CULTURA INDIGENISTA E AFRICANIDADES: ELEMENTOS
PRESENTES NA LITERATURA BRASILEIRA
PEGORETTI, Sonia Regina Reis – UNIVILLE
[email protected]
CAGNETI, Sueli de Souza – UNIVILLE
[email protected]
PAULI, Alcione – UNIVILLE
[email protected]
SCHUEROFF, Alencar – UNIVILLE
[email protected]
Eixo Temático: Currículo, cultura e saberes
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo apontar a presença, na literatura brasileira, de cultura
indigenista e africanidades. A gênese do texto busca traçar um histórico de como indígenas e
africanos eram inseridos em textos literários, de Caminha a Castro Alves. No entanto, o
enfoque do desenvolvimento será na literatura destinada a jovens e crianças, que tem seu
boom na década de 1970; e no que toca elementos das referidas etnias, a quantidade e a
qualidade dos escritos tem sido ampliada somente no século atual, com ares pós-modernos. O
surgimento da produção literária que hoje se intitula indígena tem como grandes
incentivadores a publicação do Pequeno Catálogo Literário de obras de autores indígenas
e a obrigatoriedade do estudo daquilo que for pertinente à história do Brasil, nas escolas.
Hoje, um dos principais representantes deste gênero é o escritor Daniel Munduruku. Sobre a
negritude, com a implantação da Lei 10.639/03, a qual torna obrigatório o ensino da história e
da cultura africana e afro-brasileira na escola – principalmente nas disciplinas de história,
literatura e arte –, observamos um significativo aumento no número de publicações que
aborda, de alguma forma, o tema, resgatando, por exemplo, mitos e rituais típicos de povos
vindos do outro lado do Atlântico. Para falar deste retorno, citamos o sociólogo Reginaldo
Prandi. Percebemos, enfim, que a volta às origens desses povos, que são a base da
miscigenação do Brasil, é um processo natural para que uma continuidade se constitua.
Estamos em permanente processo de evolução: há alguns séculos o índio era visto como um
cavaleiro romântico; hoje, com a pós-modernidade, já é possível identificarmos releituras pósmodernas de velhas lendas ancestrais.
Palavras-chave: Literatura Infantil. Cultura Indigenista. Africanidades. Escola. PósModernidade.
3567
Introdução
Outro significa, ao mesmo tempo, o semelhante e o dessemelhante; semelhante
pelos traços humanos e culturais comuns; dessemelhante pela singularidade ou pelas
diferenças étnicas. O outro comporta, efetivamente, a estranheza e a similitude. (...)
O fechamento egocêntrico torna o outro estranho para nós; a abertura altruísta o
torna simpático. O sujeito é, por natureza, fechado e aberto.
Edgar Morin1
Na história da literatura brasileira, a cultura indígena e a africana sempre tiveram
atuações bastante distintas. Quantitativamente falando, enquanto os primeiros fazem parte
daquela que é considerada a certidão de nascimento do Brasil, a Carta de Caminha, os
escravos só aparecem com certa evidência em nossas letras no século XIX. É verdade que são
citados anteriormente por Padre Antônio Vieira, que, em tempos de Barroco, com uma visão,
por assim dizer, vanguardista, posicionava-se a favor dos marginalizados de sua época. No
entanto, nada muito significativo.
Além disso, a forma de abordagem das referidas etnias em escritos se mostra também
diversa. Enquanto os nativos de nossas terras são vistos entre árcades e românticos como
bravos e puros guerreiros – com ares europeus –, o negro é mostrado como um ser de quem se
deve ter compaixão, por causa do cruel sistema escravocrata, ou desconfiança, visto que é
histórica a prática de relacionar a cor escura com algo maligno. Aliás, como diria David
Brookshaw (1983, p. 12), em Raça & cor na literatura brasileira, a
associação da cor preta com maldade e feiúra, e da cor branca com bondade
e beleza remonta à tradição bíblica, resultando daí que o simbolismo do
branco e preto constitui parte intrincada da cultura europeia, permanecendo
em seu folclore e em seu patrimônio histórico e artístico.
A fim de termos uma noção mais abrangente do que foi dito acerca da imagem que era
passada do indígena, há alguns séculos, na literatura tupiniquim, faz-se necessária a
exemplificação de uma obra que venha ao encontro do que se pretende discutir. Escolhemos,
então, a emblemática Iracema (1865), de José de Alencar. Como se sabe, belíssimo romance é
uma espécie de ode que o autor faz a sua terra natal, o Ceará. A trama trata da união entre
1
MORIN, Edgar. O método 5 – a humanidade da humanidade. A identidade humana. Porto Alegre: Sulina,
2002, p. 77
3568
Iracema, uma lenda cearense, e Martim, um personagem histórico, que veio de Portugal no
início do século XVII, e trabalhou na colonização das terras de Siará.
Tal intenção de Alencar casou perfeitamente com o que se pretendia em épocas de
consolidação de um país que, pela primeira vez, não era mais colônia: afirmar nossa grandeza
perante as nações europeias. Uma estratégia para colocar em prática esta ação foi através da
idealização da figura do índio, retomada do século anterior e que provinha do mito do bom
selvagem. Por isso Iracema possui aspecto e caráter indefectíveis, como se vê, por exemplo,
no seguinte excerto:
[...] Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as
matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O
pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra
com as primeiras águas. [...] (Alencar, 1997, p. 16)
Vemos que o autor idealiza também o espaço e a integração da personagem a ele. E
para descrevê-lo, há a coerente utilização de uma linguagem carregada de nomenclaturas que
provém do tupi-guarani. A mistura de tantas intenções resultou em uma bela obra, no melhor
estilo prosa poética.
Ainda no Romantismo, também se encaminhando para seu desfecho, não é difícil
identificar a presença de elementos da negritude em nossa literatura. Neste sentido, o primeiro
nome que sobe ao palco é Castro Alves (BA), que fez da causa abolicionista fonte de
inspiração à composição de alguns dos versos mais marcantes por aqui e que lhe valeram a
alcunha de “poeta dos escravos”.
O poeta baiano encontra-se inserido em um momento que se convencionou chamar de
terceira geração romântica, a qual, influenciada por Victor Hugo, prezou pela exuberância da
linguagem, encharcada de imagens grandiosas do universo e da natureza. Tal característica
pode ser percebida nos textos que demonstram militância contra a escravatura, como nesse
fragmento do conhecidíssimo “O navio negreiro”:
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
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De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!2
Este texto foi concluído pelo poeta em 1868. Quase vinte anos depois, portanto, da
promulgação da Lei Eusébio de Queirós (1850), que proibiu o tráfico de escravos. A
proibição, entretanto, não vingou de todo, o que justifica a denúncia que os versos encerram,
acerca da miséria a que era submetido o africano na cruel travessia do Atlântico. É preciso
lembrar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos navios negreiros
completavam a viagem com vida. Não entraremos nos méritos técnicos de construção do
poema, para evitar um prolongamento demasiado deste artigo. Limitar-mos-emos a dizer que
é composto em seis partes – longo, portanto, bem ao gosto grandiloquente do autor –,
alternando métricas variadas para obter o efeito rítmico mais adequado a cada situação
retratada.
Durante o século seguinte, novas abordagens das duas etnias em questão são
encontradas em textos literários. Temos, por exemplo, Jorge de Lima e Antonio Callado. Este,
com Quarup, romance que leva o nome de uma festividade que os índios taxauas, do Parque
Nacional do Xingu, celebram em homenagem aos seus mortos. Aquele empreendeu
experiências poéticas com as facetas musicais onomatopéicas do vocabulário e do ritmo da
música de tambores afro-brasileiras (vide “Xangô”). Como se vê, ocorreu uma espécie de
aprofundamento, evolução. No entanto, até o momento, referimo-nos à literatura destinada a
adultos, isto porque o texto literário para jovens crianças, no Brasil, começa a ser levado a
sério, principalmente, com Monteiro Lobato, a partir da década de 1920. Após o boom deste
gênero, nos anos 70, o filão se mostrou dourado e vem ganhando cada vez mais espaço no
mercado editorial e meio escolar brasileiro. No que tange os livros infantis e juvenis, acerca
das culturas indígena e africana, a efervescência veio somente anos mais tarde, no século
XXI.
Desenvolvimento
Índios, aqui estão!
2
ALVES, Castro. Poesia. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 1972, p. 74.
3570
A partir de 2003, com os movimentos culturais organizados por grupos indígenas, há
uma crescente discussão literária sobre a produção de textos com elementos da cultura
indígena brasileira. E, além dos movimentos culturais, vem ocorrendo um outro fenômeno,
que é o registro feito pelos próprios indígenas, através da palavra impressa, de muitas de suas
histórias, oriundas da tradição oral.
Ao se deparar com as obras que conversam com elementos da cultura indígena, ou que
registram a oralidade indígena – seus mitos e seus costumes –, visualiza-se um ambiente em
que a prioridade não é o fugaz, mas sim a atenção à vida interior, na busca mágica da
ancestralidade de cada ser. O que, conforme nos mostra Morin (2009), difere sobremaneira do
movimento contemporâneo da cultura de massa:
A cultura de massa nos introduz numa relação desenraizada, móvel, errante,
no tocante ao tempo e ao espaço. Ainda aqui, verificamos uma compensação
mental para a vida fixada nos horários monótonos da organização quotidiana.
Mas há algo mais que uma compensação; há uma participação no Zeitgeist,
Espírito do Tempo simultaneamente superficial, fútil, épico, ardente. A
cultura de massa não se apoia no ombro do Zeitgeist, está agarrada às suas
abas (MORIN, 2009, p.178).
Como marco da produção literária indígena, há a publicação do Pequeno Catálogo
Literário de obras de autores indígenas (2008), contendo os escritores do gênero. Este
documento foi produzido a partir de um evento cultural importante, o I Encontro Nacional de
Escritores Indígenas, o qual fez parte do 6º Seminário FNLIJ de Literatura Infantil e Juvenil,
organizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ. O tema em discussão
foi: O direito autoral e a proteção dos conhecimentos tradicionais. Atualmente o encontro
continua acontecendo, a cada ano, e os estudos vêm se ampliando e se aprofundando em torno
da produção artística indígena.
Além deste movimento cultural, há uma crescente estimulação do mercado editorial
para a produção de livros com presença da cultura indígena brasileira. Esta ação pode ser
atribuída à obrigatoriedade do estudo da cultura, da história e da política indígena e afrobrasileira, pela Lei 11.645 de 2008. O Estado, ao legalizar, obriga todas as instituições de
ensino público e privado no âmbito fundamental e médio a estudar e conhecer o que de
pertinente for à história do Brasil.
3571
Vale, aqui, ressaltar Daniel Munduruku, um escritor especial que, além de autor, é um
produtor cultural intenso e colaborador na trajetória de reconhecimento dos povos indígenas.
Nascido na tribo dos Munduruku, Daniel graduou-se em Filosofia pela Universidade
Salesiana de Lorena (1989), é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e tem
experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Indígena. É autor de
aproximadamente 40 livros voltados para os públicos infantil, juvenil e educadores; além
disso, é Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e DiretorPresidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi). Como
Diretor-Presidente dessa instituição, é responsável por dois concursos: Concurso FNLIJ
CURUMIM – leitura de obras de escritores indígenas – e Concurso FNLIJ/IMBRAPI
TAMOIOS – de textos de escritores indígenas. Munduruku recebeu diversos prêmios
literários, dentre eles o Prêmio Jabuti, Prêmio Érico Vanucci Mendes, outorgado pelo CNPq,
e o Prêmio Unesco para literatura em prol da Tolerância entre os jovens.
No livro Histórias que eu ouvi e gosto de contar, o autor expressa seu desejo:
Acordar o povo brasileiro para suas raízes ancestrais. É desejo de trazer para o
coração das crianças e dos jovens a mágica da fé em seres invisíveis e encantados
que habitam seus sonhos, seus jogos e suas brincadeiras. É desejo de lhes dizer que
tudo isso é verdadeiro. Que a verdade está principalmente em coisas que nossos
olhos não veem (MUNDUKURU, 2004, p.9).
Por meio das palavras da cultura do povo Munduruku, o autor narra, no livro citado
acima, um texto construído com arte, e com conhecimento das experiências dos povos
indígenas.
A obra traz quatro histórias com pitadas de suspense e terror. A primeira “Matinta
Perera”, ensina como se livrar de um ser aterrorizante de sonos infantis: a criatura noturna
corujona, figura folclórica que nos conduz à reflexão da busca, do autocontrole e do medo. A
próxima história chama-se “O Boto Tucuxi” e pertence ao povo Makuxi, da região de
Manaus. A narrativa é cheia de segredos e encantos fantásticos, onde aparecem os rios
amazônicos e o famigerado boto-homem, lenda que fala da transformação do boto em
homem, e vice-versa. Ela é muito especial às mulheres desavisadas do perigo que pode haver
na figura misteriosa de algum elegante homem visitante. A terceira narrativa, o “Vira-porco”,
remonta aos mistérios do povo Saterê e as paixões proibidas entre a nação indígena e os
primeiros portugueses, quando chegaram ao Brasil. Por último, deparamo-nos com “A mulher
3572
do cemitério”, a qual nos traz uma batalha entre dois povos, os procedimentos pós-guerra com
os mortos e as consequências dos atos realizados.
Com a sensibilidade das folhas das árvores e das flores, do cheiro da mata, do barulho
do rio, o índio da nação Munduruku relata suas histórias, as quais foram ouvidas com muita
atenção durante sua infância e adolescência e agora ele as reconta para descongelá-las da
memória e torná-las vivas.
Ao pensar no artista, ou no amador que conta histórias e/ou estuda essa arte, o livro
bilíngue Parece que foi ontem Kapusu aco’i juk, de Daniel Munduruku, é um grande
estimulador ao processo de preparar a cena para ouvir histórias. Sem querer unicamente
estabelecer regras ou ensinamentos estruturados, o autor apresenta, por meio da memória, o
rito de seu povo de contar e ouvir histórias.
Com poesia e sensibilidade, o autor mostra o ritual indígena para a contação de
histórias. Todo o rito é preparado e remontado na narrativa: fogueira, água, sons, a terra... a
atmosfera é toda direcionada ao ato em que um fala e a aldeia ouve. O rito inicia e tudo se
acalma ao entrar na roda, no círculo da aldeia um senhor mais velho entra, “O tempo passa
pequeno, sem pressa” (MUNDURUKU, 2006, p.10).
A riqueza encontrada na obra é a memória de um índio que viveu esse acontecimento
e o conta com leveza. As palavras são escritas como se estivessem sendo pronunciadas em
uma roda de conversa; o rito acontece no farfalhar das páginas. É um poema em duas línguas:
Portuguesa e Munduruku.
E eis aqui os negros!
Na missão de ser professor, perpassa não só a necessidade de conceituar a cultura, mas
de trabalhar as diferenças que permeiam, nos vários contextos sociais em que estamos
inseridos. Perceber que as diferentes histórias dos povos africanos podem ajudar na (re)
construção da imagem e da auto-estima dos afrodescendentes é uma tarefa que não podemos
mais adiar.
Vista dessa forma, percebe-se o quão significativo o trabalho com a literatura africana
pode ser. Ainda é um caminho a ser trilhado e explorado trazendo ainda uma mistura de
sentimentos, como o de dúvida, dor e tristeza, mas também de beleza, riqueza e amplitude
num tema ainda pouco desenvolvido no espaço escolar.
3573
A literatura africana é povoada de histórias sobre a natureza, reis e rainhas, príncipes e
princesas, de sol, de lua e de elementos mágicos. Não só ali, mas em toda história humana os
mitos sempre estiveram presentes. Um importante estudioso dos mitos Joseph Campbell,
escreveu em seu livro O herói de mil faces (2007) que no mundo todo e em todas as épocas e
sob todas as circunstâncias, os mitos tem servido de inspiração para as atividades do corpo e
da mente humanas. Além disso, ele vê a possibilidade do mito ser a abertura secreta pela qual
as energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas.
“O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar
profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas
narrado para fazer a criança dormir – da mesma forma como o sabor do oceano se
manifesta numa gota ou todo o mistério da vida num ovo de pulga. Pois os símbolos
da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou
permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique
e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte.” (CAMPBELL,
2007,p 15-16)
Ainda para Campbell (2007), a mitologia e o rito fornecem os símbolos que levam o
espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que
tendem a levá-lo para trás.
Para Lévi-Strauss (1970, p.140), “mito é, ao mesmo tempo, uma estória contada e um
esquema lógico que o homem cria para resolver problemas que se apresentam sob planos
diferentes, integrando-os numa construção sistemática”. O mito é uma história que se passou
na origem, é atemporal, a narração de como os seres divinos se comportaram e do que eles
realizaram, contada e vivida como verdade. Uma de suas funções mais importantes é a de
memorização dos modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas
significativas.
A professora Marilena Chaui (2005, p. 10-11), em seu livro Convite a Filosofia3,
consegue exemplificar muito bem essa relação para os jovens leitores. Ao comparar o Mito da
Caverna de Sócrates e o filme Matrix, com o ator Keanu Reeves, ela mostra o quão atual o
tema é, e reitera a presença desses mitos o tempo todo no mundo contemporâneo. Eles estão
no cinema, na telenovela, no rádio e até nos desenhos animados. Por que não na sala de aula?
3
CHAUI, M. Convite a filosofia. São Paulo: Ática, 2005.
3574
O que acontecerá (e que em nossa opinião é enriquecedor) é que ao invés de trabalhar o mito
apenas na visão greco-romana teremos também outras possibilidades.
A cultura africana tem vários mitos da criação do mundo, por exemplo, a do povo
ioruba, banto ou muçulmano, que podem ser comparados uns com os outros e também com
mitos da criação de outras origens e povos.
Para Morin (2002, p. 215-217), os mitos são narrativas recebidas como verdadeiras
que comportam infinitas metamorfoses (como a passagem de um estado humano a um estado
animal, vegetal ou mineral e vice-versa), assim como a presença dos “duplos4”, espíritos e
deuses. Esse poder imaginário está hoje muito afastado dos educandos e da escola, onde a
racionalização é a principal meta dos educadores.
O imaginário que é essencial para a formação do indivíduo, está sumindo de nossas
escolas. Já dizia o poeta Manoel de Barros5 “Tudo que não é invento é falso”. Qual
imaginário habita hoje a cabeça das nossas crianças e adolescentes? Somente o que eles veem
na televisão, aquilo que é trazido pela cultura de massa? O brinquedo novo, a “felicidade” ao
beber o refrigerante da moda, o lançamento do celular, do laptop..., é o que impera. Qual será
a memória futura dessa geração (e da nossa)? Aquela gerada pelo HD do computador? Em seu
livro O Ritmo da Vida6, Michel Maffesoli (2007, p.114) nos fala que pode parecer estranho,
num momento em que a tecnologia invade a vida cotidiana, falar de raízes. Mas é
efetivamente com este paradoxo que somos defrontados. O paradoxo do enraizamento
dinâmico.
No contexto das africanidades, falar dessa memória é arriscar-se em terreno ainda
desconhecido por muitos. É dar saltos sem saber onde se vai parar. Temos dificuldade de
compreensão da nossa realidade social como nação, cheia de diversidade, mas também cheia
de abismos.
Sobre memória Chauí coloca:
A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das formas
fundamentais de nossa existência, que é a relação de tempo, e, no tempo, com aquilo
que está invisível, e ausente e distante, isto é, o passado. A memória é o que confere
sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte
4
Segundo Morin, o duplo é um ser real que se dissocia do homem que dorme, que continua desperto nos sonhos.
Sua existência é igualmente objetiva e subjetiva. Assim, o homem atribui ao seu duplo toda a força potencial de
sua afirmação enquanto indivíduo. É o duplo que detém o poder mágico, por ser imortal.
5
BARROS, Manoel. Memórias Inventadas. São Paulo, Planeta. 2003, p.3
6
MAFFESOLI, M. O ritmo da vida – variações sobre o imaginário pós-moderno. RJ: Record, 2007, p.114.
3575
dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo) (CHAUI, 2005
p. 142).
Outra pergunta ainda pode surgir por parte do educador: nossos alunos compartilham
dessa memória, de acontecimentos antigos em que eles afirmam já não fazer parte? Talvez
quem nos traga luz a essa pergunta seja o sociólogo Reginaldo Prandi:
Voltar à África não para ser africano, ou para ser negro, mas para recuperar um
patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e
reconhecimento público, para ser o detentor de uma cultura que já é ao mesmo
tempo negra e brasileira [...]. (PRANDI, 2007) (grifo nosso)
O que se pretende com essa reivindicação é que a imagem estereotipada do negro na
literatura infantil e juvenil dê lugar a um sujeito de sua própria história. Não há mais lugar
para personagem sem nome, sem família, sem memória. Agora, podemos mostrar reis e
rainhas, príncipes e princesas, de reinos e nações africanas. Figuras históricas, como Zumbi
dos Palmares, agora também podem ser heróis da luta dos quilombolas.
A posição de personagens periféricas é trocada pela de protagonista e o negro, antes
infantilizado, assume o comando de sua vida. A caracterização corporal passa a ser
dignificada, e a sensualidade exacerbada perde espaço para conflitos psicológicos,
entre outros aspectos, de uma estética da identidade comprometida com a
representação do negro. (MARTINS, 2008, p.59)
É tarefa ainda difícil para a escola a aceitação de que não existe uma certeza absoluta e
que através dos erros podemos perceber que muitas vezes somos prisioneiros das nossas
próprias ideias e crenças. Mas aproveitar o privilegiado espaço escolar, para essa e outras
discussões, favorecendo assim, a quebra de paradigmas e o reconhecimento de novas
trajetórias são indispensáveis para construir saberes. “Pois este é um problema-chave:
instaurar a convivialidade tanto com nossas idéias quanto com nossos mitos”. (MORIN, 2000,
p. 32)
Considerações Finais
A evolução é um fenômeno incessante...
3576
Nelly Novaes Coelho7
Com certa linearidade, falamos da presença de elementos de cultura indígena e
africana em textos literários brasileiros, desde o tempo das caravelas lusitanas até a pósmodernidade. Nosso ponto de partida precisou ser de textos voltados a um público adulto,
dada a carência, na referida área, de algo pensado aos pequenos. Este, contudo, era o chão que
tencionávamos pisar, e por ele caminhamos, procurando enxergar pelo viés da
contemporaneidade.
O que percebemos é o que nossa epígrafe afirma: o processo de evolução das coisas é
contínuo. Tivemos uma (r) evolução sobre o que se pensava em termos de literatura infantil, e
obtivemos mais seriedade no recolhimento, por parte de escritores, do que provém das duas
etnias – como os mitos, por exemplo – evidenciadas neste escrito.
Tal movimento de retorno às origens, as quais são oriundas de tempos incertos,
remotos, parece antitético se lembrarmos da rapidez com que tudo ocorre hoje. Entretanto, soa
impraticável seguir em frente sem saber de onde aconteceu a partida. Vimos que a escola tem
também importância decisiva na evolução da qual se fala, tendo em vista que o surgimento da
legalidade estimulou o mercado editorial, no que tange literatura com cultura indigenista e
africanidades.
Agora, resta-nos esperar para ver o que o futuro reserva.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1997.
ALVES, Castro. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1972.
BARROS, Manoel. Memórias Inventadas. São Paulo: Planeta. 2003.
BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
CHAUI, Marilena. Convite a Filosofia. 13. Ed. – São Paulo: Ática, 2005.
7
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000, p. 48.
3577
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna,
2000.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. São Paulo: Perspectivas, 1970.
MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida. Variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de
Janeiro: Record, 2007.
MARTINS, Aracy. Representação e identidade: Política e estética étnico-racial na
literatura infantil e juvenil. In: Literatura infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009. (Coleção O espírito do tempo)
____________. O método 5 – a humanidade da humanidade. A identidade humana. Porto
Alegre: Sulina, 2002.
____________. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez;
Brasília, DF: UNESCO, 2000.
MUNDURUKU, Daniel. Histórias que ouvi e gosto de contar. São Paulo: Calles, 2004.
____________. Parece que foi ontem Kapusu aco’i juk. São Paulo: Global, 2006.
PRANDI, J. Reginaldo. As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência
uma bibliografia. São Paulo: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências
Sociais, p. 07-30, jan./jul. 2007
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CULTURA INDIGENISTA E AFRICANIDADES: ELEMENTOS