Karuwara: observando sobrenaturais entre os Tembé do Guamá José Rondinelle Lima Coelho Resumo: A análise é resultado de pesquisa feita entre os Tembé, grupo Tupi que vive próximo ao rio Guamá, no nordeste do Estado do Pará. No campo, busquei observar momentos específicos como ritos de passagem, atividades de caça e relação dos Tembé com os diversos espaços em que eles estão inseridos. Esse grupo Tupi mantém intensas e complexas relações de sociabilidade com não-humanos, que nas aldeias da região são chamados de Karuwara. Na cosmologia do grupo, estes seres estão ligados, entre outras coisas, à saúde e à atividade de caça. Nesta perspectiva, o texto é uma reflexão acerca da percepção e das formas de interação dos Tembé com os seres Karuwara. Palavras-Chave: Cosmologia, Karuwara, Tembé. Abstract: The analysis I propose is the result of survey of the Tembé, Tupi group, who lives near the Guamá River in northeastern Pará state. In the countryside, sought to observe specific times as rites of passage, hunting activities and relationship with the Tembé the various spaces in which they are inserted. This Tupi group maintains intense and complex sociality relations with nonhumans, that in local villages, are called Karuwara. In the cosmology of the group, these beings are linked, among other things, health and hunting activity. In this perspective, the text is a reflection on the Revista Estudos Amazônicos • vol. XIII, nº 1 (2015), pp. 275-302 perception and forms of interaction of Tembé with Karuwara beings. Keywords: Cosmology, Karuwara, Tembé. O controle dos meios de produção envolve o controle do sobrenatural e a produção concerne tanto a objetos quanto a corpos e pessoas. (FAUSTO, C. Inimigos Fiéis. SP: EDUSP, 2014, p. 336). Os Tembé e a Pesquisa Os Tembé Tenetehara fazem parte da família linguística Tupi-Guarani do subconjunto IV da referente família, do qual também faz parte os Guajajara Tenetehara1. Vivem no Estado do Pará e ocupam as seguintes áreas: um primeiro grupo, que são os Tembé do Gurupi, localiza-se na margem oeste do rio Gurupi, na Terra Indígena Alto Rio Guamá; o segundo grupo são os Tembé do Guamá, também residentes na Terra Indígena Alto Rio Guamá, cujas aldeias ficam às margens desse rio; um terceiro grupo está na Terra Indígena Turé-Mariquita, no município de Tomé-Açu (PA); um quarto grupo fica sobre o antigo território dos Turiwara; e o quinto grupo, ocupante da área do Jeju e Areal, localiza-se nas proximidades do município de Santa Maria do Pará (PA)2. Ressalto que os dados para as reflexões desse texto fazem parte de um longo trabalho de campo entre os Tembé que residem às margens do rio Guamá, especificamente nas aldeias Sede, Ituaçu e Pinawa, locais onde fui 276 • Revista Estudos Amazônicos professor da Educação Básica no primeiro semestre de 2008. Assim, os dados utilizados nessa reflexão são acúmulos de entrevistas, anotações em cadernos de campo, vídeos e conversas registradas nos últimos sete anos. No entanto, especificamente para este texto, lanço mão de dados coletados no decorrer do ano de 2013. Meus contatos com os Tembé do Guamá remontam ao ano de 1998, período em que minha família começou a alojar em um dormitório, na Cidade de Capitão Poço (PA), integrantes do CIMI3 que buscavam chegar às aldeias da margem do rio Guamá. Estas aldeias ficam a, aproximadamente, quinze quilômetros da sede do referido município, o que, consequentemente, significa intenso trânsito dos Tembé entre a Terra Indígena e o meio urbano de Capitão Poço. Quando passavam no município de Capitão Poço, os integrantes do CIMI estavam acompanhados por alguns indígenas, com os quais tive a oportunidade de conversar sobre diversos assuntos relacionados a seu povo. Portanto, escrever sobre os Tembé representa, também, um retorno a alguns momentos de minha vida, pois desde a infância pude ouvir histórias do envolvimento desse povo indígena em conflitos para defender seu território, em situações de debate sobre o fortalecimento de sua identidade, além de presenciar suas idas e vindas à cidade pelos mais diversos motivos, seja para estudar, buscar auxílio junto ao Estado e até manter relações comerciais. Contudo, foi apenas quando pude conviver mais intensamente entre eles que tive a oportunidade de observar sua cosmologia, atuando como professor em escolas na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no primeiro semestre de 2008, conforme descrito anteriormente. Estes momentos me proporcionaram reflexões importantes sobre a relação do grupo com a alteridade, além de compartilhar as regras de residência, a relação destes com karawias4, mas, principalmente, quando pude observar a relação que mantêm com os seres não-humanos, como o Karuwara. Revista Estudos Amazônicos • 277 Os Tembé e sua trajetória no Guamá Os Tembé do Guamá passaram por um processo de migração impulsionado pela ocupação ocidental da região Nordeste do Brasil. Eles eram habitantes do alto Pindaré até meados do século XIX, no Estado do Maranhão, momento em que se espalharam pela região nordeste do Pará. A maioria dos Tembé passou, então, a ocupar as margens dos rios Gurupi, Guamá e Capim, localizados no Estado do Pará5. O grupo que residia na margem esquerda do rio Guamá, vivia na aldeia São José da Cachoeira Grande6, tendo sido transferidos para o lado direito do referido rio na década de 1940, momento em que o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) demarcou uma área a ser ocupada pelos “Tembés, Timbiras, Urubus e Guajás”7. Vale ressaltar que os Tembé sempre viveram em meio a conflitos por sua área de ocupação, seja contra fazendeiros, posseiros e até o próprio Estado. No início da década de 1990, ainda na busca pela concretização dos direitos garantidos na Constituição de 1988, os Tembé deram início ao processo de luta – que Sara Alonso chamou “Reorganização e Revolução” – marcado por intensas atividades junto ao Estado, momento de retirada dos posseiros da então Reserva Indígena e, mais ainda, momento de união e fortalecimento dos Tembé8. Atualmente, os Tembé do Guamá possuem suas aldeias na margem direita do rio Guamá, na Terra Indígena Alto Rio Guamá. São treze as aldeias nessa área, quais sejam: Pinawa, Ituwaçu, Pirá, Jacaré, São Pedro, Pacoti, Ipijon, Yarapé, Frasqueira, Itaputyr, Zawaruhu, Tawari e Sede. Esta última, local onde faço grande parte das pesquisas que desenvolvo entre o grupo. 278 • Revista Estudos Amazônicos A Sede é formada pela família extensa de Naldo Tembé, o qual é o cacique da aldeia. Ituaçu e Pinawa estão politicamente ligadas à Sede, pois as lideranças destas aldeias são tios, irmãos e primos de Naldo Tembé. Desta maneira, posso afirmar que as aldeias Sede, Ituwaçu e Pinawa representam uma família extensa: a de Naldo Tembé. Esse tipo de situação pode ser verificado na relação estabelecida entre as demais aldeias que compõem os Tembé da região do Guamá. No entanto, chamo atenção para o fato de que este artigo não irá se prender a verificar regras de parentesco, ou mesmo a história do grupo. As breves reflexões abaixo são uma contribuição para a etnologia Tembé, pois trazem dados e discussões sobre a cosmologia Tembé Tenetehara, uma temática cara àqueles que ousam tratar do assunto, mas enriquecedora para os que o fazem, tanto por conta do crescimento antropológico, quanto por conta do crescimento pessoal. Reflexões sobre a presença de sobrenaturais entre os Tembé Os grupos indígenas das terras baixas da América do Sul possuem um imbricado sistema de relação com seres humanos e não-humanos – o nãohumano pode ser um animal, planta, pedra e sobrenaturais que, na lógica ameríndia, possuem intencionalidades, o que mostra o entendimento mais complexo sobre os limites da humanidade16 – que são eles: outros indígenas, karawia9, quilombolas, plantas, animais e/ou espíritos. No que toca à relação que os Tembé estabelecem com os não-humanos, entendidos como os seres que habitam os diferentes espaços por onde esses índios transitam, mas que nem sempre são vistos, destaca-se a Karuwara. Nas aldeias próximas ao rio Guamá, os Tembé praticam atividades de caça e pesca10, as quais, de certa maneira, permitem que eles mantenham relações com sobrenaturais, como os Karuwara. Nestas aldeias, quem Revista Estudos Amazônicos • 279 detêm o conhecimento sobre o sentido da categoria Karuwara, são os velhos. Os mais jovens sabem que existe essa palavra e que ela é utilizada para definir não-humanos, mas dificilmente lançam mão do uso dessa categoria. Pelo menos durante o período em que tive a oportunidade de intensificar minhas idas às aldeias do Guamá, poucas vezes ouvi os jovens do grupo utilizando o termo. A categoria Karuwara é difundida entre os povos Tupi. Os Parakanãs lançam mão do termo Karuwaras, mas não para referir-se propriamente a espíritos, mas a agentes que causam doenças controladas por feiticeiros – os moropyteara; o mesmo se observa entre os Asurinis, pois nesse último caso os xamãs controlam os karowaras25. Entre os Tembé, assim como entre os Parakanãs, o Karuwara pode entrar no corpo de um humano, levando-o ao adoecimento, situação contornada, na maioria das vezes, quando o especialista retira, através do uso do maracá, cantos e água (neste caso, coloca-se uma brasa para tirar a força da água, visto que toda água é de domínio da Mãe D’água) o ser que entrou, por iniciativa própria ou por intermédio de um pajé, no corpo de um determinado indivíduo. Verifiquei que o ato de ir ao rio ou ao mato em horários inapropriados pode ser momento de intenso perigo, visto que há a chance do ataque de nãohumanos contra humanos. Como afirma Itapuyr Tembé, ao explicar a necessidade de passar alho no corpo de sua filha: “a gente passa alho para proteger. A Mãe D’água não chega perto por causa do cheiro. Aqui toda criança faz isso. A gente evita ir seis, meio dia e seis da tarde”. Nesse caso, os momentos inapropriados são os instantes de liminaridade, ou seja, situações de indefinição de o que é madrugada ou manhã, manhã ou tarde e tarde ou noite. Para refletir sobre o assunto do Karuwara friso que será relevante consultar os trabalhos de autores como Wagley e Galvão11, Laraia12, Andrade13, Zannoni14 e a pesquisa de Garcia15. No entanto, serão as 280 • Revista Estudos Amazônicos pesquisas de Wagley e Galvão11 e Zannoni14 sobre os Guajajara Tenetehara, produzidas em momentos diferentes da trajetória desse grupo e em lugares com realidades antropológicas distintas, mas que trarão salutares dados etnográficos para ajudar a traçar reflexões sobre a cosmologia Tembé. Também é elucidativa a análise da cosmologia AwáGuajá feita por Garcia15, a partir do estudo da atividade de caça entre esses índios. Destaco tais autores, visto que darei atenção maior aos Guajajara e aos Awa-Guajá, que estão em uma realidade social e geográfica bem próxima a dos Tembé, na região nordeste da Amazônia, apesar de serem grupos distintos. Na tese de doutoramento de Garcia,15 sobre os AwáGuajá, os karawaras são assim definidos: são seres ou forças que vivem nos patamares celestes e atuam na terra de diversas maneiras. São caçadores infalíveis ao mesmo tempo que espíritos auxiliares no xamanismo; são destino de todo ser humano (awá) após a morte, ao mesmo tempo que possuem uma existência independente, desvinculada da morte terrena. São também caça (pois estão relacionados diretamente a essa atividade), canto (por serem cantores magníficos), e cura (por serem a própria substância do xamanismo). Passo aqui, a me referir aos karawara enquanto seres, pois assim aparecem na maior parte das definições das pessoas com quem conversei, embora tal ideia (como outras do mundo AwáGuajá) logre polissemia. O Karuwara é, então, um ser sobrenatural passível de agenciamento, ou seja, capaz de interagir com humanos, seja nos níveis não-humanos ou até Revista Estudos Amazônicos • 281 nos níveis controlados por humanos. No entanto, ressalto que, em ambos os casos, a relação dar-se-á em momentos específicos, como atividades de caça, rituais de passagem ou ritos fúnebres. Porém, observar o Outro como ele mesmo se vê é uma situação que pode ocasionar perigo àquele que não possui as habilidades necessárias, pois tal ação é executada com exatidão e segurança apenas pelos especialistas, seja o pajé e/ou caçadores e, em alguns casos, pescadores. Quando se dá o encontro entre humanos e Karuwaras, e aquele não possui as habilidades necessárias ou está em situação de vulnerabilidade, o indivíduo pode tornar-se outro e ir morar com seus pares 16. Neste caso, percebe-se que para os Tembé, assim como para grande parte das sociedades ameríndias, pensar a relação dessas sociedades com a ecologia é considerar a cultura como natureza humana. A partir daí, a compreensão de que Karuwara é um afim em potencial do humano torna-se uma ideia compreensível no universo simbólico do grupo. Wagley e Galvão11 e Garcia15 estudaram, respectivamente, os Guajajara na década de 1940 e os Awá-Guajá nos anos 2000. Mesmo em períodos distintos e grupos diferentes, os autores apresentam reflexões que são coesas com o que os Tembé pensam sobre os Karuwaras. Resolvi, também, levar em consideração os apontamentos de Nimuendajú17 – que esteve entre os Tembé do Gurupi no início do século XX – em uma transcrição de texto que aparece na pesquisa de Zannoni18. A interpretação do texto de Nimuendajú18 permitiu concordar sobre o sentido da categoria Karuwara, apontado por esse pesquisador em seus dados. Retomando Garcia10, ao falar sobre a noção que os Awá-Guajá possuem, este aduz que: podemos afirmar que a literatura etnológica, a depender 282 • Revista Estudos Amazônicos do contexto etnográfico, sempre apresentou a idéia do karowara (para utilizarmos os termos de Laraia) a partir de duas definições, ora associados ao feitiço e agentes patogênicos nocivos à saúde humana, causadores de doenças, ora associados a entidades do tipo ‘xamã míticos’, especialista em cura e de uma vida celeste magnífica, tal como o caso Asurini do Xingu. Entre os Awá, os karawara parecem ser uma ação (nesse caso de cura, e não de ataque maligno), ao mesmo tempo que possuem uma existência enquanto entidades tipo ‘xamãs míticos’. Eles são karawara e eles fazem karawara. No caso Tembé, apesar das dificuldades para uma definição que dê conta da semântica da palavra Karuwara, esta deve ser vista a partir de sua essência cultural. Neste sentido, o social não pode ser visto como algo que “se deposita sobre o corpo como sobre um suporte inerte, mas o constitui”16, assim o Karuwara é construto nativo que se refere a seres com roupa19 não-humana, mas que em sua essência carrega um espírito, o que lhe dá o elemento humano e, por isso, passível de interação com os humanos. Estes seres habitam os diversos níveis e espaços na cosmografia Tembé. Ressalto, ainda, que sua interação com humanos pode causar adoecimentos e/ou curas, dependendo de quem se relaciona ou em que momento isso acontece. Em conversas com índios Tembé sobre assuntos ligados a parto, ritos, adoecimentos e caça, percebi que emergiam, timidamente, um conjunto de termos que serviam para designar não-humanos, o que, de certa maneira, mostrava-me formas de se compreender o Karuwara. A partir daí os Karuwaras podem ser pensados como espíritos que residem em espaços e níveis controlados pelos não-humanos, mas que não ficam isolados e Revista Estudos Amazônicos • 283 impedidos de se relacionar com os humanos. Os relatos seguintes dão conta de momentos de intensos conflitos entre humanos e os Karuwaras, no exemplo a frente representado pelo ser Curupira. Segundo dona Dedé20 (...) ali no São Pedro, tem um guarapé, um braço do guarapé que fica aqui entre o São Pedro grande e o velho, tinha uma casa de farinha que a gente trabalhava tudo junto, então nós tinha um roçado lá, e uma vez eu fui botar uma mandioca mais o meu pai, a gente carregava e arrancava, carregava na cabeça, botava na água. Eu fiquei sozinha lá, aí eu escutei uma zoada assim grande, olhei pra cima, assim pro lado, no pé de um itauarizeiro, aí eu não vi nada, só vi cair uns galinhos e umas folhinhas, e fiquei assim assombrada, meu cabelo arrepiou, me deu um arrepio no meu corpo, fiquei com medo do tronco do pau, pensei que era o pau que ia revirar, aí eu corri pra um lado e corri pra outro, plantada e o pau tava em pé direitinho, aí meu pai chegou e disse: que é que modo que tu tá assim assustada? Meu pai eu vi uma barulho assim no tronco do itauarizeiro e eu tô com medo. Ele falou assim: isso deve ser alguma coisa, mas não é coisa que tu fique com medo. Ele tava carregando mandioca, e não me falava nada pra mim não fica com medo, que o guarapé ficava um pouco distante lá do roçado, né? Eu fiquei arrancando mandioca, aí quando eu vim, aí fiquei com uma dor de cabeça, me deu um frio, eu cheguei em casa e me deitei, não comia e nem 284 • Revista Estudos Amazônicos bebia, e nem conversava com ninguém, aí a mãe disse: João, trás uma pajé pra rezar aqui nessa menina porque ela chegou um pouco doente, não come, não bebe, não conversa. Pra mim ela tá muito doente! Aí ele foi, chegou com a pajé, ele rezou e disse assim: olha, eu não do conta da doença dela, mas eu vou lhe ensina um senhor que é pajé mais de que eu, que vai dá conta da doença dela. Então, o papai preguntou pra ele: e quem é esse homem? Ele disse: mora um pouco distante daqui, mas é um senhor que é pajé e ele curou várias pessoas doentes de vários lugares. Aí o papai foi atrás, aí quando ele chegou, ele disse que era uma Curupira que tinha me espantado no roçado, e ela queria me matar, porque ela queria roubar a minha sombra, a Curupira. Aí o papai falou assim: o senhor dá conta de deixa ela boa? Ele disse: eu dou, é eu e mais seis pajé, aí me botaram numa rede e me carregaram. Eu fui deitada na rede, que eu não conversava e nem comia, era uma dor de cabeça incrível, aí cheguei lá, muita gente disseram porque que ele veio trazer essa menina pra cá, deixaram de leva ela pro hospital e trazer pra uns pajé, essa menina vai morrer. Aí a mamãe começou a fica triste e a chorar, aí eu perguntava: mamãe, que é que a senhora tem? Num é nada minha filha, eu tô chorando da tua situação, não dizia nada pra mim não ficar mais triste. Aí o pajé fez o trabalho, aí disse assim: ela tá muita cansada, mas nós tudo junto vamos pedir a Deus que nos dê força pra alevantar ela, que essa Curupira Revista Estudos Amazônicos • 285 quer roubar a sombra dela. Aí começou a fazer remédio, aí eu comecei a me sentir meu corpo, que eu tava assim ficando mais confortável, tinha já um ânimo meu corpo, já pensava na minha vida, na minha mocidade, numa alegria, numa festa. Dizia: será que eu ainda vou pra festa ou não? Ficava assim pensando. Aí o pajé preguntava: o que você tá sentindo? Eu tô sentindo uma melhoria que eu tô sentindo, porque minha cabeça passou de doer, eu já como, eu já bebo, eu já converso, eu já escuto. Aí ele disse que não era pra eu fica com medo que eu ia fica boa. Aí continuaram a me trata, aí eu fiquei boa, aí vim me embora, vim pra casa. O papai falou com o pajé e disse que ia me trazer, o pajé disse que eu não ia mais passar mal, aí ele ensinou um remédio pra minha mãe fazer em casa, aí eu me tratei (D. Dedé, agosto de 2013). Nesse relato de dona Dedé percebe-se que o contato com o Curupira provoca uma investida do não-humano no momento em que este ser, que também é considerado um Karuwara, tenta levá-la para seu espaço. O Curupira é considerado pelos Tembé como o mais forte no que se refere a adoecimento das crianças no mato. Isso pode ser visto no relato acima, devido à necessidade de seis pajés terem que atuar com a finalidade de curar a pessoa adoecida e trazer suas características físico-psicológicas humanas. O relato abaixo apresenta um exemplo de como o Curupira possui total domínio de seu espaço: 286 • Revista Estudos Amazônicos bem, aí eu me casei, construí a minha família e tive os meus meninotes. Assim, um tava com sete ano e o outro tava com seis ano, aí o que tava com seis ano, nós tava no roçado trabalhando, já que isso era na cabeceira do marizeiro. Aí nós tava lá trabalhando, aí ele disse: mamãe nós vamo ali pegar e juntar umas frutinhas – que a gente chama de camapu no roçado –, aí ele andou, aí de repente não escutei mais barulho do menino. Eu fiquei agoniado, procurando ele, olhando, chamava: João vem cá? João vem cá? Aí nada dele aparecer! Aí o meu filho mais velho se encostou e disse: mamãe ele desapareceu, ele não está. Aí eu comecei a chorar, a gritar, a falar e nada. Meu filho, vai dizer pra minha gente que meu filho desapareceu, pra eles virem aqui, aí eles veio assim na beira do rio, chamou a avó, o avô, a madrinha dele, e também tinha um rapazinho que ele era pajé e chamavam Antônio pra ele. Aí eu falei assim: tragam um pajé aqui pra vim dizer, pra nós saber que fim deu o João. Aí ele foi, aí ele disse: você crê em pajé? Eu disse: eu creio, porque o que aconteceu comigo já é pra mim ter crença no pajé, né? Aí ele chegou comigo e disse: o seu filho tá dormindo, tá adormecido por aí. Mandou eu me calar, eu me calei! Começou a rezar, a chamar, chamar pelo nome dele rezando, aí depois ele mandou eu chamar pelo nome dele, depois que terminou a reza, aí eu chamei, quando ele respondeu foi dando uns grito, chorando, aí eu disse: meu filho onde é que tu estás? Aí ele disse: mamãe o que Revista Estudos Amazônicos • 287 aconteceu comigo? Aí eu disse não, aí eu posso pregunta o que aconteceu com você porque você não tava aqui? Ele disse não, eu tava ali e comecei a brincar duma brincadeira, me deu um sono, uma soneira, aí eu fiquei dormindo, eu ouvi a senhora tá me chamando, mas não podia responder, eu tava adormecido, aí o pajé falou: olha, sabe o que tava acontecendo? A Curupira tava querendo levar teu filho pro mato, roubar a sombra dele e levar. Dessa hora em diante o menino apareceu, nós botemo pra frente e viemo simbora. A Curupira rouba a sombra porque ela se engraça da criança, da pessoa, como diz o pajé, a criança fica invisível, tá vivo, mas tá longe, tá na mata, tá separado dos outros (D. Dedé Tembé, agosto de 201321). As presenças destes seres também são verificadas em grupos de nãoindígenas, na região do nordeste paraense. Em comunidades ribeirinhas, na região do nordeste amazônico, tem-se a presença de entes conhecidos como “encantados”, os quais, no geral, são invisíveis aos humanos não especialistas, menos aos olhos de pajés e rezadeiras. Tais seres podem aparecer em lugares e momentos específicos, assumindo, em cada caso, denominações diferentes. Estão no mar, nas baías, nos lagos e nos rios e possuem formas zoomórficas, ligados às espécies que existem no ambiente. Neste caso, são vistos sob uma subjetivação humana, que em diversas situações se apresentam como pessoa amiga, um parente próximo, a mulher, o marido, um filho. Considera-se, também, a representação de interlocutores, os quais afirmam que quando os invisíveis se incorporam num pajé ou numa pessoa comum de quem se agradam e 288 • Revista Estudos Amazônicos que desejam tornar pajé. Este escolhido será entre o grupo, seja indígena ou como no caso acima, ribeirinhos, o indivíduo com mais habilidade nas relações com não-humanos, visto que não adoece no contato22. O reconhecimento de elementos de um contexto sócio-simbólico como determinante na gênese e na reprodução da condição saúde-doença, que emerge como um avanço no conhecimento da saúde coletiva, mostrase simbolicamente representado em bases coercitivas, vistas no adoecimento e na consequente adoção ou rejeição de procedimentos de cura23. Portanto, a atuação do pajé mostra-se relevante, devido ser ele o mais habilidoso para transitar no espaço dos karuwaras, falar com estas e se alimentar junto desses outros sem que seja acometido por adoecimentos e, se adoecer, conhecer os caminhos de cura, e dessa maneira evitar que sua sombra possa ser levada, considerando a realidade das aldeias Tembé. Os Tembé, assim como os Guajajara, apresentam quatro tipos de Karuwara: os “criadores ou heróis culturais; os donos das florestas e dos rios; os espíritos dos humanos mortos; e os espíritos de animais” 11, p. 107. Esses habitam os níveis e espaços da cosmografia Tembé. Existem três níveis e quatro espaços na cosmologia Tembé, sendo que cinco desses ambientes são controlados pelos Karuwaras. Estes seres, em seus espaços, caçam, pescam e se organizam como os Tembé fazem nas aldeias. Uma forma de pensar a cosmografia Tembé pode ser a seguinte: 1) o nível do céu mais alto, que é o lugar de Maíra, que pode ser entendido, também, como o lugar de Tupã e/ou até o Deus cristão, além de ser o local para onde vão os guerreiros que lutaram pelo grupo; 2) o nível das estrelas, da lua e do sol é o local onde ficam os espíritos que não alcançam o nível de Maíra – este fica abaixo do céu de Maíra; 3) o nível terreno, onde fica o espaço da aldeia e o local da residência dos humanos, que se estende para suas roças, somando-se, ainda, as áreas urbanas; também no nível terreno o espaço do mato, que é controlado pelos donos do mato Revista Estudos Amazônicos • 289 (Curupira e Matim), por plantas e animais e, por fim, o espaço da água, controlado pela Mãe D’água e demais seres aquáticos. Os Tembé afirmam que quando o indivíduo morre o Karuwara de seu corpo físico pode ter dois lugares de morada. Segundo Pedro Teófilo, “quando o cara tem karuwara ruim, não ajuda ninguém, não merece ir pra lá pra cima, ele fica rodando perto do sol, às vezes volta, os bons sobem para o céu em cima desse”38. Nesse caso, percebe-se que o céu de Maíra, tido como espaço de desejo de todos os Tembé, ou o céu que fica próximo ao céu de Maíra, na altura das estrelas. Os Karuwaras que não alcançam o espaço de Maíra são os mais perigosos, pois quando voltam para as festas que têm cantorias atacam as pessoas que estão desprotegidas, geralmente crianças, grávidas e demais que estejam em momentos rituais, como o Wira’u-haw24. Vale ressaltar que, nesse momento ritual, os preferidos são os jovens iniciados. O Karuwara volta, também e não apenas, para dançar nas festas e se alimentar junto com os pajés nos ritos de iniciação, depois retornando para seu local de morada. Todavia, antes de alcançar este espaço, momento em que fica vagando pelo espaço terreno, esse ser pode atacar os humanos. Isso fica claro na fala abaixo, de Antônio Tembé, sobre a festa do Wira’uhaw e de como estes seres são atraídos: quando o cara tá na festa, não pode ficar saindo para lá e para cá não! É toda hora indo e vindo karuwara. Depois que a festa começa, e os parente começa a cantar, a gente se ficar saindo, pode pegar uma peitada de bicho que tá chegando. O rio, vixe, é perigoso principalmente para criança. As karuwaras carrega mesmo, elas vêm por causa das cantoria e do som do maracá (Antonio Tembé, julho de 2013). 290 • Revista Estudos Amazônicos O relato acima mostra que os Karuwaras, e sua presença em um espaço habitado pelos humanos, podem ser perigosos aos humanos, pois o conflito é o resultado dessa relação quando estabelecida entre não especialistas e este ser não-humano. Tal situação pode ser verificada, também, quanto à relação dos humanos com alguns animais no período do ritual, sendo que algo semelhante acontece entre os índios Guajajara. Os Guajajara Tenetehara veem o Karuwara como: homens e animais, tem espíritos que sobrevivem à morte do corpo. (...). Ambos após a morte do indivíduo tornam-se perigosos e malignos aos Tenetehara, que para controlá-los necessitam da interferência do pajé11. Em diversos rituais, o pajé chama o Karuwara em suas ações de cura e ataque. Entre os Parakanã, os “karowaras” podem ser pensados como agentes patogênicos controlados por feiticeiros25, o que também observei entre os Tembé. Não obstante, essa relação controladora não é constante, como nas observações sobre os Parakanã25. A relação entre Tembé e Karuwara não é pautada apenas pelo conflito, pelas agressões e pelos ataques entre humanos e não-humanos, mas também por conversas, festejos e momentos de harmonia. No entanto, essa última relação fica facultada apenas aos pajés. Segundo Antônio Tembé: na festa do moqueado, os Karuwara vêm pra dançar, eles ficam no salão pulando kae49 com a gente. Por isso que o professor que tava filmando bem no meio caiu. O Karuwara entrou no corpo dele. Só pode Revista Estudos Amazônicos • 291 pular quem sabe cantar, só pode ficar no meio da roda quem sabe o conhecimento39. Percebe-se que na (cosmo)lógica Tembé a presença do ser nãohumano pode ser mediada por aqueles que possuem as habilidades necessárias; do contrário, a relação entre um humano sem habilidades pode causar adoecimento e morte. Nesse sentido, a força do pajé está, também, concentrada em sua habilidade de manter contato com estes seres, seja através de seus cantos, do uso de cigarro de Tawari, das rezas ou do maracá. Este último é um importante instrumento usado pelo pajé para entrar em contato com os habitantes dos níveis e espaços não-humanos. Também fazem uso do maracá os conhecedores e líderes dos ritos26, função exclusiva de homens iniciados. As mulheres e os homens não iniciados, em geral, não podem manipular o maracá. Entretanto, em alguns casos, mulheres e homens velhos acumulam conhecimentos que lhes permitem acessar espaços que são tradicionalmente reservados aos iniciados, como em locais controlados pelos donos controladores. As relações com os donos controladores são estabelecidas entre humanos, entre não-humanos, entre humanos e não-humanos e entre pessoas e coisas27. A Mãe D’água, dona do espaço da água, o Curupira e Matim, donos do espaço do mato, aparecem nos relatos como sendo os principais responsáveis pela maioria dos adoecimentos humanos, que ocorrem em virtude de alguma transgressão cometida. Embora sejam os donos desses espaços, o controle do trânsito nos rios e na mata responde a um conjunto de conhecimentos que são difundidos entre os pescadores e os caçadores, pois principalmente a caça é, antes, uma atividade xamãnica11. Isso, de certa forma, põe o caçador em pé de igualdade com o xamã, pois ele conhece os segredos para se relacionar com os Karuwara dos rios e das matas. 292 • Revista Estudos Amazônicos No caso do Matim há duas classes, uma originária do espaço do mato e a outra que se formou a partir de quebras de tabus durante o parto, momento de construção da humanidade, uma vez que para os Tembé, assim como para um considerável número de sociedades tradicionais da Amazônia, a noção de adoecimento extrapola o corpo, ligando-se, também e talvez apenas, a elementos sobrenaturais. Assim, o adoecimento parece estar condicionado a regras que, quando transgredidas, podem causar (trans)formação de um humano em um Matim. No entanto, o ser de origem humana é um ser menos perigoso quando comparado ao de origem do mato. O Matim originário do mato controla alguns animais e os usa para fazer os transgressores se perderem e até morrerem no mato, o mesmo podendo ser observado em relação à Mãe D’Água A Mãe D’água – comparada a Ywán, categoria nativa para se referir ao dono do rio – é perigosa aos humanos, sendo responsável por grande parte do adoecimento de crianças que tomam banho nos rios e igarapés. Ela rouba a sombra – entendendo sombra como Karuwara e/ou espírito – dos humanos e leva para o fundo das águas. O pajé pode se comunicar com este ser – a Mãe D’água – e ir até o espaço da aldeia do referido sobrenatural para, então, trazer a sombra para seu dono. Neste contexto, a sombra é entendida como uma categoria que se refere ao Karuwara do humano ou o espírito. A vida humana é a combinação de Karuwara mais sua parte física, o que me leva a pensar que a ação da Mãe D’Água (Ywán) transforma a vítima em um Outro, posicionando, nesse acaso, o corpo como a sede da perspectiva28, sendo que essa relação entre seres humanos e não-humanos é perigosa devido ao conflito a que todos os envolvidos estão expostos. Diante disso, os não-humanos possuem instituições, no sentido deleuzeano29. Assim, enquanto na visão ocidental apenas humanos são portadores de instituições, para os ameríndios também os não-humanos possuem instituições, isto é, na visão ameríndia os não-humanos podem Revista Estudos Amazônicos • 293 se apresentar como possuidores de cultura. Tal situação permite refletir sobre a complexidade das relações que podem se estabelecer na sociedade Tembé, ou seja, tais relações podem interferir na produção do corpo. Ao me referir sobre corpo entre os Tembé Tenetehara, considero a seguinte noção: não se trata de uma oposição entre homem e animal realizada longe do corpo e ao longo de categorias individualizantes, onde o natural e o social se autorepelem por definição, mas de uma dialética onde os elementos naturais são domesticados pelo grupo e os elementos do grupo (as coisas sociais), são naturalizados no mundo dos animais. O corpo é a grande arena onde essas transformações são possíveis, como faz prova toda a mitologia sulamericana que deve, agora, ser relida como histórias com um centro: a ideia fundamental de corporalidade30. É elucidativa, também, a noção de corpo difundida entre os Ywalapíti que enfatizam a necessidade de o corpo passar, constantemente, por processos intencionais de fabricação, os quais ocorrem por constantes mudanças16, daí o intenso cuidado para o fortalecimento do corpo frente a ataques de sobrenaturais. Esses ataques podem ocorrer em diversos espaços, tanto nos não-humanos, quanto no espaço da aldeia, devido a situações específicas como os períodos de gravidez, momento em que as ações da família da grávida refletem na saúde da criança e da mãe. Entre os Tembé, os Karuwaras podem ser pensados como uma diversidade de espíritos que transitam nos espaços humanos e não294 • Revista Estudos Amazônicos humanos. Por isso, quando as ações xamãnicas são realizadas pelo pajé, ou mesmo por pescadores e caçadores, há o contato entre humanos e Karuwaras. Nesse sentido, tanto o espaço da aldeia quanto em outros espaços, podem se dar as relações que, se realizadas por indivíduos não preparados, ocasionam na perda de sua condição humana, o que irá resultar no adoecimento e, consequentemente, na morte deste. O contato entre humano e Karuwara, na maioria das vezes, não causa adoecimento ao especialista, pois, como fica claro na fala de Dona Fátima31, o pajé mostra que “se for do bom ele vai lá e traz, ou então ele tem uns poder que faz ela devolver a sombra da criança” (entrevista, julho de 2013). Neste caso, pode-se considerar que o pajé possui habilidades para lidar com os Karuwaras no que diz respeito, inclusive, a seu trânsito, situação que mostra uma certa coesão com povos como os Assurini do Tocantins. Isso porque os pajés são controladores dos sobrenaturais, os quais são considerados agentes patológicos na cosmologia desse grupo13. Outra categoria de Karuwara pode ser percebida no entendimento e debate sobre a condição de morte e post-mortem entre os Tembé, seja morte de humanos e/ou animais. O momento da morte é a separação entre o corpo material e a Karuwara, por isso os animais também possuem Karuwaras. Estas últimas são intensamente perigosas para os humanos, o que torna os animais encontrados mortos sinais de mau presságio. Desta forma, geralmente, respeita-se o corpo do animal, visto que o Karuwara dele pode vir a atacar. Sobre isso, afirma Pedro Tembé: quando a gente mata porco ou outro bicho, não é bom que fique, que porco de casa, cachorro e outros bichos de casa, fique comendo. A mulher buchuda só pode comer se a gente der permissão. É tipo o espírito dos bicho que panema32 a gente. Mulher Revista Estudos Amazônicos • 295 perde o bebê, o caçador não acerta mais caçar. O cara se perde atoinha no mato41. Na concepção Guajajara Tenetehara, tropeçar em corpos de animais mortos pode ter como consequência o ataque do Karuwara, tanto aquele que tocou no corpo do animal quanto o seu familiar. Alguns pajés controlam os Karuwaras de animais como o do sapo, considerado um dos Karuwaras mais fortes11. O mesmo se percebe em relação aos Tembé, mas o cuidado no que tange à lida com animais mortos – ou mesmo vivos – não se dá nem com todas as espécies, nem em qualquer momento e, principalmente, o local onde ficam depositados os restos de carnes e ossos, pois se for mantido o contato destes com instrumentos de caça os mesmos podem adquirir a condição de panema. No geral, os animais que representam maior perigo aos humanos são as espécies consideradas grandes predadoras ou as presas mais comuns dos humanos, como a onça e macaco16; o primeiro, um predador e o segundo, uma presa. Vale destacar que dentre os sobrenaturais, Maíra é considerada o mais forte dos Karuwaras e vive no seu local de morada eterna. Por vezes, percebi que alguns Tembé chamaram Maíra de Tupã e até, na tentativa de ilustrar ainda mais suas explicações, compararam com o Deus cristão. Ainda podemos definir Karuwara da seguinte forma: os Tenetehara se referem aos sobrenaturais pela designação genérica de karowara, porém distinguem pelo menos quatro categorias: criadores ou heróis culturais, a quem atribuem a criação e transformação do mundo; os donos das florestas e das águas dos rios; os azang, espíritos errantes dos mortos; espíritos de animais. Na mitologia são 296 • Revista Estudos Amazônicos descritos como homens de imenso poder sobrenatural. Viveram algum tempo na terra, que abandonaram pela residência eterna na ‘aldeia dos sobrenaturais’ (karowara-nekwahawo)11 p. 107. Nas festas de iniciação, os Karuwaras são atraídos pela fumaça do cigarro de Tawari ou pelo som do maracá, que, por sua vez, é o instrumento usado pelos xamãs na intermediação com os diversos espaços. Os homens e as mulheres não podem utilizá-lo16 e servem como principal instrumento em dias de realização das cantorias. Em conversa com Antônio Tembé sobre a festa do Wira’u-haw, o mesmo falou do trânsito dos Karuwaras e de como eles são atraídos: quando o cara tá na festa não pode ficar saindo para lá e para cá não! É toda hora indo e vindo Karuwara. Depois que a festa começa, e os parente começa a cantar, a gente se ficar saindo, pode pegar uma peitada de bicho que tá chegando. O rio, vixe, é perigoso principalmente para criança. As Karuwaras carregam mesmo, elas vêm por causa das cantoria e do som do maracá33. Os Tembé consideram Maíra um Karuwara; porém, ele seria também o herói criador. Para pessoas como seu Pelé Tembé34 “é um espírito mal e forte, a gente sabe que ela pode fazer mal” (entrevista, outubro de 2013). Apesar de ser um herói nos causos Tembé, sua condição de outro a põe em situação de inimigo. Portanto, este ser é um não-humano e, como o restante, considerada perigosa. De certa forma, Maíra é inserida nesta reflexão sobre a categoria Karuwara devido possuir subjetividade na lógica do grupo. Revista Estudos Amazônicos • 297 Nas narrativas Tenetehara, os Karuwaras aparecem como homens dotados de imenso poder11. Quando um indivíduo morre, o seu Karuwara é liberado da parte física e vai para o céu de Maíra, se este tiver sido um guerreiro forte. No entanto, se não tiver ajudado o povo, fica na altura das estrelas esperando para retornar à Terra e atacar os humanos quando invocada. Constantemente, são chamados pelo pajé, pelas rezadeiras e pelos cantos para interagir com os humanos. Mesmo reconhecendo que a categoria Karuwara permite polissemia, ou seja, apresenta sentidos diversos, a semântica da palavra entre os Tembé do Guamá assemelha-se ao espírito, considerando-se a concepção ocidental. Em muitos casos, os Karuwaras atacam os humanos por conta de transgressões como pescar em horários inapropriados, que são momentos liminares. Isso pode intersubjetividade 35 ser considerado perigoso devido à presente nos corpos de animais, encantados e humanos. Karuwara é aqui entendida como a subjetividade que perde sua moradia terrena (corpo) e, por isso, não mora no espaço dos humanos. Da mesma forma, o Curupira, o Matim (as duas espécies: tanto a do mato, quanto a que tem origem humana) e os animais que podem em algum momento revelar sua essência humana, como os pássaros (nambu é um dos principais) por conta de suas “forças” – habilidade antropomórfica, além de causar adoecimentos – são considerados Karuwaras. Os Tembé da região do Guamá apresentam essa categoria nativa para se referir a sobrenaturais. Esse pode ser de parentes que morreram – refiro-me aos que alcançaram o céu de Tupã e Maíra, ou os que ficaram no nível abaixo do céu de Maíra –, além dos que foram levados para o espaço das águas e os levados para o espaço da mata (chamados, também, de encantados), os donos, espíritos Mestres36 e espíritos de animais. Ambos com possibilidades de ser agentes patogênicos ou auxiliares em 298 • Revista Estudos Amazônicos curas. Sempre conservando, entretanto, sua condição de afins em potencial, controlados por especialistas (caçadores, pescadores, mas principalmente pajés) em determinados momentos, mostrando-se como um elemento fundamental para entender o universo simbólico dos Tembé. Artigo recebido em agosto de 2015 Aprovado em setembro de 2015 NOTAS 1CAMARGOS, Q. F.; DUARTE, F. B. Evidências da Estrutura Bipartida do Vp na Língua Tenetehára. In: SILEL, 1, 2009, Uberlândia. Anais. Uberlândia: EDUFU, 2009. 2COELHO, J. R. L. Cosmologia Tenetehara Tembé: (re)pensando narrativas, ritos e alteridade no Alto Rio Guamá – PA. Dissertação de Mestrado, Programa de PósGraduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas, 2014. 3Conselho Indigenista Missionário (Idem). 4Categoria nativa que se refere a seres humanos não quilombolas e não indígenas, que residem fora da Terra Indígena. 5ARNAUD, E. O Direito Indígena e a Ocupação Territorial: o caso dos índios Tembé do Alto Guamá (Pará). Rev. do Museu Paulist. São Paulo: USP, v. 28, s.n., 1984, p. 221-233. 6 HURLEY, H. J. Relatório Apresentado sobre sua Viagem de Inspeção aos Índios do Guamá e Gurupi. Belém, p. 15-38. 7 ARNAUD, 1984, p. 331. 8ALONSO, S. Os Tembé de Guamá: processo de construção da cultura e identidade Tembé. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. 9Categoria nativa difundida entre os Tembé quando se referem a humanos não quilombolas e não indígenas COELHO, J.R.L. Cosmologia TeneteharaTembé. Revista Estudos Amazônicos • 299 10SALES, Noêmia P. Pressão e Resistência: os índios Tembé-Tenetehara do Alto Rio Guamá e a relação com o território. Belém: UNAMA, 1999. 11WAGLEY, C.; GALVÃO, E. E. Os Índios Tenetehara: uma cultura em transição. Rio de Janeiro: MEC/Serviço de Documentação, 1961. 12LARAIA, R. de B. Tupi: Índios do Brasil Atual. São Paulo: FFLCH/USP, 1987. 13ANDRADE, L. M. M. O Corpo e o Cosmos: relações de gênero e o sobrenatural entre os Asurini do Tocantins. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 1992. 14ZANNONI, C. Mito e Sociedade Tenetehara. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual Paulista, 2002. 15GARCIA, U. F. Karawara: a caça e o mundo dos Awá-Guajá. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010. 16CASTRO, E. V. de. A Inconstância da Alma Selvagem e outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2002. 17NIMUENDAJU (1915) citado por ZANNONI, C. Mito e Sociedade Tenetehara. 18“Maíra vive, hoje em dia, na grande planície de Ikaiwéra, inteiramente desprovida de árvores. Ela está situada a oeste das antigas moradas dos Tembé, atrás das cabeceiras do Gurupí e do Pindaré, mas uma única versão afirma que está à leste. Aí vive Maíra inteiramente só em uma grande casa. Ele parece branco e usa veste comprida. Ao redor da casa só crescem flores. Os pássaros aí falam com voz humana e chamam pelo nome as pessoas que chegam. A jandaia e a maracanã fazem seu ninho no chão porque não existem árvores e pela mesma razão o mel está nos cupins. Perto da casa de Maíra está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem magnificamente, para seu sustento diário necessitam apenas de umas pequenas frutas semelhantes a cuia; sua plantação não necessita cuidados: ela se planta e se colhe sozinha. Maíra e seus companheiros no campo de Ikawéra têm o nome de ‘Karuwára’. Quando envelhecem, não morrem mas tornam-se novamente jovens. Cantam, dançam e celebram festa sem cessar. Da última aldeia Tembé no cajuapara até os Karuwara a viagem dura – dizem – um mês. Antigamente, os Tembé procuravam, muitas vezes, chegar a Ikawéra, mas todas as alternativas falharam. Os que já tiveram contato com o outro sexo nunca mais poderão chegar lá. Ou não bastam os meios de sustento ou no inverno o campo pelo qual fazem a viagem, fica inundado ou no verão o solo é de tal modo aquecido pelo sol que não podem pisar. Muitos viajantes que queriam alcançar os karuwára levaram, de repente, pedras no lugar de sua rede ou cupins nas costas ou toda sua bagagem desaparecia subitamente ou deviam sempre voltar novamente para procurá-la. Dizem, porém, que em tempos muito remotos, várias pessoas foram bem sucedidas nessa viagem. Uma vez, um grupo de Tembé se dirigiu para a terra dos Karuwára apenas para aí aprender a cantar, naquele tempo eles não sabiam. Pintado, enfeitado com penas, chocalho e cetro (araruwaia) ele subiu ao mais alto galho de um pau d’arco da aldeia e começou a cantar. Os Tembé derrubaram a floresta à volta do pau d’arco, limparam o lugar e se reuniram novamente para aprender o canto. Antes, porém, deixou cair na terra seus enfeites. Os Tembé pegaram-nos, tomando-os por modelo dos enfeites de dança que ainda hoje usam” (NIMUENDAJÚ, 1915 apud ZANNONI, C. Mito e Sociedade Tenetehara.). 300 • Revista Estudos Amazônicos 19“Teríamos então, à primeira vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa de tipo espiritual comum aos seres animados, e uma corporal variável característica de cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa trocável, descartável. A noção de ‘roupa’ é, com efeito, uma das expressões privilegiadas da metamorfose – espíritos, mortos e xamãs que assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em animais –, processo onipresente no ‘mundo altamente transformacional’ (RIVIÈRE) proposto pelas culturas amazônicas” (CASTRO, E. V. de. A Inconstância da Alma Selvagem, p. 351). 20Liderança feminina na aldeia Pacoti. 21Esse relato me foi cedido por Jeane Palheta. Faz parte de um vídeo que serviu como fonte para sua monografia de especialização no Instituto Federal do Pará. Portanto, tive acesso a algumas de suas entrevistas. 22MAUÉS, H. O Perspectivismo Indígena é somente Indígena? Cosmologia, religião, medicina e populações rurais na Amazônia. Dossiê – Amazônia: Sociedade e natureza. Londrine: v. 17, n. 1, 2012, p. 33-61. 23GARNELLO, L.; BUCHILLET, D. Taxonomias das Doenças entre os Índios Baniwa (Arawak) e Desana (Tukano Oriental) do Alto Rio Negro (Brasil). Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: ano 12, n. 26, jul./dez. 2006, p. 231-260. 24Termo utilizado para se referir ao terceiro momento do Ritual da Moça, a festa do moqueado. 25FAUSTO, C. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismos na Amazônia. 1. ed. São Paulo: EDUSP, 2014, 587 p. 26ZANNONI, C. A Voz dos Espíritos: uma abordagem sobre o maracá em sociedades indígenas do Maranhão. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL (RAM), IX, 2011, Curitiba. Anais. Curitiba: RAM, 2011. 27FAUSTO, C. Donos Demais: maestria e domínio na Amazônia. MANA. Rio de Janeiro: v. 14, n. 2, oct. 2008, p. 329-366. 28CASTRO, E. V. de. Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio. MANA. Rio de Janeiro: v. 2, n. 2, 1996, p. 115-144. GONÇALVES, M. A. O Mundo Inacabado: ação e criação em uma cosmologia amazônica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. 424 p. 29DELEUZE, G. Instintos e Instituições. In: ESCOBAR, C. H. (org.). Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. 30SEEGER, A; DAMATTA, R.; CASTRO, E. V. de. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro: n. 32, 1979, p. 2-19. 31 Dona Fátima é uma parteira que viveu entre os Tembé do Gurupi durante trinta anos. Atualmente, reside em um bairro do município de Capitão Poço/PA. 32Em suma, pode ser entendido como azar, ou seja, nas empreitadas de caça, tanto caçador quanto seus instrumentos de caça não conseguem obter sucesso nas caçadas (COELHO, J. R. L. Cosmologia Tenetehara Tembé). 33Antônio Tembé, em entrevista, julho de 2013. 34Seu Pelé é morador da Aldeia Sede, local onde nasceu e constituiu família, sendo considerado uma das lideranças do Alto Rio Guamá. Revista Estudos Amazônicos • 301 35Levo em conta a categoria de análise proposta por Castro (A Inconstância da Alma Selvagem) que considera intersubjetividade em que o Eu e o Outro como conteúdo da Forma-Sujeito. 36Verificar em CASTRO, E. V. de. A Inconstância da Alma Selvagem. 38Pedro Teófilo é cacique da aldeia Itaputyr e uma das lideranças responsáveis pelo fortalecimento da festa da Moça no Alto Rio Guamá. 39Entrevista feita em julho de 2013. Antônio Tembé é cantador e conhecedor das regras do ritual de passagem da moça. 40Nome da dança difundida entre os Tembé. O kaekae é a categoria nativa quando os Tembé se referem a dança que embalada pelos cantos e o maracá. 41Pedro Tembé é cacique da aldeia Ituaçu. Essa fala foi feita em entrevista em julho de 2013. 42Mulher indígena mãe de Ita. Itaputyr é aluna do curso de odontologia na Universidade Federal do Pará. 302 • Revista Estudos Amazônicos