecimento e a sabedoria para
aquecer os sonhos, em fogueiras que queimem apenas
os desafetos, o preconceito e o comodismo. Que das cinzas renasça a vontade de mudança, o caminhar rumo à
positividade e forças para realizar desejos.
Desta vontade surge, então, um novo projeto dentro do
Cultura Marginal. Um subprojeto que, talvez, tenha mais
alcance e se destaque até melhor.
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Estatística
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Estatística
Passa Livros
“Também quero doar livros e fazer o saber circular. Como
eu faço?”, pergunta, surpreso o operador de hidroelétrica Paulo César Alexandre, ao ser abordado com a pergunta “Você aceita um livro?”. A cena, pouco comum, foi
protagonizada por muitos rostos anônimos que circulavam pelo Terminal de Linhas Urbanas em uma manhã
nublada e chuvosa de quarta-feira. O projeto “Passa
livros” é adotado pelo Cultura Marginal e ganha mais
edições e novos colaboradores.
Em vez de oferecer esmolas, oferece livros. Exemplares
de romances, clássicos, históricos, livros-reportagens
e técnicos são distribuídos gratuitamente a quem quis
receber uma história ou informação nova. Na cidade,
a ideia foi colocada em prática pela pedagoga Angela
Caruso, que em uma das manhãs mais frias do mês
de julho de 2009, quando o termômetro localizado em
frente ao prédio da Thermas Antônio Carlos marcava 10
graus, ela se dispôs a carregar uma pilha de livros sobre
temas diversos pela praça Pedro Sanches e foi, lentamente, abordando várias pessoas e entregando a elas,
gratuitamente, os exemplares que incluíam todo tipo de
estórias e também histórias.
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Quando tomei conhecimento do projeto, propus uma
reportagem para o Jornal Mantiqueira e, encantada por
mais esta forma de distribuir o saber, aderi na mesma
hora. Naquele mesmo dia limpei as estantes e ainda saí
pedindo a todos conhecidos os livros que eles poderiam
doar. Aos 47 anos, após ler uma reportagem do jornalista
Rodrigo Ratier, da cidade de São Paulo, sobre um projeto
parecido, Angela sentiu a necessidade de retirar os livros
empoeirados da estante e fazer com que eles pudessem
ser aproveitados por várias pessoas e passados adiante.
“Eu não queria criar uma biblioteca circulante, mas que
as pessoas recebessem o livro e tivessem o prazer e a
responsabilidade de passá-los adiante”, diz.
Por intermédio da revisora de texto do jornal em que trabalho, Delma Maiochi, consegui muitos outros exemplares e levei o projeto para além das praças da cidade. O
Terminal de Linhas Urbanas foi um dos pontos escolhidos, por conta do número de pessoas que circulam diariamente e, também, por serem pessoas de baixa renda.
Com uma sacola cheia de livros, pela primeira vez que
saí às ruas para distribuí-los, parei no local e para brincar, comecei a espalhar alguns livros, que na quarta
capa trazem a mensagem:
“Olá, cuide bem deste livro e após desfrutar desta leitura,
ofereça-o a alguém, aqui mesmo onde o recebeu. Não deixe
que esta história fique aprisionada novamente na estante.
Permita que outros possam ter a mesma oportunidade que
você. Faça as histórias circularem pela praça.”
Pelas muretas, bancos e orelhões do Terminal comecei
a deixar alguns livros. Com a experiência das caixinhas
poéticas, resolvi brincar um pouco e observar a reação
das pessoas. O primeiro senhor que avistou o exemplar
sobre o apoio do orelhão, escolhido, propositalmente, por
ser o do meio, entre outros dois, se dirigiu ao da direita,
434
Traficando conhecimento
olhando desconfiadamente para o livro, como se, de
repente, ele deixado ali, fosse uma brincadeira ou ameaça. Na sequência, uma mulher também olhou para o
livro e se dirigiu para o orelhão da esquerda. Então, uma
terceira pessoa olha para o livro e se aproxima. Trata-se
de outro senhor que, finalmente, vê a mensagem colada
na primeira página. Ele segura o exemplar alguns poucos
segundos e o entrega a uma senhora, que rapidamente
entra em um dos ônibus. Já o artesão Eduardo de Lima
Pereira ficou intrigado quando viu o livro em um dos bancos, folheou, olhou para os lados e então começou a ler
um pouco. “No início eu pensei que se tratava de uma
brincadeira, uma pegadinha e depois gostei da ideia de
ganhar um livro. Vou ler e passar adiante”, comenta.
Ao lado dele, a vendedora Ana Paula Rodrigues já tinha
notado o livro, mas, por vergonha, não pegou. Quando viu
a distribuição, foi até as jovens que estavam distribuindo
e pediu um exemplar. “Vou embora feliz porque ganhei
uma edição. Gostei do projeto, incentiva quem não tem
acesso aos livros”, declara. Já o operador de hidroelétrica Paulo César Alexandre, ao receber das mãos da
jornalista um livro, perguntou se poderia escolher um
exemplar e prometeu: “Tenho vários livros empoeirados
na estante de casa. Vou doá-los ao projeto e, como você
tem o dom de conversar com as pessoas e entregar os
livros, vou ficar feliz com a ação.”
Enquanto ele escolhia um volume, outras pessoas, entre
elas professoras, mães ou apenas passantes se aglomeram e, em pouco menos de três minutos, os livros foram
distribuídos. Teve gente que quis mais de um exemplar.
Outros saíram felizes, já lendo as primeiras páginas.
Passar os volumes literários apenas aos moradores da
cidade vai ao encontro da real proposta, que é dar continuidade ao processo de ler e transmitir o conhecimento
Estatística
435
contido naquele livro a outras pessoas e promover, também, o acesso à leitura, que, ainda hoje, é deficiente no
país, segundo dados da pesquisa Retratos da Literatura
no Brasil, que mostra que entre 95 milhões de pessoas
entrevistas, 45% não são leitores.
A intenção foi expandir o projeto a bairros e comunidades também carentes, e assim está acontecendo. Quero
mudar o cenário da falta de leitura e integrar os livros
a quem não está nas oficinas e também não tem afinidade/interesse com o hip-hop. O intuito é levar os livros
a quem não tem acesso, não conhece ou não frequenta
as bibliotecas por medo, vergonha, ignorância e pessoas
que tampouco podem comprar exemplares.
Enquanto arrecado os livros, lembro de Carolina Maria
de Jesus, que viveu a máxima pobreza no Brasil, sendo
obrigada a revirar os livros para comer, mas que nunca
deixou de pegar, junto com os restos de comida, migalhas de livros e revistas para ler em casa e mesmo sem
dominar a gramática escreveu um relato singular sobre
a favela e fez história no país e fora dele por conta disso.
Penso que, se as donas de casa que são viciadas em
televisão, substituíssem algumas horas do dia pela leitura poderiam mudar a própria realidade periférica que
as circunda. Penso ainda que ganhar um livro assim,
sem mais nem menos, como um ato de gentileza em um
dia chuvoso, em um horário qualquer, pode transformar
o dia das pessoas apenas pela atitude. Se for atrelada
ao conteúdo e à forma de repassar estas histórias pode
sim ser um incentivo.
Logo na primeira vez distribuí mais de cem exemplares
e continuei arrecadando mais. Quero que as pessoas
façam os livros circularem, tirem a poeira e os ácaros da
estante e coloquem o saber nas praças e comunidades.
436
Traficando conhecimento
Não acho difícil fazer isso. Acho que falta vontade e incentivo, portanto, a minha parte está sendo feita. E o mais
bacana é o prazer em poder servir, em poder distribuir os
livros, em ver a expressão de surpresa nas crianças.
Em pouco tempo o projeto ganhou as ruas centrais, onde
um grande número de pessoas circula diariamente.
As abordagens se inverteram e durante a distribuição,
sempre que alguém nos pede esmolas, oferecemos um
livro, que raramente são recusados. Os bairros também
já fazem parte do itinerário por onde as histórias circulam e a intenção é continuar arrecadando cada vez mais
livros e fortalecendo a corrente de conhecimento.
Sempre peço que alguém vá comigo, seja a minha amiga
Juliana, algum artista local para realizar intervenções
urbanas, como entregar o livro a alguém recitando uma
poesia ou pintando poesias com giz na rua e nas praças,
para que sejam apagadas apenas com a chuva. No rosto
de quem recebe as histórias pode se notar a expressão
de surpresa, afinal, por muito tempo, os livros foram
considerados produtos das elites.
Assim, a ideia de que livro na estante só tem vida quando
manuseado e lido por alguém é colocada em prática. O
fato mais marcante foi de uma garotinha, de não mais do
que oito anos, em um dos bairros da região onde moro.
Ao nos ver com os livros nas mãos, começou a nos acompanhar, discretamente, e, depois de algum tempo, nos
observando enquanto entregávamos os livros aos passantes e à outras crianças, começou a chorar baixinho,
um pouco distante.
Intrigada, me aproximei e perguntei o que estava acontecendo. Com vergonha, ela tentou enxugar os olhos
e relutou até começar a falar, que na casa onde a mãe
dela trabalha como doméstica, os dois filhos da patroa
Estatística
437
ganham livros toda semana e que ela gostaria muito que
a mãe dela tivesse dinheiro para comprar histórias coloridas para ela. Na mão, não havia nenhum livro infantil
que eu pudesse dar a ela. Limitei-me a dizer que um dia
ela teria os livros que tanto quer.
Não imagino o que ela pensou em nos ver entregando os
livros à outras pessoas e não à ela, uma vez que tínhamos uma quantia razoável naquele dia.
Quando eu cheguei em casa, olhei para a minha estante
e vi os meus primeiros livros de história e pensei em
levar para ela, mas como ela queria um colorido, aqueles desbotados já não serviriam mais. No dia, estava
dura, mas prometi a mim mesma que no pagamento,
passaria na livraria e compraria uma história bacana
para aquela garotinha.
Quando fui procurar, encontrei uma educativa, sobre
medos. Como o preço era acessível, resolvi levar. Na
dúvida sobre como entregar, decidi que a surpresa dela
e o mistério seriam mais interessantes. Embalei o livro
em um plástico transparente e deixei na porta da casa
dela. Posicionei-me do outro lado da rua, onde há uma
pracinha com bancos e passei a ler o meu livro, ansiosa
pela reação dela quando encontrasse a história. Algum
tempo depois, ela saiu acompanhando a mãe. Por um
minuto, pensei que ela não tivesse notado o embrulho,
mas, discretamente, exatamente como quando chorou
por não ter histórias coloridas, ela se abaixou, pegou o
livro e ficou uns bons segundos olhando o presente, até
que se sentou na beira da porta e começou a admirá-lo.
Não tenho como saber o que ela pensou quando encontrou o livro, nem se ela imagina quem pode ter dado à
ela, mas tenho certeza que consegui fazer mais uma
criança gostar de ler e ter amor pelos livros com este
pequeno presente.
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Traficando conhecimento
Estatística
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Estatística
Palavra cruzada:
literatura e
conhecimento
Conseguir apoio para ações como essas nem sempre
é fácil. Aproveitei os contatos de editoras que tinha
quando trabalhava na livraria e fiz pedidos de doações.
Não importa o tipo dos livros. Importa distribuir o saber.
Até hoje não recebi nenhuma resposta e é impossível
que eu compre os livros para distribuir. Peço a toda e
qualquer pessoa que conheço. Alguns que veem o projeto se interessam e também doam livros. Uma banca
de troca, implantada na biblioteca central da cidade,
também facilita a troca de livros técnicos por literatura.
Eles disponibilizam os livros repetidos do acervo para
troca, assim, todos ganham. Faço várias por semana.
Nem sempre é fácil encontrar os exemplares ou mesmo
agradar. As crianças são as que ficam mais encantadas e literatura infanto-juvenil é sempre complicada de
encontrarmos. Infantil, então, é raríssimo. Mas nenhuma
dificuldade é forte o suficiente para me tirar a vontade
de observar a alegria das pessoas que vivem nas periferias e se sentem “importantes” ao serem lembradas e ao
ganhar algo, sem precisar dar nada em troca.
Em poucos meses, mais de dois mil exemplares já foram
distribuídos pela cidade em vários locais diferentes. Nas
oficinas da Cultura Marginal várias pessoas também
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fizeram questão de ajudar, de tentar arrecadar e isso é
fundamental para o sucesso do Passa Livros. Qualquer
ajuda é essencial.
Assim, uma das minhas patroas – Sônia – se dispôs a
nos ajudar e, como recebeu um número grande de palavras cruzadas de uma editora, para distribuir em um projeto chamado Mantiqueira na Escola, me disponibilizou
mais de cem volumes.
No ato eu já soube onde entregaria. Meu bairro é, e sempre foi, muito pobre. Entretanto, em uma das partes,
construída mais recentemente, a população sofre com
as enchentes, com a falta de assistência, com a falta
de asfalto, de iluminação pública decente, de hospital,
de creche e de escolas. Falta tudo, só não falta vontade
para mudança e, pensando na preocupação de todas
as mães, que fazem de tudo para dar o que comer aos
filhos e ainda mantê-los longe das drogas e da criminalidade, o presidente da Sociedade Amigos de Bairro
(SAB) do local, Élio Ricoy, conseguiu uma sede e, duas
vezes por semana, oferece aulas de capoeira para as
crianças. Ao todo, são 110 que participam das rodas e,
ao som das palmas, ritmadas pelo berimbau, as rodas
com crianças de todas as idades são formadas e já íntimas do esporte criado no Brasil, elas se dedicam aos
movimentos e imprimem cultura popular no quilombo
moderno da periferia poços-caldense.
Além das crianças, são 110 mães despreocupadas com
o que os filhos podem estar fazendo ou se estão na rua.
No local para fazer uma reportagem – pois continuo
encantada pelos que estão às margens e, mesmo assim,
são marcantes – percebi que gostaria demais de ajudar
e oferecer algo também àquelas crianças que, simpáticas, sorriam enquanto eu batia fotos e me rodeavam.
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Traficando conhecimento
O sr. Élio está, a maneira dele, promovendo o resgate destas crianças. Sugeri oficinas do Cultura Marginal a elas,
mas a falta de horários na sede da SAB é um fator que
complica, entretanto, não desisti. Da forma que pude,
separei as palavras cruzadas e, no mesmo dia em que
elas ganharam uniformes doados por uma ONG para praticar a capoeira, levei as revistinhas.
Extasiadas por ganhar duas coisas em um mesmo dia,
elas correm de um lado para o outro e, eufóricas, perguntam sobre as palavras cruzadas, pegam, pedem aos
irmãos e mostram aos pais, loucas para começar a fazer.
Mais uma vez, uma garotinha, de não mais que 8 anos,
chama a minha atenção. Ela me pergunta como fazer
as palavras cruzadas e dispara: “Você pode me dar um
gibi?”. Como eu responderia que não? Claro que posso.
“Eu quero um da Turma da Mônica.”
Não disse nada, mas já comecei a fazer as contas do
quanto vou precisar ter e desembolsar para levar gibis a
eles. Perguntei se ela gostava de ler e a resposta foi afirmativa. Já separei os livros infantis também.
Apesar do Passa Livros ser uma biblioteca itinerante e
circulante com mais impacto do que um simples local
para empréstimos de livro, com as chuvas de verão, já
estava ficando com muitos exemplares doados acumulados, sem ter para onde levar os livros que já estavam empoeirando em sacolas e caixas. Por isso, resolvi
doá-los para a sede da SAB do bairro. Não são tantos,
cerca de 50, mas servem para empréstimos sem prazo,
como o Passa Livros, e ficam dispostos em uma mesinha
existente no local. Quem quiser ler passa por lá, pega um
livro, lê e, quando terminar, coloca no mesmo local. Penso
que é a forma mais democrática de disponibilizar os volumes quando não é possível entregá-los de mão em mão.
Estatística
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Mas gostoso mesmo é ver o empenho de outras pessoas,
de quem já passou pelas oficinas, de quem já conheceu o
universo do Cultura Marginal, que já esteve ligado ao hiphop por meio de algum elemento, enfim, todos que se dispuseram a ajudar a captar livros, a entregar e a recitar e
fazer poesias e textos.
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Traficando conhecimento
Estatística
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Estatística
Rap educativo
“Morrem no Brasil muitos inocentes e os médicos não
dão nada por essa gente. Gripe Influenza, precisamos
liquidar, antes que seja tarde demais.” É com esta parte
de uma música ao estilo do rap que o aluno Malcon Martins Barbosa, 11 anos, divulga um trabalho de conscientização sobre a gripe Influenza A (H1N1) desenvolvido
pela escola municipal Pedro Afonso Junqueira no bairro
Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade também.
O nome de guerreiro, o garoto já tem e, mesmo com vergonhar de empunhar o microfone e mandar a rima feita por
ele, veste-se de coragem e vai, ao som do violão tocado
por outro garoto. Todos os presentes ficam surpresos ao
vê-lo cantar um rap e a professora logo explica que tem
trabalhado as letras das músicas em sala de aula porque
são, justamente, ligadas ao estilo de vida que as crianças
levam. “Ele não fala em outra coisa senão no rap, então,
ninguém melhor para representar a música.”
O trabalho faz parte de atividades lúdicas promovidas pela escola para a conscientização e a disseminação da informação sobre a gripe suína. A letra de rap
cantada pelo garoto Malcon foi escrita a partir de uma
aula de diversidade textual. Satisfeito por ter cantado
e demonstrado um pouco do talento para a escola, ele
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conta que, ao fazer a música, aprendeu que a doença
deve ser liquidada. “Temos que observar as outras pessoas e também compartilhar o conhecimento”, destaca.
De forma tão positiva a professora conseguiu levar para
a periferia algo da periferia e tratar de um tema tão
importante, que, em 2009, tirou a vida de pelo menos
quatro poços-caldenses. Na visita, perguntei à professora se dos alunos apenas o Malcon gostava de rap, e
fomos interrompidas por outro professor que disse:
“Não existe não gostar de rap na periferia”. Fiquei feliz
por ouvir isso de um educador e ver que há gente aberta
em admitir que a cidade com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado tem crianças que
precisam de alguém que fale a língua delas.
Para apoiar a atitude rara por parte dos educadores,
doei os últimos exemplares do “Suburbano” e me dispus a praticar oficinas com aquelas turmas, mesmo que
breves e em horário de aulas. Por ser fim de ano, ainda
aguardo uma resposta e sonho em poder acrescentar
mais a vida destas crianças que já, tão cedo, cantam e
fazem o papel de conscientização.
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Traficando conhecimento
Estatística
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Estatística
Fronteiras
quebradas
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— Eu gosto de escrever, apesar de não gostar de ler. —
diz Danilo.
— Como? É meio esquisito, mas me mande um texto. —
respondo.
— Tenho vergonha.
— Não tenha, enfrente, me mande, é a sua expressão.
Dias depois...
Por mais que um estado esteja separado do outro por
fronteiras geográficas, regionais, culturais, a internet, a
comunicação e o conhecimento provam que elas podem
ser quebradas.
“Pensar, refletir, escrever, sentir e digitar.
Escrevo o que sinto, sinto o que escrevo e depois, é digitar.
Reflito para entrar em uma concordância e aí as palavras
vêm em abundância.”
Este é um trecho de um dos primeiros textos escritos
pelo baiano Danilo Henrique. Aos 21 anos, por um chat
onde nos conhecemos, sacamos logo de cara nossa afinidade com o hip-hop e a minha paixão pela Bahia, mas
nos estranhamos no que é literatura. Já disparei a contar do Cultura Marginal e do Passa Livros e ele revelou
que não gostava de ler.
“Não vamos ter assunto”, pensei. E, diariamente, pela
internet ele me perguntava o que eu estava lendo, o que
estava escrevendo, começou a frequentar os blogs, descobriu que um rapper que ele admira – Gog – era um dos
autores do “Suburbano” e passou a tomar gosto pelo
tema, mesmo que de uma forma lenta.
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— Posso enviar o texto?
— Claro!
— Então vou digitar.
— Ok.
Horas depois...
— Aí está meu primeiro texto.
— Tudo bem, vou ler e depois comento.
Um texto sobre a saudade do pai, já falecido, trazia as
expressões dele. Ainda um pouco imaturo no que se refere
à escrita, mas com vontade de melhorar. Na semana
seguinte, a mesma história e um novo texto, falando justamente sobre o novo do ano novo.
Alguns dias depois:
— Comprei um livro – revela Danilo.
— Como? Por quê? Você nem gosta de ler. — provoco.
— Vou tentar. De tanto te ver lendo, falando e escrevendo
sobre literatura, vou arriscar.
Aplausos internos e singulares. Mesmo há quase dois
mil quilômetros de distância, por meio de um chat e de
uma tela de computador eu tinha conseguido incentivar
a leitura. Batizei a iniciativa, para mim mesma, como
Literatura em Incentivo Amplo (Leia). Foi apenas uma
ideia de usar a internet para isso, mas a longo prazo.
Não fiz nada ainda, mas sei que ele comprou um livro de
autoajuda que leu inteiro.
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Traficando conhecimento
Duas semanas depois, comprou mais dois livros e presenteou uma tia com um. Não contente, saiu de rolé e foi passear em uma livraria. Comprou o “Capão Pecado”, do Ferréz, começou a ler e confessou: estou amando.
Criou um blog, mudou o nome e, agora, atua no projeto
próprio chamado de Literatude. Com posts quase diários, escreve textos, crônicas e já arriscou um conto.
Melhorou a escrita, o vocabulário e a gramática. Visita
todos os dias blogs de escritores e agitadores culturais
como Sérgio Vaz, Alessandro Buzo, Sacolinha, Michel da
Silva, Gog, Nelson Maca, de Salvador, e comenta sempre
no meu. É seguidor de muitos outros e afirma: não quero
desistir nunca da leitura. Quero trabalhar com hip-hop e
com conhecimento e vou conseguir.
Segue na busca por um emprego desde que se demitiu
de uma unidade do MC Donald’s e pretende ler todos os
livros que conseguir neste ano. E no outro também. Não
quer parar de ler nunca mais. “Vou ter meu próprio sarau
no Farol da Barra.”
Estatística
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Estatística
Profissão:
transmissora de
conhecimento
São inúmeros jovens que, ansiosos diante do que está
por vir, se aglomeram entre cadeiras de madeira colocadas em volta das mesas. É sempre excitante sair da
rotina escolar — professor fala, aluno escuta e anota —
e participar de uma palestra, mesmo que o tema ainda
não tenha sido revelado.
Devagar, alguns abordam o palestrante e perguntam:
“Oi, você que vai falar?”, “Sobre o que será a palestra?”,
e comentam entre si sobre conhecer ou não o assunto
ou o impacto que o tema tem sobre a vida de cada um.
É a primeira vez que acontece uma palestra mesmo.
Antes eram oficinas, coisas simples, informais. Ou eventos. Tudo era festa. O programa é federal e exige profissionalismo. Exige novidade. Exige mais: didática para
lidar com adultos. Todos, invariavelmente, têm mais de
18 anos. Falar para crianças e adolescentes é difícil.
Para adultos, ainda mais.
Em alguns minutos, todos estão acomodados aguardando que a palestra seja iniciada e a observação é
sempre a mesma. Em alguns, o olhar é de curiosidade
total, noutros, um misto de cansaço — afinal, trabalharam o dia todo — e em outros, de repente, até mesmo
um pouco de desinteresse, não apenas pelo debate que
vai se seguir, mas pela vida.
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Todos os alunos têm uma coisa em comum: vivem em
periferias e estão cursando o ensino médio, ou algum
curso profissionalizante, depois de adultos, afinal, o
programa só aceita jovens com mais de 18 anos. Entretanto, nenhum tem mais de 29 anos, afinal, é a idade
limite do ProJovem, seja Urbano ou Trabalhador.
Diante deste ponto comum, outros vão surgindo. Também
vim da periferia e revelo isso logo no início, quando conto
ter uma história de vida semelhante a de todos. Tenho
também uma idade compatível com a deles — 24 anos.
Na sequência, o hip-hop invade o espaço através de um
telão. Com um logotipo colorido e cheio de desenhos
que lembram a arte urbana do grafite, todos os olhares,
até mesmo os mais desinteressados e cansados, têm
a atenção captada. Devagar, e ainda com um pouco de
receio, conto como surgiu o convite para falar a eles e
revelo ser uma das primeiras experiências em falar para
tanta gente, afinal, são quase 100 estudantes.
Neste momento, os alunos se acomodam melhor e alguns
até comentam entre si já terem me visto ou me conhecerem e ouço alguns falando: “É a Jéssica Balbino.” Feitas as apresentações, um pouco do hip-hop é explicado, através de slides e imagens comuns ao dia a dia
dos estudantes. Logo na contextualização, um grafite
é exibido e todos o reconhecem, por ter sido feito no
muro de uma escola da região onde estudam ou moram,
na Zona Sul da cidade, considerada a mais periférica e
carente do município.
Diante do reconhecimento, mesmo aqueles alunos que
não tinham tido contato anterior com a cultura das
ruas é remetido a algo cotidiano e, então, a afinidade
acontece. Mesmo tímidos, alguns levantam a mão e
fazem algumas perguntas e diante da minha narração,
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Traficando conhecimento
também nascida no local e habitante da Zona Sul,
palavras empregadas por mim também fazem parte do
vocabulário que todos utilizam.
Com todos ambientalizados, uma pergunta é jogada no
ar: “De que forma as culturas populares podem beneficiar quem vive nas comunidades?” e a interrogação é
visível na fisionomia de todos os alunos. Acostumados
a se sentirem inferiores, ninguém encontra a resposta
rapidamente e, conforme coloca o professor de comunicação de uma turma, Guilherme Dore, por serem pobres
e viverem em periferias, todos têm mania de se autodesprezar. “Eles não acreditam neles mesmos, não têm
confiança no próprio potencial. Muitos não se acham
capazes. Quando o programa começou, a maioria tinha
vergonha de falar o próprio nome”, conta.
Entretanto, ele coloca, também, que, diante de uma
pessoa que tem a mesma linguagem dos estudantes, as
informações fluem com mais facilidade. “É bom porque
você é do bairro deles e eles gostam de se reconhecerem
assim. Serviu para provar a eles que construir as coisas
na vida só depende deles”, enfatiza.
Dando sentido às observações do professor, eu, que
também sou jornalista e escritora, continuo, mostrando
aos alunos que, mesmo diante destas posições, permaneço morando na periferia, andando de ônibus e a pé
todos os dias para chegar ao trabalho, comendo de marmita e ganhando pouco, mas, nem por isso, desisto de
sonhar, escrever e batalhar em causas sociais, como a
transformação por meio das culturas sociais e principalmente do hip-hop.
Conto como tento me beneficiar por meio da cultura
marginal e como palestras deste tipo me fazem bem,
tanto por poder compartilhar conhecimento como para
Estatística
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manter viva a cultura hip-hop e na sequência, desmistifico, esclarecendo que ela não tem nada a ver com a
bandidagem e que o Afrika Bambaataa, quando resolveu
criar o movimento, o fez na esperança que ele gerasse
“paz, amor, diversão e união”.
Diante desta informação, mais da metade dos alunos se
sensibiliza e consigo ver, mesmo incutido na face deles,
as expressões de “ooohhh”, se questionando, então, o
porquê da cultura hip-hop, ser, até então, vista como
algo ruim. Entretanto, consigo perceber também que
muitos não acreditam no que digo e têm até uma certa
resistência, mas faz parte de qualquer informação nova.
Conto, também, que o hip-hop não é música estrangeira,
como a maioria acredita e sim, movimento e cultura.
Esclareço que o rap é que é o som ouvido e cantado dentro da cultura, exaltando os problemas sociais e as histórias de cada um pelas batidas ritmadas e entrecortadas pelos DJs, um dos outros elementos da cultura.
Alguns ficam entusiasmados com as informações, principalmente sobre os parâmetros iniciais do hip-hop, que
são mostrados diferentes daquilo que sempre acreditaram que fossem. Ouço alguns comentários entre eles, se
perguntando como podem, de repente, conhecer mais
sobre isso e já me adianto, contando que posso mandar
o texto do meu primeiro livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal” por e-mail e percebo vários interessados.
Na sequência, sempre que conto alguma coisa sobre o
hip-hop, a história e a cultura popular, tento manter a proximidade da realidade e sempre citar algum fato acontecido comigo. Procuro lembrar que, durante as pesquisas
para fazer o livro, praticamente abdiquei da minha vida
em nome da causa e cito minha rotina, que era levantar às
7h, ir para o trabalho, fazer algumas coisas relacionadas,
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Traficando conhecimento
almoçar correndo, aula de inglês durante o horário de
almoço, voltar para o trabalho, escrever a mão porque
não tinha mais energia onde eu trabalhava — em razão
da falência do local —, sair correndo, pegar a van, viajar
40 quilômetros, assistir aula, voltar para Poços, pegar
um ônibus no centro da cidade e ainda andar um quilômetro para chegar em casa. Aí sim, ler o que faltava e
escrever algumas coisas do livro, para compor o trabalho apresentado a eles.
Noto que eles se sentem próximos da vivência, até porque 90% trabalha durante o dia, mal almoça, também
anda longas distâncias e, enfim, podem estudar e veem
no programa a chance de um diploma do Ensino Fundamental, além de uma melhor oportunidade de trabalho.
Sei que muitos estão ali unicamente para isso, enquanto
outros querem aproveitar cada minuto e reverter o
tempo perdido, tentando aprender sobre tudo em apenas dezoito meses, que é o tempo total do curso.
Nesse misto, eles se perdem, entretidos nas imagens do
datashow e no mundo do hip-hop e alguns, menos tímidos, iniciam algumas perguntas. Querem saber o porquê
de eu me interessar por hip-hop e dão risada quando
digo que eu nunca soube cantar, dançar, grafitar e que
nem me arrisquei a arranhar os discos, por isso me
dedico ao 5° elemento, que é o conhecimento.
Neste ponto, ingresso no assunto da literatura periférica e da ascensão que ela tem no cenário nacional,
principalmente nos grandes centros e capitais e noto
olhos mais brilhantes quando conto experiências pessoais ligadas ao assunto, como o garoto de 21 anos que
vive em Salvador e que conheci, por acaso, pela internet.
Ele tem o mesmo problema dos alunos. A mania de se
achar inferior por ser pobre e morador da periferia. Relatei que, em minhas conversas com ele, sempre via MSN,
consegui despertar o interesse dele pela escrita.
Estatística
461
Quando começamos a conversar, ele me contou, com
todo receio do mundo, que gostava de escrever e que,
de repente, escreveria um texto para me mandar. Levou
quase duas semanas para que eu recebesse um texto
pequeno, simples, mas que, mesmo com erros gramaticais, tão comuns na literatura marginal, conseguiu
expressar tudo aquilo que ele sentia no momento: saudades do pai que já se fora.
Ainda me refazendo da emoção de ler um texto dele, que
nunca tinha deixado ninguém ver os textos, ele me contou que tinha saído e comprado um livro, hábito que, até
então, ele desprezava e que já estava lendo. Emocionada,
contei esta história aos alunos e acredito que, por toda
simplicidade dela, consegui sensibilizá-los também. Fui
interrompida pela professora, que me contou que alguns
já gostam de escrever e que de repente, histórias como
estas são um incentivo para que eles comecem a produzir os próprios textos. Neste momento, outros me perguntam como editar um livro e quais as dicas para escrever melhor. Sugiro que sempre leiam, cada vez mais.
Falo, ainda, dos livros produzidos nas periferias e
dos assuntos abordados, que sempre são do interesse
deles e têm temas relevantes aos jovens da periferia,
com crônicas cotidianas. Cito, ainda, algo que li há tempos em blogs pela internet, dizendo que os novos livros
são os raps escritos e encadernados. Acho esta analogia
bacana e compartilho. Alguns alunos, que antes da palestra estavam ouvindo rap, se mexem ansiosos na cadeira,
talvez pensando em transformar os rascunhos em livros.
Conto, ainda, que existe no Brasil uma Casa do Hip-Hop,
em defesa das produções literárias e acadêmicas sobre o
tema e também uma organização universal Zulu Nation,
que cuida do hip-hop em todo o mundo, preservando para
que a cultura seja disseminada de forma correta.
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Traficando conhecimento
Estatística
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Traficando conhecimento
Divido com estes alunos histórias de escritores brasileiros de que eles nunca ouviram falar, mas que, ao contrário dos clássicos, despertam um interesse maior para
que eles leiam, visto que trazem uma linguagem comum,
que eles podem acompanhar e histórias que eles se
identificam, como a de “Graduado em Marginalidade”,
do Sacolinha, os textos reunidos de Ferréz, e, ainda,
“Noite Adentro”, de Robson Canto, entre tantas outras
coletâneas dos autores que despontam no cenário literário nacional e estão ganhando mais público a cada dia.
Neste espaço, comento, também, a necessidade de
conhecer mais sobre a própria cultura, os antepassados
e a história das coisas. Lembro aos alunos que isso deve
acontecer não apenas com o hip-hop, mas com qualquer
que seja a cultura popular produzida na periferia, que
tem sempre uma história riquíssima, que merece ser
conhecida e divulgada. Percebo que todos ficam atentos a isso, com exceção daqueles que já foram vencidos
pelo cansaço e que, nesta hora, se apoiam sobre livros
e mesas para cochilar enquanto falo. A postura não me
incomoda, afinal, já fui estudante e, muitas vezes, extremamente cansada, cochilei durante aulas, debates,
palestras. Não há como recriminar.
Dentro disso, procuro sempre atrelar a minha experiência e fazer com que todos conheçam um pouco mais
sobre a minha vida e trajetória, então, separo um slide
com uma foto minha, do Nino Brown na casa do hip-hop e
de Anita Motta, a jornalista que escreveu o “Hip-Hop – A
Cultura Marginal” comigo. Até os mais desatentos param
e prestam atenção. Conto que ela nunca foi da periferia e que o primeiro contato com o hip-hop foi durante
o processo de execução do livro e que, infelizmente, no
caso dela, a cultura não representou uma salvação como
ouvimos em todas as entrevistas.
Estatística
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No Carnaval de 2007, quinze dias após nossa colação
de grau, ela morreu de parada cardíaca após inalar gás
propano butano que vem naquelas buzinas a gás. Fez
isso para ter “barato” como os provados pelo lança perfume e, de uma vez, faleceu, abandonando os sonhos,
o legado do livro e muitas lembranças incompletas de
quem poderia caminhar ao meu lado e estar, naquele
momento, palestrando. A este ponto, me encaminho
para o fim da palestra, deixando aberto o espaço para
as perguntas e concluindo como uma cultura popular
mudou a minha vida, a das pessoas à minha volta e que,
mesmo sem recursos, consigo praticar ações beneficentes, como o projeto Passa Livros e, também, oficinas
sobre hip-hop com crianças carentes.
Novamente, olhares mais atentos e curiosos, querendo
saber como é meu trabalho social. Uma breve explicação, um slide com frases de pessoas de vários locais do
país e de várias atividades contextualizando o hip-hop e
o quão bom ele é para este ou aquele indivíduo e ainda
para esta ou aquela coletividade.
Pronto. Gosto de encerrar exibindo no telão a mesma
imagem com que comecei. Talvez seja pelas cores, talvez porque foi um MC famoso – na comunidade e Brasil afora – que fez, com todo carinho, para o meu trabalho ou, talvez, porque represente o hip-hop tal como
ele é, uma mescla de elementos que propõe somente
coisas positivas. Tentando trabalhar neste positivismo,
encerro e aguardo as perguntas, que são poucas e tímidas. Entendo o receio que todos têm de falar alto, levantar a mão e se dirigir a um palestrante. O medo de serem
ridicularizados supera o medo de permanecerem ignorantes em alguma questão.
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Traficando conhecimento
Começo a juntar minhas coisas e devagar, um, dois, três.
Uma fila de estudantes é formada a minha volta e todos
querem trocar e-mails, contatos e me pedem meus dados
como blog, e-mail e telefone. Por questões financeiras,
não possuo cartão de visita. Distribuo, então, folhas com
meu nome e telefone. Todas extraídas de um bloquinho
comum aos jornalistas. Menos tímidos por estarem em
um grupo menor, eles me enchem de questões e comentam o que falei na palestra. Alguns elogiam bastante.
Outros, tomam o rumo e partem em busca do lanche, distribuído pelo programa, gratuitamente aos estudantes.
Tento responder a todas as questões e dar atenção a
cada um. Um aluno, com roupas típicas aos adeptos da
cultura, se aproxima com um celular na mão. Nele toca
uma música do grupo Racionais MC’s, talvez o mais
popular da década de 1990, que popularizou o rap sem
se aliar à indústria e a grande mídia.
Alguns conhecidos de quebrada, eventos e também do
ônibus comentam comigo que já me conhecem e fazem
referências às fotos de pessoas conhecidas, também
exibidas nos slides enquanto eu falava. Despeço-me
com um único sentimento: paz. Consegui, apesar de
todas as adversidades, realizar uma palestra e o mais
bacana foi deixar a escola sabendo que eles estavam
comentando, cada um na sua roda, que querem ler mais
sobre literatura periférica.
Estatística
Palestrando: parte II
Entre mamadeiras, fraldas e choro de crianças. Assim
foi a minha segunda experiência com as palestras sobre
hip-hop.
Segunda-feira, 20h. A chuva não para e já cai água sobre
a cidade há dois dias seguidos e ininterruptos. Mesmo
assim, cerca de 90% dos alunos que cursam Comunicação Social e Marketing vão à aula. A presença garante
a bolsa de R$ 100 que eles recebem mensalmente por
fazerem parte do programa federal, o ProJovem Urbano.
Entre esses estudantes estão duas mães, que, pela
fisionomia, não têm mais de 20 anos e ambas carregam
no colo seus bebês, que, por problemas pessoais, não
tem com quem deixar.
Há cinco meses, Giovana frequenta as aulas ao lado da
mãe e já cativou todos os demais colegas de classe e,
até mesmo, os professores. Muitos chegam para brincar com a criança, ajudam a segurar, levam e buscam
mamadeira e, até, trocam fraldas. Da mesma forma,
Antonela, de apenas 6 meses acompanha a mãe há um
mês. Tâmara, mãe do bebê, conta que teve de optar por
isso porque quem cuidava da criança – a avó – passou
por uma cirurgia e não podia mais cuidar.
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Morrendo de fome, pergunto se posso pegar um pão com
mortadela e um guaraná, distribuídos aos alunos pelo
curso. Posso. Enquanto como, observo as mães, que,
embalando os bebês, tentam não perder nada da palestra que inicio, descontraidamente, por terem pouco mais
de 10 pessoas na classe.
Entre um choro e outro das crianças, noto que alguns
alunos se incomodam por terem a atenção desviada,
mas, como sou apaixonada por crianças, vejo logo que
para elas, não é fácil ficar até depois das 22h acordadas,
em um ambiente que não é a casa delas e, principalmente, em um dia frio e chuvoso como aquela segundafeira. As mães embalam os bebês e tentam acompanhar as aulas, mantendo a presença para garantir a
bolsa mensal de R$ 100, oferecida pelo programa.
Conforme explica Andreza, os alunos não podem ter
mais de duas faltas por mês e, caso isso aconteça, a
bolsa é cancelada. “Não é só por isso que frequento as
aulas, mas porque o curso é superimportante para mim.
Muitas pessoas me aconselharam a desistir por conta
da Giovana, dizendo para eu fazer quando ela crescesse,
mas era uma oportunidade única que eu não poderia deixar passar”, conta. As histórias são muitas. Os exemplos
também. Andreza revela que conta nos dedos os dias
em que a filha deixou de acompanhá-la, logo no início do
curso e ficou com o pai. “Por algumas vezes, pedi que ele
a olhasse para que eu fosse para a escola, mas, como
ele é usuário de drogas, nossa relação acabou no dia que
eu voltei para casa e ele tinha ido embora e levado várias
coisas da casa. Não tive mais notícias e, desde então, a
Giovana me acompanha”, relata. Já no caso de Tâmara, a
falta de creche onde deixar o bebê e de alguém que possa
olhar tem sido uma espécie de empecilho. “Eu arrumei
um serviço e não pude assumir. Só em fevereiro que ela
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Traficando conhecimento
vai poder entrar na creche”, conta. Questionada sobre a
maior dificuldade, ela diz que é a distância que percorre,
diariamente, para estudar. Somente de ônibus ela percorre cerca de 10 quilômetros e ainda anda do terminal
de linhas urbanas até o colégio municipal – aproximadamente 1000 metros – a pé, com o bebê no colo. “É ruim
porque tenho que sair com ela na chuva, no frio, andar
a pé, carregar as coisas dela e as minhas, mas, mesmo
assim, compensa, porque estou estudando.” E assim ela
segue, enquanto tenta anotar o que o professor fala e
ao mesmo tempo amamentar a Antonela no seio. O professor Guilherme Dore comenta que, inicialmente, não
soube como reagir a situação, entretanto, compreendeu que aceitar as crianças na sala, após analisar caso a
caso, foi a única maneira de fazer com que as mães não
abandonassem o curso. “Para mim isso é o mais importante”, diz. Desafio. Assim pode ser definido o fato de
participar de uma sala de aula onde os bebês também
se tornam alunos e carinhas vistas diariamente no local.
É difícil, tanto para as mães, como para as crianças e
para os educadores, que veem na realidade algo que, de
repente, possa comprometer o rendimento. Já os bebês,
por serem fofos, por chorarem fora de hora e por caberem no colo e precisarem de tanta proteção materna,
dividem a atenção das mães e dos alunos, mas, para o
professor, isto é algo que pode ser superado por meio da
criação de formas para deixar as aulas mais atrativas.
Como o professor coloca, a única coisa que ele não
tolera são pessoas acomodadas e, de repente, a história
das mães se torna um exemplo de vida. “Compreendemos a situação e fazemos de tudo para que elas consigam acompanhar o restante da sala e, no futuro, estejam bem inseridas no mercado de trabalho”, ressalta.
As alunas-mães comentam que percebem muitas vezes
que o professor perde a paciência, mas elas entendem.
Estatística
471
“Em alguns momentos, os bebês choram, se mexem, gritam, querem andar e isso pode desviar a atenção, então
prefiro sair da sala e voltar depois”, revela Andreza.
Por outro lado, levar os bebês para a aula tem algo de
positivo. O carinho que elas recebem de outros alunos. “A Giovana ganhou muitas fraldas e roupinhas e a
empresa do ProJovem nos dá toda a assistência. Como
eu tive problemas em casa com o pai dela, fui encaminhada para o Centro de Referência em Assistência
Social (Creas) e estudar não apenas me qualificou como
mudou minha vida pessoal. Fiquei com a autoestima elevada e tomei rumo. Foi a melhor coisa dos últimos anos.
Foi tudo”, acrescenta. E, assim, segue a rotina destas
mães até o próximo dia 22, quando as aulas do curso de
Comunicação Social e Marketing são encerradas e elas
recebem o diploma de conclusão e partem para o mercado de trabalho. Sempre acompanhadas pelos bebês,
carregando-os no colo, assim como carregam os sonhos
de conquista profissional.
A palestra segue e a participação dos alunos é de 100%,
transformando o momento em um bate-papo, como eu
havia previsto e desejado inicialmente. A cada tema,
manifestações e perguntas surgem, principalmente por
dois estudantes, que conforme o professor me descreveu anteriormente, gostam muito de escrever e têm pretensões de criar livros.
O mais bacana é observar as reações do professor que,
por coincidência, foi o diagramador do meu livro para a
faculdade. Éramos amigos antes, quando viajávamos
juntos os 40 quilômetros diários para ir e vir da faculdade, enfrentando as mesmas dificuldades, já citadas.
No meio da explanação de um assunto sobre o que podemos mudar em nossa comunidade, ele me interrompe
para dizer, de forma alegre e descontraída, que não aceita
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Traficando conhecimento
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Estatística
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gente acomodada e que se espelha em nossas histórias
— pobres, fizemos faculdade com muito sacrifício e,
mesmo assim, continuamos lutando. “Não aceito quem
não se interessa por nada. Não importa o que a pessoa
faça, seja faculdade, um curso de informática, de javanês, sei lá, desde que não fiquem parados”, dispara e,
assim, arranca sorrisos de toda a sala, inclusive dos meus
pais que me acompanham no momento.
Como um dos exemplos de superação, além de citar os
episódios da minha vida ligados ao hip-hop, pontuo o
desafio das mães em assistir aulas com os bebês no colo
e as mamadeiras ao redor. Como nenhuma experiência
é igual, este bate-papo foi inusitado. A cada imagem
mostrada no slide uma reação diferente e intensa podia
ser observada nos estudantes. Uma garota afirmou
já ter praticado dança de rua. Outro garoto quis saber
a diferença entre hip-hop e rap e recebeu a explicação
– detalhada – de como funciona toda a cultura. Mas o
mais empolgante é que todos, sem exceção, até os que
demonstravam mais cansaço nos olhos e no corpo, ficaram bastante atentos quando falei da literatura e inúmeras dúvidas surgiram.
Como editar um livro? Qual a melhor forma de organizar as ideias e escrever? Quanto tempo levei para produzir o meu? Como escolhi o tema? Entre tantas outras
questões, tentei responder com a maior relevância e
prosseguimos. Pausa para o espanto de todos quando
comentei sobre Anita Motta. Mais perguntas e uma saudade imensa dentro do peito. Adoraria que ela estivesse
lá comigo, dividindo o trabalho, o momento, as lições de
vida e a leveza de alma.
Finalizo com a parte em que discorro sobre hip-hop,
minha vida periférica, meus trabalhos com o projeto
Passa Livros e com o incentivo à literatura. A pedido do
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Traficando conhecimento
professor, preparei, também, um pequeno material sobre
jornalismo. Ao término do assunto hip-hop, poderia falar
sobre a profissão. Como o eixo do curso é Comunicação
Social e a área de formação dele é Publicidade e Propaganda, me pediu uma passada rápida sobre jornalismo –
como pautar, como desenvolver um tema e dicas de texto.
Surpreendi-me com o interesse dos alunos e, também,
comigo mesma. Tenho pouco tempo de formação e como
o jornalismo é uma profissão muito ampla, fiquei com
medo de não conseguir responder todos os questionamentos. Graças a Deus, tudo que foi perguntado eu
sabia como elucidar e foi muito bacana observar a curiosidade deles pela profissão, especialmente pelo jornalismo impresso, já tão condenado por alguns teóricos.
Todos demonstraram interesse em como saber mais
sobre o ofício e o que me chamou mais atenção e valeu
pela palestra foi o entusiasmo de uma garota, a mesma
que já participou de um grupo de dança e reconheceu
boa parte das pessoas nas fotos dos slides. Anotando
tudo que eu falava e fazendo inúmeros questionamentos, ela me perguntou como poderia fazer um estágio
não remunerado no jornal, sem receber nada, apenas
para acompanhar de perto o nosso trabalho.
Outro garoto, participativo, comentou que fizeram uma
visita ao jornal, mas que não viram a redação e quer
conhecer, visitar, saber também como é de perto. Ambos
escrevem textos para a escola e publicam em um blog
criado especialmente para divulgá-los. Ambos querem
se tornar escritores. Ambos me pediram dicas de livros e
prometeram me escrever.
Encerrei a palestra e apenas uma experiência se repetiu. Vários deles me cercaram e pediram e-mail, deixaram e-mail, querem o livro, querem vídeos, dicas e trocas de ideias. Ainda com uma chuva forte, saí da sala,
Estatística
477
feliz da vida, acompanhada pelos meus pais e pelo meu
amigo Luciano Santos – que fez as fotos da ocasião —,
caminhei com os passos leves e a alma sem tocar o chão,
satisfeita porque fiz a minha parte: contextualizei minha
vida e sonhei com as mãos, colocando em prática o que
é o hip-hop, em poucas e intensas horas permeadas de
“paz, amor, diversão e união”.
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Repercussom
A repercussão do som no ar, para toda a cidade, por meio
de uma rádio comunitária montada em um quartinho, nos
fundos de uma casa, no alto de um morro, na Zona Leste!
Assim, todas as tardes de sábado, das 18h às 21h, o rapper
Leopac e o DJ Mancha se reúnem para apresentar um programa cheio de informação, música black e hip-hop.
Existente há apenas quatro meses, o programa é sucesso
entre as periferias e enquanto se arrumam para sair,
muitos adeptos da cultura se deliciam com os ritmos de
Gerson King Combo, Tim Maia e Seu Jorge. Em pequenos
quadros com músicas antigas, rap e raps românticos, DJ
Mancha tenta resgatar as origens dos bailes black e leva
muita informação.
Com toda a precariedade do local – faltam cadeiras,
estrutura, microfone e espaço – os jovens levam pequenos potes com comida e fazem uma vaquinha para comprar refrigerante. Correm por ruas tortuosas, sobem e
descem morros, vão e voltam até encontrarem as músicas certas para aquele programa.
Sou convidada para falar um pouco da minha trajetória – que foi feita em grande parte com Leopac, desde
os primórdios, os eventos antigos e a época do TCC – e
explicar a influência da literatura marginal, da cultura
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promovida pelos projetos. Ao meu lado, Suburbano também comenta sobre a influência do hip-hop e da literatura na vida dele e um pouco das nossas desventuras. À
vontade e entre amigos, para falar sobre tudo que sempre tivemos vontade, consumimos, facilmente, as três
horas de programa.
Mais uma vez tive a oportunidade de usar uma rádio, em
um horário em que todos estão conectados com a informação, falar um tanto sobre o projeto Cultura Marginal e
conseguir agregar mais pessoas, que é o objetivo. Também me ocorreu algo que pensei na tarde de encontro
com o escritor: me encontrei comigo mesma e com a
minha essência.
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Querem nosso
sangue
Para dar sequência, rolou, também, a 2ª edição do Hip-Hop
em Foco. Como a primeira edição do evento foi um verdadeiro sucesso, o pessoal do grupo de dança Concepção
Urbana resolveu investir em uma segunda e, dentro da
programação do Viva Urca, apresentou quatro grupos de
rap e quatro grupos de dança, em apresentações marcantes, em uma noite completa de periferia, música, dança
gospel e hip-hop. O destaque, desta vez, ficou por minha
conta, que fui, novamente, a mestre de cerimônias e pude
mostrar, novamente em forma de palestra, um pouco do
que é a Cultura Marginal, discorrer sobre a literatura e
ainda apresentar e anunciar os grupos.
No mesmo palco, por quase três horas, falamos, cantamos, dançamos e arranhamos discos para quase 100
pessoas. Público nem tão grande, mas bastante participativo. Realizada, foi assim que me senti quando todos
os envolvidos neste evento, que também já se tornou um
projeto, subiram ao palco e puderam cantar e dançar
juntos, gritando no final:
Hip-hop! Hip-hop!
Vibrante!
Nosso novo quilombo. Em cima do palco do Teatro Municipal da cidade, onde todo e qualquer artista que se apresenta aqui também sobe. Foi maravilhoso. Todos queriam
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livros, textos, aprender dançar, curtir, tirar fotos. Enfim,
deu tudo certo. Não poderia ser diferente. Organizamos
com amor. Todos que estavam ali não ganharam um único
centavo. E, por isso, foi sensacional.
Para contrastar, naquela mesma noite, tivemos um contratempo com um dos organizadores de eventos que chegou na cidade há alguns anos e pensou que seria fácil
enganar o povo do hip-hop. Cheio de marra e pisando
no vazio, ele inventou um curso furado, uma agência de
modelos falsa, e um evento que, realmente, não poderia
dar em nada. Ele não entendia nada de hip-hop, de cultura
marginal, de cultura negra. Levaram muitos dos nossos
parceiros no bico. Pediu serviços e não pagou. Prometeu
cachê e não cumpriu. Cancelou o evento bem antes de ele
acontecer e, o melhor, assistiu e foi obrigado a aplaudir
de pé o nosso sucesso, a nossa vitória com o Hip-Hop em
Foco. Como não chutamos cachorro morto, ele segue com
a vidinha dele. Não trabalhamos mais de graça nem para
patrão. Nosso objetivo é quebrar as amarras, jogar fora a
opressão. Acuar nas cordas do destino os que tentam se
aproveitar do hip-hop, mesmo assim desistimos de registrar B.O. por estelionato e continuamos praticando a paz.
Estatística
Em dia com a leitura
É bom demais fazer aquilo que gostamos. No meu caso,
comunicar é quase uma bênção. Por ser tão apaixonada
pelo ofício, fui convidada pelo SESC para participar do
evento SESC em Dia com a Leitura, por meio do Encontro
com o escritor.
Falar da minha obra, como escrevi meu livro, como pesquisei as fontes, como tirei as fotos, escolhi o que deveria entrar ou não, enfim, foi muito bom, mesmo com poucos exemplares, falar com adultos, jovens, crianças, e
explicar porque escolhi o hip-hop como estilo de vida.
Vários passantes e turistas foram atraídos pelo banner
que coloquei na tenda destinada ao “meu espaço”. O
bacana é que eu tinha uma tenda própria e um espaço
também. O banner é o que o Suburbano pintou na época
do TCC e que serviu, mais uma vez, literalmente, como
pano de fundo para expor sobre nossa cultura. Perguntaram-me sobre o evento que estava acontecendo,
sobre a cidade e sobre meu trabalho. Contei um pouco
dos venenos que havia passado para estar ali e ainda
dos que passo para tentar ser alguma coisa, para tentar
construir a própria realidade, para tentar transformar e
para encontrar forças não sei bem onde para continuar
empenhada em projetos sociais como o Cultura Marginal
que engloba o Passa Livros também.
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Foi somente naquele dia, quando várias crianças me
pediam livros, corriam pela praça “brincando” com a
arte, que percebi que, apesar de todas as dificuldades,
das fases difíceis, de perder as pessoas queridas, de
me desdobrar em trabalhos de mais de doze horas por
dia, fora o veneno do transporte, do descaso, da falta
de dinheiro para o básico, de sustentar um diploma, um
título, um bacharelado e, mesmo assim, ganhar uma merreca que sequer paga o valor da mensalidade investida na
faculdade, enfim, saquei que, apesar de todos os reveses,
eu não quero desistir e somente trabalhar como meus
familiares, meus vizinhos e meus amigos. Não quero o
título de “escritora”, de “agitadora cultural” de “voluntária” e o de jornalista é consequência. Quero chegar em
casa feliz com o sorriso das crianças, com o dia das pessoas transformado por uma caixinha poética, por um
livro ganhado assim, no meio do caos urbano, quero a
lembrança de idosos sorrindo por ver algo de bom sendo
feito neste mundo egoísta.
Estava ali naquela tenda, vi o SESC promover a leitura,
incentivar as crianças e pensei que não sei mais viver
sem isso. Sem propagar as ações, sem escrever por
meio do hip-hop.
Não queria apenas vender os livros. Queria algo bem mais
do que isso. Queria exatamente o que estava acontecendo. Que as pessoas parassem para perguntar, não
unicamente a mim, mas se perguntar o porquê de elas
também não fazerem mais. Muita gente, com muito
mais condições, se fecha no próprio mundinho de whisky
importado, prozac e carro do ano, cheirando pó em algum
iatezinho por aí e se esquece dos empregados, funcionários e demais habitantes do mundo. Eles têm sonhos e
na maior parte das vezes, são estas pessoas, com mais
condições, que pisoteiam nos ideais de quem é mais
pobre, marginalizado.
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Traficando conhecimento
Estatística
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Traficando conhecimento
Para ficar, realmente, em dia com a leitura, naquele
momento, revi toda a trajetória. Todos os sonhos, quase
interrompidos, quando a Anita morreu e me deixou com
o livro, com uma bagagem bem pesada de coisas para
realizar e sem tê-la por perto para me ajudar a continuar, a sonhar. Lembrei ainda de todas as vezes que
pensei em desistir, em largar tudo, porque era massacrada no emprego do Jornal de Poços que pagava mal,
tinha um assédio moral absurdo, sugava todas as energias e não deixava tempo, sequer, para eu dar um beijo
na minha mãe.
Sem falar das inúmeras críticas de quem sempre esteve à
volta, passando os mesmos perrengues e pagando de elite,
dizendo que cultura marginal é coisa de bandido e que,
bom mesmo, é estar “nas paradas do sucesso”, o que, para
mim, não é nada mais do que puxar saco de político falso.
Engraçado que o evento me fez pensar e rever tudo isso.
Rever gente que lutou e desistiu na primeira queda e
guerreiros que não abandonam o barco. Gente que faz
muito e gente que carrega um título e nem sempre faz o
que precisa para evoluir. Saquei que queria, sim, o progresso, que queria continuar e que desistir não seria
mais nem pensado.
Minha mãe estava lá comigo, como sempre, acompanhando e apoiando as ações. Nunca me deixou cair, assim
como meu pai. E, talvez, justamente por isso, eu nunca
tenha desistido. Entretanto, não deixa de ser difícil. Lembrei que, em 2008, quando meu pai ficou doente e quase
morreu, o meu desespero em não ter de onde tirar grana
para levá-lo no médico particular, pagar um tratamento
bom e vendo gente, que, como minha irmã — funcionária pública — nadava no dinheiro do Estado e não podia,
sequer, pagar a ele um tratamento ou um convênio médico.
Estatística
491
Por isso, jurei a mim mesma que passaria o veneno que
fosse, mas não deixaria meus pais na mão. Fácil não é,
e faço muita coisa errada, estou aprendendo, mas já
adianto que não vou parar. Cada dia que passa tenho
mais vontade de lutar, trabalhar e fazer em prol da cultura do gueto na minha quebrada.
Na última semana participei da Confraria das Ideias
para a V Feira do Livro e Festival Literário na cidade, a
mesma que indiquei o Sérgio Vaz para participar ao lado
de Ferréz, e introduzir, ainda mais, a cultura marginal em
Poços. Como sugestões pedidas, penso que descentralizar as ações e usar os artistas locais para irem aos bairros convidar a população para conhecer a feira, participar das oficinas e palestras, estar em meio aos livros é o
que de melhor há para democratizar o evento.
Fico feliz por ser reconhecida pelo trabalho que faço
como jornalista e, também, na área cultural. No último
resolvi que reportagem nenhuma vai mais me sugar
como acontecia anteriormente. Vou dar o sangue por
todas elas e fazer o meu melhor, pois amo estar na rua
e reportar, porém, tudo tem limite e o meu tempo diário para dedicação à cultura e literatura, escrita, blogs e
afins vai continuar sendo respeitado.
Não vou deixar de escrever, de captar livros, de distribuir,
de fazer o que gosto. Espero mudar a consciência das
pessoas e fazê-las ver que, por meio da arte e do conhecimento, podemos conquistar o que queremos. Ainda ando
de ônibus e os quarenta minutos na ida e mais quarenta
minutos na volta são preenchidos com muita literatura
nacional. E as oficinas devem se tornar, em breve, mais
organizadas e acontecer também em escolas, como atividades extracurriculares, paralelas às aulas.
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Traficando conhecimento
Ainda naquela tarde bem quente do final do ano pensei,
revi minha vida e tive uma única certeza: o projeto Cultura Marginal vai continuar existindo. Como diz Sérgio
Vaz, “a arte que liberta não vem da mão que escraviza”
e estamos juntos, pelas periferias brasileiras, lutando e
quebrando as correntes e amarradas invisíveis da sociedade. Um brinde ao saber, ao conhecimento, à arte, à
literatura e ao hip-hop, que salvou a minha vida e a de
tantos outros parceiros Brasil afora. Um brinde àqueles
que sempre gostaram de ler e um maior ainda àqueles
que diziam “não gosto de ler” e, hoje, fazem questão de
gritar: “Literatura é minha vida.”
Esta cultura carrega consigo a força do protesto e da
indignação. Ela sobrevive, se opõe ao obscuro mundo da
criminalidade e enfrenta uma guerra diária de preconceitos. Mas se rebela contra a exclusão e inclui, mesmo
que ainda na marginalidade, toda uma nação, em um
misto de alegria e tristeza, a cultura hip-hop. Sobrevive,
marca e faz história para quem se sente maravilhado
por tudo que a Cultura Marginal proporciona.
As pessoas podem parar. Uma cultura, jamais. O hip-hop e
a literatura não param nunca. Vários livros, teses e reportagens foram escritos sobre o assunto, e terminaram
sempre no ponto final da última página, mas as produções culturais do gueto continuam independente deles.
Desta vez não será diferente.
Enquanto tiver uma cultura marginal, sempre haverá o
que ser estudado e reportado. Qualquer tema acerca da
periferia nunca será esgotado. Até o momento o gueto
refletiu estilos de vida e comportamento, marcou gerações, mudou radicalmente muitas pessoas, salvou muitas vidas. Continua carregando consigo uma enorme
força de protesto, vontade de progresso.
Estatística
493
“Paz, amor, diversão e união”, a ideologia criada por
África Bambaataa quando ele batizou o maior movimento social dos últimos trinta anos – o hip-hop – e que
permanece presente. Mesmo entre uma realidade que
em um primeiro momento consegue colocar fim a tantos
sonhos. O hip-hop, atrelado à arte e à literatura, continua se opondo às opressões raciais e sociais.
Muitas vezes sinuosa e controversa, não deixa de ser
fascinante. Mesmo estando à margem da sociedade,
não deixa de ser uma cultura. Uma cultura guerreira, que
caminha sobre pedras, mas, mesmo assim, não deixa de
sonhar, fazer música, poesia, arte, dança e pintura.
Em um caldeirão de misturas, a Cultura Marginal é um
marco de pessoas, filosofias e ideais. Posteriormente, o
discurso poderá mudar, ser substituído por outro, mas
a essência do movimento continuará marcando povos e
fazendo história, afinal é o hip-hop, a cultura marginal.
Imagens:
índice e créditos
P.90-91
Evento “Casa da Imprensa”
foto: Luciano Santos
P.98-99
Ensaio de break na fonte do Leãozinho, patrimônio
histórico em Poços de Caldas
foto: Jéssica Balbino
P.108
Entre Livros no primeiro trabalho com carteira assinada,
na Livraria Alfarrábios
foto: Acervo pessoal
P.118-119 Banca examinadora do TCC “Hip-Hop – A Cultura Marginal”
foto: Acervo pessoal
P.19
Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.23
Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.135
Projeto LEIA
foto: Jéssica Balbino
P.136-137 Grupo Silencia Crewativo no Morumbi (SP), durante as
P.128-129 Show do MV Bill durante o Hutúz 2009 no Circo Voador
foto: Jéssica Balbino
P.27
P.32-33
Polícia em combate ao tráfico no Morro São João
foto: Márcio Pinto
P.39
Evento Hip-Hop Sul
foto: Acervo pessoal
P.46-47
Suburbano e Lu Afri, do grupo UClanos
foto: Jéssica Balbino
P.54-55
Back Spin Crew como jurados de batalhas de break
em Pouso Alegre, sul de Minas
foto: Jéssica Balbino
P.56-57
Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco
foto: Wagner Alves
pesquisas para o livro-reportagem
foto: Acervo pessoal
P.140
Anita Motta entrevistando aluno da oficina de MC
na Casa do Hip-Hop
foto: Acervo pessoal
P.141
Grafite no Vale do Anhangabaú
foto: Acervo pessoal
P.143
Jéssica Balbino nas pick-ups do DJ Pow, na Zona Oeste de
São Paulo durante as pesquisas do livro
foto: Anita Motta
Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco
foto: Jéssica Balbino
P.147
Garoto na Casa do Hip-Hop em Diadema (SP)
foto: Acervo pessoal
P.67
Valdair, b.boy
foto: Acervo pessoal
P.152
P.76
Jéssica Balbino lendo na livraria Alfarrábios
foto: Acervo pessoal
Guilherme Dore e Anita Motta diagramando o
livro-reportagem para o TCC
foto: Acervo pessoal
P.155
Jéssica Balbino e Anita Motta, no banheiro da faculdade,
provando as roupas para apresentação do TCC
foto: Acervo pessoal
P.81
Jéssica Balbino na periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.85
Leopac no 2º Hip-Hop em Foco
foto: Wagner Alves
P.89
Jéssica Balbino na redação do Jornal Mantiqueira
foto: Marcos Corrêa
P.158-159 Banner grafitado por Suburbano para apresentação do TCC
foto: Acervo pessoal
P.160-161 Anita Motta e Jéssica Balbino durante apresentação
do trabalho
foto: Acervo pessoal
P.162-163 Grupo UClanos durante apresentação do TCC
P.249
Participação no programa Mix 104 +
foto: Acervo pessoal
P.253
Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.260
Grafite no Hip-Hop Em Foco e Leopac no Hip-Hop Em Foco
foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.166-167 Comemoração após o término de todas apresentações
de TCCs em 2006
foto: Acervo pessoal
P.168-169 Professores da banca examinadora e alunas
foto: Acervo pessoal
P.175
P.179
P.185
P.189
P.263
Gravação de programa sobre Hip-Hop nas aulas
de radiojornalismo
foto: Acervo pessoal
Espetáculo de dança no Hip-Hop Em Foco
foto: Wagner Alves
P.268
Gueto de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.277
Anita e Jéssica no encerramento das aulas no
4º ano de faculdade
foto: Acervo pessoal
Jéssica Balbino no Jornal de Poços de Caldas em 2007
foto: Michele Miyake
P.288
Jéssica Balbino durante entrevista para o livro-reportagem
foto: Acervo pessoal
Grafite no centro de São Paulo
foto: Acervo pessoal
P.299
Entrevista com King Nino Brown durante as pesquisas
para o TCC
foto: Acervo pessoal
P.317
Periferia de São Paulo, capital
foto: Jéssica Balbino
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)
foto: Acervo pessoal
P.328
Palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008
foto: Jéssica Balbino
Oficina de Hip-Hop e literatura na Zona Sul de
Poços de Caldas
foto: Juliana Martins
P.332-333 Apresentação para o show do pai do Hip-Hop,
P.192-193 Grafite no centro de São Paulo exaltando a cultura de rua
foto: Elza Balbino
P.202-203 Lançamento do livro Suburbano Convicto —
P.209
P.214-215 Oficina de Hip-Hop em escolas públicas
foto: Jéssica Balbino
P.221
Jéssica Balbino na biblioteca pública em Poços de Caldas
foto: Marcos Corrêa
P.226-227 Participação no programa de rádio Mix na rádio 104+
foto: Acervo pessoal
P.234-235 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas
Afrika Bambaataa, na Virada Cultural
foto: Jéssica Balbino
P.337
P.344-345 Cultura Marginal: Pela Vida
foto: Acervo pessoal
P.346-347 Apresentação de break no evento Cultura Marginal: Pela Vida
foto: Acervo pessoal
P.352-353 B.girl e MC durante o evento Cultura Marginal: Pela Vida
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)
foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.357
P.241
Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)
foto: Acervo pessoal
Grafite no palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008
foto: Jéssica Balbino
Gabriel, O Pensador lendo durante a Feira de Livros,
em Poços de Caldas
foto: Acervo pessoal
P.358-359 Jéssica Balbino entrevista MV Bill durante palestra na
P.438-441 Projeto Passa Livros no Terminal de Linhas Urbanas de
Feira do Livro em Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.360-361 Jéssica Balbino e Nega Gizza durante palestra na Feira do
Poços de Caldas
foto: Eduardo Correia
P.445
Livro em Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.378-379 Jéssica Balbino lendo o Jornal Mantiqueira durante o evento
P.446-447 Projeto Passa Livros distribui palavras cruzadas na periferia
de Poços de Caldas
foto: Elza Balbino
“Casa da Imprensa”
foto: Juliana Martins
P.385
Ensaio do grupo de break Silêncio Crewativo
foto: Anita Motta
P.387
Oficina de DJ na Casa do Hip-Hop
foto: Anita Motta
P.388-389 Grafites na Casa do Hip-Hop
Projeto Passa Livros na periferia de Poços de Caldas
foto: Elza Balbino
P.450-451 Rap educativo em escola pública de Poços de Caldas
foto: Jéssica Balbino
P.455
Jovens fazem letras de rap na Casa do Hip-Hop
foto: Acervo pessoal
P.462-463 Jéssica Balbino durante palestra/oficina para estudantes
de Jornalismo
foto: Luciano Santos
foto: Anita Motta
P.390-391 Periferia de Poços de Caldas
P.398
Alunos durante oficina sobre literatura marginal e Hip-Hop
foto: Luciano Santos
foto: Márcio Pinto
P.467
Jéssica Balbino e o escritor Renato Vital
foto: Acervo pessoal
P.472-473 Palestra sobre literatura marginal e Hip-Hop em escola
P.399
King Nino Brown no acervo da Casa do Hip-Hop
foto: Acervo pessoal
P.407
DJ Pow do grupo Império Z/O durante as entrevistas para
o livro-reportagem
foto: Acervo pessoal
pública para alunos do ProJovem
foto: Luciano Santos
P.474
Professor entrega textos sobre literatura marginal
para alunos
foto: Luciano Santos
P.480-481 Programa Repercussom com música negra na periferia
foto: Jéssica Balbino
P.410-411 Lançamento do livro Suburbano Convicto —
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)
foto: Acervo pessoal
P.484-485 Evento Hip-Hop em Foco 2
foto: Wagner Alves
P.416
UClanos durante show no Circo Voador no Hutúz 2009
foto: Jéssica Balbino
P.488-489 Evento Sesc em Dia com a Leitura
foto: Elza Balbino
P.422-423 Encontro do grupo UClanos com MC Budog do grupo
Elemento.S
foto: Jéssica Balbino
P.428-429 Grafite no evento Beatz, Zona Sul de Poços de Caldas
foto: Jéssica Balbino
P.430-431 Garoto se converte durante o show do grupo Manuscritos
em Poços de Caldas
foto: Acervo pessoal
P.494-495 Programa Repercussom
foto: Jéssica Balbino
P.502
Jéssica Balbino
foto: Marcos Corrêa
502
Sobre a autora
Jéssica escreve para a massa. E por não conseguir largar mão desse vício tornou-se jornalista. Já acreditou na
utopia de mudar o mundo. Hoje tenta mudar a própria
quebrada. Prefere a rua às redações e gosta mesmo é de
mergulhar nas matérias, indo além das pautas. Foge do
jornalismo convencional e se alia ao literário, tentando
descobrir pequenas histórias, sempre relatadas em
grandes matérias.
É apaixonada pelo hip-hop, pela sua vivência e essência. Não sabe cantar rap, riscar discos, dançar break ou
mesmo grafitar. É eclética e aliou-se ao 5º elemento —
conhecimento — ainda adolescente e nunca mais conseguiu deixar. Tem mania de falar que o hip-hop salvou a
sua vida e passando isso adiante faz de tudo para tentar
salvar esta cultura.
Atua em projetos como “Cultura Marginal”, por meio de
palestras e oficinas com literatura para crianças e jovens,
promove e participa de eventos de hip-hop e distribui
livros, poemas e sorrisos pelas ruas da cidade de forma
gratuita, por acreditar que um dia fica melhor na vida de
quem recebe cultura. Não vive sem e fora da periferia.
Acha esta palavra tão linda e rica quanto este mundo é na
realidade, e o melhor: pulsa.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Imprinta Express em setembro de 2010.
Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter
as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.
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[Traficando Conhecimento] Jéssica Balbino