REPRESENTAÇÕES DIABOLIZADAS DA MULHER
EM TEXTOS MEDIEVAIS
Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)
Comecemos por nos reportar aos séculos XV e aos inícios do século XVI, quando todo
o processo misógino efetivado na Idade Média ganhara força de lei através dos manuais de
caça aos hereges para as fogueiras do Santo Ofício. A prática da bruxaria, que era encarada
no âmbito das superstições e sortilégios, considerada maléfica e demoníaca torna-se uma
das principais metas da repressão, que relacionou-a intimamente com a natureza feminina.
Portanto, nessa época cristaliza-se definitivamente a imagem da bruxa, causadora de
malefícios aos homens (doenças, deformidades, esterilidade, impotência, transformações) e
à natureza (secas, tempestades). Imputam-lhe ainda o sacrifício de criancinhas, mesmo os
próprios filhos, para alimento ou preparação de poções e ungüentos; além de pacto com
demônios, servindo-os de corpo e alma, inclusive com eles copulando. Ainda hoje, através
principalmente de filmes, povoam o nosso Imaginário, locomovendo-se pelo ar montadas
em uma vassoura. Segundo a fértil imaginação dos inquisidores, isto decorreria do seguinte
método:
De posse da pomada voadora, que (...) tem sua fórmula definida pelas
instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas
mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de
vassoura; depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de
noite, na visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade; (...) E não obstante
o diabo realize tal prodígio em grande parte através da pomada − para que as
crianças se vejam privadas da graça do batismo e da salvação −, parece que
também consegue o mesmo resultado sem o seu emprego. Já que, vez ou
outra, transporta as bruxas em animais, que não são de fato animais mas
demônios naquela forma, e noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio
1
exterior, elas são visivelmente transportadas exclusivamente pela força dos
demônios1.
Esse perfil estigmatizado de mulher foi uma construção de séculos, delineando-se em
vários textos, alguns dos quais selecionamos para análise, a saber: o Tratado do amor
chamado cortês, de Andreas Capellanus, a versão portuguesa da Demanda do Santo Graal,
o Orto do Esposo e o Malleus Malleficarum. Iniciaremos com este último, por ter sido o
manual, oficializado pelo Papa, para a perseguição às bruxas pela Inquisição, levando à
tortura e à morte mais de 100 mil mulheres.
Embora o Tribunal do Santo Ofício visasse ao combate dos hereges de ambos os sexos,
e as bulas papais não fizessem distinção de gênero2, ao fomentarem a repressão a maioria
esmagadora dos seus réus era constituída por mulheres. O historiador Jean-Michel
Sallman3, destaca, para só lembrarmos um dos exemplos aventados, com base em arquivos
judiciais, no Norte da França entre meados do século XIV e finais do século XVII, que
foram documentados 288 casos de bruxaria, numa proporção de 82 mulheres para cada 100
casos. No século XV a perseguição às bruxas alcançaria o seu apogeu, ocorrendo o auge
das fogueiras entre 1455-1460 e 1480-1485.
1
KREMER, SPRENGER, 1991, p. 228.
Já na década de 1320 o Papa João XXII promulgara a bula Super Illius Specula, que condena a magia ritual,
taxando-a de diabolismo e heresia. Muito embora ela sempre tivesse existido no folclore − como por exemplo
nos ritos de fertilidade, no culto romano de Jano, etc. −, a Igreja do século XIV a estigmatizaria por completo,
vendo nela genericamente um pacto com o demônio. Inclusive os Templários foram extintos sob esta
alegação, entre 1307 e 1314. E em 1398 a própria Universidade de Paris aderiria a esta posição.
3
SALLMAN, 1992, p. 472.
2
2
Malleus Maleficarum
Nesse contexto, em 1484, é escrito o Malleus Maleficarum por James Sprenger e
Heinrich Kramer4, tendo como uma das suas fontes o Fornicarius de John Nider (1435).
Seus autores foram reconhecidos pelo Papa Inocêncio VIII como autoridades para o
combate aos crimes de bruxaria no vale do Reno, através da bula Summis desiderantes
affectibus, de 1484.
Importa sobretudo relevar a posição extremadamente anti-feminista do Malleus
Maleficarum, que fundamenta a sua misoginia na gênese de Eva, criada de uma parte de
Adão. Firma-se, desde aí, a sua inferioridade natural e a explicação do seu espírito retorcido
e perverso, uma vez que originada de uma costela recurva, interpretada como símbolo de
marginalidade5; bem como é responsabilizada pela caída do homem, por sua expulsão do
Éden.
A experiência pessoal dos autores-inquisidores, aliada à ficção do Gênesis, e ao que
tudo indica à psicótica interpretação de fatos e textos, os leva a destacarem nas mulheres a
natureza rebelde e a debilidade congênita, que as conduziriam ao sentimento de vingança,
buscando castrar os machos com os poderes da magia. Atribuem-lhes também a maior
sensibilidade à tentação demoníaca, ao malefício, por serem mais crédulas, mais
impressionáveis, ou mais charlatãs e luxuriosas6.
4
Traduzido e publicado há alguns anos no Brasil (a 2ª ed. é de 1991) sob o título O martelo das feiticeiras,
pela Editora Rosa dos Tempos, conta com Introdução de Rose Marie Muraro e Prefácio de Carlos Byington.
5
KRAMER, SPRENGER, 1991, p. 158.
6
Daí haver, dentre outros, Jean-Michel Sallman (DUBY, PERROT, 1992, v. III, p. 475) interpretado essa
visão da bruxaria como uma guerra de sexos, tornados vítimas os homens. Outros a interpretam como uma
inversão psicótica do humanismo e do mito cristão, uma vez que, na observação de Carlos Amadeu B.
Byington (KRAMER, SPRENGER, 1991, p. 159), atribui uma excessiva valorização aos poderes das
feiticeiras e do demônio, ao mesmo tempo que uma desvalorização do Messias e de Maria, tornados
fundamentalmente Menino e Mãe; e ainda promove a anulação do símbolo da Madalena na Paixão.
3
Passagens da Bíblia são usadas para a firmação da perversidade e da malícia das
mulheres, bem como a autoridade de S. João Crisóstomo, através da sua exegese da visão
celibatária de Mateus, 19:
Que há de ser a mulher senão uma adversária da amizade, um castigo
inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade
desejável, um perigo doméstico, um deleite nocivo, um mal da natureza,
pintado de lindas cores. Portanto, sendo pecado dela divorciar-se, conviver
com ela passa a ser a tortura necessária: ou cometemos o adultério,
repudiando-a, ou somos obrigados a suportar as brigas diárias7.
Nesse manual, embora registre que "para as mulheres de boa índole são muitíssimos os
louvores"8, a idéia que sobressai é a da sua maldade, da sua lascívia, firmada também
através da autoridade dos clássicos greco-latinos, como Sócrates, Cícero, etc.9. A lascívia,
aliás, é encarada como o canal por excelência de atuação do demônio. Daí, a conclusão:
"Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres"10. Daí "ser maior o
contigente de mulheres que se entregam a essa prática", inclusive as predispondo à cópula
com o demônio, com os Íncubos,11. Seria mais raro o coito de homens com Súcubos,
“porque sendo intelectualmente mais fortes que as mulheres, são mais capazes de abominar
tais atos”12.
7
KRAMER, SPRENGER, 1991, p. 159. Aliás, lembramos que tais definições neolatinas fazem coro às do
grego Hesíodo, na Teogonia (1969, p. 42), onde, ao falar da formação da mulher por Zeus, a ela se refere
como "mal tão belo": criando-as, o Deus doou aos homens "em lugar de um bem, um mal"; acrescente-se que
o casamento é por ele apresentado como fonte de inquietação e de gastos.
8
KRAMER, SPRENGER, 1991, p. 115.
9
Além das autoridades aí citadas, lembramos que também Hesíodo falava do "mal que compensa o bem",
com referência ao casamento com "uma boa esposa de mente sã" (HESÍODO, 1979, p. 43).
10
KREMER, SPRENGER, 1991, p. 121.
11
Os Íncubos são reconhecidos por Santo Agostinho como Sátiros ou Faunos (KREMER, SPRENGER, 1991,
p. 83), opinião respaldada ainda por Santo Isidoro, que dizia serem os Sátiros chamados de Pãs pelos gregos e
Íncubos pelos latinos, “por se deitarem sobre algo − ao entregarem-se a orgias” (KREMER, SPRENGER,
1991, p. 84), ou ainda Faunos pelos romanos.
12
KREMER, SPRENGER, 1991, p. 322.
4
Ao lado da luxúria, a infidelidade e a ambição se apresentam como os vícios que
levariam as "mulheres perversas" à bruxaria13, bem como, já o vimos, a sua maior
credulidade, indiscrição, impressionabilidade. Chegaram os inquisidores ao cúmulo de
considerarem os crimes das bruxas superiores em atrocidade não apenas a todos os demais
crimes humanos, mas até aos dos demônios ou anjos caídos14.
Já na segunda metade do século XVI, o interesse pela bruxaria por parte da Igreja seria
suplantado pelo "perigo" maior da Reforma; no entanto, esse interesse seria mantido por
tribunais de casas senhoriais. E com o Renascimento cultural, a magia erudita, notadamente
a astrologia, seria revalorizada, em detrimento das práticas populares.
De amore, de Andreas Capellanus
Olhando para trás, à busca dos textos que foram construíndo desde o século XII a
imagem da mulher como um ser diabólico por excelência, deparamo-nos com o De amore,
o mais conhecido Tratado do amor chamado cortês, atribuído ao enigmático Capelão
André15. Escrito provavelmente no século XII, muito embora as suas primeiras edições
conhecidas sejam bem posteriores, dos séculos XIV/XV16, compõe-se de três partes: 1)
Introdução ao Tratado do amor, 2) Como manter o amor, 3) Condenação do amor.
Lembraríamos preliminarmente, com Jean Markale17, que toda codificação resulta de
uma prática, reconhecida e generalizada, mas, segundo pensamos, não necessariamente
ultrapassada como assegura ele. Daí que, após ocorrer com algumas variações nas
13
KREMER, SPRENGER, 1991, p. 121.
KREMER, SPRENGER, 1991, p. 174, p. 184. Como já bem observara Rose Marie Muraro, colocou-se "no
sexo o pecado supremo"14, ficando, assim, o poder "imune à crítica" (KREMER, SPRENGER, 1991, p. 12).
15
Ao que parece, foi contemporâneo do rei Felipe Augusto da França.
16
Por exemplo, as edições bilíngües com tradução do século XIV latim/catalão e latim/toscano (BURIDANT,
2000, p. LXXV) .
17
MARKALE, 1998, p. 33.
14
5
narrativas do ciclo arturiano e na praxis trovadoresca occitana, bem como possivelmente
nos comportamentos em moda nas cortes femininas18, o amor “refinado”, distinto do amor
instintivo dos camponeses, teria suas regras sistematizadas pelo Capelão.
O amor cortês, como posteriormente foi denominado, é um amor heterossexual,
despertado pela “percepção da beleza do outro sexo”, pela visão da amada, exigindo do
amante uma total vassalagem, um nunca descuidar-se, uma coragem e prontidão
permanentes, como no serviço militar. Até aqui, nenhuma novidade com relação à Arte de
amar ovidiana, alías muito conhecida à época, inclusive por Chrétien de Troyes, autor de
Lancelote, etc. Mas a summa amatoria do clérigo vai além até mesmo do amor das
cantigas e “cavalarias”, que o consideravam a base de todas as virtudes, da cortesia, da
mesura: ele distingue o amor purus do amor mixtus. O segundo consistiria na realização de
todos os graus do processo: ter/dar esperanças, beijar, abraçar e ter contatos mais íntimos
entregar-se totalmente. O primeiro excluiria a cópula, mas não pode ser confundido com o
amor platônico, ou com o amor místico, proposto à época por São Bernardo. Como
observa Claude Buridant, “ao excluir a posse física e ao alimentar indefinidamente o
desejo, ele engendra um aperfeiçoamento que nunca tem fim, a paixão jamais satisfeita está
salva do declínio e do cansaço”19.
Na conclusão de A. J. Denomy20, a mecânica desse amor cortês “consiste em três
coisas fundamentais: a posição elevada do ser amado, a elevação do amante em direção ao
ser amado, o amor como desejo e anseio”. À mulher, à domina cultuada, caberia, nesse
18
Como principalmente a de Poitiers, sob o império de Leonor da Aquitânia, ou a de Champanha, regida pela
condessa Maria, sua filha, ou ainda a da rainha Alix de Champanha, a da condessa Isabel de Flandres e a da
viscondessa Ermengarda de Narbona (para só lembrarmos as cortes regidas por mulheres que participam
como juízas no Tratado).
19
BURIDANT, 2000, p. XLVI. Esse ponto de vista é defendido pelo interlocutor do último diálogo da
primeira parte do Tratado, que se confundiria com o próprio André, opondo os prazeres infindáveis da parte
superior aos da parte inferior, que terminariam ao serem saciados, tornado-se fastidiosos.
6
processo ser parcimoniosa em seus favores, obedecendo à etapas próprias do processo
amatório, fornecendo recompensa gradual ao amante. Em última instância, a disciplinação
dos instintos estaria na base dessa relação.
A terceira parte do Tratado21 opõe-se drasticamente a esse culto à mulher e ao amor
propostos nas suas duas partes iniciais, passando ambos a serem vilipendiados. A
advertência que é feita ao misterioso Gualtério, a quem a obra se destina, não deixa dúvidas
quanto à interpretação da sua finalidade: a exprobação do amor mundano em prol da ascese
espiritual22. A doutrina amatória e as técnicas de sedução das mulheres devem ser
conhecidas, mas para ser evitado o amor, merecendo quem o consegue um maior galardão
celestial, já que “mais compraz a Deus aquele que, tendo a possibilidade de pecar, não o
faz, do que aquele a quem não foi dada tal possibilidade”23.
A partir daí, são apresentadas as razões para a condenação do amor-livre, das “obras de
Vênus” — enfim do adultério e outras formas de entregar-se à luxúria — , enquanto
pecados que conduzem ao inferno. A ausência de amor ao próximo e as inimizades e
crimes são outros dos pecados advindos como conseqüência do amor carnal. Arrolam-se,
ainda, a escravidão em que se mantém o amante, obsessionado pela amada, ciumento e
20
Citado por BURIDANT, 2000, p. XLII.
Tem sido deixada de lado por historiadores medievalistas em ensaios das últimas décadas, como Georges
Duby (1989) ou Jean Markale (1987/1998). Mas não por seus editores ou tradutores. Já a sua tradutora para o
castelhano e autora de elucidativo Prólogo à obra, Inés Creixell Vidal-Quadras, dentre outras pertinentes
observações, chama a atenção para o caráter dialético do Tratado, destacando ser Ovídio não apenas a fonte
clássica mais citada pelo Capelão, como também a sua principal fonte estrutural. Poderíamos, com ela,
concluir que o autor, educado sob o signo da dialética e da lógica, como era comum à época, coloca em
confronto dois pontos de vista antagônicos: o da Igreja e o da sociedade.
Claude Burindant, outro tradutor da obra, tem opinião aproximada. Examinando detidamente este e outros
aspectos da retórica da obra, do seu caráter dialético, bem como as observações de outros especialistas,
destaca que o período não possuía unidade intelectual: de um lado, o plano mundano e intelectual, dominado
pela cortesia; de outro, o clero e as comunidades guerreiras dos senhores feudais, isto é, os meios puramente
masculinos. Por isso o Tratado não pode ser encarado sob a ótica do racionalismo moderno, que busca tudo
reduzir à unidade. Mas como “testemunho do dualismo profundo de uma cultura que, em fins do século XII e
mais tarde ainda, admite a coabitação de elementos heterogêneos” (BURIDANT, 2000, p. LXXV).
21
7
temeroso por perdê-la, abraçando, por isso, a criminalidade ou a miséria; o seu eterno e
intolerável sofrimento; a ausência da virtude da castidade e da continência, levando à
depravação, pior ainda se praticada por mulheres — tornadas dessa forma “vis prostitutas
desprezíveis”. Enfim, o erotismo se apresenta como fonte de todo crime, de todo pecado
(homicídio, perjúrio, furto, ira, incesto, falso testemunho, idolatria...). Porque, diz o texto,
a castidade e o pudor são atributos de Deus, ao passo que do enganador Diabo são o amor e
a luxúria. O matrimônio se apresenta, então, como meio de se vencer a concupiscência
sem pecar, tendo em vista a procriação.
Ainda são lembrados os aspectos da sintomatologia amorosa, que levam à debilidade
do amante: falta de apetite, insônia, má digestão, fadiga, loucura, obsessão — fraquezas
físicas e mentais, que conduzem à diminuição dos dons divinos, ao envelhecimento, à
morte.
O que mais nos importa é que o Capelão dedica algumas páginas de total misoginia à
condenação do amor, apresentando as mulheres como incapazes de amar, egoístas,
interesseiras, mesquinhas, avaras, infiéis, ladras, invejosas, maledicentes, concupiscentes,
inconstantes, inconseqüentes, desobedientes, rebeldes, soberbas, mentirosas, indiscretas,
gulosas, alcoólatras, charlatãs, hipócritas, insaciáveis, supersticiosas, etc. — culminado pela
afirmação “absolutamente nenhuma mulher possui o principio da sabedoria”24.
Evidentemente que se baseou em lugares-comuns então correntes, desde os exemplos
clássicos, como o de Aristóteles − que, apesar de sábio, não ficou imune à sedução
feminina, conforme se divulgava no lai d’Aristote de Henri d’Andeli −, aos bíblicos, que
22
Ao invés de considerá-lo um meio do seu alcance, não respaldando a metafísica da sexualidade defendida
por Markale.
23
ANDREAS CAPELLANUS , 1985, p. 368-369. Traduzimos.
24
ANDREAS CAPELLANUS, 1985, p. 396-397. Traduzimos.
8
colocam a mulher como causa da perdição do homem − por exemplo Adão por Eva, Sansão
por Dalila, Lot por suas filhas, Holofernes por Judite, etc. −, ou que insistem em
generalizações proverbiais do tipo “Femina nulla bona”, presentes em obras parenéticas e
satíricas25.
Enfim, a acreditarmos no discurso do Capelão a Gualtério, a arte de amar ser-lhe-ia
desvelada para atender-lhe
a curiosidade juvenil, os anseios naturais, mas com a
admoestação final contra o perigo que representa para o espírito os prazeres da carne; e, por
extensão, contra a mulher, essa pérfida representante das forças do mal, essa EVA
diametralmente oposta da AVE, da Virgem em cujo culto à época Igreja tanto investia, por
exemplo na construção das grandes catedrais marianas.
A Demanda do Santo Graal
Antes do mais, lembramos que, inscrita na Post-Vulgata, isto é, na vasta produção
tardia (século XIII) do chamado ciclo bretão ou arturiano, a Demanda origina-se de lendas
celtas cristianizadas. Como sabemos, os celtas eram considerados adversários por gregos e
latinos. Após se terem espalhado pela Europa, foram relegados às Ilhas Britânicas pelo
Império Romano, onde conservaram as suas crenças até o século V d.C.. Alguns dos seus
descendentes cristianizados, habitantes da Irlanda, da Escócia e de Gales, retornariam à
Armórica, isto é, à Bretanha continental, a partir desse mesmo século, aí desenvolvendo
uma invulgar produção literária de profundas repercussões em toda a Idade Média do
Ocidente, graças inclusive aos monges irlandeses que a disseminavam pelo continente
europeu, nas suas missões.
25
BURIDANT, 2000, p. LXII-LXVI, p. 303; BRAGANÇA JR., 2000, p. 96-99.
9
É evidente que tal cultura, desse modo espalhada, acabaria, através da influência dos
sacerdotes cristãos, por ter modificado o seu substrato dito “pagão”, desconhecedor das
noções de "pecado" ou "culpa". Mas não se lhes cabe o epíteto “bárbaros”, sendo muito
superiores aos romanos no tocante à condição da mulher, que podia exercer posições de
liderança na família e na religião: cabeça-de-casal e grã-sacerdotisa26.
Na versão portuguesa da Demanda do Santo Graal − que remontaria ao século XIII
(1230-1240), feita a partir de original francês e documentada em pergaminho do século
XV27 − , a mulher se apresenta como obstáculo maior à ascese espiritual a que almejavam
os cavaleiros. Muito embora o destaque positivo se apresente em algumas passagens, marca
do substrato celta não elidido por completo. Por exemplo: no capítulo inicial da obra
aparece uma donzela na função de mensageira (papel que será desempenhado por mulheres
em várias outras ocasiões), incumbida pelo ermitão de conduzir Lancelote para sagrar
cavaleiro a Galaaz; quando da decisão de partirem os cavaleiros em busca do vaso sagrado;
é uma “donzela laida” quem traz a espada indicadora dos cavaleiros aptos para a Demanda,
manchando-se de sangue ao ser tocada por Galvão, o mau cavaleiro28, instado por Artur a
não partir com os demais. Mas mesmo neste episódio já atrapalham os cavaleiros, uma vez
que, ao se prepararem para partir, "começaram as mulheres sua lamentação tão grande a
fazer, que era maravilha, e foram entrar no paço como loucas"29.
26
Já os romanos, praticavam costumes androcráticos que, para só citarmos dois aspectos, negavam à mulher
o direito à cidadania, relegando-a à condição de escravo, e estabeleciam a linhagem pelo ramo masculino,
contrastando com os celtas, que a instituiam matrilinearmente.
27
Manuscrito 2594 da Biblioteca Nacional de Viena. Nessa época possivelmente já existiria a versão
castelhana do mesmo original .
28
MEGALE, 1988, p. 25; p. 44.
29
MEGALE, 1988, p. 43. Tal manifestação, evidentemente, marca a inferioridade delas em relação à
superioridade dos homens, apenas eles marcados para o encontro místico, dados a todos os sacrifícios para tal
impostos. Num outro passo da Demanda, acentua-se o preconceito contra a mulher, Eva tentadora: o cavaleiro
Leonel encontra uma mulher casada que conhecera em tempos idos. O marido, encontrando-os conversando e,
imaginando-se traído, decide vingar-se: "Matarei primeiro a ela, que o fez aqui vir. E depois a ele, que veio
10
Tal perspectivação misógina, que atribui caráter diabólico às personagens femininas, é
sobremodo claro no episódio que focaliza a filha do rei Brutus, a qual, apaixonando-se por
Galaaz, e não conseguindo seduzi-lo, tragicamente se suicida30.
Lembraríamos, ainda, um outro episódio bastante significativo com relação à influência
da ideologia cristã medieval sobre a lenda bretã, referente ao "inferno dos namorados": no
capítulo que fala dos sonhos de Lancelote, este, dentre outras visões, "parecia que via
diante de si Morgana, irmã de rei Artur, muito feia e muito espantosa, tanto que bem lhe
parecia que então saíra do inferno"31. Os demônios, que a acompanham e atormentam,
acabam por levá-lo a "um vale muito fundo e muito escuro e muito negro e onde não havia
luz a não ser um pouco"32. Neste lugar de sofrimento extremo, numa "grande cadeira de
fogo tão acesa, como se nela queimasse todo o fogo do mundo", vê a rainha Genevra em
pavoroso sofrimento, lamentando-se desse "galardão do amor"33: a condenação ao
Inferno34.
Mas há outros acontecimentos na Demanda que acusam ainda mais radicalmente a sua
misoginia. E não estamos pensando no fato de ser sob a aparência de formosíssima donzela
aqui para meu mal" (MEGALE, 1988, p. 147). A culpabilidade primeira é, deste modo, atribuída à mulher,
sedutora estigmatizada, punida com a morte pela simples suspeita de adultério.
30
E o faz enterrando a espada ao peito - gesto, aliás, simbólico em relação ao seu desejo. Não sem antes
explorar-lhe o sentimento de culpa: "porque me matarei com minhas mãos e tereis por isso maior pecado do
que se me tivésseis convosco, porque sois a razão de minha morte, e vos ma podeis impedir, se quiserdes"
(MEGALE, 1988, 101). Por outro lado, a Galaaz, o cavaleiro-perfeito, não seria permitido ter pecado tal na
consciência, muito embora também a sua castidade devesse ser preservada. Daí que o anônimo autor da obra
resolva a situação de modo a livrá-lo duplamente da culpa, fazendo-o ensaiar um gesto, infrutífero, e pouco
convincente para nós leitores, de impedimento ao suicídio da jovem30. Com a "benevolência" do seu gesto,
que não carece de concretização, salva-se, pela intenção, o herói imaculado para o Encontro Maior. Ao passo
que para a mulher restam, mais uma vez, as penas infernais.
31
MEGALE, 1988, p. 170.
32
MEGALE, 1988, p. 170.
33
“- Ai, Lancelote! Tão mau foi o dia em que vos conheci! Tais são os galardões do vosso amor! Vós me
lançastes neste grande sofrimento em que me vedes; e eu vos lançarei em tão grande ou maior, e pesa-me
muito, porque estou perdida e condenada ao grande sofrimento do inferno; não queria que acontecesse assim a
vós, antes queria que acontecesse a mim, se a Deus prouvesse” (MEGALE, 1988, p. 171).
11
que o demo aparece a Persival, para tentá-lo35, já que também sob a forma de um belo
mancebo se apresentaria à filha do rei Hipômenes. Estamos nos referindo, sim, a esta
última, e à causa de haver ela concebido nada mais, nada menos... que a "besta ladrador"36.
Tão formosa quanto letrada e sábia, apaixonara-se pelo irmão, que tenta seduzir lançando
mão de "todas as maravilhas que pôde, tanto pela ciência como por outra coisa". Rejeitada,
"queria matar-se para sair de sua aflição. E apareceu-lhe o demo em figura de homem tão
formoso e tão bem feito que (era) maravilha". Este a dissuade de matar-se, prometendo-lhe
que a faria subjugar o amado, desde que a possuísse. "E quando deitou com ela, teve ela tão
grande prazer, que lhe esqueceu o amor de seu irmão tão mortalmente, que mais não
poderia". Restou-lhe apenas o sentimento de vingança, que a leva a, industriada pelo
amante, forjar uma situação em que pareceria estar sendo agredida pelo irmão,
denunciando-o a seguir por estupro, que seria fácil de se comprovar pelo estado de gravidez
já aparente em que se encontrava. Ele, então, é condenado à cruenta morte por ela sugerida
ao pai, devorado por cães famintos. Não sem antes proclamar a sua inocência e profetizar o
nascimento do horrendo filho do diabo37, que sempre ladraria "em lembrança e em
memória dos cães" a que ela o fizera ser entregue. Esta besta se tornaria o flagelo dos
cavaleiros na floresta, mas acabaria morta por Galaaz, o cavaleiro predestinado, cujo nome
aliás era também o do jovem sacrificado pela perfídia da irmã. Quando do nascimento do
monstro, o rei percebe a verdade e condena a filha a um castigo pior do que o que fora dado
34
Nisto difere das partes iniciais, não da final, do Tratado de Andreas Capellanus, que apresenta o amor
carnal como algo natural, sendo assim uma ofensa mínima a Deus. Tal é a opinião de F. Schlösser sobre o
livro do Capelão, retomada por BURIDANT, 2000, p. LXVII.
35
MEGALLE, 1988, p. 212.
36
MEGALE, 1988, p. 457-460.
37
Lembramos que, como no Malleus Maleficarum, a mulher é considerada mais susceptível de copular com o
demônio que o homem. A Demanda difere do manual quatrocentista dos inquisidores pelo fato de neste se
apregoar que a criança gerada de tal união não é filha do diabo, mas da utilização, por este, do sêmen de
algum homem. Cf. KRAMER, SPRENGER, 1991, p. 89, -215,
12
ao inocente, após forçá-la a confessar "como fizera matar seu irmão injustamente e como o
demo deitou com ela não o conhecendo e depois que o conheceu também".
Esta personagem feminina é uma das mais bem acabadas imagens precursoras da bruxa,
tal como a vimos sistematizada nos finais do século XV pelo Malleus Maleficarum.
Novamente a mulher se apresenta como a criatura mais facilmente enganável pelo diabo,
vingativa e lasciva, susceptível de com ele copular. Criatura a quem se devia temer pelo seu
poder, que na personagem em foco se representa não apenas pela intervenção satânica, mas
pelo fato de ser superiormente letrada, "tão entendida e tão sábia, que todos se
maravilhavam da sua sabedoria"38. Através de tal exemplo de mulher diabólica, letrada e
sensual, propugnava-se o modelo contrário de mulher virtuosa, ignorante e castrada39.
Orto do Esposo
O Orto do Esposo é obra tardo-medieva, de doutrinação religiosa, com tendências
vincadamente ascetas, em que as reflexões moralizantes aparecem via de regra ilustradas
38
MEGALE, 1988, p. 457.
Diante desses aspectos, que denunciam os preconceitos medievais contra o feminino, notadamente gritantes
no que concerne à sua sexualidade e saber, em que consistiria a tão decantada valorização da mulher
promovida pelo cristianismo?... É certo que, em relação ao estatuto da mulher grega e romana anterior ao seu
advento, promoveu-lhe uma acentuada melhoria no Ocidente. Mas não podemos nos esquecer que, a partir do
século XIII, e sobretudo no século XVI, ocorreria a revalidação do Direito romano, que muito influenciaria o
androcrático Código Napoleônico do século XIX. É certo igualmente que fora graças à difusão dos
Evangelhos que desapareceria, no fim do século IV, a mais terrível discriminação contra a mulher, com o fim
da "patria potestas", que outorgava ao pai o direito de vida e morte sobre os filhos. Com base nesta desumana
lei, fora costume entre as famílias deixarem viva, em geral, apenas a filha mais velha, ao nascer. Ao passo
que os varões eram conservados todos vivos por necessidades militares, excluídos os defeituosos ou muito
fracos (PERNOUD, p. 18-23). E isto se acrescentava ao fato de não ser a mulher considerada sujeito de
direito em Roma, embora não sendo já confinada ao gineceu, como entre os gregos, ou ao harém, como entre
os árabes.
Mas se o cristianismo veio amenizar a "inferioridade natural da mulher", aceita até mesmo na Roma
Imperial, quando já se tornara mais suave a condição feminina (PERNOUD, p. 18-23), não chegou no entanto
a outorgar-lhe a importância que entre os celtas possuía. A começar da própria divindade, apresentada como
exclusivamente masculina na tradição judaico-cristã. A começar da mítica inferioridade atribuída à primeira
mulher por esta cultura, já que simbolicamente originada de uma das costelas do primeiro homem. Para não
falar da sua exclusão do sacerdócio, ao passo que a mulher druida exercia a função de grã-sacerdotisa, na qual
se manifestava a Grande Deusa, a quem todos, sem exceção, deviam obediência.
39
13
por numerosos exempla, em muitos dos quais se focalizam mulheres. Estes, certamente que
muito contribuíram para a persuasão dos leitores-ouvintes, para a compreensão, aceitação e
assimilação dos ensinamentos acerca do gênero feminino, respaldados em personagens da
história judaico-cristã e greco-romana, profundamente misóginos.
O fato de ter sido escrito não já em latim, mas em português, no Mosteiro de Santa
Maria de Alcobaça, na transição do século XIV para o século XV, já o coloca em sintonia
com o processo de democratização da Igreja, que se vinha operando nas duas centúrias
anteriores para fazer frente às heresias. Da mesma forma, a utilização do exemplum na
prédica e na literatura moralizadora se faz um eficaz meio de vulgarização dos
ensinamentos, ligando-se, por isto, à renovação das estratégias de pregação promovidas
pelas Ordens Mendicantes.
Trata-se de obra de autor desconhecido e, ao que tudo indica, originalmente
portuguesa. Até porque, no seu Prólogo, o autor afirma tê-la escrito e feito, não apenas
“colocado em linguagem”, expressão que era então usada para designar tradução. Ligada ao
culto do Nome de Jesus, embora determinada por preocupações democráticas, não se
excluía do âmbito da fidalguia, sendo acentuada a influência da Ordem Franciscana nas
cortes de Avis. Arrolava-se, por exemplo, entre os livros de D. Duarte e do seu irmão D.
Pedro, Condestável e Regente na minoridade de Afonso V.
É dirigida a uma irmã anônima, que a solicitara, e aos “simplezes”, para seu deleite e
proveito espiritual, objetivo expresso desde o próprio título da obra, cujas metáforas são
explicadas pelo autor. Divide-se em três tratados: do Nome do Esposo, do Horto da Santa
Escritura (dos seus proveitos e condições e do modo como deve ser lida e ensinada), e da
Vaidade. E, já o lembramos, como era comum em obras do gênero, apresenta explanações
teóricas da doutrina comprovadas por historietas curtas, exemplares, em cada capítulo.
14
As mulheres que nele se representam são algumas santas40, outras muitas pecadoras.
Dentre estas, há as endemoniadas41
e as que solicitam intervenção do diabo para
procriarem42. Há as artistas sedutoras, que, segundo o próprio diabo, "som as nossas armas
e nossos laços, ca per estas cousas que trage e per seus cantares e danças fez a nos gaanhar
muytas almas"43.
Mas chama-se a atenção sobretudo para as vingativas e astuciosas. No primeiro caso,
está a mulher de Alexandre, que seduz Aristóteles por haver aconselhado ao marido não
procurá-la com freqüência44. No segundo caso, está o exemplo da mulher que, trancafiada
em casa pelo marido desde o casamento, pensando dessa forma evitar tornar-se adúltera, no
entanto consegue traí-lo, saindo em trajes íntimos, enquanto ele dormia alcoolizado, para
encontrar-se com formoso mancebo que observava pelas frestas e a quem mandava recados.
Desconfiado o marido pela muita bebida que ela lhe dava à noite, descobre a traição, e não
lhe permite a entrada na casa, para repudiá-la junto aos parentes. Mas a mulher ameaça
atirar-se ao poço − do que ele teria de dar conta aos seus familiares. Como nem assim o
demovesse, lança uma grande pedra ao poço, e o barulho faz com que o marido abra a casa
e vá até lá verificar o acontecido. Dessa forma, ela, que se escondera, entra em casa e
inverte a situação, podendo passar-se, então, por vítima de adultério45.
Este último exemplo, comprovador da malícia feminina, pertence ao primeiro dos seis
capítulos do livro IV em que a misoginia se faz mais radical (capítulos LVII a LXII).
Inserem-se na última parte da obra, em que se condenam as "deleitações corporais" dentre
40
Cf. estudo anterior de nossa autoria (MALEVAL, 1995, p. 65-80).
MALER, 1956, p. 11.
42
MALER, 1956, p. 13.
43
MALER, 1956, p. 161.
44
MALER, 1956, p. 153.
45
MALER, 1956, p. 314-315.
41
15
os outros modos de "vaidade" que levam à perdição. É importante observar-se que este
termo procede do latim vanitãte-, que dentre outros significados possui os de "aparência vã,
mentira, engano, inutilidade". Estes os sentidos que assume no Orto do Esposo, onde se
condena claramente a vanidade, o caráter passageiro, ilusório e enganador dos bens
materiais, em oposição aos espirituais, verdadeiros e perduráveis.
Pois bem, nas condenadas "deleitações corporais", os homens privilegiam ... a
companhia das mulheres. Daí serem amaldiçoadas pelos Padres da Igreja, autoridades
invocadas para sustento de tal ideologia.
Para Santo Ambrósio, é a mulher "porta do diaboo, carreyra de maldade, ferida de
escorpiam", acrescentando que "por muy perfecto que o homë seia, se ouuer familiaridade e
cõuersaçom cõ as molheres, aadur ou nüca pode seer seguro"46.
Aconselha São Jerônimo: "poucas uezes ou nüca trilhe o pee da molher a tua cassaa".
Até porquê ela "lançou o morador do parayso fora da sua possissom (...), ëganou Adam e
Samsom e rey Dauid e Salamõ". A sua língua "soa castidade e todo seu corpo demostra
luxurua". A sua vaidade é tal que dificilmente haverá alguma "posto que seia fea ou uelha,
que se nõ alegre e que nõ ouça de boa mëte que [diga que] he fremosa. Ca, posto que as
molheres sejam castas, delectan-sse seer louuadas por fremosas"47. Disto já sabia, aliás,
Ovídio, como o expressa na sua Arte de Amar, aconselhando os cortejadores ao elogio, com
base nessa fraqueza feminina48.
Adverte Santo Agostinho: "nõ deue homë meos temer as molheres por seerë religiosas,
porque, quãto som mais religiosas, tanto mais toste som tentadas e so semelha[n]ça de
46
MALER, 1956, p. 306.
MALER, 1956, p. 306-307.
48
OVÏDIO, 1992, p. 78-79.
47
16
piedade jaz escondida a luxuria49. Não há referência aos homens religiosos igualmente
fáceis de sucumbirem à tentação.
O Patriarca Salomão também é invocado para sentenciar que "a molher luxuriosa (...)
rouba as almas preciosas". O exemplo lembrado é o do Papa São Leão, que também não
ficou imune à sedução, só conseguindo recobrar-se da onda de desejo que o assaltara, por
uma amiga da juventude, através da fé na Mãe de Deus. Aliás, tal se narra, com mais
dramaticidade, nas Cantigas de Santa Maria, onde o Papa chegaria mesmo a cortar a mão
que fora beijada pela mulher50.
Conclui-se o capítulo estendendo o estigma às velhas, que se tornam alcoviteiras,
trazendo "o ffogo da luxuria pera acenderë os coraçõões dos homës"51.
O capítulo seguinte (LVIII) faz a maldição alcançar às próprias esposas, aconselhando
ao celibato com base nas seguintes autoridades:
Santo Ambrósio: "o ajütamento do casamëto nõ deue seer esquiuado asy come peccado
ou culpa, mas deue-se o homë desuiar delle assy como de carga de necessidade"52.
Diógenes: "Nõ he algüa molher tam boa que nõ aches de que te queixes"53.
Valério Máximo: "E, posto que a molher seia boa, nõ leixa porë de seer ëcargo e
tribulaçom." Acrescenta ainda que "a muy boa molher (...) he mais pouca ëno müdo que a
aue Finiz"54.
Hugo de São Vítor: "a uida de contee[n]ça he folgada, a qual nõ perde folgança e
asessego per rrazõ de sospeita da molher. Nom lhe dam cuydado as despesas dos seruidores
në a contoruã as maas condiçõões dos filhos"55.
49
MALER, 1956, p. 654-655.
ALFONSO X, p. 308-309.
51
MALER, 1956, p. 310.
52
MALER, 1956, p. 310.
50
17
No capítulo LIX denuncia-se a malícia das fêmeas, suas lágrimas falsas, seu instinto
assassino, já que mata por amar e por desamar; estigmatiza-se a "falsura da femea
todapoderosa", que "mays ligeyramente se moue a fazer todollos maleficios que o homë"56,
citando-se Pitágoras, Catão, Cícero. Ressaltemos que também São João Crisóstomo, o Boca
douro, é autoridade à qual se recorre − aliás, o mesmo que por sua radicalidade seria um
dos suportes básicos dos inquisidores Sprenger e Kramer no Malleus Maleficarum, em sua
perseguição às bruxas em fins do século XV. A citação à qual ambos os textos recorrem é,
na tradução do Orto do Esposo, a que segue:
Nõ compre cassar. Que outra cousa he a molher senõ jnmiiga da amizade e
pena a que nõ podem escapar, mal necessario, tëptaçom natural, maa uëtura
desiada, periigo domestico, perdimëto delectoso, natura de mal pintada cõ
collor de bem?57
Exemplo da periculosidade feminina é o já comentado anteriormente, da adúltera que
engana duplamente o marido, terminando por passar-se por vítima, vencendo, dessa forma,
a força e a inteligência do homem.
Outros pensadores, como Santo Agostinho, são igualmente invocados. E conclui-se com
São Jerônimo, para quem "cara cousa he ao pobre mãteer molher, e ao rico he tormento de
a soffrer"58.
O capítulo LXI fala da má mulher, a pior companhia que se possa ter. O exemplo
evocado tem como protagonista o diabo, que fazendo-se passar por homem, casa-se com
53
MALER, 1956, p. 310.
MALER, 1956, p. 311.
55
MALER, 1956, p. 312.
56
MALER, 1956, p. 313.
57
MALER, 1956, p. 313.
58
MALER, 1956, p. 315.
54
18
uma mulher tão terrível, embora rica, que termina por preferir retornar ao inferno a
continuar convivendo com ela.
O LXII estabelece o louvor aos castrados e às mulheres estéreis ou insensíveis ao sexo,
apresentando como preferíveis os filhos espirituais aos carnais, que podem proporcionar
danos aos genitores. O exemplo apresentado é o da abadessa grávida salva da punição pela
Virgem.
Após tanta abominação, o que pode salvar uma mulher?59 O isolamento, abraçado pela
Madalena60; o jejum, que leva à cura dos males corporais, à contemplação e à consolação
espiritual, enfim, à sanidade/santidade. Ao contrário, a super-estima pelo corpo, o orgulho e
a vaidade só conduzem à perdição. Tal se comprova no exemplo que focaliza uma duquesa
veneziana, a qual se banhava com o orvalho do céu, especialmente para ela recolhido por
não querer usar a água que servia às pessoas comuns; que usava talheres de ouro às
refeições; que tinha os seus aposentos perfumados com odores preciosos; mas que, ao
adoecer, apodrecera ainda em vida, de forma que exalava tal fedor que a todos afastava, só
ficando junto dela a serva a que a isso era obrigada61.
Voltando à Madalena, observa Helder Godinho62 que, sendo "uma das santas mais
veneradas na Idade Média, representa alguém que chegou à vida contemplativa depois de
um percurso pelo mundo, pelo pecado e pelo amor". Redimida pelo amor de Cristo, é
59
Helder Godinho interpreta o parentesco da imagem predominante de mulher no Orto, aproximando-o das
"velhas concepções míticas da Ordem Universal no feminino, enquanto Ordem Universal sujeita ao tempo
que as Grandes Deusas da fertilidade e da morte exemplificam" (GODINHO, 1995, p. 100). Pela expulsão do
Paraíso atemporal responsabiliza-se a mulher, sendo portanto criadora de um Mundo sujeito ao tempo
destruidor. Como o ouro (corpo da terra), que seduz o avarento, o corpo da mulher é o meio de tentação usado
pelo diabo para chamar a si o homem luxurioso. Tais são as lições da obra (MALER, 1956, p. 298), que
remetem para o mito da Grande Deusa, criadora e devoradora dos próprios filhos, conforme se exemplifica na
narrativa acerca da invasão da Hungria e da Polônia pelos tártaros em 1200, quando, levadas pela fome, as
mães comiam os próprios filhos (MALER, 1956, p. 234).
60
MALER, 1956, p. 338.
61
MALER, 1956, p. 345.
62
GODINHO, 1995, p. 102.
19
servida por anjos no final da sua existência, que a alimentam com manjares espirituais. Tal
como as Grandes Deusas, tem a experiência da lubricidade e da pureza. Daí poder ser
interpretada como uma figura emblemática "do feminino ideal, que, pela sua remissão, é
imagem da remissão do mundo", e na qual se condensam Eva e Maria. Aparecendo já no
final do livro, muito bem arremata a sua apologia da vida contemplativa, do desprezo pelos
bens materiais, para o alcance das benesses do Outro Mundo, sem pecado, tempo ou morte.
AMADIS DE GAULA
À época em que por vários países da Europa campeava a desumana perseguição
inquisitorial que atingia sobretudo à mulher curandeira ou sexualmente poderosa, à mulher
inconformada com a castração que lhe impunha a sociedade machista respaldada na
misoginia da Igreja Romana, publicou-se em inícios do século XVI, na Espanha dos Reis
Católicos, uma obra que apresenta positivamente a audácia da mulher no processo de
sedução e a benfazeja atuação de uma "fada". Trata-se do Amadis de Gaula, texto sobre o
qual pretendemos refletir, levando em conta os aspectos feministas observados, a
resistência do imaginário ibérico ao aniquilamento da mulher, que então sadicamente se
processava no Ocidente.
Como se sabe, Amadis de Gaula é um romance de cavalaria publicado em Saragoça, em
1508, por Garcí Rodríguez de Montalvo. Foi feito a partir de matéria preexistente, da qual
principalmente Portugal e Espanha disputam a autoria, talvez dos Lobeira, Vasco e João,
seu refundidor, das cortes de D. Dinis (século XIII) e D. Fernando (século XIV),
respectivamente.
Indubitável, no entanto, é a origem ibérica da obra, evidentemente que influenciada pela
versão francesa da Demanda do Santo Graal, e da versão portuguesa nesta baseada. Aos
20
primeiros livros, Montalvo acrescentaria um quarto livro, e mais as Sergas de Esplandián,
além de modificá-los com "o estilo sentencioso, as digressões de caráter moral, as reflexões
sobre os vários passos da ação da novela, as cartas e os discursos de retórica nitidamente
quinhentista", conforme já observara Costa Marques63.
A obra obteve tal sucesso editorial que só no século XVI conheceria cerca de trinta
reimpressões e muitas traduções para línguas vivas e mortas, como o hebraico, além de
haver dado origem a uma série de narrativas, o chamado Ciclo dos Amadises, que por sua
vez motivaria o surgimento do Ciclo dos Palmeirins. Importa ressaltar esta sua tremenda
voga alcançada para a reflexão que intentamos estabelecer acerca da recepção, à época, da
magia e da sensualidade feminina, por ela encarecidas.
Reinavam então Fernando e Isabel, os Reis Católicos, que reativaram na Espanha a
Inquisição, até pela finalidade de centralização do Poder, de afirmação do Estado Nacional.
E mesmo que a Espanha, como Portugal e Itália, além das suas colônias, constituíssem
exceções, varria a Europa aterradora caça às heresias64, principalmente à bruxaria, efetivada
pelos tribunais do Santo Ofício, inclusive nos territórios-limites daqueles Estados, que se
expunham à sua influência.
Mas o que importa ressaltar, nesse contexto europeu extremamente preconceituoso e
estigmatizador da mulher, é o modo como o Amadis de Gaula, se deixadas de lado as
digressões moralizantes de Montalvo, se constitui numa obra de resistência do feminismo e
da magia, apanágios da tradição bretã, céltica. Aí, o corpo, tornado uma mera alegoria na
Idade Média, é revalorizado − o que se percebe, por exemplo, na admiração de Darioleta
63
64
MARQUES, 1942, p. 19.
Com isso eram assegurados os interesses do Papado, ou do poder do Estado que tivesse Roma por aliada.
21
por sua ama Elisena, quando a prepara para o encontro clandestino com Perión de Gaula,
que teria por fruto Amadis65.
A mulher esbanja a sua sensualidade, inclusive tomando a iniciativa nos jogos
amorosos. Por exemplo, é Oriana quem, diante do intrépido cavaleiro e tímido amante
Amadis, "tendiendo las manos por entre las puntas del manto, tomóle las suyas dél,
aprétogelas ya cuanto en señal de le abraçar"66. Antológico é o trecho da obra em que se
torna "dona", havendo contribuído para tal: "más por la gracia y comedimiento de Oriana,
que por desenboltura ni osadía de Amadís, fue hecha dueña la más hermosa donzella del
mundo"67.
O amor ardente, condenado pela Igreja, sem fins procriativos e mesmo marginal, já que
fora do casamento, é aí louvado como são e verdadeiro. Assim, após o primeiro encontro
sexual dos protagonistas, "creyendo con ello las sus encendidas llamas resfriar,
aumentándose en muy mayor cuantidad, más ardientes y con más fuerça quedaron, assí
como en los sanos y verdaderos amores acaescer suele"68. E o fruto de tal paixão,
Esplandián, é abandonado ao nascer pela mãe (com de resto também Amadis o fora), mas
pelo temor feminino da punição patriarcal, ausente a noção de pecado na transgressora.
Enfim, o culto da beleza física, a busca de satisfação da "rabiosa fome" podem ser
fartamente comprovados na obra, que se afasta assim radicalmente do ascetismo da
Demanda do Santo Graal. O prêmio almejado pelo cavaleiro perfeito, que é também o
perfeito amador, como o seu próprio nome indica (Amadis), é não já a ascesce espiritual,
meta de Galaaz, mas a mulher amada, o sumo bem, a razão de viver.
65
MONTALVO, 1988, p. 237.
MONTALVO, 1988, p. 525.
67
MONTALVO, 1988, p. 574.
66
22
Além do mais, a carga positiva das forças mágicas e sobrenaturais é representada por um
elemento feminino, por Urganda, a Desconhecida. Para um elemento masculino, para o
bruxo Arcalaus, se tranfere a maldição que os inquisidores lançaram sobre a mulher,
diferenciando "tal heresia culposa como heresia das bruxas e não a dos magos, dado ser
maior
o contigente de mulheres que se entregam a essa prática"69. Maldição que já
anteriormente alcançara Morgana, como vimos, através do sonho de Lancelote, em que
aparecia medonhamente feia e sofrida, atormentada por uma legião de diabos, e que conduz
o cavaleiro pelo tenebroso Inferno até à sua amada Genebra, também condenada, pelo
pecado da paixão adulterina, a arder nas chamas eternas.
Sem descermos a minúcias com relação à “fada” Urganda, o que já fizemos em estudo
anterior70, lembraríamos apenas que, como as Parcas, tem o poder de fadar, de prenunciar o
destino dos homens; e ainda o de transformar-se e transformá-los. É também a curandeira, a
protetora, a doadora de objetos mágicos ao herói e seus amigos. Mas, inscrevendo-se na
tradição celta, ao invés da cristã, não é totalmente boa nem totalmente má, uma vez que
prejudica sem compaixão os inimigos e age egoisticamente, usando os seus poderes para
dominar o homem amado, que não lhe corresponde o amor.
Quanto a Arcalaus, o Encantador, caracteriza-se por seus poderes mágicos, com os
quais ludibria e prejudica os cavaleiros. Subverte-se, dessa forma, o papel de adjuvante do
mago Merlim na tradição artúrica71. Ao passo que o poder feminino, malévolo na tradição
cristianizada das lendas bretãs, se torna benévolo nesta obra, como temos visto,
desempenhando Urganda não mais o papel atribuído a Morgana, mas o de Merlim. Os
68
MONTALVO, 1988, p. 253-7. Difere da orientação do Capelão, que valoriza o “amor puro” em detrimento
do “amor mixto”, neste ocorrendo a cópula e dando ensejo ao fastio. Cf. BURIDANT, 2000, p. LXV-LXVI.
69
KRAMER, SPRENGER, p. 121.
70
MALEVAL, 1995.
23
próprios epítetos com que são caracterizados indiciam tal subversão: se Arcalaus é o
Encantador, definindo-se pelo engano, pela mentira, Urganda é a Desconhecida,
configurando-se desde aí o mistério que a cerca.
Conclusão
Portanto, os textos medievais analisados firmaram paulatinamente a imagem da mulher
diabolizada, até ser condenada às fogueiras do Santo Ofício, com base no manual dos
inquisidores, Malleus Maleficarum. A começar pelo próprio Tratado do amor cortês de
Andreas Capellanus e pela Demanda do Santo Graal.
Levando em conta os livros mais populares, vimos que, através de exempla, com o
respaldo de autoridades da Igreja e do universo judaico-greco-romano, o Orto do Esposo se
coloca em sintonia com a onda de misoginia que então se exacerbava na Europa,
culminando na ultrapassagem do século XIV para o século XV. Documenta, igualmente, o
culto mariano, que se impusera desde o século XII ascencionalmente, paralelamente ao
decréscimo do culto da dama pelos trovadores provençais, que acabam por substituí-lo pelo
da Virgem; muito embora os galego-portugueses se dedicassem a ambos.
Por outro lado, o Amadis de Gaula estabelece o contraponto mais radical em relação às
obras recomendadas pela Igreja de Roma, que amaldiçoaram da forma mais perversa a
sexualidade e o poder das Filhas de Eva. A enorme voga alcançada pela novela denuncia
que, no imaginário do homem comum medievo, apesar das imposições dos clérigos,
permanecia viva a mentalidade oriunda de civilizações matricênticas, comandadas muito
mais pela sensualidade libertária que pela razão coercitiva. Ou revela o seu desejo de
evasão, através da leitura, de uma realidade opressora e indesejável. Funcionaria, pois,
71
Deste se afasta Arcalaus também pelo seu desempenho enquanto guerreiro, não se restringindo à magia.
24
como válvula de escape permitida, até porque as obras do gênero eram tidas
preconceituosamente como meros "devaneios" e "mentiras" pela literatura oficial, como por
exemplo se documenta nas crônicas de Ayala72 e Zurara73.
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72
73
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26
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