Caio Fernando Abreu: correspondências
Mara Lúcia Barbosa da Silva
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Bolsista de Pós-Doutorado PNPD/CAPES do PPG/Letras
RESUMO: No prólogo de Escrita de si, escrita da História, Angela de Castro Gomes trata
sobre uma nova forma de pensar a correspondência e da relevância que lhe passou a ser dada.
Para Gomes, a escrita autorreferencial ou escrita de si integra um conjunto de modalidades do
que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno ocidental. Segundo Gomes, a
escrita de si teria iniciado a divulgação de sua prática, grosso modo, no século XVIII devido a
uma série de circunstâncias anteriores, como a produção por indivíduos comuns de uma
memória de si, o surgimento dos termos biografia e autobiografia, o aparecimento do romance
moderno, além da emergência do cidadão moderno, dotado de direitos civis e políticos. Dessa
forma, os tempos modernos consagrariam o lugar do indivíduo na sociedade, quer como uma
unidade coerente quer como uma multiplicidade que se fragmenta socialmente, exprimindo
identidades parciais e nem sempre harmônicas. A escrita de si de Caio Fernando Abreu, que
não se circunscreve a sua correspondência, mas que está também em seus diários, entrevistas
e em toda a sua literatura nos permite pensar que a memória de Caio F. na sua subjetividade
não é apenas pessoal e intransferível, mas é tão somente pessoal e intransferível. Nosso
propósito é analisar como essas circunstâncias se apresentam na correspondência de Caio
utilizando como objeto de pesquisa Caio Fernando Abreu: cartas, organizado por ítalo
Moriconi, e os três volumes de Caio 3D: o essencial dos anos 70, 80 e 90.
PALAVRAS-CHAVE: Epistolografia; Caio Fernando Abreu; escrita de si.
ABSTRACT: In the prologue of Escrita de Si (Writing Itself), written of the history, Angela
de Castro Gomes deals on a new way of thinking the correspondence and of the relevance that
happened to be given to it. For Gomes, the self-referential writing or writing itself includes a
set of modalities of what is called production of the self in the modern Western world.
According to Gomes, the writing itself would have started disseminating their practice,
roughly in the XVIII century due to a number of previous circumstances, such as the
production of ordinary individuals of a memory of itself, the emergence of biography and
autobiography terms, the appearing of the modern novel, plus the emergence of the modern
citizen, endowed with civil and political rights. Thus, modern times consecrate the
individual's place in society, either as a coherent unit or as a multiplicity that is fragmented
socially, expressing partial and not always harmonious identities. The writing itself of Caio
Fernando Abreu, who is not limited to his correspondence but it is also in his diaries,
interviews and throughout his literature allows us to think that the memory of Caio F. in its
subjectivity is not only personal and untransferable, but only as personal and untransferable.
Our purpose is to analyze how these circumstances are present in matching of Caio, using as
object of search the own Caio Fernando Abreu: Letters, edited by Italo Moriconi, and the
three volumes of Caio 3D: the essence of the 70s, 80s and 90s.
KEYWORDS: epistolography; Caio Fernando Abreu; writing itself.
E comecei a tentar escrever quelque chose que ainda não sei bem o que é. Seja o
que for gira em torno desta frase de Camille Claudel numa carta a Rodin, que me
obceca há anos:
“Il y a toujours
quelque chose d’absente
qui me tourmente” (Abreu, 2006c, p. 206)
Os arquivos artísticos e/ou literários sempre foram mananciais que forneceram
matérias para os estudos da pesquisa literária. O corpo desses arquivos pode incluir móveis,
obras de arte, objetos pessoais, bibliotecas, materiais fonográficos e fotográficos, manuscritos,
que já foram nosso objeto de estudo em tese de doutoramento e, entre outras tantas coisas,
cartas.
No artigo intitulado Correspondência na Biblioteca Nacional, Ronaldo Menegaz
(1999, p. 225-230) trata do acervo de correspondências da Fundação Biblioteca Nacional, que
está sob os cuidados da Divisão de Manuscritos e que, apesar do nome, apresenta nesse
sentido fraca documentação literária. Menegaz observa que, confirmando a constatação, o
acervo de correspondência entre escritores brasileiros é o grande destaque dessa divisão. Dela
fazem parte algumas coleções que preservam cartas manuscritas de Lima Barreto, Machado
de Assis, José de Alencar, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Manuel Bandeira, entre outros.
Nesse texto, o autor detém-se especificamente na análise da correspondência da poeta e
ativista política franco-brasileira, Marcelle Jaulent Reis, conhecida como Beatrix Reynal, que
foi considerada uma heroína pela sua atuação na causa da resistência francesa, em defesa da
qual empregou quase todos os seus bens. Há uma farta correspondência de Reynal com
artistas e intelectuais brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz,
Tarsila do Amaral, Murilo Mendes, etc., o que propicia uma ideia das relações culturais e
literárias entre Brasil e França naquele momento.
Para Marcos Moraes (2006, p. 65-66), a correspondência de escritores abre-se,
normalmente, para três grandes perspectivas de exploração, como expressão testemunhal que
pode ajudar a definir um perfil biográfico do autor; como forma de esclarecer os movimentos
dos bastidores da vida literária, com todos os seus problemas, arranjos e burocracias; e como
laboratório de criação, ao permitir que se adentre por um projeto literário, conhecendo-o
desde a sua concepção primeira e acompanhando-o ao longo de sua trajetória editorial.
Angela de Castro Gomes, em Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo
(2004, p. 7-24), trata sobre a nova forma de pensar a correspondência e da relevância que lhe
passou a ser dada. Gomes inicia o seu texto falando de um boom de publicações de caráter
biográfico e autobiográfico e que é cada vez maior o interesse por um gênero de escritos que
ela denomina como escrita de si, que abrange correspondências, diários, biografias,
autobiografias:
A escrita auto-referencial ou escrita de si integra um conjunto de modalidades do
que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno ocidental. Essa
denominação pode ser mais bem entendida a partir da ideia de uma relação que se
estabeleceu entre o indivíduo moderno e seus documentos. (GOMES, 2004, p. 10)
Alguns dos exemplos desse manancial de publicações citados pela autora são Anos
tormentosos: correspondência da prisão (1936-1945) que reúne cartas de Luiz Carlos Prestes
de quando ele era prisioneiro do Estado Novo e Caio Fernando Abreu: cartas, com a
correspondência ativa de Caio Fernando Abreu entre os anos de 1960 e 1990.
Segundo Gomes (2004, p, 8) cartas, diários íntimos e memórias sempre despertaram
interesse, mas na última década, no Brasil e no mundo, ganharam um novo impulso, mas
mesmo assim as reflexões sobre esse tipo de escrita ainda não são numerosos. A escrita de si
teria iniciado a divulgação de sua prática, grosso modo, no século XVIII devido a uma série
de circunstâncias anteriores, como a produção por indivíduos comuns de uma memória de si,
o surgimento dos termos biografia e autobiografia, o aparecimento do romance moderno,
além da emergência do cidadão moderno, dotado de direitos civis e políticos, ou seja:
embora o ato de escrever sobre a própria vida e a vida de outros, bem como de
escrever cartas, seja praticado desde há muito, seu significado ganha contornos
específicos com a constituição do individualismo moderno. A chave, portanto, para
o entendimento dessas práticas culturais é a emergência histórica desse indivíduo
nas sociedades ocidentais. (GOMES, 2004, p, 11)
As práticas de produção de si podem ser entendidas para Gomes (2004, p. 11),
portanto, como englobando um diversificado conjunto de ações desde as mais ligadas à
escrita de si, como autobiografias e diários, até a constituição de uma memória de si,
estabelecida por meio de objetos materiais.
Essa prática, afirma ainda a autora, é um fenômeno que vem sendo estudado por várias
ciências que já consolidaram algumas ideias, sendo que uma delas é a de que a vida individual
é matéria digna de ser narrada. Dessa forma, os tempos modernos consagrariam o lugar do
indivíduo na sociedade, quer como uma unidade coerente quer como uma multiplicidade que
se fragmenta socialmente, exprimindo identidades parciais e nem sempre harmônicas. Essa
nova categoria de indivíduo faz com que se transformem as noções de memória, documento,
verdade, tempo e história.
Sendo assim, quanto à memória, passam a ser legítimos os procedimentos de
construção e guarda de uma memória individual comum e não apenas de um grupo ou homem
célebres. A defesa dessa nova prática baseia-se tanto na assertiva de que todo indivíduo é
social quanto no reconhecimento da radical individualidade de cada um. E é justamente
porque o eu do indivíduo moderno, simultaneamente uno e múltiplo, não é contínuo e
harmônico que as práticas de produção de si são possíveis e desejadas.
Gomes (2004, p. 13) enfatiza também que as práticas de escrita de si podem
evidenciar desse modo uma trajetória individual mutante, que se altera com o passar do tempo
e que mostra também como o mesmo período de vida de uma pessoa pode ser “decomposto”
em tempos com ritmos diversos: um tempo de casa, um tempo do trabalho, etc. E esse
indivíduo não é o estadista, o herói de grandes feitos, mas o sujeito comum, o anônimo, cuja
vida é composta por acontecimentos cotidianos, mas que adquirem importância pela ótica da
produção de si.
A ESCRITA DE SI DE CAIO F.
A escrita de si de Caio Fernando Abreu não se circunscreve apenas a sua
correspondência, ela está também em seus diários, entrevistas e em toda a sua literatura. A
leitura de suas cartas só corrobora o que já se pode intuir pela de sua obra, que essa traduz,
sobremaneira, o que vai na sua alma. E o que vai na alma do missivista Caio F.: o primo
Brazilian de Christiane (ABREU, 2006c, p. 265); o primo careta de Christiane (ABREU,
2006b, p. 238) ou the Christiane’s brother (ABREU, 2002, p. 90) é diverso, é contraditório, é
surpreendente, é inquietante. Ítalo Moriconi na introdução das Cartas, organizadas por ele,
afirma que:
Na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo
movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais,
suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário,
ainda não revelado ao público. (Abreu, 2002, p. 15)
Moriconi declara que através das cartas buscou recuperar o romance fragmentado de
uma vida e que as decisões editoriais foram norteadas, em primeiro lugar, pela intenção de
estruturar o texto como o “romance de uma vida” e “esboço de painel” e, em segundo, pelo
fato de as cartas serem relativamente recentes e tendo algumas, como personagens, pessoas
que naquele momento ainda estariam (estão) vivas.
E assim sendo, as memórias de Caio F. não são apenas pessoais e intransferíveis, mas
são tão somente pessoais e intransferíveis. Memórias de uma vida que ele percebe em
determinadas ocasiões por meio de lentes coloridas, que seriam abençoadas por fadas
madrinhas, e, em outras tantas, amaldiçoada, comandada por uma madrasta má que o mantém
preso em meio ao borralho. Mas ele tem também a percepção de que a própria opinião, que o
seu olhar podem ser enganadores:
Mas estou mais tranquilo. E percebendo coisas: voltei para Sampa muito alegrinho,
muito na-boa, muito tudo-vai-rolar. A memória da gente é safada: elimina o amargo,
a peneira só deixa passar o doce. Então eu tinha esquecido que esta cidade te cobra
preços altos. Ela é uma mulher (ou um homem) belíssima(o) que se oferece
tentador(a), como se amasse, te envolve, te seduz – e na hora em que você não
suporta mais de tesão e faria qualquer negócio, ela(e) te diz o preço. Que é muito
alto. (ABREU, 2002, p. 92)
Na correspondência ativa publicada de Caio F. é perfeitamente perceptível a já citada
tripartição proposta por Marcos Moraes. Essa divisão, no entanto, torna-se apenas operativa
quando vamos analisar a constituição dessa correspondência, pois esses três aspectos estão
profundamente imbricados e acabam em maior ou menor escala relacionados um ao outro.
Através da leitura das cartas do missivista Caio Fernando Abreu, o perfil biográfico
que se pode determinar é o de uma natureza em constante busca, em permanente mutação, ora
ele ama certas situações, lugares e pessoas, ora ele pode detestá-las profundamente. Em dado
momento, adora São Paulo e tudo o que a megalópole pode lhe proporcionar em termos de
carreira e em agitada vida social; em outros momentos, odeia a cidade justamente por tudo
isso, considerando-a desumana, fria e devoradora, como se pode perceber no trecho citado
acima.
O mesmo sentimento contraditório também se manifesta no que se refere a outras
tantas cidades como o Rio de Janeiro, Porto Alegre e até mesmo Paris: “Fiquei 10 dias em
Paris (trés decadent, cheia de bêbados, imigrantes, refugiados) e vim para cá” (ABREU,
2006c, p. 205), em 10 de novembro de 1992; em 29 de dezembro do mesmo ano já dizia para
Maria Adelaide Amaral: “Fiz dezena de amigos, fui OBRIGADO a falar francês 24 horas por
dia (inclusive dormindo, juro!) e o resultado é que je tombée completement amoureux de la
France.” (ABREU, 2006c, p. 217).
A menção a alguns personagens e fatos do momento econômico e político do Brasil
servem para emoldurar situações vividas, pois as limitações financeiras eram uma constante
no dia a dia de todos os brasileiros, naquele momento, e ainda mais evidente na vida de quem
pretendia viver de arte. A produção cultural não era prioridade, nem valorizada no país, além
de sofrer sanções governamentais e algumas vezes dos próprios pares. Dessa forma, o que se
refere a ela por consequência fica em segundo plano.
Os bastidores da vida literária, então, não mudam muito. A pretensão de viver de
literatura é constantemente obstruída pela realidade do país e de um difícil mercado editorial.
Caio conhece bem essa situação, escreve em 12 de julho de 1990 para Maria Lídia Magliani
de São Paulo:
Ando exausto da Realidade Brasileira. Tudo muito penoso, ir ao banco, ao
supermercado, pagar aluguel. Tudo no meio da barbárie, da violência, da miséria.
Procuro sair de casa o mínimo possível, mas esse mínimo já está se tornando um
martírio. Muita feiura, Magli, muita violência e miséria. Então, sem laços, vamos
voltar para a estrada: “Caminante, no hay caminos, pero el camino se hace al andar”.
(ABREU, 2006c, p. 190)
Uma década antes, em maio de 1980, escreve para o pai, de São Paulo, que nesse
momento lhe parece "uma cidade fascinante, cheia de vida". Afirma estar muito bem, que
poucas vezes se sentiu assim. Conta que recebeu alta da terapia e fala dos biscates culturais
que está realizando: um livro de mais de 500 páginas sobre a educação de bebês, critica de
livros para a revista Veja e matérias para a revista feminina Nova.
Nessa mesma carta, Caio afirma que “dá para levar apesar do Delfim Neto”. Nesse
período, Delfim Neto era secretário do planejamento da Secretaria do Planejamento
(SERPLAN) do governo de João Baptista Figueiredo (1979-1984), era o homem forte da
economia brasileira, controlando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Antes
disso já fizera parte dos governos Castello Branco, Costa e Silva e Medici.
Neste momento, a inflação estava num patamar em torno de 53,9%, mas a partir do
ano seguinte atinge 157,5%, dificultando a vida de todos, situação que é mencionada por Caio
em carta à Bruna Lombardi em fevereiro de 1981:
Está tudo muito ruim, e nós precisamos mais do que nunca ser solidários uns com os
outros. Trocar estímulos. Assim: olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você
também sabe, mas queria te dizer para não parar de remar, porque te ver remando
me dá vontade de não querer parar de remar também. (ABREU, 2002, p. 29)
Os registros acerca da criação literária tratam de forma mais ou menos clara de
diversas obras do autor produzidas ao longo de seus quase trinta anos de carreira,
considerando a produção de Limite Branco em 1967. Em Caio 3D, da década de 90, a
correspondência de Caio Fernando Abreu da conta do reinício e término da escritura do
romance Onde andará Dulce Veiga? Um romance B, através das cartas enviadas para Maria
Lídia Magliani, os dois primeiros trechos citados abaixo; e sobre a publicação desse na França
e em outros países da Europa para Guilherme de Almeida Prado, último trecho:
Bueno, não te respondi logo porque enlouqueci. Comecei a escrever loucamente um
romance no qual (no-qual é horrível) vinha trabalhando desde 84/85. Acho que sai,
estou quase na metade. Esta última semana não consegui trabalhar, além de Zélia e
Fernandinho enlouquecendo a todos nós, me deu outra vez a tal de otite. (ABREU,
2006c, p. 185)
Magli,
tenho pensado tanto em você. Não consegui escrever antes, estava mergulhado no
livro tipo tempo integral. Bem, terminei. Ufa. Foi um trabalho de Hércules. Chamase Onde andará Dulce Veiga?, é aquele romance no qual eu vinha remanchando
desde 85. Imagina que escrevi um policial, histérico, naturalmente, mas cheio de
tramas & ação. (ABREU, 2006c, p. 189)
(...) para te deixar nervoso. Ray-Güde, minha agente alemã, vendeu Dulce Veiga
para as Éditions du Seuil, a segunda editora mais poderosa da França (a primeira,
sure, é a Gallimard). (...) Ray-Güde, muito animada, está vendendo Dulce também
para uma editora alemã, e acha que pode negociar Suécia, Holanda,
Tchecoslováquia. (ABREU, 2006c, p. 201)
Nas suas cartas, da mesma forma como acontece nos seus diários, com os quais
tivemos a oportunidade de ter um breve contato, Caio revela toda a sua subjetividade. Nos
diários, ele dialoga com seus botões, externando as suas inquietações, dramas, alegrias, conta
sua vida. Nas cartas ele faz o mesmo, mas dependendo do destinatário essas ‘revelações’
assumem contornos distintos, nessas narrativas epistolares há um tempo de casa, no qual fala
da rotina do dia a dia; um tempo de trabalho, no qual fala da criação, dos biscates culturais
que lhe permitem sobreviver; um tempo de amor, no qual fala das conquistas, dos namoros,
dos rompimentos, das dores; um tempo de reflexões pautadas na realidade econômica,
política, intelectual do Brasil e do mundo.
Os destinatários, os interlocutores, das missivas: Querido pai, Querida mãe,
Levíssima, Levinha, Levinha do Amaral (Maria Adelaide Amaral), M’r’len, Marilene
(Jacqueline Cantore); Luciano, querido, Luciano, querido irmão (Luciano Alabarse); Luizar
(Luiz Arthur Nunes); Magli, chérie, Maglim, menina-loba, Ma(di)gliani, ma belle (Maria
Lídia Magliani), através da forma como Caio se dirige a eles, são, de certa forma,
ficcionalizados, do mesmo modo que o é o próprio Caio F. As nuances das “conversas”
epistolares revelam um grau maior ou menor de intimidade, afinidades distintas, protocolos
sociais, enfim, trazem à tona níveis distintos de estabelecimento de relação.
Escrever cartas era importante para Caio, como declara para Paula Dip na abertura dos
anos 80, dia 1º de janeiro: “Hoje mesmo eu fiquei muito tentado a ligar procê. Segurei e
preferi a carta. É menos imediato, mas gosto mais. A gente não deve permitir que as cartas se
tornem obsoletas, mesmo que talvez já tenham se tornado.” (ABREU, 2006b, p. 196). E em
outro momento, para Maria Adelaide Amaral declara: “Acho que sou melhor por carta (...)”
(ABREU, 2006c, p. 207). Ou seja, ele é melhor escrevendo.
Nesse momento, o fato de não termos acesso às respostas dos destinatários faz essa
correspondência assumir ainda mais a semelhança de uma confissão, de um monólogo, de
uma escrita de si, para si. De São Paulo, em 12 de agosto de 1987, Caio F. escreve para os
pais em Porto Alegre e corrobora a ideia que ele mesmo enunciara sobre ser melhor por carta,
pois ele é um escritor, um ser que escreve melhor do que vive:
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E
que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas
aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o
destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou
um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela
– mas não consegue vivê-la. (ABREU, 2006b, p. 251)
Se na obra literária, os fatos da vida real, históricos e sociais passam pelo veio
ficcional para se tornarem literatura, a sua forma de ler o mundo; a obra da vida real, a carta, o
diário, a escrita de si, também parecem passar pelo mesmo processo, sendo de certa forma
ficcionalizadas para, quem sabe melhor processar dificuldades e contratempos no sentido de
“exorcizá-los”, é uma espécie de psicanálise.
Segundo Ana Letícia Fauri, em Erico Verissimo: a epístola como expressão do
literário, a carta possui uma natureza ambivalente:
(...) ela transita, enquanto objeto, no espaço que separa quem a escreve daquele a
quem se destina. Por outro lado, essa mesma materialidade reveste-a da
subjetividade do sujeito-autor, na medida em que ela o representa, encarnando a sua
própria subjetividade. Isso significa que a carta funciona não apenas como um modo
de comunicar, mas principalmente de tornar presente, de substituir aquele que a
escreveu (e que esta ausente) pelo que está escrito: as palavras passam, nessa
medida, a representar o homem que as inscreveu no papel. (p. 48-49)
Podemos observar essa circunstância apresentar-se de modo pleno na correspondência
de Caio Fernando Abreu. Nessas, além de narrar os fatos triviais do dia a dia, ele reflete sobre
a sua vida, a do país e a do mundo (o espaço que ocupa será sempre tema de suas reflexões) e
também sobre o ato de escrever. Escrever para ele era como respirar, uma necessidade
primordial, mas ao mesmo tempo uma difícil e dolorida tarefa, como afirma em abril de 1983
em carta para Charles Kiefer:
Andei escrevendo bastante. De repente, acho que esta saindo um livro novo. Sabe que
tenho MEDO de escrever? Evito sempre que posso. Da uma grande exaustão, depois.
Uma exaustão agradável, mas a cabeça fica excitada demais, é qualquer coisa muito
próxima da loucura. Mas nos últimos tempos não tenho conseguido evitar. Vai saindo.
E meio assustador. Passei os últimos meses envolvido com uma pequena novela, O
marinheiro, tão desesperadamente solitária e tão alucinadamente onírica que eu tinha
medo de não voltar cada vez que mergulhava nela. Acho que esta pronta. Peguei
pânico da máquina e, há poucos dias, voltei.
E você, como vai? Detesto perguntar "tem escrito?". Soa sempre como cobrança, e
quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é
louca demais para que se possa responder "sim" ou "não". Mesmo que não se esteja
escrevendo realmente, a gente sempre está escrevendo por dentro. Mas eu tenho,
anyway, vontade de ler outras coisas suas. (ABREU, 2002, p. 42)
No mesmo ano, o autor dá conta para Maria Adelaide Amaral e João Silvério Trevisan
dos sentimentos pelos quais é tomado em relação ao término da escritura e a passagem para o
processo de publicação do livro que mencionara na carta enviada à Kiefer. Para Maria
Adelaide, em agosto, ele escreve: “Minha cabeça melhorou demais com a saída de Sampa.
Estou no momento mergulhado na revisão das últimas provas do livro novo, o Triângulo das
águas, três novelas que chamo de “noturnos’, a sair em outubro pela Nova Fronteira.”
(ABREU, 2002, p. 61). Um mês mais tarde, também para Maria Adelaide, Caio declara:
Minha vida tá em compasso de espera: espera do livro novo, saindo dentro de um
mês, no máximo – deve ser mais ou menos o que você sente antes de uma estréia.
(...) Qualquer forma, minha parte já está feita. Levinha, é o melhor deles. Custou
tanto, foi tão difícil escrevê-lo. Houve uma época, na altura do Carnaval, em que
fiquei tão tomado por uma personagem (Pérsio) que tomei três caixas de barbitúricos
de Jacqueline. Dormi três dias, e não lembro sequer de tê-las tomado. Eu fazia o
possível para não escrever, aí começava e não conseguia parar. Foi um processo
louco, ainda estou em recuperação. (ABREU, 2002, p. 65-66).
E, ainda no mesmo ano, 1983, agora em outubro, em carta para Trevisan, Caio revela:
Andei mesmo em silêncio, saída de livro e aquelas agitações que você bem sabe.
Minha cabeça fica péssima, medos inseguranças, paranóias. Agora passou um
pouco, o Triângulo está nas ruas e o que vai acontecer com ele depende agora dele
mesmo. Eu gosto, eu na verdade nem sei dizer se “gosto” – sei que doeu muito para
nascer, foi o que mais exigiu, foi o que mais trabalhei. Sou capaz de localizar
qualquer frase dele em cinco segundos, de tanto que reescrevi os originais e as
provas. (ABREU, 2002, p. 70)
Paula Dip (2011, p. 386) acrescenta outro aspecto quanto à relação de Caio com a
escrita ao compará-lo ao amigo e dramaturgo Vicente Pereira, a quem ele conhecera no final
dos anos 80: (...) Caio nunca chegava a se entregar completamente, prezava sua liberdade
acima de todas as coisas, não assumia nenhum compromisso de amor, de fé, nem de trabalho.
Sua única religião era a escrita. Vicente gostava de gente, era um sacerdote. Caio, um
caçador solitário.
Nesse fazer-se presente por meio da carta, na qual Caio entabula uma ‘conversa’ com
seu interlocutor ele se mostra também sem pudores, fala de seus amores e desamores, cita
nomes e situações, o que faz com que nomes sejam suprimidos de suas correspondências
publicadas e que seus diários tenham impedido o acesso a eles. Questões caras a Caio
Fernando Abreu estão presentes na crônica da vida privada de Caio F. Desde um certo
deslocamento, a sensação de sem lugar que o persegue, a ânsia pelo verdadeiro amor, as
angústias da criação, estão presentes de modo flagrante na sua correspondência.
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(Acesso em 01/11/2013)
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Caio Fernando Abreu: correspondências Mara Lúcia Barbosa da