Introdução
O escopo principal deste trabalho é, como já o indica o próprio título, uma
pesquisa em torno do problema do conceito de justiça e de misericórdia divinas,
subjacentes nos textos de Gn 18,16-33 e Is 52,13-53,12: esses textos deixam entrever
uma dinâmica que vai da impossibilidade de o inocente padecer juntamente com o
culpado (Gn) à constatação de que o inocente é esmagado justamente em favor e em
lugar do culpado (Is).
De maneira simplificada, é possível resumir a problemática desses dois textos
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da seguinte forma: enquanto em Gn o juiz de toda a terra não pode permitir que o
justo seja esmagado com o pecador, em Is este mesmo Deus permite que o justo seja
aniquilado em favor dos pecadores. Que tipo de relação se pode estabelecer entre
esses dois textos? Em que nível estaria tal relacionamento — histórico, literário,
teológico? Seriam contraditórios, excludentes, complementares? Na singularidade de
cada um, o que nos ensinam a respeito da justiça e da misericórdia na ação salvífica
de Deus na história?
Embora nos sirvamos, como base, do método histórico-crítico, nossa análise é
exegético-teológica e privilegia a leitura segundo o método narrativo, sobretudo para
a primeira parte.
A perspectiva deste trabalho não comporta necessariamente a assunção e a
defesa de alguma postura ante os temas mais disputados dentro do campo exegético
no que diz respeito aos textos em questão. Tampouco postularemos novas hipóteses
quanto a fontes, datas, lugares, autores ou personagens. Obviamente, ao longo do
trabalho, optaremos por uma opinião determinada quanto aos temas pertinentes, que
serão tratados e sistematizados, mas tendo em vista unicamente a individuação dos
problemas teológicos centrais de ambos os textos, a saber, a questão da justiça e da
misericórdia divinas na experiência das pessoas envolvidas.
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À medida que o leitor acompanha Abraão em seu diálogo acerca do destino dos
justos e dos pecadores, não há como evitar a lembrança quase espontânea do texto de
Is referente ao Servo de IHWH. Todavia, nenhuma aproximação mais sistemática e
profunda neste sentido tem sido, de fato, empreendida por algum autor até o presente
momento.
Isto se deve, quiçá, à diferença dos textos em questão, situados em
corpora diversos, embora haja alguns autores que, ao comentar a passagem do
Gênesis, aludem en passant ao texto de Isaías e vice-versa: existem autores que, ao
comentar Is, também fazem referência ao texto do Gênesis.1
Segundo Alonso Schökel, “o texto do Gn, em seu laconismo final, abre uma
grande porta… Is 53 é quem propõe o paradoxo: bastará um único inocente, um justo
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que pagará por todos os pecadores”.2 J. Blenkinsopp, por sua vez, ao comentar
brevemente o texto de Gn 18, afirma que a possibilidade de um papel salvífico para
os justos será de muita importância nos desdobramentos religiosos posteriores do
Judaísmo e do Cristianismo, “em conexão com o Servo profético do Deutero-Isaías,
‘o qual justificará a muitos’”.3
G. von Rad, que considera o diálogo de Gn 18 obra inteiramente javista, julga
que o texto é “um solitário passo adiante… que se liga, na verdade, através de um
longo arco de gerações, à palavra profética do servo de Deus, que proporciona a
salvação ‘para os muitos’”.4
1
Por ex., FOHRER, G., Stellvertretung und Schuldopfer in Jes 52,13-53,12, p. 40; KUTSCH, E., Sein
Leiden und Tod — unser Heil, p. 195.
2
ALONSO SCHÖKEL, L., ¿Dónde está tu hermano?, p. 85.
3
BLENKINSOPP, J., Wisdom and Law in the Old Testament. The Ordering of Life in Israel and
Early Judaism, p. 57. Cf. ainda CLAMER, A., Genèse, p. 286.
4
“Il passo si riallaccia in realtà su un lungo arco di generazioni alla parola profetica del servo di Dio,
che procura salvezza ‘ai molti’” [Is 53,5.10] (von RAD, G., Teologia dell’Antico Testamento, p. 446.
“Thereby, in our opinion, the narrative guards the uniqueness and marvel of the message about the one
who brings salvation and reconciliation for the ‘many’ [Isa. 53.5,10] (Id., Genesis, p. 214).
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Com essas palavras, von Rad deixa transparecer algo como uma evolução no
pensamento e distanciamento temporal entre os textos — ele fala de ‘passo
adiante…’ e ‘longo arco de gerações’. Provavelmente este fato deva ser creditado à
maior antiguidade que ele atribui ao texto do Gn em relação àquele de Is. Contudo,
segundo R. Albertz, a multiplicidade de idéias sobre a fé, atestada nos escritos do AT,
muitas vezes em competição num mesmo e único período, torna impossível
desenvolver uma história da religião como uma continuada história das noções e
concepções religiosas.5
Se postularmos o período pós-exílico para ambos os textos, não é possível
raciocinar numa direção linear evolutiva, mas tão somente considerar a resposta que
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cada texto apresenta para um problema que parece semelhante.
O título desta pesquisa — “Da não-aniquilação… à aniquilação…” —
involuntariamente pode sugerir uma evolução do pensamento, ou certa dependência
entre os textos. Não é esta a perspectiva, inclusive porque a datação dos textos é uma
questão bastante discutida em exegese bíblica. Consideramos que a mudança de
compreensão não se dá de Gn a Is ou vice-versa, de acordo com as oscilantes
datações dos textos: ela se dá no interior mesmo dos próprios textos.
Em Gn, por ex., passa-se da impossibilidade de qualquer comunhão de destino
entre pecadores e justos para a possibilidade de aqueles serem poupados pelos
méritos destes; em Is, a grande reviravolta é protagonizada pelo grupo-nós que
adquire, mediante a revelação de IHWH, uma visão completamente nova das coisas:
o inocente sofre vicariamente pelos culpados.
Embora não postulemos nenhuma dependência literária entre os textos,
constatamos certa dinâmica e progressão no pensamento de ambos os textos, e
admitimos que Isaías introduz um elemento deveras inédito: a questão da substituição
vicária. Este ponto é tão expressivo que serviu de ótica hermenêutica inclusive para a
figura e a missão de Jesus de Nazaré.
5
“The multiplicity of ideas about faith attested by the Old Testament writings, which often compete in
one and the same period, makes it impossible to develop a history of religion as a straight-line history
of religious notions and conceptions” (ALBERTZ, R., A History of Israelite Religion in the Old
Testament Period I, p. 18).
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Vale lembrar que não se podem encontrar todas as respostas num único texto.
Cada um tem uma perspectiva, uma resposta, o que nos possibilita ter uma visão mais
completa da riqueza da experiência de um Deus que é, ao mesmo tempo, justo e
misericordioso.
Cada texto será estudado separadamente. A primeira parte da dissertação
ocupa-se da análise literária e teológica de Gn 18,16-33, ressaltando o problema
central do texto e sua possível resposta; adota-se o mesmo procedimento na segunda
parte, que se ocupa de Is 52,13-53,12. A terceira parte procura aproximar os dois
textos à guisa de síntese, confrontando as perspectivas de cada um, mostrando-lhes as
semelhanças e singularidades. Para ambos os textos, postulamos um pano de fundo
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histórico comum, aquele do exílio e do pós-exílio.
A aproximação crítica desses dois textos, sob a ótica mencionada acima, é algo
deveras inusitado na pesquisa bíblica, e se constituirá na ‘novidade’ deste
despretensioso trabalho.
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