Entre a ironia e a falsa aparência Felipe Scovino O sentido da experimentação na obra de Felipe Barbosa é atravessado por dois fatores: um pensamento meticuloso sobre o lugar da geometria na arte e a ironia como um agente infiltrador e índice de investigação. Seja em obras que são auto-referentes à geometria, seja em intervenções que pensam ou se apropriam da cidade1, ou em obras que evocam ou aludem ao elemento do fogo, a ironia e o construtivismo são dados constantes na obra de Barbosa. Mas como, de fato, a arte se relaciona com a ironia? Em que pensamos quando nos referimos à noção de ironia nos dias de hoje? Ironia e arte são duas categorias que, nos últimos anos, se aproximaram cada vez mais. Nem por isso podemos dizer que toda produção contemporânea é irônica ou, pelo menos, possui traços de ironia. Forma mutante e com características próprias, a ironia difere (sutilmente, em alguns casos, é verdade) de outras figuras de estilo, de retórica, de linguagem; em várias ocasiões não é percebida, permanecendo numa espécie de limbo entre o “dito” e o “não dito”, e muitas vezes é confundida com o humor. A ironia se constituirá na intenção do interpretador assim como do seu produtor e atuará num contexto específico (cultural, social e, às vezes, até político), numa relação entre o concebido e o percebido. Argumentamos que a ironia acontece como parte de um processo comunicativo; não é instrumento retórico estático a ser utilizado, mas nasce nas relações entre significados, entre pessoas e emissões e, às vezes, entre intenções e interpretações; o irônico se estrutura “na” e “pela” linguagem. Divide-se, portanto, ininterruptamente - eis por que é uma multiplicidade. Especificando, é ironia justamente à medida que se atualiza, criando linhas de diferenciação que correspondem a seus diferentes dispositivos no campo da arte. Há apenas uma ironia, embora haja uma infinidade de fluxos que participam necessariamente desse mesmo pluralismo. Porque a ironia é questão tanto de interpretação quanto de intenção, ela pode ser classificada como “questão de compreensão silenciosa”: um acordo baseado em uma ideologia partilhada sobre “como o mundo é”. O tornar-se irônico na obra de Barbosa é processo negociado entre duas entidades (espectador e obra), no qual nos engajamos dotados de invenção que nos faz sentir e pensar de modo original o lugar que habitamos 1 Grande parte dessas obras foi feita em parceria com a artista Rosana Ricalde. e as aparências que cercam o mundo. Em Martelo de pregos (2001) criamos um hiato entre o que “sabemos” ou “esperamos” da ordem natural das coisas e o que “vemos”. O cartesianismo que supostamente habita nosso conhecimento espacial – sobre a qual tantas equivalências se estabelecem como inquestionáveis – evidencia-se como um modelo falso e equivocado, porquanto incompatível com a experiência de mundo que possuímos. Essa espécie de revolução dos pregos contra o seu “opressor” e a construção semântica e construtiva da obra, faz com que percebemos que o conhecido mentalmente seja muito diferente do percebido sensivelmente. Não é mais uma ideia que se acrescenta à quantidade de ideias no mundo; é uma ideia que duvida de todas as outras ideias. Em descritiva Geometria (2003-05) e Toblerone (2006), os títulos não designam apenas uma realidade, eles a fabricam. As divergências não dizem respeito às maneiras de se representar a realidade, mas aos meios de geri-la. Os ideais são tomados de suspeita, não exercem mais Geometria Descritiva - 3 livros de geometria descritiva e fio de nylon - 20x20x22cm - 2003 sua função tradicional de identificação. Mais do que um jogo visual (os livros de geometria descritiva atravessados por linhas descrevendo espacialmente a funcionalidade que o título da obra opera, e as caixas de chocolate indicando o grau de operação da geometria no trabalho de Barbosa assim como o diálogo com materiais baratos e rotineiros que acabam por compor um tecido irônico que é agregado ao seu discurso), nessas obras a relação entre pensamento, palavra e visualidade desenvolveu-se em várias direções, obrigando-as a deslocarem-se entre suportes e materialidades diversas na busca de uma realização plástica apropriada. A ironia reside numa operação tornada invisível pela simplicidade do resultado, no estado espantosamente banal das coisas, mas que é a única a poder explicar o embaraço indefinido, por ele provocado. Se nessas obras o equilíbrio é destacado, em Sala de reunião (2002) e Construtivismo literário (2005) há uma ironia na estabilidade e manutenção desse equilíbrio. No exercício entre aparência e nomeação, os títulos indicam uma possível funcionalidade para aquele objeto (que a obra trata de deslocar para a impossibilidade) ou uma ironia debochada que engloba visualidade, geometria e um dado kitsch. Se é possível dizer que a ironia acontece como conflito entre enunciado e enunciação, isso significa que as duas instâncias estão articuladas, relacionadas de uma forma particular e própria à constituição do processo irônico. O fato é que para haver ironia, o enunciador produz um enunciado de tal forma a chamar a atenção não apenas para o que está dito, mas para a forma de dizer e para as contradições existentes entre as duas dimensões. Barbosa alerta que as coisas à nossa volta padecem de um excesso de presença e de reconhecimento. A ironia transforma-se em suspeita, transfere-se para o terreno da liberdade, numa fusão entre o real e o imaginário. O artista constrói um tipo de discurso que escapa às armadilhas da pura reflexão ou pura ficção, combinando estratégias variadas de ação que permitem passagens e conexões entre os dois campos. Numa entrevista, Foucault afirmou: “Estou consciente de que nunca escrevi senão ficções”, sendo que essa declaração foi logo seguida por outra, que a complementava: “Acredito que seja possível fazer com que ficções funcionem dentro da verdade” 2. Adotando esse discurso, Barbosa procura definir um tipo de raciocínio que se apresenta sem conclusão e sem imagem, sem verdade nem teatro, sem prova, sem afirmação, independente de todo o centro e que constitui seu próprio espaço como o fora em direção ao qual, fora do qual, o trabalho opera. Este discurso abre-se como um comentário, repetição daquilo que murmura incessantemente; escuta do vazio que circula entre palavras e imagens, discurso sobre o não-discurso de toda linguagem. Esse disfarce sob falsas aparências também é presente em Banco (2003-05). Nessa obra, um banco de praça é coberto com notas picadas e prensadas de R$1. Mais do que um jogo de palavras, a obra se insere no campo da poesia visual. A obra concentra-se na reminiscência de um quebra-cabeças onde o espectador é um pouco dirigido para o olhar e um pouco dirigido para o tato. É preciso prestar atenção ao que ali se encontra para saber exatamente o que é dado a perceber. Barbosa insiste – e com razão – em se referir à ideia de “imersão” na obra, em oposição à noção (hoje declarada insuficiente) de contemplação da arte. A contemplação pressupõe que já saibamos o que esperar de um trabalho, toda novidade consistindo no ineditismo (ou não) da sua forma, e tão-somente nele; a imersão a que o artista se refere, ao contrário, exige do espectador sua inteira disponibilidade com relação ao que vai encontrar; o Banco oferecendo uma 2 FOUCAULT, Michel. Foucault/Blanchot. Nova York: Zone Books, 1990, p. 94. união entre imagens, palavras e experiência tátil que ocorre de modo bem pouco esperado. A obra é suficientemente clara e chama a atenção por sua simplicidade extrema. Mas é nesta mesma simplicidade (enganadora como toda simplicidade) que reside toda a tensão que o trabalho tem a oferecer: apenas uns poucos elementos, mas capazes de provocar um adensamento de sensações. Obra em tudo híbrida – por sua vinculação simultânea com o visível e o não-visível, o percebido e o pensado, o formalizado e a recusa de formalização –, ela se insere no repertório contemporâneo de modo a tecer suas próprias determinações e ainda abrir caminhos para outras. Em Sem título (2000), 120.000 palitos de fósforo são enfileirados, colados e dispostos sob um plano, este por sua vez é suspenso por uma espécie de banco de madeira, que retransmite a esse conjunto de fósforos, finalmente, uma aparência de assento. Barbosa mantém um discurso em aparência negativo, pois se trata de negar, com a semelhança, a asserção de realidade que ele comporta, mas que é no fundo afirmativo: afirmação do simulacro, afirmação do elemento na rede do similar. Inaugura-se um jogo de transferências que correm, proliferam, se propagam, se respondem no plano, sem nada afirmar nem representar. A ironia é a constatação de algo empírico, que muitas vezes desacreditamos ou não damos a devida atenção. A ironia ou dúvida sobre aquele objeto faz com que percebamos o quanto podemos estar enganados sobre nossas certezas. Transitando por entre as intervenções de Barbosa e Ricalde iniciamos com Largo das Neves s/no (2000). Nessa confluência de absurdos, estranhamentos e construções, a ironia abriga-se no improvável e desmedido. Uma casa enterrada no meio da praça apenas com alguns centímetros de parede e o telhado à mostra. O absurdo confunde as fronteiras entre casa e mundo, situa-a nas fronteiras do irônico, do estranho. Público e privado estão no mesmo espaço, disputando um lugar que não pode pertencer aos dois ao mesmo tempo. A função de ser “casa” muda de sentido: deixa de ser abrigo para ser invasora de espaço. Perde o seu entendimento como abrigo (porque é inabitável), lugar das práticas domésticas, para traduzir-se na impossibilidade de ser uma “terra para si”, o solo fundador e acolhedor do descanso e da privacidade. Não é dele, morador/proprietário, nem muito menos do coletivo, já que a sua “única” função está desprovida de uso: não possui entradas; é uma caixa intransponível que não oferece acolhimento. E pior: ocupando um dos poucos espaços de lazer daquele bairro.3 A questão moral impõe-se no trabalho de Barbosa e Ricalde: 3 O trabalho foi realizado dentro do evento Arte de portas abertas, em 2004, no Largo das Neves, bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Largo das Neves s/no nos despertou para a questão moral do trabalho, que é a noção do desperdício. Então, quando o material é muito caro, isto incomoda bastante as pessoas. O fato de um artista gastar, na época, poucos mais de R$1.000 para fazer um telhado e tendo várias pessoas desabrigadas na cidade é um fato que pode ser encarado como desperdício. Passa a ser algo questionado pelo público. Eles perguntam: ‘Qual é o objetivo disso?’ 4 O processo de produção da “casa” passa a ser tão vital para o seu conceito de experiência artística quanto o resultado final do trabalho: os fatores de desagregação, o conflito entre os artistas e os frequentadores da praça, torna-se um elemento que a obra passa a incorporar e por isso mesmo deve ser levado em conta quando nos referimos ao processo da “casa” como um todo. No diálogo com o exterior e em trabalhos em parceria com Ricalde, a obra de Barbosa configura novas fronteiras para a sua obra e para articulação com o jogo geométrico assim como com a ironia. Um cruzamento movimentado no centro da cidade de Fortaleza. Quatro sinais de trânsito determinam os limites espaciais desse lugar. Abre parênteses. Toda inscrição nesse amplo espaço urbano passa, em parte, necessariamente despercebida. Impossível construir um marco que se faça inequivocamente ser lido num campo tão saturado. Os indícios deixados nesse lugar arriscam perder-se, confundidos com o resto da cidade. As obras podem apenas sugerir uma articulação, aludindo ao mesmo tempo à ruptura das comunicações, ao insuperável esgarçamento do tecido urbano. Agora não se tem mais o indivíduo como medida. As escalas da cidade são outras, desproporcionais à experiência humana. Impõe-se trabalhar com grandezas que não podemos mais dar conta. Situação oposta ao ambiente controlado dos museus: a arte é colocada em estado de precariedade e risco. Fecha parênteses. A cena dá lugar ao absurdo. Não se coloca mais a questão do olhar: ocorre uma dissolução da cidade como palco do espetáculo, impossibilitando percorrer os espaços e articulá-los pela visão. Felipe Barbosa e Rosana Ricalde interferem no tecido urbano, e mais do que nisso nas leis desse tecido. Aproveitando o próprio diagrama matemático que a cidade oferece ao cidadão (pedestre, motorista), constroem um organograma que se mantém re-atualizado a cada ação do jogo: os movimentos contínuos, horizontais e 4 Depoimento concedido ao autor. Rio de Janeiro, 19 de abril de 2006. verticais, dinamizam toda a área, transferem potência para algo amorfo, modificam o sentido daquele “sinal” e instauram a “surpresa”. A dupla entende a cidade como um organismo, vivo, justamente porque mantém os seus fluxos ativos, evitando o seu repouso absoluto. Em Jogo da velha 5, Barbosa e Ricalde apropriam-se da faixa sinalizadora de um cruzamento de trânsito e transformam esse quadrilátero com feixes cruzados num tabuleiro de jogo. É um trabalho “entre-tempos”. No pequeno intervalo entre o fechamento de um dos sinais de trânsito e a abertura do outro, os artistas disputam uma partida do jogo que dá nome à obra. Tudo gira em torno do tempo, desse momento de parada no tráfego. Operam, portanto, no vermelho, no débito, na falta... de tempo. Arriscando suas vidas e a dos motoristas, essa tática irônica não significa divertimento, mas recusa ao cotidiano usufruto e justificável daquele espaço, reconhecendo-o como terreno de vivência móvel, volátil, na cidade. Dispostos segundo uma grade, a marcação à tinta das cruzes e círculos, feitos pela dupla no asfalto, fazem um mapeamento negativo do espaço, indicam tudo aquilo que ele não é, que não se pode ver. Opondo-se ao transitório, ao ritmo de passagem dos carros, a nova ocupação territorial tem a preocupação em não ser provisória. A situação aqui não interessa tanto como uma simples demarcação, mas como deslocamento, um transitar entre as coisas, mas no sentido em que Guimarães Rosa afirmava: “Os lugares não desaparecem, tornam-se encantados”. Não se trata de simplesmente jogar (ou criar um percurso de um lugar a outro), mas de produzir um movimento que afete simultaneamente todo o espaço. A dupla delimita um espaço para um tecido urbano repleto de elementos desconectados, constituindo-se numa espécie de invisibilidade de significado para o plano da polis. É como um corte que desagrega todo o desenho urbano da área, que rompe sutilmente uma espécie de homogeneidade e continuidade no caos do trânsito. Essa ação contém a descoberta de instaurar um deslocamento temporal e espacial naquele espaço dominado por uma aura funcional e precisa; é a instauração de non-sites, cortes cirúrgicos que instauram momentos de caos. A cidade está se desrealizando, ela é um horizonte, não pertence mais ao cidadão, e nem este a ela. Demasiado extensa e complexa, escapou da medida humana, tornou-se um patchwork, na expressão de Félix Guattari, no qual vão se justapondo desordenadamente fragmentos disparatados. Descentrada e excessiva, nem comporta mais planejamento 5 A intervenção foi realizada durante a I Bienal Ceará América, em 2002, na cidade de Fortaleza, e foi apresentada como vídeo, com duração de 7 minutos. integrado. A essa experiência adicionamos o fato de Jogo da velha confluir para um esvaziamento que é experimentado como positividade, como se o habitante e o habitat se desrealizassem enquanto fluxo, fluência, intensidade, emergência, transformação, num espaço que é criado e percebido num intervalo que se abre entre dois tempos, entre o tempo do fluxo expectante e o tempo do choque. No instante em que a ação é criada, no jogo enquanto escolha e resultado, se faz visível um espaço aberto para o acontecimento, entra e sai tudo o que se move na cidade: gente, carro, máquina. No intervalo entre os sinais, aparecimento e desaparecimento são, assim, concomitantes e complementares. Falamos, portanto, de passagens. A cidade está se desrealizando: o jogo de Barbosa e Ricalde vai adicionando novos elementos (gráficos) a malha viária urbana. A “disputa” entre os dois constrói novas redes e inscrições no tecido de comunicação da cidade, criando assim um circuito irônico que alia perversidade a uma experiência de deslocamento e das operações cotidianas da polis. Ainda em 2002 Ricalde e Barbosa realizam a ação Visibilidade e leveza, em Belo Horizonte. Três barreiras de pães, totalizando 9 metros de comprimento, são erguidas entre vãos de pilastras no Centro daquela cidade. Visibilidade não passa de um muro de um metro e meio de altura: o olhar por sobre a estrutura é garantido à curiosidade alheia mas o acesso ao corpo é negado. A “massa” dessa estrutura são pães, enfileirados e presos com tela de galinheiro. A estratégia da obra passa a ser, inclusive, a incorporação de uma certa agressividade social. Mais uma vez a moral se coloca como questão no processo artístico que tem a ironia como fator potencializador. Porém, nesse momento, o artista se fragiliza ante a opinião pública. Segundo Barbosa, “o trabalho possuía uma agressividade, porque estávamos trabalhando com comida, num país que é atravessado pela fome. Mais uma vez, somos [Barbosa e Ricalde] questionados sobre o desperdício”.6 Entretanto, essa perversidade transforma-se num agenciamento irônico ao sistema econômico e artístico e torna-se cruel com quem legitimou e ofereceu subsídios para a sua criação. Vamos aos fatos. A outra sequência desse trabalho – a ação Leveza – consistiu em recobrir o espelho d’água do Palácio das Artes com 10 mil garrafas cheias de água mineral. As garrafas são vendidas nas esquinas da cidade: o produto de arte transforma-se em moeda de câmbio, em mercadoria; volta ao seu estado original e perde a sua aura de objeto artístico. Volta ao mundo das coisas banais, da sua função de 6 Depoimento concedido ao autor, op. cit. eliminar a sede, limpar objetos, manter os seres vivos. Em depoimento ao autor, Barbosa disserta: Era nosso objetivo a água estar engarrafada. Até à meia-noite elas fizeram parte de um trabalho de arte (e havia um segurança contratado para manter a “integridade” delas). Era o efeito Cinderela: enquanto a instituição permitisse, a água seria arte [lembremos que esse evento ocorreu em paralelo com a barreira de pães de Visibilidade]; depois ela se transformaria em abóbora novamente. Quando marcou meia-noite, o pessoal encheu bolsas com as garrafas. Foi uma ação muito rápida. No dia seguinte, as pessoas que levaram a “água artística” estavam vendendo as mesmas. A água passa a ser produto (ordinário) outra vez. O momento dela de ser arte foi condicionado/autorizado pelo artista e pela instituição promotora, mas logo depois a água volta a ser consumo, torna a ser o que ela sempre foi. Destino infeliz o da água. O desperdício tão criticado pelo público passa se tornar lucro líquido para o mesmo. O banco Itaú, patrocinador da ação, observa passivamente o seu capital sendo transformado em lucro líquido para a população. Esse mesmo tipo de negociação feito entre artista e público também aconteceu durante o processo da obra Muro de sabão em 2003. A obra consistiu num muro feito com barras de sabão em pedra ocupando o vazio deixado por um muro desabado. Mas até que ponto um muro de sabão é efetivamente um muro? A sua materialidade é quebradiça e ademais se constitui em vítima frágil das intempéries da natureza. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o muro interdita o acesso e funda um lugar onde anteriormente havia uma paisagem, a efemeridade do sabão devolve o esquecimento. A referida negociação se dá na doação do material: A Associação de Moradores do Morro da Providência [local onde foi feito o muro] colocou uma pessoa de prontidão durante o dia inteiro para evitar depredação. A negociação entre as partes aconteceu e, no final das contas, ninguém foi antiético: o sabão foi doado pela empresa para que produzíssemos a obra e depois, o mesmo foi para a comunidade. 7 Idem, ibidem. 7 O artista talvez nunca tenha sido marginal nem herói, ou talvez tenha apenas um senso de observação (social e político) mais aguçado do que a mídia pensa. A sua “marginalização” efetivamente está na falta de estrutura e de apoio do circuito de arte ou então, nos elementos escolhidos para a produção de suas obras muitas vezes por razões econômicas, mas dificilmente num compromisso de que a marginalidade (como transgressão ao código penal) é a postura a ser seguida por sua engrenagem. Não há mais espaço para ele ficar à margem, porque é bem provável que ela não mais exista. As expressões “mundo” e “arte” contaminam-se a todo o momento. A arte não está mais fora do mundo. A aparente precariedade das obras de Barbosa acaba por dar continuidade, mesmo não sendo sua intenção primordial, a um deslocamento já anunciado pelas vanguardas construtivas brasileiras: a invenção, como elemento simultâneo de apropriação e desapropriação de elementos e técnicas corriqueiras do nosso dia-a-dia. 8 Um aspecto ao qual seus trabalhos colocam dizem respeito a sua construção e por conseguinte ao limite, como afirma o artista: “Em Homem bomba (2002), queria testar o limite desse objeto, porque o que me interessa, a princípio, nesta obra é uma certa latência, uma iminência, um perigo. Eu gosto da ideia de um mero gesto poder diluir toda aquela estrutura complexa que elaborei.” 9 Muitas das obras de Barbosa aliam uma identidade irônica a uma malícia, conjugada na pólvora, e por isso mesmo levada a limites extremos. Em todo este “projeto explosivo brasileiro” 10 , há uma constante manifestação de tensão e torção – seja no âmbito da estética, percepção e ciência. O “Projeto” visa gerar novos significados por meio do reconhecimento dos limites e a 8 Como o tecido nos Parangolés (1964-68) e a terra nos Bólides (1963-64), no caso de Hélio Oiticica, ou o alumínio nos Bichos (1960-64) de Lygia Clark. 9 Depoimento concedido ao autor, op. cit. Cabe acrescentar que Homem bomba compreende um boneco de aproximadamente 44 x 20 x 13 cm, constituído unicamente por ‘bombinhas’ (explosivos com pequeno poder de destruição, caso não sejam usados em grande quantidade). A obra discutida nesse ensaio é o vídeo Homem bomba (10’, 2002), realizado pelo artista, que mostra a queima desse boneco. 10 O presente termo foi criado por mim e agrupa obras que possuem a pólvora ou o fogo como tema ou elemento de suas construções. Podemos citar dentre elas: Bólide lata: apropriação 2, consumitivo (1966) de Hélio Oiticica; Cruzeiro do sul (1969-70), Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970), Bombanel (1970/96), O sermão da montanha: Fiat Lux (1973-79), Volátil (1980-94), todas de Cildo Meireles; e, Fogo cruzado (2002) de Ronald Duarte, para citarmos algumas das obras que poderiam compor esse conceito. Esta seleção foi feita porque além de todos lidarem com materiais que podem entrar em combustão, possuem uma linguagem derivada do construtivismo (e esta é umas ironias que o termo traz: a contraposição entre a linguagem sensível do neoconcretismo e a sua herança, que nas mãos de Meireles, Duarte e Barbosa se transformaram em elementos “nocivos”). Cf. SCOVINO, Felipe. Táticas, posições e invenções: dispositivos para um circuito da ironia na arte contemporânea brasileira. 2007. Tese (Tese em História e Crítica de Arte) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. falibilidade desses sistemas de compreensão. É claro que a periculosidade no trabalho de Barbosa é altamente limitada e praticamente inexistente. Suas obras não oferecem (e nem querem ser) risco, permanecendo apenas no território das alegorias e metáforas. Um espírito que faz do artista algo próximo à figura de um provocador. As obras de Cildo Meireles e Felipe Barbosa poderiam ser descritas como uma teoria poética da sociedade. Colocam questões que vão da política a ideais e estratégias. Examinam espaços e processos de comunicação, as condições do espectador, os legados da história da arte e as fragilidades, limites e medos do homem moderno. Podem incorporar gestos, fogo, espaço, coisas, circuitos sociais, acumulação, potência, linguagem construtiva, energia, explosão. Quando me refiro à operação construtiva em Barbosa, ela obedece a um processo, quase sempre repetido: “um número variável de objetos idênticos é unido de modo a formar um volume em torno de um núcleo virtual e que exerce sobre eles uma força centrípeta.” 11 Quando esse processo é deslocado para o grupo dos objetos explosivos, centenas de palitos de fósforo são postos lado a lado, constituindo uma esfera ou plano (se nos detivermos às Bandejas, obra executada em 2001) “cuja superfície é toda feita de cabeças de pólvora expostas ao risco da combustão violenta.” 12 Pontes (2001-03), Mórulas (200103), Big Bang (2004) e a série dos bichos de brinquedo cobertos por estalinhos13 (Cavalo, 2005; Panda, 2005-07; Ursa Maior, 2006-07; Ursa Mel, 2007, entre outros) são formados por elementos cotidianos (palito de fósforos e estalinhos) que são transformados e serializados. Contudo, um exame mais próximo desses objetos alerta para aquilo que os olhos estão enganando: são compostos por elementos derivados da pólvora. É a 11 Cf. DOS ANJOS, Moacir. Felipe Barbosa. In: BARBOSA, Felipe. Felipe Barbosa. Rio de Janeiro: Panda - Estalinhos e urso de pelucia Galeria Arte em Dobro, 2006, s/p. 22x33x18cm - 2005 12 Idem, ibidem. 13 Pequenas bombas caseiras vendidas em época de festas juninas, feitas com uma quantidade mínima de pólvora e que, portanto, não provocam risco de queimaduras em quem manuseiar ou for atingido por elas. situação de “acumulação” e “repetição” destes materiais que opera em Felipe Barbosa a necessidade de torná-los diferentes e inseri-los no circuito da arte. Como um ruído, esses objetos tornam-se matéria do cotidiano. De um cotidiano, digamos, perverso. A ironia e a referência ao fim (ou reflexão sobre os postulados) de um “projeto construtivo” presentes, tanto na aglomeração dos materiais agregados ao boneco do Homem bomba quanto na sua queima, acabam sendo um discurso secundário, já que o “projeto explosivo” acaba tomando direções que não haviam sido problematizadas pelo artista: o lado irônico é acentuado no descontentamento da vizinha ao quintal em que é feita a explosão do boneco. A impaciência e a raiva com o estouro do boneco revelam uma situação tão desconfortável (e explosiva) quanto o próprio ato em si. Examinando espaços e processos de comunicação, as condições de espectador e autoria, o jogo de aparências de Barbosa põe em questão situações que vão da política a estratégias que questionam a moral na arte. O artista explica como o acaso tornou-se parte do trabalho: Foi uma atitude inconsequente. O vídeo apenas registraria a explosão do boneco. Mas a reação [da vizinha] foi importante: a obra tornou-se real, saiu do campo artístico. Não foi uma atitude proposital [de gerir a raiva na vizinhança que circundava a área em que foi feita a explosão], mas também não tenho como negar que a reação foi um ganho; a simples explosão poderia se tornar uma atitude banal. 14 A precariedade da produção do vídeo (a câmera tremida, a filmagem em VHS, algumas sequências foras de foco) também o torna mais próximo do real: conjunga o inesperado e a dúvida. “Poderia ter feito um vídeo mais produzido e ter contratado um ator para gritar, mas prefiro o real. Se eu fizesse isso, as pessoas ficariam na dúvida se aquilo era realidade ou não, porém, no modo como Homem bomba foi produzido, fica evidente que aquilo aconteceu ao acaso”, narra o artista. Isso não deve causar surpresa: é inerente ao processo artístico colocar em crise os dogmas, seja isso mediante sua simples manifestação ou através de ironia, de referências sarcásticas ou o grotesco. É a instituição do aqui-agora. No espaço da arte, o espectador não sabe o que vai ver e, mais do que isso, talvez nem esteja familiarizado com o tipo de manifestação a que assiste ou participa. Como afirma Felipe Barbosa em entrevista ao autor: 14 Depoimento concedido ao autor, op. cit. O título do trabalho, muitas vezes, é um dado, que pode transmitir confusão, mas ao mesmo tempo funciona como uma muleta do próprio trabalho. Ele faz parte de alguma maneira do trabalho. Homem bomba é um dos casos em que isto acontece. Quando você transforma os materiais empregados naquela obra num homem bomba, você o remete a um universo imenso. O que é quase um contra-senso ao tamanho ridículo e inofensivo da obra, mas que na realidade está longe de ser. É essa potencialidade que me interessa. O mero gesto [de acender as bombas] que dilui toda uma estrutura.15 Colocado o problema da recepção, vem o questionamento sobre a autosuficiência da arte e o papel do artista, que mesmo que produza para seu próprio prazer, está situado na estrutura de uma formação cultural que o obriga a pensar no consumo de sua obra. O estranhamento, o desconforto e o incômodo passam a ser uma intenção, um fim em determinadas obras do panorama contemporâneo da arte. O espelho de si agora carece de vidro: o drama real é aquele que se desenvolve frente ao espectador, é esta a base de numerosos processos de transferência que causam a ruptura com a imagem prévia de si próprio que cada ser possui. Deslocando a questão da recepção das suas obras no exterior, o artista ressalta que, ao contrário da reação quase sempre bem humorada do público brasileiro e da facilidade de compra desses fogos no país (o que banaliza a sua ação), o espectador europeu e americano não tem a mesma atitude: Eles entendem como sendo uma coisa de mau gosto. Não é uma ação bem vista, [porque] é uma questão [a bomba ou a iminente explosão de algo por grupos terroristas] que eles vivem diretamente, o que acaba provocando tensão e incômodo no espectador. Você está definitivamente tocando nas feridas nacionais. 16 Nesse momento, a ironia não é sarcástica nem zomba de algo; não é ficção, verdade ou mentira, mas passa a ser ruído e consequentemente alarga fronteiras do seu entendimento. Em 1970, durante a inauguração do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, Cildo Meireles erigiu Tiradentes: totem-monumento ao preso político, na semana da Inconfidência. Ao empregar o tema da violência como conceito e aludir à 15 16 Idem, ibidem. Idem, ibidem. situação nacional de repressão política, o gesto aterrorizante de imolação das galinhas vivas em meio ao entulho instala um mal-estar no sistema de arte. O poste alude ao totem, como à trave da forca de Tiradentes 17. Como disserta Meireles: A matéria-prima dessa obra é a morte. Mas, evidentemente, sempre por metáfora, ela acaba voltando à vida: a este mesmo estado desse material do qual ele é finalmente feito, anterior ao que você vê como registro. Quer dizer, o que está ali morto, estava vivo. E está ‘sendo vivo’ por meio de pessoas que, naquele momento, estão vivas. 18 Neste ponto os trabalhos de Meireles e Barbosa se tocam novamente. Até onde caminham os limites dessa moral? Enquanto algumas culturas entendem essas obras como perversão, outras apenas riem da situação que beira o absurdo. Seria um problema de comunicação? De imediato devemos pensar sobre o lugar da arte na contemporaneidade. Ainda que precipitado, podemos responder da seguinte forma: o lugar da arte é o espaço. Neste caso, não só pensando-o como suporte – ainda que nestes trabalhos seja um dado relevante – mas, historicamente, ele seria o seu local por experiência. Espaço de trânsito, espaço de confluência entre espectador/obra/artista. Não existe em definitivo o “espaço”, mas provocações, rompimentos, táticas contra atitudes esgotadas. Por meio de apropriações e invenções, as obras de Felipe Barbosa criam uma situação de suspensão em suas aparências. À medida que o espectador se aproxima destes objetos, ele descobre o jogo irônico, as amplas questões relacionadas ao espaço – sua representação racionalista e a percepção fenomenológica do mesmo - e a natureza da obra que reverbera em um território semântico no qual o trabalho parece querer habitar. 17 Cf. HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo; CAMERON, Dan. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 1999, p. 62. 18 MEIRELES, Cildo. Memórias. In: SCOVINO, Felipe (org.). Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2009, p. 246.