CLÁSSICOS
Notas sobre o povoamento da Amazônia*
Maria Anunciada Chaves
Uma região não se caracteriza, apenas, por sua
individualidade fisiográfica. Ela deve ser
considerada, também, como palco de uma certa
experiência humana, com suas grandezas e
vicissitudes.
O homem não é, somente, um acessório da paisagem, um
elemento decorativo no ambiente natural. Muito pelo contrário: quer
pelo que realiza como pelo que sofre, quer como agente, quer como
paciente, sua presença imprime novos e complexos aspectos ao meio
ecológico.
Na Amazônia, vasta e complexa, o homem se encontra em
situação desfavorável. Como acentua Eugene Horn, ela não é o
Eldorado com que muitos sonharam, nem o Inferno Verde por muitos
temido. É uma área de incalculável potencial, eriçada de problemas
difíceis e desconcertantes. Não quer dizer que exista uma agressividade
específica do meio em relação ao homem. “O homem é que se torna
muito vulnerável pela insuficiência numérica. Não está em causa a
qualidade da terra, mas a quantidade da gente”, afirma Araújo Lima em
seu magnífico ensaio Amazônia – A Terra e o Homem.
Como realidade histórica, social e econômica, a Amazônia tem
sido, na verdade, o gigantesco teatro de uma das mais difíceis
experiências do homem nos trópicos. Sem tentar atenuar a incúria
nacional que tanto a tem prejudicado, ela é o testemunho da pequenez
humana diante da exuberância tropical. Nenhuma outra região brasileira
apresenta problemas de tanta perplexidade como essa imensa extensão de
água e terra entrelaçadas. A significação dessa extraordinária bacia hídrica
Publicado originalmente em: Anais do Congresso Brasileiro de Tropicologia. Recife:
Fundaj/Massangana, 1987, pp. 204-10. Os editores agradecem à Fundação
Joaquim Nabuco e Editora Massangana pela autorização para a republicação
do texto.
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Vol. IV, n° 2, 2009, p. 153-161
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não deve ser avaliada meramente em sua expressão geográfica, como
portentoso sistema de drenagem, mas, também, como a maior rede de
vias naturais na face da Terra, como caminho de penetração e
comunicabilidade humana, como ambiente histórico, econômico e social.
Se pensarmos em sua feição botânica, a Amazônia é a Hiléia
(Hylaea, de Humboldt), a floresta portentosa, que remonta a um antigo
passado, prolongando-se até hoje como uma das mais velhas paisagens
da Terra. Segundo Engler, ela constitui a terceira das grandes regiões do
planeta, denominada neotropical por abranger grande parte da faixa
tropical do Novo Mundo.
Certo é que nem tudo é Hiléia na Amazônia. Mangues, campos,
várzeas incluem-se, igualmente, na vasta bacia, sem, todavia, dominá-la.
Quanto à fauna, aí se encontra uma variedade extraordinária de
aves, insetos e peixes, porém pobreza de animais de grande porte,
predominância acentuada de espécies zoológicas arbóreas e aquáticas,
vivamente coloridas, porém de porte reduzido.
A grandeza da região e a exuberância de sua flora e de sua fauna
contrastam com a insuficiência do elemento humano. Numa área de
pouco mais de 5.000.000 km² dilui-se uma rala população de 10.000.000
habitantes, apresentando densidade demográfica insignificante, isto é,
duas pessoas por quilômetro quadrado. Não exagerou Euclides da
Cunha quando a comparou a “página inédita e contemporânea do
Gênese”, nem são poucos os geógrafos europeus que a incluem no
Anecúmeno, desertos verdes, que correspondem, nos trópicos, aos
desertos áridos e glaciais.
No entanto, grandes sábios que estudaram a Amazônia sob
vários aspectos, tais como Alexandre Rodrigues Ferreira, Humboldt,
Martius, Bates, Wallace, Schomburk, Agassiz, Spruce Hartt, Crevaux,
Goeldi, Coudreau, Levy Strauss, Curt Nimuendaju, Paul le Cointe,
Metraux, Pierre Gourou, Deffontaines, Harold Sioli, Ernest Fittkau,
Klinge, são unânimes em afirmar que nem a situação geográfica, nem as
suas condições climáticas constituem obstáculo ao seu
desenvolvimento, em benefício da humanidade. A abundância da
vegetação e das águas correntes, os ventos alísios que sopram de leste e
nordeste e penetram pela ampla abertura do Amazonas, a frequência e
regularidade das chuvas tornam o clima amazônico perfeitamente
suportável, mesmo para estrangeiros oriundos de zonas frias.
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Para a Amazônia, como, aliás, para quase todo o Brasil, o
problema de maior importância é o povoamento. Para que servem
terras férteis e riquezas naturais, se não houver quem as aproveite e
valorize? Embora agasalhe, hoje, 130.000.000 de habitantes, o Brasil
ainda é, na maior parte do seu território, dotado de escassa população.
Na Amazônia a deficiência demográfica é calamitosa, nela vivendo dois
milésimos e meio de população mundial, ou seja, duas pessoas por
quilômetro quadrado.
Países há, como a Austrália e o Canadá, que suprem sua
insuficiência populacional com a qualidade da sua gente. Isso não
acontece na Amazônia, onde “a natureza se concentra para resistir” e
“o homem se dispersou para agredi-la”, na observação de Vianna
Moog.
Em face dessa insuficiência quantitativa, a condição preliminar
para o desenvolvimento da Amazônia é o seu povoamento. Ocupá-la
efetivamente, dar-lhe conteúdo humano, humanizá-la é o primeiro
passo para o seu desenvolvimento.
Já se tem dito várias vezes que a Amazônia é a mais portuguesa
das terras brasileiras e a mais cabocla das regiões naturais do país.
Os índios, primeiros ocupantes da região, e seus descendentes
caboclos, fruto do cruzamento com os lusos, adaptaram-se às
peculiaridades regionais, retirando da floresta, da várzea e do rio os
recursos naturais para sua subsistência.
Além dos portugueses, salientam-se os espanhóis, os sírios e,
mais recentemente, os japoneses na ocupação do vale amazônico, os
três primeiros dedicados, principalmente, ao comércio e os últimos à
agricultura.
A Amazônia lusitana, hoje brasileira, originou-se no forte do
Presépio, ponto de partida da cidade de Belém, fundada por Francisco
Caldeira de Castelo Branco, em 1616. Daí surgiria a reação lusa contra
ingleses e holandeses estabelecidos em fortins e feitorias na foz do
Amazonas. O domínio dessa foz resultaria, por imposição históricogeográfica, na implantação do império português ao longo do enorme
rio e seus afluentes. Aqueles cursos d'água que “pareciam infinitos” aos
olhos inteligentes do padre Antônio Vieira, conduziriam a penetração
lusitana no imenso vale. A exploração da Amazônia se fez sob o signo
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potâmico, sendo os rios verdadeiros fios de Ariadne a guiar os
portugueses, exímios navegadores, na penetração da planície.
Como bem observou Carpistrano de Abreu, “a Amazônia foi
uma descoberta espanhola e uma conquista portuguesa; ao contrário, o
Prata foi uma descoberta portuguesa e uma conquista espanhola”. O
Governo português, preocupado com a penetração espanhola no alto
Amazonas e com as tentativas exploratórias de franceses, ingleses e
holandeses, criou o Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 1621,
prolongando a jurisdição da antiga Capitania do Maranhão até o norte
da embocadura do Amazonas e fortalecendo a autoridade responsável
pela colonização dessa área. “A grande capitania da conquista foi a do
Grão-Pará, onde, a partir de S. Luís, se iniciou, com Francisco Caldeira
de Castello Branco, a história das bandeiras fluviais paraenseamazônicas”, escreve, com muita propriedade, o historiador
amazonense Samuel Benchimol. Graças à ação do governo português,
guarnecendo a cobiçada foz do Amazonas e expandindo ocupação
lusitana até as proximidades das nascentes andinas, foi possível, em
1750, a assinatura do Tratado de Madrid, baseado no uti possidetis.
Com a independência, o poder o Império, baseado no Rio de
Janeiro, atingia o território amazônico com menos intensidade que o
fizera o governo português, criador de um status especial para o Estado
do Maranhão e Grão-Pará, ligado diretamente a Lisboa.
Criando, em 1852, a primeira empresa de navegação no
Amazonas, ligando Brasil e Peru, Irineu Evangelista de Souza, Visconde
de Mauá, revelou sua extraordinária visão das possibilidades regionais e
muito contribuiu para o desenvolvimento do setentrião brasileiro.
Inicia-se a era da borracha, no último quartel do século XIX, causada
pelo surto industrial na Europa, determinando o deslocamento de cerca
de 300.000 nordestinos para a Amazônia, acossados pela grande seca de
1877 e atraídos pela exploração da hevea. Ao findar o século XIX,
detinha o vale amazônico 65% da produção do látex, exportado
diretamente de Belém para Nova York, Liverpool, Londres, Antuérpia,
Havre e Lisboa.
Os primeiros vinte e cinco anos da República assistiram ao
apogeu da exportação gomínea, refletido no surto econômico e social
da região amazônica e tornando Belém e Manaus centros de grande
importância comercial. Era a belle époque, com todo o seu esplendor,
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denominada por Leandro Tocantins, em feliz expressão, de borracha
époque.
Gerou-se, assim, a distribuição desequilibrada da população, já de
si rala, com preponderância daqueles dois centros urbanos e total
ausência de cidades de porte médio, surgindo, em imensas faixas
desabitadas, pequenos núcleos isolados, extremamente débeis.
Essa população minguada, com apoio econômico fraquíssimo,
impede a Amazônia de influir na política nacional. O pouco que se fez
na região em matéria de desenvolvimento é uma espécie de proteção
vinda do centro das decisões nacionais, inspirada por homens alheios
ao meio, muitas vezes contrários ao pensamento regional. A Amazônia
permaneceu numa espécie de minoridade, num colonialismo interno,
mais humilhante que o colonialismo externo.
As grandes estradas abertas em função do surgimento de Brasília,
como a Belém- Brasília e a Brasília-Acre, têm exercido notável ação
econômica e social, ligando pontos até pouco tempo totalmente
isolados e promovendo o aproveitamento de áreas consideradas inúteis.
A população, além de insuficiente mal distribuída, tem nível
econômico-sociocultural modesto, apoiado principalmente, no
extrativismo predador. Embora tenha crescido nos dois últimos
decênios a um ritmo anual de 3,4% (superior à taxa nacional de 2,9%),
não o fez pelo próprio desenvolvimento, nem pela melhoria das
condições sanitárias ou sociais, mas sim, em grande parte, pelo fluxo
migratório desordenado. Essas correntes migratórias que, na fase da
borracha, emanaram, sobretudo, do Nordeste, passaram a deslocar-se
de Goiás para a bacia Araguaia Tocantins e, com a abertura da
Transamazônica, hoje em precária condições, do Sul e do Centro-Sul.
De 1900 a 1920, a população amazônica duplicou, chegando a
1.400.000 graças ao contingente nordestino, que representa a maior
contribuição demográfica dada à Amazônia. Samuel Benchimol avalia
em 100.000 os nordestinos que se deslocaram para a Amazônia entre
1942 e 1945, atendendo à Batalha da Borracha, deflagrada em
conseqüência da 2ª Guerra Mundial. Foi uma luta efêmera e de
interesses imediatistas, mas fez surgir instrumentos econômicos
importantes, como o Banco de Crédito da Borracha, hoje Banco da
Amazônia.
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Nestes últimos quinze anos a população amazônica aumentou de
cerca de 3.500.000 pessoas. Agrovilas, agrópolis e rurópolis, núcleos de
população ao longo da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém, atraíram
imigrantes do sul, e do centro do país.
A descoberta de ferro e vários minerais importantes na Serra de
Carajás, no rio Itacaiúnas, ao sul do Pará, trouxe novas perspectivas
para a Amazônia.
Embora fosse conhecida de longa data a existência de jazidas
ferríferas na região, mediante trabalhos escritos por geólogos que a
estudaram nas primeiras décadas do século findante, somente em 1967,
com o descobrimento daquela concentração mineral, incluiu-se a
Amazônia entre os grandes produtores de ferro, capaz até de deslocar
para o sul do Pará, o eixo da extração mineral, até então localizado no
quadrilátero ferrífero de Minas Gerais.
Essa enorme riqueza mineral, considerada a princípio pelos
técnicos a maior do Brasil e, hoje, a maior do mundo, atraiu, como era
inevitável, grandes correntes migratórias do sul e do centro-leste do
país, na velha e histórica atração do homem pelas explorações minerais,
principalmente pelo ouro, também existente na região. Conceição do
Araguaia, povoado fundado pelo notável missionário deste século, Frei
Gil de Vila Nova, em abril de 1900, à margem esquerda do rio
Araguaia, rapidamente passou à condição de vila e de cidade pelas suas
atividades agropastoris. Em conseqüência da sua situação geográfica, na
zona de mineração, é hoje, o segundo município que mais cresceu no
Pará na segunda metade do século XX. Em 1970, possuía uma
população de 28.953 habitantes, em 1980 aumentada para 112.397,
número que já deve ter sido ultrapassado.
Marabá, às margens do Tocantins, ponto fluvial e escala aérea
importante na rota Belém-Brasília, alcançou posição notável no
comércio de castanha, produção agrícola e pecuária. Descobertos os
depósitos minerais da Serra dos Carajás e traçadas as linhas do projeto
de exploração dessas riquezas, a cidade tocantina tornou-se um
elemento captador de populações, principalmente quando garimpeiros
descobriram as riquezas minerais da Serra Pelada.
Dos mais remotos pontos do Brasil, milhares de pessoas se
dirigiram para Marabá, à procura da tão sonhada riqueza. De São Paulo,
de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de Goiás, grandes
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contingentes humanos rumaram para o Tocantins. Atualmente, cerca de
60.000 garimpeiros labutam em Serra Pelada, que, de 80 a 85, produziu
mais de 35 toneladas de ouro. Apesar das condições precárias que o
garimpo ora apresenta, como graves riscos para os que nele trabalham,
não diminuiu a exploração mineral na região.
No censo de 1950, o município de Marabá registrou uma
população de 11.130 habitantes; no de 1980, cresceu essa população
para 59.743 pessoas, calculando-se, que esteja, agora, em 133.559
indivíduos, apresentando uma taxa anual de crescimento de 9,35.
O Programa Grande Carajás, criado pelo Decreto-Lei nº 1813, de
24 de novembro de 1980, foi concebido com o objetivo de um
desenvolvimento integrado da Amazônia Oriental. Tendo como pólo
principal as jazidas da Província Mineral de Carajás, estende-se, além do
Pará, pelos Estados de Goiás e Maranhão, com repercussões em Mato
Grosso, numa área total de 890.000 quilômetros quadrados, ou seja
11% do território nacional.
Após a inauguração da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, partiu o
Programa para a exportação de 15 milhões de toneladas de ferro, por
meio da ferrovia Carajás (Pará), a Ponta da Madeira, na ilha de São
Marcos (Maranhão), onde se encontra o porto de Itaqui,
exclusivamente dedicado à exportação de ferro.
São João do Araguaia, Conceição do Araguaia, Santana do
Araguaia, Rio Maria, Xinguara, Redenção são núcleos que muito se têm
desenvolvido com a exploração de Carajás.
Redenção, criada, como Rio Maria e Xinguara, em maio de 1982,
é um exemplo típico do município surgido em conseqüência do
desenvolvimento econômico da região. Desmembrado de Conceição
do Araguaia, alcançou rapidamente 43.647 habitantes, em grande
maioria, oriundos do sul do país.
Vai se formando, assim, no sul do Pará, um complexo
populacional dissociado da vida cultural e social do Estado. A
Companhia Vale do Rio Doce, vinculada ao Ministério das Minas e
Energia, constituída, em grande parte, de capitais estrangeiros, controla
as minas de ferro, a ferrovia Carajás-Ponta da Madeira e o porto de
Itaqui. É preciso não esquecer que o Projeto Carajás definiu-se num
período político de exceção, sem compromissos com a opinião pública,
motivo por que tem sido vivamente criticado.
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Japoneses, norte-americanos, ingleses, franceses e canadenses,
interessados na exploração mineral do sul do Pará, participam ou
tentam participar dessa atividade, visando à exportação do minério para
os países industrializados, exatamente como se fez, com a borracha. A
mão-de-obra especializada é importada do Centro-Sul, participando os
trabalhadores locais de atividades pouco qualificadas e com baixos
salários.
Concebido com base na exportação de matéria-prima, o
Programa não se preocupou com as necessidades da Amazônia,
tendendo a favorecer empresas e grupos ligados a interesses
estrangeiros, mantendo-lhes elevadas taxas de lucro, em detrimento do
desenvolvimento social e do equilíbrio ecológico da região.
Trata-se, na verdade, de uma intromissão federal num Estado
membro da Federação – o Pará –, com séria agressão ao regime
federativo e à autonomia estadual.
A Amazônia e, portanto, o Pará têm, agora, seus executivos e
seus parlamentares eleitos pelo povo. Todos eles deveriam unir-se em
defesa dos interesses da região que os escolheu para representá-la no
complexo nacional, lutando contra a maneira defeituosa de encarar o
problema do desenvolvimento amazônico nos centros de decisão que o
comandam, Brasília e Rio de Janeiro, principalmente. O mais
importante é que o crescimento econômico não destrua os valores
ligados à vida própria da região, às imposições da natureza, aos
costumes, à tradição cultural.
O desenvolvimento deve ser feito para o homem, não o homem
para o desenvolvimento.
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Revista Estudos Amazônicos  161
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