Caio Fernando Abreu: correspondências Mara Lúcia Barbosa da Silva Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Bolsista de Pós-Doutorado PNPD/CAPES do PPG/Letras RESUMO: No prólogo de Escrita de si, escrita da História, Angela de Castro Gomes trata sobre uma nova forma de pensar a correspondência e da relevância que lhe passou a ser dada. Para Gomes, a escrita autorreferencial ou escrita de si integra um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno ocidental. Segundo Gomes, a escrita de si teria iniciado a divulgação de sua prática, grosso modo, no século XVIII devido a uma série de circunstâncias anteriores, como a produção por indivíduos comuns de uma memória de si, o surgimento dos termos biografia e autobiografia, o aparecimento do romance moderno, além da emergência do cidadão moderno, dotado de direitos civis e políticos. Dessa forma, os tempos modernos consagrariam o lugar do indivíduo na sociedade, quer como uma unidade coerente quer como uma multiplicidade que se fragmenta socialmente, exprimindo identidades parciais e nem sempre harmônicas. A escrita de si de Caio Fernando Abreu, que não se circunscreve a sua correspondência, mas que está também em seus diários, entrevistas e em toda a sua literatura nos permite pensar que a memória de Caio F. na sua subjetividade não é apenas pessoal e intransferível, mas é tão somente pessoal e intransferível. Nosso propósito é analisar como essas circunstâncias se apresentam na correspondência de Caio utilizando como objeto de pesquisa Caio Fernando Abreu: cartas, organizado por ítalo Moriconi, e os três volumes de Caio 3D: o essencial dos anos 70, 80 e 90. PALAVRAS-CHAVE: Epistolografia; Caio Fernando Abreu; escrita de si. ABSTRACT: In the prologue of Escrita de Si (Writing Itself), written of the history, Angela de Castro Gomes deals on a new way of thinking the correspondence and of the relevance that happened to be given to it. For Gomes, the self-referential writing or writing itself includes a set of modalities of what is called production of the self in the modern Western world. According to Gomes, the writing itself would have started disseminating their practice, roughly in the XVIII century due to a number of previous circumstances, such as the production of ordinary individuals of a memory of itself, the emergence of biography and autobiography terms, the appearing of the modern novel, plus the emergence of the modern citizen, endowed with civil and political rights. Thus, modern times consecrate the individual's place in society, either as a coherent unit or as a multiplicity that is fragmented socially, expressing partial and not always harmonious identities. The writing itself of Caio Fernando Abreu, who is not limited to his correspondence but it is also in his diaries, interviews and throughout his literature allows us to think that the memory of Caio F. in its subjectivity is not only personal and untransferable, but only as personal and untransferable. Our purpose is to analyze how these circumstances are present in matching of Caio, using as object of search the own Caio Fernando Abreu: Letters, edited by Italo Moriconi, and the three volumes of Caio 3D: the essence of the 70s, 80s and 90s. KEYWORDS: epistolography; Caio Fernando Abreu; writing itself. E comecei a tentar escrever quelque chose que ainda não sei bem o que é. Seja o que for gira em torno desta frase de Camille Claudel numa carta a Rodin, que me obceca há anos: “Il y a toujours quelque chose d’absente qui me tourmente” (Abreu, 2006c, p. 206) Os arquivos artísticos e/ou literários sempre foram mananciais que forneceram matérias para os estudos da pesquisa literária. O corpo desses arquivos pode incluir móveis, obras de arte, objetos pessoais, bibliotecas, materiais fonográficos e fotográficos, manuscritos, que já foram nosso objeto de estudo em tese de doutoramento e, entre outras tantas coisas, cartas. No artigo intitulado Correspondência na Biblioteca Nacional, Ronaldo Menegaz (1999, p. 225-230) trata do acervo de correspondências da Fundação Biblioteca Nacional, que está sob os cuidados da Divisão de Manuscritos e que, apesar do nome, apresenta nesse sentido fraca documentação literária. Menegaz observa que, confirmando a constatação, o acervo de correspondência entre escritores brasileiros é o grande destaque dessa divisão. Dela fazem parte algumas coleções que preservam cartas manuscritas de Lima Barreto, Machado de Assis, José de Alencar, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Manuel Bandeira, entre outros. Nesse texto, o autor detém-se especificamente na análise da correspondência da poeta e ativista política franco-brasileira, Marcelle Jaulent Reis, conhecida como Beatrix Reynal, que foi considerada uma heroína pela sua atuação na causa da resistência francesa, em defesa da qual empregou quase todos os seus bens. Há uma farta correspondência de Reynal com artistas e intelectuais brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Tarsila do Amaral, Murilo Mendes, etc., o que propicia uma ideia das relações culturais e literárias entre Brasil e França naquele momento. Para Marcos Moraes (2006, p. 65-66), a correspondência de escritores abre-se, normalmente, para três grandes perspectivas de exploração, como expressão testemunhal que pode ajudar a definir um perfil biográfico do autor; como forma de esclarecer os movimentos dos bastidores da vida literária, com todos os seus problemas, arranjos e burocracias; e como laboratório de criação, ao permitir que se adentre por um projeto literário, conhecendo-o desde a sua concepção primeira e acompanhando-o ao longo de sua trajetória editorial. Angela de Castro Gomes, em Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo (2004, p. 7-24), trata sobre a nova forma de pensar a correspondência e da relevância que lhe passou a ser dada. Gomes inicia o seu texto falando de um boom de publicações de caráter biográfico e autobiográfico e que é cada vez maior o interesse por um gênero de escritos que ela denomina como escrita de si, que abrange correspondências, diários, biografias, autobiografias: A escrita auto-referencial ou escrita de si integra um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno ocidental. Essa denominação pode ser mais bem entendida a partir da ideia de uma relação que se estabeleceu entre o indivíduo moderno e seus documentos. (GOMES, 2004, p. 10) Alguns dos exemplos desse manancial de publicações citados pela autora são Anos tormentosos: correspondência da prisão (1936-1945) que reúne cartas de Luiz Carlos Prestes de quando ele era prisioneiro do Estado Novo e Caio Fernando Abreu: cartas, com a correspondência ativa de Caio Fernando Abreu entre os anos de 1960 e 1990. Segundo Gomes (2004, p, 8) cartas, diários íntimos e memórias sempre despertaram interesse, mas na última década, no Brasil e no mundo, ganharam um novo impulso, mas mesmo assim as reflexões sobre esse tipo de escrita ainda não são numerosos. A escrita de si teria iniciado a divulgação de sua prática, grosso modo, no século XVIII devido a uma série de circunstâncias anteriores, como a produção por indivíduos comuns de uma memória de si, o surgimento dos termos biografia e autobiografia, o aparecimento do romance moderno, além da emergência do cidadão moderno, dotado de direitos civis e políticos, ou seja: embora o ato de escrever sobre a própria vida e a vida de outros, bem como de escrever cartas, seja praticado desde há muito, seu significado ganha contornos específicos com a constituição do individualismo moderno. A chave, portanto, para o entendimento dessas práticas culturais é a emergência histórica desse indivíduo nas sociedades ocidentais. (GOMES, 2004, p, 11) As práticas de produção de si podem ser entendidas para Gomes (2004, p. 11), portanto, como englobando um diversificado conjunto de ações desde as mais ligadas à escrita de si, como autobiografias e diários, até a constituição de uma memória de si, estabelecida por meio de objetos materiais. Essa prática, afirma ainda a autora, é um fenômeno que vem sendo estudado por várias ciências que já consolidaram algumas ideias, sendo que uma delas é a de que a vida individual é matéria digna de ser narrada. Dessa forma, os tempos modernos consagrariam o lugar do indivíduo na sociedade, quer como uma unidade coerente quer como uma multiplicidade que se fragmenta socialmente, exprimindo identidades parciais e nem sempre harmônicas. Essa nova categoria de indivíduo faz com que se transformem as noções de memória, documento, verdade, tempo e história. Sendo assim, quanto à memória, passam a ser legítimos os procedimentos de construção e guarda de uma memória individual comum e não apenas de um grupo ou homem célebres. A defesa dessa nova prática baseia-se tanto na assertiva de que todo indivíduo é social quanto no reconhecimento da radical individualidade de cada um. E é justamente porque o eu do indivíduo moderno, simultaneamente uno e múltiplo, não é contínuo e harmônico que as práticas de produção de si são possíveis e desejadas. Gomes (2004, p. 13) enfatiza também que as práticas de escrita de si podem evidenciar desse modo uma trajetória individual mutante, que se altera com o passar do tempo e que mostra também como o mesmo período de vida de uma pessoa pode ser “decomposto” em tempos com ritmos diversos: um tempo de casa, um tempo do trabalho, etc. E esse indivíduo não é o estadista, o herói de grandes feitos, mas o sujeito comum, o anônimo, cuja vida é composta por acontecimentos cotidianos, mas que adquirem importância pela ótica da produção de si. A ESCRITA DE SI DE CAIO F. A escrita de si de Caio Fernando Abreu não se circunscreve apenas a sua correspondência, ela está também em seus diários, entrevistas e em toda a sua literatura. A leitura de suas cartas só corrobora o que já se pode intuir pela de sua obra, que essa traduz, sobremaneira, o que vai na sua alma. E o que vai na alma do missivista Caio F.: o primo Brazilian de Christiane (ABREU, 2006c, p. 265); o primo careta de Christiane (ABREU, 2006b, p. 238) ou the Christiane’s brother (ABREU, 2002, p. 90) é diverso, é contraditório, é surpreendente, é inquietante. Ítalo Moriconi na introdução das Cartas, organizadas por ele, afirma que: Na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais, suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário, ainda não revelado ao público. (Abreu, 2002, p. 15) Moriconi declara que através das cartas buscou recuperar o romance fragmentado de uma vida e que as decisões editoriais foram norteadas, em primeiro lugar, pela intenção de estruturar o texto como o “romance de uma vida” e “esboço de painel” e, em segundo, pelo fato de as cartas serem relativamente recentes e tendo algumas, como personagens, pessoas que naquele momento ainda estariam (estão) vivas. E assim sendo, as memórias de Caio F. não são apenas pessoais e intransferíveis, mas são tão somente pessoais e intransferíveis. Memórias de uma vida que ele percebe em determinadas ocasiões por meio de lentes coloridas, que seriam abençoadas por fadas madrinhas, e, em outras tantas, amaldiçoada, comandada por uma madrasta má que o mantém preso em meio ao borralho. Mas ele tem também a percepção de que a própria opinião, que o seu olhar podem ser enganadores: Mas estou mais tranquilo. E percebendo coisas: voltei para Sampa muito alegrinho, muito na-boa, muito tudo-vai-rolar. A memória da gente é safada: elimina o amargo, a peneira só deixa passar o doce. Então eu tinha esquecido que esta cidade te cobra preços altos. Ela é uma mulher (ou um homem) belíssima(o) que se oferece tentador(a), como se amasse, te envolve, te seduz – e na hora em que você não suporta mais de tesão e faria qualquer negócio, ela(e) te diz o preço. Que é muito alto. (ABREU, 2002, p. 92) Na correspondência ativa publicada de Caio F. é perfeitamente perceptível a já citada tripartição proposta por Marcos Moraes. Essa divisão, no entanto, torna-se apenas operativa quando vamos analisar a constituição dessa correspondência, pois esses três aspectos estão profundamente imbricados e acabam em maior ou menor escala relacionados um ao outro. Através da leitura das cartas do missivista Caio Fernando Abreu, o perfil biográfico que se pode determinar é o de uma natureza em constante busca, em permanente mutação, ora ele ama certas situações, lugares e pessoas, ora ele pode detestá-las profundamente. Em dado momento, adora São Paulo e tudo o que a megalópole pode lhe proporcionar em termos de carreira e em agitada vida social; em outros momentos, odeia a cidade justamente por tudo isso, considerando-a desumana, fria e devoradora, como se pode perceber no trecho citado acima. O mesmo sentimento contraditório também se manifesta no que se refere a outras tantas cidades como o Rio de Janeiro, Porto Alegre e até mesmo Paris: “Fiquei 10 dias em Paris (trés decadent, cheia de bêbados, imigrantes, refugiados) e vim para cá” (ABREU, 2006c, p. 205), em 10 de novembro de 1992; em 29 de dezembro do mesmo ano já dizia para Maria Adelaide Amaral: “Fiz dezena de amigos, fui OBRIGADO a falar francês 24 horas por dia (inclusive dormindo, juro!) e o resultado é que je tombée completement amoureux de la France.” (ABREU, 2006c, p. 217). A menção a alguns personagens e fatos do momento econômico e político do Brasil servem para emoldurar situações vividas, pois as limitações financeiras eram uma constante no dia a dia de todos os brasileiros, naquele momento, e ainda mais evidente na vida de quem pretendia viver de arte. A produção cultural não era prioridade, nem valorizada no país, além de sofrer sanções governamentais e algumas vezes dos próprios pares. Dessa forma, o que se refere a ela por consequência fica em segundo plano. Os bastidores da vida literária, então, não mudam muito. A pretensão de viver de literatura é constantemente obstruída pela realidade do país e de um difícil mercado editorial. Caio conhece bem essa situação, escreve em 12 de julho de 1990 para Maria Lídia Magliani de São Paulo: Ando exausto da Realidade Brasileira. Tudo muito penoso, ir ao banco, ao supermercado, pagar aluguel. Tudo no meio da barbárie, da violência, da miséria. Procuro sair de casa o mínimo possível, mas esse mínimo já está se tornando um martírio. Muita feiura, Magli, muita violência e miséria. Então, sem laços, vamos voltar para a estrada: “Caminante, no hay caminos, pero el camino se hace al andar”. (ABREU, 2006c, p. 190) Uma década antes, em maio de 1980, escreve para o pai, de São Paulo, que nesse momento lhe parece "uma cidade fascinante, cheia de vida". Afirma estar muito bem, que poucas vezes se sentiu assim. Conta que recebeu alta da terapia e fala dos biscates culturais que está realizando: um livro de mais de 500 páginas sobre a educação de bebês, critica de livros para a revista Veja e matérias para a revista feminina Nova. Nessa mesma carta, Caio afirma que “dá para levar apesar do Delfim Neto”. Nesse período, Delfim Neto era secretário do planejamento da Secretaria do Planejamento (SERPLAN) do governo de João Baptista Figueiredo (1979-1984), era o homem forte da economia brasileira, controlando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Antes disso já fizera parte dos governos Castello Branco, Costa e Silva e Medici. Neste momento, a inflação estava num patamar em torno de 53,9%, mas a partir do ano seguinte atinge 157,5%, dificultando a vida de todos, situação que é mencionada por Caio em carta à Bruna Lombardi em fevereiro de 1981: Está tudo muito ruim, e nós precisamos mais do que nunca ser solidários uns com os outros. Trocar estímulos. Assim: olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer para não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar de remar também. (ABREU, 2002, p. 29) Os registros acerca da criação literária tratam de forma mais ou menos clara de diversas obras do autor produzidas ao longo de seus quase trinta anos de carreira, considerando a produção de Limite Branco em 1967. Em Caio 3D, da década de 90, a correspondência de Caio Fernando Abreu da conta do reinício e término da escritura do romance Onde andará Dulce Veiga? Um romance B, através das cartas enviadas para Maria Lídia Magliani, os dois primeiros trechos citados abaixo; e sobre a publicação desse na França e em outros países da Europa para Guilherme de Almeida Prado, último trecho: Bueno, não te respondi logo porque enlouqueci. Comecei a escrever loucamente um romance no qual (no-qual é horrível) vinha trabalhando desde 84/85. Acho que sai, estou quase na metade. Esta última semana não consegui trabalhar, além de Zélia e Fernandinho enlouquecendo a todos nós, me deu outra vez a tal de otite. (ABREU, 2006c, p. 185) Magli, tenho pensado tanto em você. Não consegui escrever antes, estava mergulhado no livro tipo tempo integral. Bem, terminei. Ufa. Foi um trabalho de Hércules. Chamase Onde andará Dulce Veiga?, é aquele romance no qual eu vinha remanchando desde 85. Imagina que escrevi um policial, histérico, naturalmente, mas cheio de tramas & ação. (ABREU, 2006c, p. 189) (...) para te deixar nervoso. Ray-Güde, minha agente alemã, vendeu Dulce Veiga para as Éditions du Seuil, a segunda editora mais poderosa da França (a primeira, sure, é a Gallimard). (...) Ray-Güde, muito animada, está vendendo Dulce também para uma editora alemã, e acha que pode negociar Suécia, Holanda, Tchecoslováquia. (ABREU, 2006c, p. 201) Nas suas cartas, da mesma forma como acontece nos seus diários, com os quais tivemos a oportunidade de ter um breve contato, Caio revela toda a sua subjetividade. Nos diários, ele dialoga com seus botões, externando as suas inquietações, dramas, alegrias, conta sua vida. Nas cartas ele faz o mesmo, mas dependendo do destinatário essas ‘revelações’ assumem contornos distintos, nessas narrativas epistolares há um tempo de casa, no qual fala da rotina do dia a dia; um tempo de trabalho, no qual fala da criação, dos biscates culturais que lhe permitem sobreviver; um tempo de amor, no qual fala das conquistas, dos namoros, dos rompimentos, das dores; um tempo de reflexões pautadas na realidade econômica, política, intelectual do Brasil e do mundo. Os destinatários, os interlocutores, das missivas: Querido pai, Querida mãe, Levíssima, Levinha, Levinha do Amaral (Maria Adelaide Amaral), M’r’len, Marilene (Jacqueline Cantore); Luciano, querido, Luciano, querido irmão (Luciano Alabarse); Luizar (Luiz Arthur Nunes); Magli, chérie, Maglim, menina-loba, Ma(di)gliani, ma belle (Maria Lídia Magliani), através da forma como Caio se dirige a eles, são, de certa forma, ficcionalizados, do mesmo modo que o é o próprio Caio F. As nuances das “conversas” epistolares revelam um grau maior ou menor de intimidade, afinidades distintas, protocolos sociais, enfim, trazem à tona níveis distintos de estabelecimento de relação. Escrever cartas era importante para Caio, como declara para Paula Dip na abertura dos anos 80, dia 1º de janeiro: “Hoje mesmo eu fiquei muito tentado a ligar procê. Segurei e preferi a carta. É menos imediato, mas gosto mais. A gente não deve permitir que as cartas se tornem obsoletas, mesmo que talvez já tenham se tornado.” (ABREU, 2006b, p. 196). E em outro momento, para Maria Adelaide Amaral declara: “Acho que sou melhor por carta (...)” (ABREU, 2006c, p. 207). Ou seja, ele é melhor escrevendo. Nesse momento, o fato de não termos acesso às respostas dos destinatários faz essa correspondência assumir ainda mais a semelhança de uma confissão, de um monólogo, de uma escrita de si, para si. De São Paulo, em 12 de agosto de 1987, Caio F. escreve para os pais em Porto Alegre e corrobora a ideia que ele mesmo enunciara sobre ser melhor por carta, pois ele é um escritor, um ser que escreve melhor do que vive: Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la. (ABREU, 2006b, p. 251) Se na obra literária, os fatos da vida real, históricos e sociais passam pelo veio ficcional para se tornarem literatura, a sua forma de ler o mundo; a obra da vida real, a carta, o diário, a escrita de si, também parecem passar pelo mesmo processo, sendo de certa forma ficcionalizadas para, quem sabe melhor processar dificuldades e contratempos no sentido de “exorcizá-los”, é uma espécie de psicanálise. Segundo Ana Letícia Fauri, em Erico Verissimo: a epístola como expressão do literário, a carta possui uma natureza ambivalente: (...) ela transita, enquanto objeto, no espaço que separa quem a escreve daquele a quem se destina. Por outro lado, essa mesma materialidade reveste-a da subjetividade do sujeito-autor, na medida em que ela o representa, encarnando a sua própria subjetividade. Isso significa que a carta funciona não apenas como um modo de comunicar, mas principalmente de tornar presente, de substituir aquele que a escreveu (e que esta ausente) pelo que está escrito: as palavras passam, nessa medida, a representar o homem que as inscreveu no papel. (p. 48-49) Podemos observar essa circunstância apresentar-se de modo pleno na correspondência de Caio Fernando Abreu. Nessas, além de narrar os fatos triviais do dia a dia, ele reflete sobre a sua vida, a do país e a do mundo (o espaço que ocupa será sempre tema de suas reflexões) e também sobre o ato de escrever. Escrever para ele era como respirar, uma necessidade primordial, mas ao mesmo tempo uma difícil e dolorida tarefa, como afirma em abril de 1983 em carta para Charles Kiefer: Andei escrevendo bastante. De repente, acho que esta saindo um livro novo. Sabe que tenho MEDO de escrever? Evito sempre que posso. Da uma grande exaustão, depois. Uma exaustão agradável, mas a cabeça fica excitada demais, é qualquer coisa muito próxima da loucura. Mas nos últimos tempos não tenho conseguido evitar. Vai saindo. E meio assustador. Passei os últimos meses envolvido com uma pequena novela, O marinheiro, tão desesperadamente solitária e tão alucinadamente onírica que eu tinha medo de não voltar cada vez que mergulhava nela. Acho que esta pronta. Peguei pânico da máquina e, há poucos dias, voltei. E você, como vai? Detesto perguntar "tem escrito?". Soa sempre como cobrança, e quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é louca demais para que se possa responder "sim" ou "não". Mesmo que não se esteja escrevendo realmente, a gente sempre está escrevendo por dentro. Mas eu tenho, anyway, vontade de ler outras coisas suas. (ABREU, 2002, p. 42) No mesmo ano, o autor dá conta para Maria Adelaide Amaral e João Silvério Trevisan dos sentimentos pelos quais é tomado em relação ao término da escritura e a passagem para o processo de publicação do livro que mencionara na carta enviada à Kiefer. Para Maria Adelaide, em agosto, ele escreve: “Minha cabeça melhorou demais com a saída de Sampa. Estou no momento mergulhado na revisão das últimas provas do livro novo, o Triângulo das águas, três novelas que chamo de “noturnos’, a sair em outubro pela Nova Fronteira.” (ABREU, 2002, p. 61). Um mês mais tarde, também para Maria Adelaide, Caio declara: Minha vida tá em compasso de espera: espera do livro novo, saindo dentro de um mês, no máximo – deve ser mais ou menos o que você sente antes de uma estréia. (...) Qualquer forma, minha parte já está feita. Levinha, é o melhor deles. Custou tanto, foi tão difícil escrevê-lo. Houve uma época, na altura do Carnaval, em que fiquei tão tomado por uma personagem (Pérsio) que tomei três caixas de barbitúricos de Jacqueline. Dormi três dias, e não lembro sequer de tê-las tomado. Eu fazia o possível para não escrever, aí começava e não conseguia parar. Foi um processo louco, ainda estou em recuperação. (ABREU, 2002, p. 65-66). E, ainda no mesmo ano, 1983, agora em outubro, em carta para Trevisan, Caio revela: Andei mesmo em silêncio, saída de livro e aquelas agitações que você bem sabe. Minha cabeça fica péssima, medos inseguranças, paranóias. Agora passou um pouco, o Triângulo está nas ruas e o que vai acontecer com ele depende agora dele mesmo. Eu gosto, eu na verdade nem sei dizer se “gosto” – sei que doeu muito para nascer, foi o que mais exigiu, foi o que mais trabalhei. Sou capaz de localizar qualquer frase dele em cinco segundos, de tanto que reescrevi os originais e as provas. (ABREU, 2002, p. 70) Paula Dip (2011, p. 386) acrescenta outro aspecto quanto à relação de Caio com a escrita ao compará-lo ao amigo e dramaturgo Vicente Pereira, a quem ele conhecera no final dos anos 80: (...) Caio nunca chegava a se entregar completamente, prezava sua liberdade acima de todas as coisas, não assumia nenhum compromisso de amor, de fé, nem de trabalho. Sua única religião era a escrita. Vicente gostava de gente, era um sacerdote. Caio, um caçador solitário. Nesse fazer-se presente por meio da carta, na qual Caio entabula uma ‘conversa’ com seu interlocutor ele se mostra também sem pudores, fala de seus amores e desamores, cita nomes e situações, o que faz com que nomes sejam suprimidos de suas correspondências publicadas e que seus diários tenham impedido o acesso a eles. Questões caras a Caio Fernando Abreu estão presentes na crônica da vida privada de Caio F. Desde um certo deslocamento, a sensação de sem lugar que o persegue, a ânsia pelo verdadeiro amor, as angústias da criação, estão presentes de modo flagrante na sua correspondência. Referências ABREU, Caio Fernando. Cartas. Ítalo Moriconi (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. ABREU, Caio Fernando. Correspondência (1970-1979). In: ___. Caio 3D: o essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2006a. p. 291-344. ABREU, Caio Fernando. Correspondência (1980-1987). In: ___. Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2006b. p. 193-251. ABREU, Caio Fernando. Correspondência (1990-1996). In: ___. Caio 3D: o essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006c. p. 181-273. ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga?: um romance B. Rio de Janeiro: Agir, 2007. ABREU. Caio Fernando. Teatro completo. Org. e pref. de Luiz Arthur Nunes. Porto Alegre: Sulina; IEL, 1997. ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 1997. ALEXANDRE, Ricardo. 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