Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 Sobre o conceito de representação: etnicidade e análise histórica das imagens cinematográficas Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior* 1. Apresentação do problema Com a expansão dos estudos sobre cultura visual na historiografia, torna-se mister investigar como determinados processos identitários encontram expressão na forma de imagens, de forma a sistematizar que tipos de ferramentas teóricas estão disponíveis para os historiadores na análise de imagens como fontes (Cf. MENESES, 2003; KNAUSS, 2006; SANTIAGO JR., 2009). Dado que o estudo das identidades (e de suas flutuações) é um dos temas principais da chamada nova história cultural, e que nesta plataforma de observação, ocupa um importante papel, de um lado o estudo das imagens, e do outro, das identidades étnicas historicamente construídas, entre os conceitos chaves usados pelos historiadores encontram-se os de visualidade, etnicidade e representação. Este texto visa mostrar algumas implicações do emprego do conceito de representação nos estudos históricos de etnicidade, tomando a imagem cinematográfica como fonte. O uso do conceito de representação se tornou plenamente corrente na historiografia brasileira desde os finais dos anos 1980, no movimento acelerado de expansão da história cultural. Recentemente está mais comum o emprego seu conceito como aparato teórico e metodológico, se tornando um dos objetos e temas mais constantes nas pesquisas. Nos estudos de história cultural que tomam o cinema como fonte e/ou objeto principal de pesquisa, a fortuna crítica do conceito de representação é crescente. Num texto recente, José Barros insiste no uso do conceito, ao afirmar que “o cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um ‘meio de representação’. Através de um filme, representa-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, ou seja, um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme” (BARROS, 2008: 10). A noção de representação surge inadvertidamente pelo caráter figurativo que a imagem cinematográfica assume em sua aparição social padrão. Filmes, em alguma medida, ‘representam’ algo. Em história, todavia, o representar não é somente uma questão de ‘ocupar um lugar do ausente’, uma vez que a representação se tornou um dos temas principais da pesquisa histórica. Nessa perspectiva, o filme além (e antes) de representar o que mostra (o presente * Doutor em História pela UFF. Mestre em Multimeios pela UNICAMP. Graduado em História pela UFPI. Pesquisa financiada pela FAPEPI/CAPES. Professor a ser nomeado pela UFRN. 1 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 ocupando o ausente), contêm, em si, os sistemas classificatórios formados a partir das hierarquias e jogos de poderes que constituem as práticas sociais, ou seja, as representações coletivas. Estas são matrizes do sentido coletivo, para retomar uma expressão de Roger Chartier (1991). Ao pensarmos desse modo, os sistemas de classificação étnicos também seriam representações coletivas que estariam incorporados nas formas fílmicas. A análise historiográfica interessada em delimitar, por meio de imagens fílmicas, a produção social das identidades étnicas teria, tão somente, de encontrar os marcadores de etnia presentes nos filmes e contextualizá-los na diacronia. É justamente aqui que repousa a maior dificuldade: como marcar os signos da etnia na imagem, quando freqüentemente estes não são evidentes? E que implicações teóricas possui a existência de uma representação coletiva étnica na visualidade? 2. O fardo da representação O primeiro esclarecimento é da ordem das relações entre representação e seu referente, ou mais claramente, entre a representação e a etnia. A expansão de movimentos sociais étnicos e “raciais”, além de estudos étnicos e diaspóricos nas academias, colocaram em evidência o tema da etnicidade e da questão de sua representação na mídia como um todo. O risco inicial, nas análises de etnicidade nas imagens, advém da constituição do que se convencionou chamar de “fardo da representação”: uma obra (um filme, por exemplo) é analisada em função de algum aspecto que possui, um signo usado geralmente como marcador de uma dada comunidade étnica, passando a própria imagem a ser necessariamente interpretada como representante dessa comunidade. Assim, se num dado filme, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), por exemplo, aparece um único personagem negro, este necessariamente é um representante da raça negra. O personagem pode perder sua individualidade para representar toda a comunidade que lhe é atribuída (mesmo que na trama não haja qualquer menção a tal comunidade), ou melhor, tem sua individualidade pensada exclusivamente como um aspecto da identidade étnica que representa. Essa postura era comum nos primeiros estudos culturais, que usavam de conceitos essencialistas de ‘raça’ ou etnia, permitindo identificar configurar conflitos sociais nas representações fílmicas. Tais pesquisas realizam uma atribuição prévia de identidade do que aparentemente pretendem encontrar e a naturalização da categoria procurada. A imagem analisada estaria sujeita a um sistema classificatório étnico sem uma investigação contextual. Tomada a priori, a negritude do personagem Sebastião, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, permite concluir, uma vez que ele 2 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 representa a raça negra, que assim como o personagem é místico, arcaico e sacrifica uma criança, o povo negro é assim caracterizado no filme. O caráter de construção da representação é assumido pelo analista, que compreende que o filme produz uma imagem do negro que não se confunde com a própria experiência do negro, mas funciona junto às práticas sociais classificatórias sobre este. O ‘fardo da representação’ começou a ser relativizada a partir de finais dos anos 1980. O artigo Que negro é esse do movimento negro, de Stuart Hall (2003), atingiu as naturalizações raciais e étnicas dos estudos culturais mais descuidados. Hall propunha uma reavaliação do conceito de identidade na ‘pós-modernidade’, o que implicava em perceber a constante reconstrução identitária na sociedade e mídia contemporâneas. O estudioso propagou a idéia de que as múltiplas leituras transformavam os produtos midiáticos, de maneira a construir resistências às imposições exteriores, e fazer compreender que os grupos sociais transformam aquilo que consomem. Alguns estudiosos, como Gina Marchetti (1991), seguiram as sugestões de Hall, propondo um estudo da etnicidade como uma categoria não natural. Todavia, parece entender que um filme carregaria um fardo de representação étnica, ao qual a audiência não estaria presa, pois poderia transformar qualquer representação de uma dada comunidade e subvertê-la em seu benefício. 3. Etnicidade e ciências humanas O segundo esclarecimento é sobre etnia e etnicidade. Atualmente, se questiona muito a idéia de que haja uma ligação necessária entre os conceitos de etnia, etnicidade, raça e negritude. Segundo Antônio Guimarães (2002) boa parte do dilema dos estudos étnicos e raciais está na sobreposição, ou não, de determinadas categorias analíticas sobre as categorias com as quais os próprios atores sociais constroem o seu mundo. Para alguns estudiosos, conceitos raça e etnia devem ser assumidos unicamente na medida em que são categorias nativas, usadas pelos próprios atores sociais. Etnia pode ser tomada como uma forma identitária, uma configuração momentânea dos campos de auto-referenciação sociais. É de 1969 o artigo fundante de Friedrik Barth (2000), Grupos Étnicos e suas Fronteiras, que deslocou sensivelmente os estudos de etnia para uma relação de sociabilidade, desnaturalizando o conceito, e evidenciando a relação social que está na base da etnia. Barth observava que o principal na determinação de um grupo étnico era entender a forma como seus membros demarcavam suas fronteiras, os sinais de pertencimento que eram construídas segundo a atribuição, ou não, de pertença ao grupo. Para o antropólogo, a identidade étnica nascia não do 'conteúdo', do que se dizia ser própria a uma dada etnia (cor da pele, costumes, objetos, 3 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 vestimentas, obra de arte), mas das maneiras pelas quais essas coisas eram tomadas como fazendo parte ou não desse conteúdo. Barth deixava claro que sua questão maior era a atribuição, a forma pela qual os membros se dizem como pertencendo a um dado grupo e não a outro, ao mesmo tempo em que são reconhecidos como tais pelos não-membros. Só há etnia quando se configuram grupos que se entendem como pertencendo a grupos dotados de dadas características contrapostas às identidades externas. Em suma, há grupos étnicos e grupos não étnicos. A conceituação de Barth não conseguiu dirimir problemas de diferenciação dos conceitos de etnia, nação ou identidade. Tentando dirimir suas falhas, Philippe Poutignat e Jocelyne StreiffFenart (2000) propunham deixar de falar em identidade étnica, e pensar em etnicidade, um campo de referenciação que tem na etnia uma categoria capaz de marcar fronteiras diferenciadoras e aproximadoras dos atores sociais. Etnia seria mais uma relação do que um conteúdo programático ou essência do grupo no qual se realiza. A etnicidade seria o campo estabelecido pelas fronteiras identitárias que tem na origem e memória comuns a referência mestra. Ela concorre com referências de classe, raça, gênero, sexualidade e é atravessada por todas estas. A análise da etnicidade focalizaria nos “processos variáveis numa determinação pelas quais os atores identificam-se e são identificados pelos outros na base da dicotomia Nós/Eles, estabelecendo a partir de traços culturais que fundem origem comum e relações de interações raciais” (POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 2000: 141). Tais idéias desfazem, na análise fílmica, qualquer perspectiva essencialista ou de fardo de representação. Primeiro porque um filme só poderia ser analisado segundo o realce ou não que propunha de uma dada etnicidade. Isso significa que um filme pode não fazer um realce étnico, o que necessariamente não implica um apagamento da etnicidade na sociedade. Segundo, que a análise do realce da etnicidade de um filme deve considerar o contexto no qual o filme significa algo. O personagem Sebastião, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, significa algo num dado contexto; o fato dele ser negro não é suficiente para afirmar que ali há uma manifestação ou representação de uma identidade étnica afro-brasileira ou afro-descendente, uma vez que, estas últimas noções são historicamente dadas. Para determinar a etnicidade de um filme, é preciso delimitar a forma como ele articula os sistemas classificatórios étnicos, se o faz numa auto-atribuição visual, ou se tem projetado sobre si um imaginário étnico. Etnicidade torna-se uma questão da relação de uma imagem em contexto, numa contextualização constante de uma imagem com outras e os discursos que lhe são contemporâneos. 4 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 4. Visualidade e etnicidade Retomando a questão inicial, como demarcar a etnicidade de uma imagem? Se descartamos o imediatismo do ‘fardo da representação’, na qual qualquer marcador simples necessariamente implica numa caracterização étnica, quais os conceitos que permitem observar e recortar a etnicidade de um filme? As relações entre imagens e história atingiram um novo estágio de complexidades com o avanço dos estudos visuais na historiografia e a configuração de uma história das imagens. No caso das relações entre cinema e história, passou-se das delimitações iniciais das representações históricas, ou do filme como agente histórico para uma compreensão do papel do filme na construção de uma cultura visual nas sociedades do século XX e XXI. Como muitas outras imagens técnicas, o cinema tornou-se uma tecnologia da visão que permite a visibilidade e a cognição interativa que privilegia a compreensão do mundo na forma visual. Quaisquer processos identitários e representações coletivas são observáveis enquanto se constituem como componentes dessa iconosfera. Há um debate crescente sobre o que seriam cultura visual e visualidade. Longe de queremos defini-los,1 achamos mais interessante apontar o que ambos os termos põem em jogo: a idéia de que há uma especificidade cultural nos regimes visuais, que existem transformações históricas na visualidade, ou seja, uma contextualização diacrônica do visual, do visível e da própria visão. Uma imagem se alimenta dos padrões e configurações sociais visuais disponíveis nas quais uma serie de entidades que a compõem já estão disponíveis. A imagem representacional (a que mostra algo) atualiza, transforma e re-alinha tais padrões, entre eles, se houverem numa dada sociedade, as categorizações étnicas. O cinema faz parte da constituição da visualidade na contemporaneidade. Se a etnicidade faz parte das formas de marcação identitária atuantes nos meios sociais, fatalmente, quando vaza para os filmes, as fronteiras étnicas também adquirem vida nas imagens cinematográficas. Isso chama atenção para um aspecto fundamental da cultura visual, quando observada na contemporaneidade: no século XX, a cultura visual depende menos das próprias imagens do que da “tendência moderna de figurar ou visualizar a existência” (MIRZOEFF apud KNAUSS, 2008: 156). A emergência da etnicidade como questão política fundamental, tornou suas formas de atuação na visualização e visibilização das diferenças étnicas uma questão heurística pertinente. Neste sentido, Lester Friedman lançou a mesma pergunta com a qual abrimos esse texto: “como poderia ser uma criação 1 Isso já foi feito de forma competente por Ulpiano Bezerra de Meneses e Paulo Knauss (confira nota 1). 5 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 de artista ser manchada por sua etnicidade, se o tema de um determinado filme não contém elementos étnicos evidentes?” (FRIEDMAN, 1991: 31). O autor assegura que grupos e identidades étnicas são componentes cruciais das sociedades, e para responder sua própria pergunta faz a seguinte analogia: assim como uma diretora do sexo feminino não deixa de ser uma mulher quando faz um filme que não é sobre questões abertamente femininas, uma identidade e sensibilidade étnicas não desaparecem quando ele ou ela fazem filmes sobre questões não-étnicas. Todavia, a questão deve ser redimensionada quando incorpora a visualidade. Em tempos de estudos sobre a diáspora, por exemplo, a questão das relações que as imagens estabelecem num contexto social e histórico são mais valorizadas como determinante da própria etnicidade. Cada vez mais, estudiosos têm alertado para o fato de que no lugar da afirmação de identidades, tem-se visto uma era de migrações e existências transitórias, as quais apontam para a dispersão da identidade. Historicamente, não se pode assumir que a diáspora aconteceu da mesma forma em todos os tempos e lugares, ou sequer que os processos de produção dos sentidos dos povos diaspóricos respeitaram os mesmos princípios sempre. Todavia, autores como Nicholas Mirzoeff (2000) apontam que a diáspora chamou atenção para que as noções de raça ou etnicidade sejam repensadas. Mirzoeff ao estudar o artista impressionista judeu Camille Pissarro, afirma que sua etnicidade, especificamente a “jewishness”, no contexto caribenho, não é uma forma denotada nas imagens, mas ao contrário, conotada como um aspecto das técnicas pictóricas. Ou seja, Mirzoeff chama atenção para o fato de que a imagem num dado contexto gera um impacto de visualização que permite procurar o que inicialmente não é evidente sobre sua própria etnicidade, no caso desta estar presente. Indo um pouco na direção do próprio Mirzoeff, em nossa pesquisa de doutoramento, buscando compreender como determinados aspectos da cultura afro-brasileira se manifestaram no cinema brasileiro dos anos 1970, e geraram marcações identitárias étnicas, colocamos as imagens em sua relação com o contexto social (SANTIAGO JR., 2009). Notamos que alguns filmes, como O Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974), Xica da Silva (Carlos Diegues, 1975), Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1977), A Força de Xangô (Iberê Cavalcanti, 1978), etc., deflagraram conflitos que não se apresentam nos próprios filmes, ao menos não nos moldes procurados por alguns agentes sociais. Assumindo o pressuposto de que os filmes agenciam os discursos e colocam em ação novas configurações de tais matrizes em forma visual, observamos que uma série de conflitos que foram acionados pelos filmes, os quais foram acompanhados por meio da fortuna crítica em jornais e revistas, advinham da projeção dos interesses de alguns atores sociais nas imagens fílmicas. Assim a escravidão, em Xica da Silva; e a religião, em Tenda dos Milagres e A Força de Xangô, surgiram em 6 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 meio à emergência das políticas de identidade e da valorização positiva da noção de raça negra e das origens africanas. Muitos atores sociais se manifestaram contra ou a favor desses filmes, fazendo uma apologia incisiva sobre a raça e sobre a especificidade da cultura africana, que a escravidão teria violentado (mostrada em Xica da Silva), e das quais o Candomblé (que aparece em Tenda dos Milagres e A Força de Xangô) seria a maior evidência de herança. Ao trabalharmos com uma noção de etnicidade como atribuição identitária que toma por base uma marcação de origens comuns, notamos um realce crescente e contraditório das origens africanas, em alguns filmes, críticas e reportagens que davam formas visuais e discursivas à etnicidade na sociedade brasileira. Atingia uma mídia de amplo alcance social (o cinema) as nomeações de “afro-brasileiro” e “cultura negra”. Filmes como Tenda dos Milagres discutiam abertamente sobre mestiçagem e miscigenação, ao mesmo tempo em que mostravam as sobrevivências culturais africanas dos povos jêjes e nagôs. A canção de abertura da fita, Babá Alapalá, de Gilberto Gil, falava da divinização de um ancestral nagô no orixá Xangô. O samba enredo A Festa dos Deuses Africanos, de Baianinho, é tocado no começo de A Força de Xangô e menciona claramente os deuses que vieram da África para o cativeiro, assim como o personagem principal, ‘Tônho’ de Xangô, é chamado repetidamente de ‘africano’. Essas películas e outras inscrevem em suas formas uma atribuição étnica, uma identidade de origem. Nas discussões sobre a fita em jornais e revistas, nota-se que existia uma certa oscilação entre atribuição étnica e uma atribuição de identidade nacional. Outras fitas não fazem marcações étnicas tão evidentes. O Amuleto de Ogum não faz, em nenhum momento, qualquer nomeação étnica. Mesmo assim, o antropólogo Marco Aurélio Luz falou nas origens étnicas da Umbanda que o filme mostraria. A nomeação, neste caso, veio de fora da imagem cinematográfica, de um agente que escolheu nela os elementos que considerou como pertinentes na evidência de uma identidade étnica. Finalmente, em Xica da Silva, as marcações raciais e de negritude são todas submetidas à lógica da subversão carnavalesca da protagonista no Arraial do Tijuco. Menos do que uma etnicidade ou da raça negro-africana, a fita de Carlos Diegues, apontou para um ethos de subversão brasileiro. A película foi duramente criticada nos anos 1970, por acadêmicos e artistas negros que achavam que vilipendiava o trauma da escravidão e ignorava os traços autênticos da cultura e povo negro de origem africana. Como a “raça”, a etnicidade, na sociedade brasileira, flutua conforme o contexto, havendo a convivência de diferentes realces de etnicidade ao mesmo tempo de realces de identidades nãoétnicas, os quais atravessam outras matrizes de sentido. Alguns filmes, como O Amuleto de Ogum e Xica da Silva, não possuíam marcadores evidentes de etnia, mas foram vistos e comentados por 7 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 alguns espectadores como evidencias da origem racial e étnica dos próprios filmes. Em outras palavras, as películas tornavam-se sinais de etnia e raça na medida em que atores sociais, munidos de determinados sistemas classificatórios, projetaram-nos nas imagens, sobrepondo-os aos sistemas já presentes (e por vezes conflitantes) nas próprias fitas. A etnicidade de algumas películas surgia dos discursos concorrentes e contemporâneos e não das próprias imagens; o conflito gerou o contexto no qual etnia se tornou possível, em suma, a etnicidade foi conotada nos aspectos projetados pelos atores sociais. 5. Limites da representação? Retornemos à representação. Que um filme de ficção representa algo está fora de debate. O problema é, em que medida, podemos falar em uma representação étnica nos filmes sem compreendermos o que entra em jogo quando um dado fenômeno cultural (etnicidade) encontra visibilidade por meio da visualidade. Uma imagem, uma vez criada e lançado no circuito social, relaciona-se com tempos e lugares e passa a fazer parte do contexto; possui um “poder magnético de atrair outras idéias” (KNAUSS, 2008: 165). Como entre os campos discursivos que fornecem matéria-prima a partir das quais são elaborados os filmes, encontra-se a etnicidade, estes, uma vez realizados, perturbam tais campos, criando uma conflagração inédita (DIDI-HUBERMAN, 2002). A questão reside em que medida a representação étnica é base desta conflagração ou seu resultado. Em vez de ser essa uma questão do tipo “quem vem primeiro o ovo ou a galinha”,2 trata-se de compreender a aparição visual da “representação coletiva”. Recorremos à conceituação didática de Roger Chartier (1991) segundo a qual a representação social é um conceito útil para alcançar e demonstrar o movimento histórico das tensões e disputas sociais que formam as sociedades. Como temos repetido no decorrer do texto, a representação é uma matriz produtora de sentido formada a partir dos sistemas ou padrões classificatórios hierarquizados e hierarquizadores de percepção; ela se organiza na atualização interminável das classificações sociais. Ela é concretizada nos produtos culturais e permite compreender as práticas dos indivíduos enquanto coletividade. Nessa perspectiva, um filme é uma representação formado a partir da atualização das divisões sociais, carregado das tensões sociais, e está sujeito às diferentes 'leituras' pelas quais uma audiência atualiza e transforma seus sistemas culturais, articula poderes, produz e modifica suas hierarquias. A etnicidade, como dito acima, pode ser tomada como um dos sistemas classificatórios 2 Ironicamente, segundo os estudos genéticos, o ovo (a conflagração) viria primeiro. 8 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 usados pelos sujeitos sociais. Uma vez atualizado, a etnicidade adquire uma nova existência numa obra dotada de materialidade como o filme. Na conceituação de Chartier, o conflito e a tensão estão inseridos na própria imagem cinematográfica, produto de uma apropriação e atualização das classificações sociais vigentes, cabendo ao historiador, ou pesquisador, saber identificar os sinais pelos quais as divisões étnicas se tornam visíveis ou são apagadas nas imagens. Há duas críticas passíveis contra a abrangência e eficiência heurística dessa concepção de representação. A primeira é que determinada vertente dos estudos étnicos aponta que se a etnicidade é uma relação de atribuição e realce contingente, que concorre com outras atribuições e configurações sociais, não sendo necessariamente ‘autêntica’ ou tendo qualquer conteúdo obrigatório, senão o que é demarcado dentro das fronteiras étnicas delimitadas na relação social; uma representação étnica só pode ser conformada a partir da relação na qual o realce da etnicidade se torna pertinente. Por mais que haja classificações étnicas disponíveis na sociedade, elas concorrem com outras atribuições não étnicas, podendo haver casos em que a etnicidade não esteja presente num dado produto cultural como um filme, ou numa interpretação deste.3 Os estudos visuais apontam um segundo entrave: tem demonstrado que uma representação se constitui numa relação ampla de uma dada imagem com a visibilização e/ou visualização de uma diferença. Se por um lado um filme representa, o que ele representa muda conforme o contexto no qual algo é mais ou menos realçado, o que vale também para as marcas de etnicidade. Se normalmente a etnia pode ou não está presente num dado discurso, ela também pode ou não estar presente numa imagem. Isso significa que uma imagem pode atualizar representações étnicas na sua própria constituição (denotação), ou por atribuição de terceiros (conotação), quando até a ausência de sinais étnicos podem ser interpretados como uma concretude visual da etnicidade, uma vez que, na medida em que está ausente, está presente como silêncio ou não-visível da imagem.4 Foi o que ocorreu com alguns filmes brasileiros nos anos 1970. A implicação disso é que nem toda imagem cinematográfica (ou mesmo todas as imagens, ousaríamos dizer) constitui representações sociais étnicas, que uma imagem pode ou não representar esse algo, ou trás em si a totalidade dos conflitos que ela própria permite surgir. Talvez seja mais interessante ver a representação, no cinema, como um processo relacional que surge a partir do cruzamento de imagens com as matrizes geradoras de sentidos internas e externas às próprias, de forma com que o conceito de representação, tal como trabalhado na história, seja numa 3 4 Isso está ligado a uma dinâmica e tensão própria a atribuição étnica, que oscilaria entre os vetores da ascendência e do consentimento do pertencimento a uma comunidade étnica, como coloca Werner Sollors, a qual infelizmente não temos espaço aqui de desenvolver. Cf. FRIEDMAN, 1991. E essa é a origem da maior parte das calorosas discussões políticas sobre estar ou não representado significa um silenciamento ou apagamento social. 9 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-2880061-6 chave fácil e a-crítica, como é bem próprio de uma profissão pouco dada a vôos teóricos, seja nas resoluções como as de Chartier, tenha uma função mais confiável. A grande crítica é que a definição de Chartier parece naturalizar a representação na obra cultural, seja esta visual ou não, quando afirma que ela encerra os conflitos sociais, suas hierarquias e poderes em disputas. Uma análise acurada das imagens em relação, em especial, das imagens étnicas, parecem demonstrar que elas não encerram nem a totalidade, nem freqüentemente os conflitos que alguns atores (inclusive os analistas) a elas atribuem, mas que, magneticamente, permitem que se forma por projeção. Uma imagem nem sempre reconstrói uma disputa ou identidade étnicas, mas pode acioná-las em sua relação social, produzindo uma representação em contexto. Referências bibliográficas BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. 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