Máquina de fracassos POR IVY RENEE AUGUSTO RIBEIRO Meu corpo. Uma mera jaula disfarçada, composta de robustos cilindros de ferro que partem de cima à baixo de minhas extremidades, aos quais minha alma se agarra e se sacode, suplicando por misericórdia, berrando por liberdade. Gélida alma, pálida alma. Serão os ferros? A jaula? Não. Faz-te prisioneira por vontade própria. Faz-te vítima por vontade própria. Consciência, interrompa a infindável luta por salvação, a alienação que consome e corrói a sanidade dessa alma que me compõe! Haverá um fim? Esse ciclo vicioso que teima em continuar me deteriorando e me enfraquecendo, haverá de ter um fim? Escola, faculdade, futuro, dinheiro. Metas e mais metas. Cobrança, pressão. Me sufoco sem perceber, me isolo em uma dimensão onde sei que vou me perder e que poderei nunca mais encontrar o caminho de volta. Ao abrir as portas empoeiradas do armário de meu quarto, deslubrificado, barulhento, depareime com uma caixa. Esta, que me acompanhou durante anos e que sobreviveu às cinco mudanças de residência, estava ali, na minha frente, ansiando por ser aberta, explorada. Abri-a e peguei a primeira coisa que ali estava: um saco plástico, com várias folhas. Retirei-as. Para minha surpresa, eram provas de escola. Provas da primeira série, até o oitavo ano. Notas. Oito, nove, dez. Quantos anos de idade? Sete, seis, cinco. Foi nesse momento que estremeci. Um filme se iniciou em meus olhos, formados pelos quebradiços fragmentos de minha memória. Lágrimas, horas e horas trancada no quarto, livros, cadernos, viagens recusadas, oportunidades perdidas, pessoas não conhecidas, conversas não conversadas. Era isso que meu passado tinha sido? Uma colina de solidão e tristeza infindável, que subia, subia e parecia nunca ter fim. Anos sem sentido, em busca de méritos vazios, da satisfação própria, com intuito de mostrar meu valor, minha capacidade. "Porque?", a parte racional de minha consciência dizia. E como resposta, apenas o tenebroso silêncio. Bolsa de estudos, mensalidade menor, orgulho dos pais, elogio dos amigos, ultrapassar os limites, me adequar aos padrões de inteligência da sociedade, competição agressiva. Devem ser esses os motivos pelos quais eu me esforçava tanto. Ou a somatória de todos eles. A verdade, é que eu vagava sem rumo, perdida, alma penada, névoa cinzenta, focada em um objetivo volúvel, que voava como uma borboleta a migrar em escala continental, guiada pelo seu instinto natural até chegar a seu sem sentido destino. Destino? Todos temos um. Ou será um caminho trilhado por nós mesmos? Perguntas sem respostas, respostas sem perguntas. Era esse meu destino, minha escolha, a de me entregar cegamente sem mensurar as consequências? Deixei de ouvir os ensinamentos de meus pais, para ouvir os dos livros. Deixei de retribuir o amor dos que zelavam por mim, para ser a melhor, para me satisfazer. Egoísmo. Nesta longa epifania, vaguei por horas a fio, sentada no chão, com as provas na mão, assistindo ao filme de minha vida, que eu julgava pejorativamente, abominava. A porta do quarto abriu. Minha mãe. Ao olhar sua face, sai do estado de transe profundo, a sensação era como a de voltar a respirar depois de um longo tempo debaixo d’água, sem ar, sem vida. Ao voltar à realidade e ganhar de volta minha sanidade, olhei para ela e disse: "Eu fracassei com você, não foi mãe? Desde pequena." Ela olhou as provas em minha mão e disse: “Querida, o ser humano nada mais é do que uma máquina ambulante, alimentada pelos seus erros e fracassos. Só estes o fazem andar e dar a volta por cima”. Dias se passaram após tal repentina e desnorteadora reflexão psicológica. Tais pensamentos já haviam se esvaído de minha mente, mas os resmungos de minha alma trancafiada na mera estrutura física que me compõe, não passavam despercebidos. Passei apenas a ignorá-los. Mas, de um jeito ou de outro, algo em minha vida havia mudado. Ter ao menos usado um tempo de minha rotina para refletir sobre meus negros remorsos e arrependimentos, cujas mãos pegajosas estrangulavam minhas lembranças e arranhavam meu coração, foi o feixe de luz que clareou minha jovem alma e que afrouxou a fechadura de minha prisão natural. Como as piores sensações e sentimentos podem fazer nascer frutos em uma árvore ressecada, em um passado perdido e um futuro previamente fracassado? A prioridade passou a ser outra. O lazer? Não. A família? Não. O bom-senso, o equilíbrio. Dividir o tempo entre obrigação e bem-estar, sem ansiedade. Tal simples solução, não fora tão óbvia assim para mim. Os meus reais professores não eram os da escola, mas sim a própria frustação e a amargura. Esses sim, sabiam fazer o aluno tirar 10 na prova da vida, não por meio de livros e horas de estudo, mas através da auto crítica, da vontade de se julgar, de se explorar intrinsecamente, reconhecer os erros e dar a volta por cima.