O CINEMA NOVO BRASILEIRO: CULTURA E POLÍTICA.
Yuri Araujo CARVALHO
orientador: Prof.ª Dr.ª Lilian R. de O. ROSA
Centro Universitário Barão de Mauá
OBJETIVO:
Para esta apresentação, devemos nos ater à problematização do binômio
cinema-história. As discussões sobre as lutas no campo cinematográfico serão
direcionadas para as produções desenvolvidas no Brasil nas décadas de 50 e 60, o
chamado Cinema Novo, e a sua relação com os âmbitos cultural e político.
JUSTIFICATIVA:
Partamos do pressuposto de que os estudos voltados ao cinema não se
configuram como preocupação exclusiva dos historiadores; através da discussão a
respeito de metodologias coerentes para a análise dos materiais fílmicos, tais estudos
são cada vez mais direcionados para a abrangência multidisciplinar (psicologia,
semiologia, sociologia, etc.). Além disso, as contribuições advindas da Nova História
francesa sobre a multiplicidade de fontes colocaram o cinema na pauta de pesquisas
mais rígidas por parte da comunidade de historiadores. A estrutura heterogênea
chamada cinema configura-se, pois, como objeto de importância analítica: desde o
espaço físico para sua reprodução, passamos pelas teorias do cinema, até as próprias
produções cinematográficas (essas, então, cada vez mais fragmentadas – arte,
ideologia, entretenimento). É mister que destaquemos, também, o quanto todas essas
facetas “sofreram” com a ação do tempo, desde seu implemento pelos irmãos Lumiere
e o advento do cinematógrafo até as incríveis contribuições da tecnologia nas
produções hodiernas – sem perder, todavia, a caracterização do cinema enquanto
produtor de discursos modeladores das mentalidades em determinado espaço/tempo,
naquilo que tange representar as relações de poder contextuais.
DESENVOLVIMENTO:
O cinema nem sempre foi encarado como uma poderosa ferramenta produtora
de discursos. Segundo Marc Ferro (1992), seu caráter embrionário assim se
caracterizava:
Além do mais, no início do século XX, o que é o cinematógrafo para os
espíritos superiores, para as pessoas cultivadas? “Uma máquina de idiotização
e de dissolução, um passatempo de iletrados, de criaturas miseráveis
exploradas por seu trabalho”. O cardeal, o deputado, o general, o notário, o
professor, o magistrado compartilham desse julgamento de Georges Duhamel.
Eles não frequentam esse “espetáculo de párias” [...] (FERRO, 1992, p. 83).
Porém, o papel do cinema começou a ganhar contornos múltiplos e complexos
com os avanços técnicos e as apreensões artísticas; posteriormente (e, aqui,
chegamos a um momento crucial), ganha novas dimensões dentro do conceito de
indústria cultural, no qual, juntamente com o rádio e as revistas, constituiria (para o
contexto posterior à década de 30) um sistema onde cada elemento seria coerente por
si próprio e em conjunto. Dessa forma, tal conjunto configurava-se como um amplo
negócio, no qual o homem comum era tomado como “ser genérico”; os interesses da
indústria e das classes dominantes direcionavam-se, de tal modo, para este mesmo
homem, enquanto pudesse desempenhar o papel de cliente e empregado,
respectivamente (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). Para que a eficácia da indústria
cultural fosse plena, as inovações técnicas faziam-se necessárias:
A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o
caracter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. [...] Por enquanto, a
técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em
série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema
social. (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 58)
Adorno e Horkheimer concebem a indústria cultural como a meta do liberalismo,
oriunda de países industriais liberais, cuja dominância (não apenas econômica)
extrapolaria a cultura e o entretenimento, que detinham papel central na padronização
dos indivíduos (ADORNO; HORKHEIMER, 1947). Tal padronização tornara-se viável
por meio de silenciosas dominações (ideológicas, morais), as quais incutiriam a
diferentes hierarquias sociais valores homogêneos:
[...] Assim como os dominados sempre levaram mais a sério que os
dominadores a moral que deles recebiam, hoje em dia as massas logradas
sucumbem mais facilmente ao mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas
têm os desejos deles. Obstinadamente, insistem na ideologia que as escraviza
(ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 63).
Assim, a referida “escravização ideológica” do homem encontra respeitáveis
pontos de explanação nas considerações sobre o poder simbólico: as ideologias
servem a interesses particulares, que tendem a “mascarar-se” enquanto interesses
universais, comuns a todo o grupo (BOURDIEU, 1989). Para tanto, as classes
dominantes, para legitimar a dominação sobre outras classes, valem-se de uma
“violência simbólica”, segundo a qual seriam impostas as definições do mundo social
que melhor representassem os interesses dominantes. Em suma:
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer
ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste
modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 1989, p. 14).
Para Bourdieu, o poder simbólico, enquanto estruturado e estruturante através
de “sistemas simbólicos”, estabelece-se também como elemento comunicativo, cuja
imposição de valores possui destacada função política, sendo que “a política é o lugar,
por excelência, da eficácia simbólica, ação que se exerce por sinais capazes de
produzir coisas sociais e, sobretudo, grupos” (BOURDIEU, 1989, p. 159).
Tanto a política quanto a cultura são admitidos enquanto campos, que, para
Bourdieu, são moldados através de espaços sociais, onde as ações individuais e
coletivas se dão através de determinadas regras, que não são fixas, portanto mutáveis
segundo as ações desses atores.
É possível, pois, encontrar nos pensamentos dos autores da escola frankfurtiana
posições que se repetirão nas análises de Bourdieu, principalmente as que se
enquadram nas definições do conceito de indústria cultural, como explicitado por Maria
da Graça J. Setton (2001):
[...] a dinâmica ideológica e manipuladora da técnica e da mensagem veiculada
pela mídia; a indústria cultural como um sistema integrado e coerente de
produção de bens espirituais; a perda da autonomia dos produtores e
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consumidores culturais; e a transformação dos bens culturais em mercadorias,
portanto, seu caráter homogeneizado e totalizador (SETTON, 2001, p. 27).
Bem como Adorno e Horkheimer, Bourdieu disserta sobre a produção de bens
culturais que, na lógica do capitalismo, devem seguir os princípios da concorrência por
parcelas cada vez maiores de consumidores. Entretanto, devemos pontuar, também,
as diferenças que separam as duas correntes de pensamento aqui analisadas.
Bourdieu, por exemplo, “não partilha a ideia de uniformização e homogeneização do
consumo dos bens culturais”, pois, para ele, “as diferenças de origem social, mais
especificamente as diferenças de capital cultural acumuladas nas trajetórias dos grupos
e dos indivíduos impedem a homogeneização das consciências” (SETTON, 2001, p.
33). Embora seu trabalho se concentre no papel desempenhado pela televisão, Setton
exibe algumas bases de pensamento dos autores que são aplicáveis a outros meios de
comunicação. Já José Mário Ortiz Ramos (1985) dirige-se para as diferenciações dos
autores acima citados no que tange a operação metodológica dos materiais fílmicos:
enquanto a proposta voltar-se para a ênfase nos processos culturais, passa-se a
investigar, segundo as indicações de Bourdieu e Gramsci, a realidade das práticas
cinematográficas, na busca de “posturas dos grupos produtores, as lutas que vão
configurando os eixos ideológicos deste campo cultural desembocando em
determinadas linhas de produção fílmica” (ORTIZ, 1985, p. 56). Já nas preposições
indicativas segundo o pensamento de Adorno, a análise das obras cinematográficas
partiria de suas composições enquanto “construções artísticas carregadas de energia e
significação” (ORTIZ, 1985, p. 56). Em uma primeira abordagem (segundo Ortiz, mais
confortável ao cientista social), a análise das forças dinâmicas relacionadas à
produção; na segunda abordagem, a estrutura significativa da própria obra.
No que concerne entender o cinema, podemos situa-lo enquanto elemento
presente nos campos cultural e político, influenciado e influenciando tais campos,
passíveis de interesses; contextualizaremos, de tal forma, a produção cinematográfica
brasileira nas décadas de 50 e 60, que segundo José Mário Ortiz Ramos assim se
desenhava:
Fortemente marcada pelo político, a cultura brasileira nos anos 50-60 colocouse às lutas que atravessavam o todo social, e o cinema entrou num corpo-acorpo exemplar com a realidade. Assistiu-se, assim, a um momento de
superposição e entranhamento entre os processos estético-cultural e políticosocial (RAMOS,1983, p. 11).
Até meados da década de 50, a aproximação entre o Estado e cinema brasileiro
caminhou de forma titubeante e desinteressada. Com a crise das companhias
cinematográficas presentes no Estado de São Paulo – com destaque negativo para a
companhia Vera Cruz, cujos investimentos de Franco Zampari e Francisco Matarazzo
Sobrinho resultaram em produções técnicas consideráveis, porém criticadas em
relação à originalidade dos conteúdos – desenhou-se uma maior movimentação do
meio cinematográfico. Sob influência conjuntural do nacionalismo do governo Vargas e
a forte influência do desenvolvimentismo do governo Kubitschek surgiram os primeiros
congressos de cinema, em 1952 e 1953, e a criação de comissões de cinema, que em
1956 já possuíam caráter federal (RAMOS, 1983, p. 16). Com isso, o cinema nacional
emerge envolto em disputas ideológicas e culturais:
Sempre dentro da perspectiva de conceber o campo cinematográfico como
local de interação de forças contrapostas, colocando em luta vertentes
ideológicas divergentes, podemos, paralelamente à delimitação das conquistas
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e propostas do período, procurar as tendências dominantes em termos de
concepções de cinema enquanto produção industrial. Logicamente, num
terreno híbrido como o cinematográfico, cruzam-se, superpõem-se e
confundem-se constantemente as visões do produto-filme enquanto mercadoria
e enquanto produtor de sentido, e portanto imerso no plano cultural e
ideológico (RAMOS, 1983, p. 19).
Jean-Claude Bernardet (2009), por sua vez, condiciona o entendimento do
cinema brasileiro, nesta época, enquanto relacionado com a presença agressiva dos
filmes estrangeiros (principalmente norte-americanos) em território nacional, cuja
“presença não só limitou as possibilidades de afirmação de uma cinematografia
nacional como condicionou em grande parte suas formas de afirmação” (BERNARDET,
2009, p. 21). Tamanha presença das produções estrangeiras é corroborada pelos
números, segundo os quais “em 1941: foram lançados no Brasil 460 filmes de longametragem, dos quais quatro brasileiros; 1942: 409/1; 1943: 362/6; 1953: 578./34; 1954:
490/21 (dados Cine Reporter)” (BERNARDET, 2009, p. 22).
O país vivia, em meados de 55-60, contradições e lutas no âmbito político, as
quais envolviam maior concentração do poder estatal e internacionalização da
economia. Enquanto determinados grupos, como o dos cineastas paulistas,
aproximava-se das características herdadas pelo desenvolvimentismo e aceitação do
capital internacional, outro grupo, de características mais “nacionalistas” aproximava-se
do setor capitalista brasileiro, buscando uma maior independência nacional, mesmo
que apenas no aspecto cinematográfico. Estavam abertas, pois, as perspectivas para o
Cinema Novo brasileiro (RAMOS, 1983, p. 20).
Não há como negar o impacto causado pelo advento do Cinema Novo e suas
influências posteriores. Tanto o Neorrealismo Italiano, cujo contexto do pós-guerra
fundamentou a eclosão de obras de caráter próximo ao documental, que pregavam
uma representação mais fidedigna das realidades sociais e econômicas, quanto a
Nouvelle Vague Francesa, cujos pressupostos baseavam-se em produções autorais e
de baixo custo, sendo ambas as vertentes contrárias ao caráter hollywoodiano de
cinema, tocaram autores como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos
Santos, entre outros, que desenvolveram trabalhos cinematográficos nos quais as
pressuposições baseavam-se na “perseguição constante de um enigmático ‘homem
brasileiro’, a ânsia em apreender a ‘realidade brasileira’” (RAMOS, 1983). Apreendendo
tal realidade, chegar-se-ia a uma ideia e identidade nacionais, culturalmente
representadas no campo do cinema nacional. De tal forma, a ditadura implantada em
1964 representou um rompimento nas diretivas iniciais do Cinema Novo (uma ideia na
cabeça e uma câmera na mão), que precisava se adaptar ao reforço do caráter
industrial no campo cinematográfico, que não podia ferir os interesses do capital
estrangeiro, além de lidar com a tutela imposta pelo Estado.
CONCLUSÃO:
Portanto, podemos compreender o cinema enquanto ferramenta poderosa a
serviço da indústria cultural, por sua vez carregada de ideologias. Se carregada de
ideologias, participava de modo ativo do campo político, campo este por excelência do
poder simbólico. Porém, também participante do campo cultural, teve significância na
constituição de resistências contra imposições culturais, papel desempenhado pelo
Cinema Novo. Dentro dessas perspectivas, a lógica do cinema brasileiro nas décadas
de 50 e 60 configurou-se por meio das apropriações que determinados agentes e
grupos lhe conferiam: máquina ideológica, ferramenta de busca de uma identidade
nacional e, posteriormente, controle estatal.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
BERNARDET, J. C. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo:
Companhia das letras, 2009.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
RAMOS, J. M. O. Cinema, estado e lutas culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1983.
RAMOS, J. M. O. Relações cinema-história: perigo e fascinação. Projeto História.
Revista do programa de estudos pós-graduados de História. e-ISSN 2176-2767; ISSN
0102-4442, v. 4, 1985.
SETTON, M. da G. J. Indústria cultural: Bourdieu e a teoria clássica. Comunicação
e Educação, São Paulo, v. 22, p. 26-36, set./dez. 2001.
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