Karuwara: observando sobrenaturais entre os
Tembé do Guamá
José Rondinelle Lima Coelho
Resumo:
A análise é resultado de pesquisa feita entre os Tembé, grupo Tupi
que vive próximo ao rio Guamá, no nordeste do Estado do Pará.
No campo, busquei observar momentos específicos como ritos de
passagem, atividades de caça e relação dos Tembé com os diversos
espaços em que eles estão inseridos. Esse grupo Tupi mantém
intensas e complexas relações de sociabilidade com não-humanos,
que nas aldeias da região são chamados de Karuwara. Na
cosmologia do grupo, estes seres estão ligados, entre outras coisas,
à saúde e à atividade de caça. Nesta perspectiva, o texto é uma
reflexão acerca da percepção e das formas de interação dos Tembé
com os seres Karuwara.
Palavras-Chave: Cosmologia, Karuwara, Tembé.
Abstract:
The analysis I propose is the result of survey of the Tembé, Tupi
group, who lives near the Guamá River in northeastern Pará state.
In the countryside, sought to observe specific times as rites of
passage, hunting activities and relationship with the Tembé the
various spaces in which they are inserted. This Tupi group
maintains intense and complex sociality relations with nonhumans,
that in local villages, are called Karuwara. In the cosmology of the
group, these beings are linked, among other things, health and
hunting activity. In this perspective, the text is a reflection on the
Revista Estudos Amazônicos • vol. XIII, nº 1 (2015), pp. 275-302
perception and forms of interaction of Tembé with Karuwara
beings.
Keywords: Cosmology, Karuwara, Tembé.
O controle dos meios de produção envolve o
controle do sobrenatural e a produção concerne
tanto a objetos quanto a corpos e pessoas.
(FAUSTO, C. Inimigos Fiéis. SP: EDUSP, 2014, p.
336).
Os Tembé e a Pesquisa
Os Tembé Tenetehara fazem parte da família linguística Tupi-Guarani
do subconjunto IV da referente família, do qual também faz parte os
Guajajara Tenetehara1. Vivem no Estado do Pará e ocupam as seguintes
áreas: um primeiro grupo, que são os Tembé do Gurupi, localiza-se na
margem oeste do rio Gurupi, na Terra Indígena Alto Rio Guamá; o
segundo grupo são os Tembé do Guamá, também residentes na Terra
Indígena Alto Rio Guamá, cujas aldeias ficam às margens desse rio; um
terceiro grupo está na Terra Indígena Turé-Mariquita, no município de
Tomé-Açu (PA); um quarto grupo fica sobre o antigo território dos
Turiwara; e o quinto grupo, ocupante da área do Jeju e Areal, localiza-se
nas proximidades do município de Santa Maria do Pará (PA)2.
Ressalto que os dados para as reflexões desse texto fazem parte de um
longo trabalho de campo entre os Tembé que residem às margens do rio
Guamá, especificamente nas aldeias Sede, Ituaçu e Pinawa, locais onde fui
276 • Revista Estudos Amazônicos
professor da Educação Básica no primeiro semestre de 2008. Assim, os
dados utilizados nessa reflexão são acúmulos de entrevistas, anotações em
cadernos de campo, vídeos e conversas registradas nos últimos sete anos.
No entanto, especificamente para este texto, lanço mão de dados
coletados no decorrer do ano de 2013.
Meus contatos com os Tembé do Guamá remontam ao ano de 1998,
período em que minha família começou a alojar em um dormitório, na
Cidade de Capitão Poço (PA), integrantes do CIMI3 que buscavam chegar
às aldeias da margem do rio Guamá. Estas aldeias ficam a,
aproximadamente, quinze quilômetros da sede do referido município, o
que, consequentemente, significa intenso trânsito dos Tembé entre a Terra
Indígena e o meio urbano de Capitão Poço. Quando passavam no
município de Capitão Poço, os integrantes do CIMI estavam
acompanhados por alguns indígenas, com os quais tive a oportunidade de
conversar sobre diversos assuntos relacionados a seu povo.
Portanto, escrever sobre os Tembé representa, também, um retorno a
alguns momentos de minha vida, pois desde a infância pude ouvir histórias
do envolvimento desse povo indígena em conflitos para defender seu
território, em situações de debate sobre o fortalecimento de sua
identidade, além de presenciar suas idas e vindas à cidade pelos mais
diversos motivos, seja para estudar, buscar auxílio junto ao Estado e até
manter relações comerciais. Contudo, foi apenas quando pude conviver
mais intensamente entre eles que tive a oportunidade de observar sua
cosmologia, atuando como professor em escolas na Terra Indígena Alto
Rio Guamá, no primeiro semestre de 2008, conforme descrito
anteriormente.
Estes
momentos
me
proporcionaram
reflexões
importantes sobre a relação do grupo com a alteridade, além de
compartilhar as regras de residência, a relação destes com karawias4, mas,
principalmente, quando pude observar a relação que mantêm com os seres
não-humanos, como o Karuwara.
Revista Estudos Amazônicos • 277
Os Tembé e sua trajetória no Guamá
Os Tembé do Guamá passaram por um processo de migração
impulsionado pela ocupação ocidental da região Nordeste do Brasil. Eles
eram habitantes do alto Pindaré até meados do século XIX, no Estado do
Maranhão, momento em que se espalharam pela região nordeste do Pará.
A maioria dos Tembé passou, então, a ocupar as margens dos rios Gurupi,
Guamá e Capim, localizados no Estado do Pará5. O grupo que residia na
margem esquerda do rio Guamá, vivia na aldeia São José da Cachoeira
Grande6, tendo sido transferidos para o lado direito do referido rio na
década de 1940, momento em que o Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
demarcou uma área a ser ocupada pelos “Tembés, Timbiras, Urubus e
Guajás”7.
Vale ressaltar que os Tembé sempre viveram em meio a conflitos por
sua área de ocupação, seja contra fazendeiros, posseiros e até o próprio
Estado. No início da década de 1990, ainda na busca pela concretização
dos direitos garantidos na Constituição de 1988, os Tembé deram início
ao processo de luta – que Sara Alonso chamou “Reorganização e
Revolução” – marcado por intensas atividades junto ao Estado, momento
de retirada dos posseiros da então Reserva Indígena e, mais ainda,
momento de união e fortalecimento dos Tembé8.
Atualmente, os Tembé do Guamá possuem suas aldeias na margem
direita do rio Guamá, na Terra Indígena Alto Rio Guamá. São treze as
aldeias nessa área, quais sejam: Pinawa, Ituwaçu, Pirá, Jacaré, São Pedro,
Pacoti, Ipijon, Yarapé, Frasqueira, Itaputyr, Zawaruhu, Tawari e Sede. Esta
última, local onde faço grande parte das pesquisas que desenvolvo entre o
grupo.
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A Sede é formada pela família extensa de Naldo Tembé, o qual é o
cacique da aldeia. Ituaçu e Pinawa estão politicamente ligadas à Sede, pois
as lideranças destas aldeias são tios, irmãos e primos de Naldo Tembé.
Desta maneira, posso afirmar que as aldeias Sede, Ituwaçu e Pinawa
representam uma família extensa: a de Naldo Tembé. Esse tipo de situação
pode ser verificado na relação estabelecida entre as demais aldeias que
compõem os Tembé da região do Guamá. No entanto, chamo atenção
para o fato de que este artigo não irá se prender a verificar regras de
parentesco, ou mesmo a história do grupo. As breves reflexões abaixo são
uma contribuição para a etnologia Tembé, pois trazem dados e discussões
sobre a cosmologia Tembé Tenetehara, uma temática cara àqueles que
ousam tratar do assunto, mas enriquecedora para os que o fazem, tanto
por conta do crescimento antropológico, quanto por conta do
crescimento pessoal.
Reflexões sobre a presença de sobrenaturais entre os Tembé
Os grupos indígenas das terras baixas da América do Sul possuem um
imbricado sistema de relação com seres humanos e não-humanos – o nãohumano pode ser um animal, planta, pedra e sobrenaturais que, na lógica
ameríndia, possuem intencionalidades, o que mostra o entendimento mais
complexo sobre os limites da humanidade16 – que são eles: outros
indígenas, karawia9, quilombolas, plantas, animais e/ou espíritos. No que
toca à relação que os Tembé estabelecem com os não-humanos,
entendidos como os seres que habitam os diferentes espaços por onde
esses índios transitam, mas que nem sempre são vistos, destaca-se a
Karuwara.
Nas aldeias próximas ao rio Guamá, os Tembé praticam atividades de
caça e pesca10, as quais, de certa maneira, permitem que eles mantenham
relações com sobrenaturais, como os Karuwara. Nestas aldeias, quem
Revista Estudos Amazônicos • 279
detêm o conhecimento sobre o sentido da categoria Karuwara, são os
velhos. Os mais jovens sabem que existe essa palavra e que ela é utilizada
para definir não-humanos, mas dificilmente lançam mão do uso dessa
categoria. Pelo menos durante o período em que tive a oportunidade de
intensificar minhas idas às aldeias do Guamá, poucas vezes ouvi os jovens
do grupo utilizando o termo.
A categoria Karuwara é difundida entre os povos Tupi. Os Parakanãs
lançam mão do termo Karuwaras, mas não para referir-se propriamente a
espíritos, mas a agentes que causam doenças controladas por feiticeiros –
os moropyteara; o mesmo se observa entre os Asurinis, pois nesse último
caso os xamãs controlam os karowaras25. Entre os Tembé, assim como
entre os Parakanãs, o Karuwara pode entrar no corpo de um humano,
levando-o ao adoecimento, situação contornada, na maioria das vezes,
quando o especialista retira, através do uso do maracá, cantos e água (neste
caso, coloca-se uma brasa para tirar a força da água, visto que toda água é
de domínio da Mãe D’água) o ser que entrou, por iniciativa própria ou por
intermédio de um pajé, no corpo de um determinado indivíduo. Verifiquei
que o ato de ir ao rio ou ao mato em horários inapropriados pode ser
momento de intenso perigo, visto que há a chance do ataque de nãohumanos contra humanos. Como afirma Itapuyr Tembé, ao explicar a
necessidade de passar alho no corpo de sua filha: “a gente passa alho para
proteger. A Mãe D’água não chega perto por causa do cheiro. Aqui toda
criança faz isso. A gente evita ir seis, meio dia e seis da tarde”. Nesse caso,
os momentos inapropriados são os instantes de liminaridade, ou seja,
situações de indefinição de o que é madrugada ou manhã, manhã ou tarde
e tarde ou noite.
Para refletir sobre o assunto do Karuwara friso que será relevante
consultar os trabalhos de autores como Wagley e Galvão11, Laraia12,
Andrade13, Zannoni14 e a pesquisa de Garcia15. No entanto, serão as
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pesquisas de Wagley e Galvão11 e Zannoni14 sobre os Guajajara
Tenetehara, produzidas em momentos diferentes da trajetória desse grupo
e em lugares com realidades antropológicas distintas, mas que trarão
salutares dados etnográficos para ajudar a traçar reflexões sobre a
cosmologia Tembé. Também é elucidativa a análise da cosmologia AwáGuajá feita por Garcia15, a partir do estudo da atividade de caça entre esses
índios. Destaco tais autores, visto que darei atenção maior aos Guajajara e
aos Awa-Guajá, que estão em uma realidade social e geográfica bem
próxima a dos Tembé, na região nordeste da Amazônia, apesar de serem
grupos distintos. Na tese de doutoramento de Garcia,15 sobre os AwáGuajá, os karawaras são assim definidos:
são seres ou forças que vivem nos patamares
celestes e atuam na terra de diversas maneiras. São
caçadores infalíveis ao mesmo tempo que espíritos
auxiliares no xamanismo; são destino de todo ser
humano (awá) após a morte, ao mesmo tempo que
possuem
uma
existência
independente,
desvinculada da morte terrena. São também caça
(pois estão relacionados diretamente a essa
atividade), canto (por serem cantores magníficos), e
cura
(por
serem
a própria
substância
do
xamanismo). Passo aqui, a me referir aos karawara
enquanto seres, pois assim aparecem na maior parte
das definições das pessoas com quem conversei,
embora tal ideia (como outras do mundo AwáGuajá) logre polissemia.
O Karuwara é, então, um ser sobrenatural passível de agenciamento, ou
seja, capaz de interagir com humanos, seja nos níveis não-humanos ou até
Revista Estudos Amazônicos • 281
nos níveis controlados por humanos. No entanto, ressalto que, em ambos
os casos, a relação dar-se-á em momentos específicos, como atividades de
caça, rituais de passagem ou ritos fúnebres. Porém, observar o Outro
como ele mesmo se vê é uma situação que pode ocasionar perigo àquele
que não possui as habilidades necessárias, pois tal ação é executada com
exatidão e segurança apenas pelos especialistas, seja o pajé e/ou caçadores
e, em alguns casos, pescadores.
Quando se dá o encontro entre humanos e Karuwaras, e aquele não
possui as habilidades necessárias ou está em situação de vulnerabilidade, o
indivíduo pode tornar-se outro e ir morar com seus pares 16. Neste caso,
percebe-se que para os Tembé, assim como para grande parte das
sociedades ameríndias, pensar a relação dessas sociedades com a ecologia
é considerar a cultura como natureza humana. A partir daí, a compreensão
de que Karuwara é um afim em potencial do humano torna-se uma ideia
compreensível no universo simbólico do grupo.
Wagley e Galvão11 e Garcia15 estudaram, respectivamente, os Guajajara
na década de 1940 e os Awá-Guajá nos anos 2000. Mesmo em períodos
distintos e grupos diferentes, os autores apresentam reflexões que são
coesas com o que os Tembé pensam sobre os Karuwaras. Resolvi, também,
levar em consideração os apontamentos de Nimuendajú17 – que esteve
entre os Tembé do Gurupi no início do século XX – em uma transcrição
de texto que aparece na pesquisa de Zannoni18.
A interpretação do texto de Nimuendajú18 permitiu concordar sobre o
sentido da categoria Karuwara, apontado por esse pesquisador em seus
dados. Retomando Garcia10, ao falar sobre a noção que os Awá-Guajá
possuem, este aduz que:
podemos afirmar que a literatura etnológica, a
depender
282 • Revista Estudos Amazônicos
do
contexto
etnográfico,
sempre
apresentou a idéia do karowara (para utilizarmos os
termos de Laraia) a partir de duas definições, ora
associados ao feitiço e agentes patogênicos nocivos
à saúde humana, causadores de doenças, ora
associados a entidades do tipo ‘xamã míticos’,
especialista em cura e de uma vida celeste magnífica,
tal como o caso Asurini do Xingu. Entre os Awá, os
karawara parecem ser uma ação (nesse caso de cura,
e não de ataque maligno), ao mesmo tempo que
possuem uma existência enquanto entidades tipo
‘xamãs míticos’. Eles são karawara e eles fazem
karawara.
No caso Tembé, apesar das dificuldades para uma definição que dê
conta da semântica da palavra Karuwara, esta deve ser vista a partir de sua
essência cultural. Neste sentido, o social não pode ser visto como algo que
“se deposita sobre o corpo como sobre um suporte inerte, mas o
constitui”16, assim o Karuwara é construto nativo que se refere a seres com
roupa19 não-humana, mas que em sua essência carrega um espírito, o que
lhe dá o elemento humano e, por isso, passível de interação com os
humanos. Estes seres habitam os diversos níveis e espaços na cosmografia
Tembé. Ressalto, ainda, que sua interação com humanos pode causar
adoecimentos e/ou curas, dependendo de quem se relaciona ou em que
momento isso acontece.
Em conversas com índios Tembé sobre assuntos ligados a parto, ritos,
adoecimentos e caça, percebi que emergiam, timidamente, um conjunto
de termos que serviam para designar não-humanos, o que, de certa
maneira, mostrava-me formas de se compreender o Karuwara. A partir daí
os Karuwaras podem ser pensados como espíritos que residem em espaços
e níveis controlados pelos não-humanos, mas que não ficam isolados e
Revista Estudos Amazônicos • 283
impedidos de se relacionar com os humanos. Os relatos seguintes dão
conta de momentos de intensos conflitos entre humanos e os Karuwaras,
no exemplo a frente representado pelo ser Curupira. Segundo dona Dedé20
(...) ali no São Pedro, tem um guarapé, um braço do
guarapé que fica aqui entre o São Pedro grande e o
velho, tinha uma casa de farinha que a gente
trabalhava tudo junto, então nós tinha um roçado
lá, e uma vez eu fui botar uma mandioca mais o meu
pai, a gente carregava e arrancava, carregava na
cabeça, botava na água. Eu fiquei sozinha lá, aí eu
escutei uma zoada assim grande, olhei pra cima,
assim pro lado, no pé de um itauarizeiro, aí eu não
vi nada, só vi cair uns galinhos e umas folhinhas, e
fiquei assim assombrada, meu cabelo arrepiou, me
deu um arrepio no meu corpo, fiquei com medo do
tronco do pau, pensei que era o pau que ia revirar,
aí eu corri pra um lado e corri pra outro, plantada e
o pau tava em pé direitinho, aí meu pai chegou e
disse: que é que modo que tu tá assim assustada?
Meu pai eu vi uma barulho assim no tronco do
itauarizeiro e eu tô com medo. Ele falou assim: isso
deve ser alguma coisa, mas não é coisa que tu fique
com medo. Ele tava carregando mandioca, e não me
falava nada pra mim não fica com medo, que o
guarapé ficava um pouco distante lá do roçado, né?
Eu fiquei arrancando mandioca, aí quando eu vim,
aí fiquei com uma dor de cabeça, me deu um frio,
eu cheguei em casa e me deitei, não comia e nem
284 • Revista Estudos Amazônicos
bebia, e nem conversava com ninguém, aí a mãe
disse: João, trás uma pajé pra rezar aqui nessa
menina porque ela chegou um pouco doente, não
come, não bebe, não conversa. Pra mim ela tá muito
doente! Aí ele foi, chegou com a pajé, ele rezou e
disse assim: olha, eu não do conta da doença dela,
mas eu vou lhe ensina um senhor que é pajé mais de
que eu, que vai dá conta da doença dela. Então, o
papai preguntou pra ele: e quem é esse homem? Ele
disse: mora um pouco distante daqui, mas é um
senhor que é pajé e ele curou várias pessoas doentes
de vários lugares. Aí o papai foi atrás, aí quando ele
chegou, ele disse que era uma Curupira que tinha
me espantado no roçado, e ela queria me matar,
porque ela queria roubar a minha sombra, a
Curupira. Aí o papai falou assim: o senhor dá conta
de deixa ela boa? Ele disse: eu dou, é eu e mais seis
pajé, aí me botaram numa rede e me carregaram. Eu
fui deitada na rede, que eu não conversava e nem
comia, era uma dor de cabeça incrível, aí cheguei lá,
muita gente disseram porque que ele veio trazer essa
menina pra cá, deixaram de leva ela pro hospital e
trazer pra uns pajé, essa menina vai morrer. Aí a
mamãe começou a fica triste e a chorar, aí eu
perguntava: mamãe, que é que a senhora tem? Num
é nada minha filha, eu tô chorando da tua situação,
não dizia nada pra mim não ficar mais triste. Aí o
pajé fez o trabalho, aí disse assim: ela tá muita
cansada, mas nós tudo junto vamos pedir a Deus
que nos dê força pra alevantar ela, que essa Curupira
Revista Estudos Amazônicos • 285
quer roubar a sombra dela. Aí começou a fazer
remédio, aí eu comecei a me sentir meu corpo, que
eu tava assim ficando mais confortável, tinha já um
ânimo meu corpo, já pensava na minha vida, na
minha mocidade, numa alegria, numa festa. Dizia:
será que eu ainda vou pra festa ou não? Ficava assim
pensando. Aí o pajé preguntava: o que você tá
sentindo? Eu tô sentindo uma melhoria que eu tô
sentindo, porque minha cabeça passou de doer, eu
já como, eu já bebo, eu já converso, eu já escuto. Aí
ele disse que não era pra eu fica com medo que eu
ia fica boa. Aí continuaram a me trata, aí eu fiquei
boa, aí vim me embora, vim pra casa. O papai falou
com o pajé e disse que ia me trazer, o pajé disse que
eu não ia mais passar mal, aí ele ensinou um remédio
pra minha mãe fazer em casa, aí eu me tratei (D.
Dedé, agosto de 2013).
Nesse relato de dona Dedé percebe-se que o contato com o Curupira
provoca uma investida do não-humano no momento em que este ser, que
também é considerado um Karuwara, tenta levá-la para seu espaço. O
Curupira é considerado pelos Tembé como o mais forte no que se refere
a adoecimento das crianças no mato. Isso pode ser visto no relato acima,
devido à necessidade de seis pajés terem que atuar com a finalidade de
curar a pessoa adoecida e trazer suas características físico-psicológicas
humanas. O relato abaixo apresenta um exemplo de como o Curupira
possui total domínio de seu espaço:
286 • Revista Estudos Amazônicos
bem, aí eu me casei, construí a minha família e tive
os meus meninotes. Assim, um tava com sete ano e
o outro tava com seis ano, aí o que tava com seis
ano, nós tava no roçado trabalhando, já que isso era
na cabeceira do marizeiro. Aí nós tava lá
trabalhando, aí ele disse: mamãe nós vamo ali pegar
e juntar umas frutinhas – que a gente chama de
camapu no roçado –, aí ele andou, aí de repente não
escutei mais barulho do menino. Eu fiquei
agoniado, procurando ele, olhando, chamava: João
vem cá? João vem cá? Aí nada dele aparecer! Aí o
meu filho mais velho se encostou e disse: mamãe ele
desapareceu, ele não está. Aí eu comecei a chorar, a
gritar, a falar e nada. Meu filho, vai dizer pra minha
gente que meu filho desapareceu, pra eles virem
aqui, aí eles veio assim na beira do rio, chamou a
avó, o avô, a madrinha dele, e também tinha um
rapazinho que ele era pajé e chamavam Antônio pra
ele. Aí eu falei assim: tragam um pajé aqui pra vim
dizer, pra nós saber que fim deu o João. Aí ele foi,
aí ele disse: você crê em pajé? Eu disse: eu creio,
porque o que aconteceu comigo já é pra mim ter
crença no pajé, né? Aí ele chegou comigo e disse: o
seu filho tá dormindo, tá adormecido por aí.
Mandou eu me calar, eu me calei! Começou a rezar,
a chamar, chamar pelo nome dele rezando, aí depois
ele mandou eu chamar pelo nome dele, depois que
terminou a reza, aí eu chamei, quando ele respondeu
foi dando uns grito, chorando, aí eu disse: meu filho
onde é que tu estás? Aí ele disse: mamãe o que
Revista Estudos Amazônicos • 287
aconteceu comigo? Aí eu disse não, aí eu posso
pregunta o que aconteceu com você porque você
não tava aqui? Ele disse não, eu tava ali e comecei a
brincar duma brincadeira, me deu um sono, uma
soneira, aí eu fiquei dormindo, eu ouvi a senhora tá
me chamando, mas não podia responder, eu tava
adormecido, aí o pajé falou: olha, sabe o que tava
acontecendo? A Curupira tava querendo levar teu
filho pro mato, roubar a sombra dele e levar. Dessa
hora em diante o menino apareceu, nós botemo pra
frente e viemo simbora. A Curupira rouba a sombra
porque ela se engraça da criança, da pessoa, como
diz o pajé, a criança fica invisível, tá vivo, mas tá
longe, tá na mata, tá separado dos outros (D. Dedé
Tembé, agosto de 201321).
As presenças destes seres também são verificadas em grupos de nãoindígenas, na região do nordeste paraense. Em comunidades ribeirinhas,
na região do nordeste amazônico, tem-se a presença de entes conhecidos
como “encantados”, os quais, no geral, são invisíveis aos humanos não
especialistas, menos aos olhos de pajés e rezadeiras. Tais seres podem
aparecer em lugares e momentos específicos, assumindo, em cada caso,
denominações diferentes. Estão no mar, nas baías, nos lagos e nos rios e
possuem formas zoomórficas, ligados às espécies que existem no
ambiente. Neste caso, são vistos sob uma subjetivação humana, que em
diversas situações se apresentam como pessoa amiga, um parente
próximo, a mulher, o marido, um filho. Considera-se, também, a
representação de interlocutores, os quais afirmam que quando os invisíveis
se incorporam num pajé ou numa pessoa comum de quem se agradam e
288 • Revista Estudos Amazônicos
que desejam tornar pajé. Este escolhido será entre o grupo, seja indígena
ou como no caso acima, ribeirinhos, o indivíduo com mais habilidade nas
relações com não-humanos, visto que não adoece no contato22.
O reconhecimento de elementos de um contexto sócio-simbólico
como determinante na gênese e na reprodução da condição saúde-doença,
que emerge como um avanço no conhecimento da saúde coletiva, mostrase simbolicamente representado em bases coercitivas, vistas no
adoecimento e na consequente adoção ou rejeição de procedimentos de
cura23. Portanto, a atuação do pajé mostra-se relevante, devido ser ele o
mais habilidoso para transitar no espaço dos karuwaras, falar com estas e
se alimentar junto desses outros sem que seja acometido por adoecimentos
e, se adoecer, conhecer os caminhos de cura, e dessa maneira evitar que
sua sombra possa ser levada, considerando a realidade das aldeias Tembé.
Os Tembé, assim como os Guajajara, apresentam quatro tipos de
Karuwara: os “criadores ou heróis culturais; os donos das florestas e dos
rios; os espíritos dos humanos mortos; e os espíritos de animais” 11, p. 107.
Esses habitam os níveis e espaços da cosmografia Tembé.
Existem três níveis e quatro espaços na cosmologia Tembé, sendo que
cinco desses ambientes são controlados pelos Karuwaras. Estes seres, em
seus espaços, caçam, pescam e se organizam como os Tembé fazem nas
aldeias. Uma forma de pensar a cosmografia Tembé pode ser a seguinte:
1) o nível do céu mais alto, que é o lugar de Maíra, que pode ser entendido,
também, como o lugar de Tupã e/ou até o Deus cristão, além de ser o
local para onde vão os guerreiros que lutaram pelo grupo; 2) o nível das
estrelas, da lua e do sol é o local onde ficam os espíritos que não alcançam
o nível de Maíra – este fica abaixo do céu de Maíra; 3) o nível terreno, onde
fica o espaço da aldeia e o local da residência dos humanos, que se estende
para suas roças, somando-se, ainda, as áreas urbanas; também no nível
terreno o espaço do mato, que é controlado pelos donos do mato
Revista Estudos Amazônicos • 289
(Curupira e Matim), por plantas e animais e, por fim, o espaço da água,
controlado pela Mãe D’água e demais seres aquáticos.
Os Tembé afirmam que quando o indivíduo morre o Karuwara de seu
corpo físico pode ter dois lugares de morada. Segundo Pedro Teófilo,
“quando o cara tem karuwara ruim, não ajuda ninguém, não merece ir pra
lá pra cima, ele fica rodando perto do sol, às vezes volta, os bons sobem
para o céu em cima desse”38. Nesse caso, percebe-se que o céu de Maíra,
tido como espaço de desejo de todos os Tembé, ou o céu que fica próximo
ao céu de Maíra, na altura das estrelas. Os Karuwaras que não alcançam o
espaço de Maíra são os mais perigosos, pois quando voltam para as festas
que têm cantorias atacam as pessoas que estão desprotegidas, geralmente
crianças, grávidas e demais que estejam em momentos rituais, como o
Wira’u-haw24. Vale ressaltar que, nesse momento ritual, os preferidos são
os jovens iniciados.
O Karuwara volta, também e não apenas, para dançar nas festas e se
alimentar junto com os pajés nos ritos de iniciação, depois retornando para
seu local de morada. Todavia, antes de alcançar este espaço, momento em
que fica vagando pelo espaço terreno, esse ser pode atacar os humanos.
Isso fica claro na fala abaixo, de Antônio Tembé, sobre a festa do Wira’uhaw e de como estes seres são atraídos:
quando o cara tá na festa, não pode ficar saindo para
lá e para cá não! É toda hora indo e vindo karuwara.
Depois que a festa começa, e os parente começa a
cantar, a gente se ficar saindo, pode pegar uma
peitada de bicho que tá chegando. O rio, vixe, é
perigoso principalmente para criança. As karuwaras
carrega mesmo, elas vêm por causa das cantoria e
do som do maracá (Antonio Tembé, julho de 2013).
290 • Revista Estudos Amazônicos
O relato acima mostra que os Karuwaras, e sua presença em um espaço
habitado pelos humanos, podem ser perigosos aos humanos, pois o
conflito é o resultado dessa relação quando estabelecida entre não
especialistas e este ser não-humano. Tal situação pode ser verificada,
também, quanto à relação dos humanos com alguns animais no período
do ritual, sendo que algo semelhante acontece entre os índios Guajajara.
Os Guajajara Tenetehara veem o Karuwara como:
homens e animais, tem espíritos que sobrevivem à
morte do corpo. (...). Ambos após a morte do
indivíduo tornam-se perigosos e malignos aos
Tenetehara, que para controlá-los necessitam da
interferência do pajé11.
Em diversos rituais, o pajé chama o Karuwara em suas ações de cura e
ataque. Entre os Parakanã, os “karowaras” podem ser pensados como
agentes patogênicos controlados por feiticeiros25, o que também observei
entre os Tembé. Não obstante, essa relação controladora não é constante,
como nas observações sobre os Parakanã25. A relação entre Tembé e
Karuwara não é pautada apenas pelo conflito, pelas agressões e pelos
ataques entre humanos e não-humanos, mas também por conversas,
festejos e momentos de harmonia. No entanto, essa última relação fica
facultada apenas aos pajés. Segundo Antônio Tembé:
na festa do moqueado, os Karuwara vêm pra dançar,
eles ficam no salão pulando kae49 com a gente. Por
isso que o professor que tava filmando bem no meio
caiu. O Karuwara entrou no corpo dele. Só pode
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pular quem sabe cantar, só pode ficar no meio da
roda quem sabe o conhecimento39.
Percebe-se que na (cosmo)lógica Tembé a presença do ser nãohumano pode ser mediada por aqueles que possuem as habilidades
necessárias; do contrário, a relação entre um humano sem habilidades
pode causar adoecimento e morte. Nesse sentido, a força do pajé está,
também, concentrada em sua habilidade de manter contato com estes
seres, seja através de seus cantos, do uso de cigarro de Tawari, das rezas ou
do maracá. Este último é um importante instrumento usado pelo pajé para
entrar em contato com os habitantes dos níveis e espaços não-humanos.
Também fazem uso do maracá os conhecedores e líderes dos ritos26,
função exclusiva de homens iniciados. As mulheres e os homens não
iniciados, em geral, não podem manipular o maracá. Entretanto, em alguns
casos, mulheres e homens velhos acumulam conhecimentos que lhes
permitem acessar espaços que são tradicionalmente reservados aos
iniciados, como em locais controlados pelos donos controladores.
As relações com os donos controladores são estabelecidas entre
humanos, entre não-humanos, entre humanos e não-humanos e entre
pessoas e coisas27. A Mãe D’água, dona do espaço da água, o Curupira e
Matim, donos do espaço do mato, aparecem nos relatos como sendo os
principais responsáveis pela maioria dos adoecimentos humanos, que
ocorrem em virtude de alguma transgressão cometida. Embora sejam os
donos desses espaços, o controle do trânsito nos rios e na mata responde
a um conjunto de conhecimentos que são difundidos entre os pescadores
e os caçadores, pois principalmente a caça é, antes, uma atividade
xamãnica11. Isso, de certa forma, põe o caçador em pé de igualdade com
o xamã, pois ele conhece os segredos para se relacionar com os Karuwara
dos rios e das matas.
292 • Revista Estudos Amazônicos
No caso do Matim há duas classes, uma originária do espaço do mato
e a outra que se formou a partir de quebras de tabus durante o parto,
momento de construção da humanidade, uma vez que para os Tembé,
assim como para um considerável número de sociedades tradicionais da
Amazônia, a noção de adoecimento extrapola o corpo, ligando-se,
também e talvez apenas, a elementos sobrenaturais. Assim, o adoecimento
parece estar condicionado a regras que, quando transgredidas, podem
causar (trans)formação de um humano em um Matim. No entanto, o ser
de origem humana é um ser menos perigoso quando comparado ao de
origem do mato. O Matim originário do mato controla alguns animais e
os usa para fazer os transgressores se perderem e até morrerem no mato,
o mesmo podendo ser observado em relação à Mãe D’Água
A Mãe D’água – comparada a Ywán, categoria nativa para se referir ao
dono do rio – é perigosa aos humanos, sendo responsável por grande parte
do adoecimento de crianças que tomam banho nos rios e igarapés. Ela
rouba a sombra – entendendo sombra como Karuwara e/ou espírito – dos
humanos e leva para o fundo das águas. O pajé pode se comunicar com
este ser – a Mãe D’água – e ir até o espaço da aldeia do referido
sobrenatural para, então, trazer a sombra para seu dono. Neste contexto,
a sombra é entendida como uma categoria que se refere ao Karuwara do
humano ou o espírito.
A vida humana é a combinação de Karuwara mais sua parte física, o que
me leva a pensar que a ação da Mãe D’Água (Ywán) transforma a vítima
em um Outro, posicionando, nesse acaso, o corpo como a sede da
perspectiva28, sendo que essa relação entre seres humanos e não-humanos
é perigosa devido ao conflito a que todos os envolvidos estão expostos.
Diante disso, os não-humanos possuem instituições, no sentido
deleuzeano29. Assim, enquanto na visão ocidental apenas humanos são
portadores de instituições, para os ameríndios também os não-humanos
possuem instituições, isto é, na visão ameríndia os não-humanos podem
Revista Estudos Amazônicos • 293
se apresentar como possuidores de cultura. Tal situação permite refletir
sobre a complexidade das relações que podem se estabelecer na sociedade
Tembé, ou seja, tais relações podem interferir na produção do corpo. Ao
me referir sobre corpo entre os Tembé Tenetehara, considero a seguinte
noção:
não se trata de uma oposição entre homem e animal
realizada longe do corpo e ao longo de categorias
individualizantes, onde o natural e o social se autorepelem por definição, mas de uma dialética onde
os elementos naturais são domesticados pelo grupo
e os elementos do grupo (as coisas sociais), são
naturalizados no mundo dos animais. O corpo é a
grande arena onde essas transformações são
possíveis, como faz prova toda a mitologia
sulamericana que deve, agora, ser relida como
histórias com um centro: a ideia fundamental de
corporalidade30.
É elucidativa, também, a noção de corpo difundida entre os Ywalapíti
que enfatizam a necessidade de o corpo passar, constantemente, por
processos intencionais de fabricação, os quais ocorrem por constantes
mudanças16, daí o intenso cuidado para o fortalecimento do corpo frente
a ataques de sobrenaturais. Esses ataques podem ocorrer em diversos
espaços, tanto nos não-humanos, quanto no espaço da aldeia, devido a
situações específicas como os períodos de gravidez, momento em que as
ações da família da grávida refletem na saúde da criança e da mãe.
Entre os Tembé, os Karuwaras podem ser pensados como uma
diversidade de espíritos que transitam nos espaços humanos e não294 • Revista Estudos Amazônicos
humanos. Por isso, quando as ações xamãnicas são realizadas pelo pajé,
ou mesmo por pescadores e caçadores, há o contato entre humanos e
Karuwaras. Nesse sentido, tanto o espaço da aldeia quanto em outros
espaços, podem se dar as relações que, se realizadas por indivíduos não
preparados, ocasionam na perda de sua condição humana, o que irá
resultar no adoecimento e, consequentemente, na morte deste.
O contato entre humano e Karuwara, na maioria das vezes, não causa
adoecimento ao especialista, pois, como fica claro na fala de Dona
Fátima31, o pajé mostra que “se for do bom ele vai lá e traz, ou então ele
tem uns poder que faz ela devolver a sombra da criança” (entrevista, julho
de 2013). Neste caso, pode-se considerar que o pajé possui habilidades
para lidar com os Karuwaras no que diz respeito, inclusive, a seu trânsito,
situação que mostra uma certa coesão com povos como os Assurini do
Tocantins. Isso porque os pajés são controladores dos sobrenaturais, os
quais são considerados agentes patológicos na cosmologia desse grupo13.
Outra categoria de Karuwara pode ser percebida no entendimento e
debate sobre a condição de morte e post-mortem entre os Tembé, seja morte
de humanos e/ou animais. O momento da morte é a separação entre o
corpo material e a Karuwara, por isso os animais também possuem
Karuwaras. Estas últimas são intensamente perigosas para os humanos, o
que torna os animais encontrados mortos sinais de mau presságio. Desta
forma, geralmente, respeita-se o corpo do animal, visto que o Karuwara
dele pode vir a atacar. Sobre isso, afirma Pedro Tembé:
quando a gente mata porco ou outro bicho, não é
bom que fique, que porco de casa, cachorro e outros
bichos de casa, fique comendo. A mulher buchuda
só pode comer se a gente der permissão. É tipo o
espírito dos bicho que panema32 a gente. Mulher
Revista Estudos Amazônicos • 295
perde o bebê, o caçador não acerta mais caçar. O
cara se perde atoinha no mato41.
Na concepção Guajajara Tenetehara, tropeçar em corpos de animais
mortos pode ter como consequência o ataque do Karuwara, tanto aquele
que tocou no corpo do animal quanto o seu familiar. Alguns pajés
controlam os Karuwaras de animais como o do sapo, considerado um dos
Karuwaras mais fortes11. O mesmo se percebe em relação aos Tembé, mas
o cuidado no que tange à lida com animais mortos – ou mesmo vivos –
não se dá nem com todas as espécies, nem em qualquer momento e,
principalmente, o local onde ficam depositados os restos de carnes e ossos,
pois se for mantido o contato destes com instrumentos de caça os mesmos
podem adquirir a condição de panema. No geral, os animais que
representam maior perigo aos humanos são as espécies consideradas
grandes predadoras ou as presas mais comuns dos humanos, como a onça
e macaco16; o primeiro, um predador e o segundo, uma presa.
Vale destacar que dentre os sobrenaturais, Maíra é considerada o mais
forte dos Karuwaras e vive no seu local de morada eterna. Por vezes,
percebi que alguns Tembé chamaram Maíra de Tupã e até, na tentativa de
ilustrar ainda mais suas explicações, compararam com o Deus cristão.
Ainda podemos definir Karuwara da seguinte forma:
os Tenetehara se referem aos sobrenaturais pela
designação genérica de karowara, porém distinguem
pelo menos quatro categorias: criadores ou heróis
culturais,
a
quem
atribuem
a
criação
e
transformação do mundo; os donos das florestas e
das águas dos rios; os azang, espíritos errantes dos
mortos; espíritos de animais. Na mitologia são
296 • Revista Estudos Amazônicos
descritos
como
homens
de
imenso
poder
sobrenatural. Viveram algum tempo na terra, que
abandonaram pela residência eterna na ‘aldeia dos
sobrenaturais’ (karowara-nekwahawo)11 p. 107.
Nas festas de iniciação, os Karuwaras são atraídos pela fumaça do
cigarro de Tawari ou pelo som do maracá, que, por sua vez, é o
instrumento usado pelos xamãs na intermediação com os diversos
espaços. Os homens e as mulheres não podem utilizá-lo16 e servem como
principal instrumento em dias de realização das cantorias. Em conversa
com Antônio Tembé sobre a festa do Wira’u-haw, o mesmo falou do
trânsito dos Karuwaras e de como eles são atraídos:
quando o cara tá na festa não pode ficar saindo para
lá e para cá não! É toda hora indo e vindo Karuwara.
Depois que a festa começa, e os parente começa a
cantar, a gente se ficar saindo, pode pegar uma
peitada de bicho que tá chegando. O rio, vixe, é
perigoso principalmente para criança. As Karuwaras
carregam mesmo, elas vêm por causa das cantoria e
do som do maracá33.
Os Tembé consideram Maíra um Karuwara; porém, ele seria também o
herói criador. Para pessoas como seu Pelé Tembé34 “é um espírito mal e
forte, a gente sabe que ela pode fazer mal” (entrevista, outubro de 2013).
Apesar de ser um herói nos causos Tembé, sua condição de outro a põe em
situação de inimigo. Portanto, este ser é um não-humano e, como o
restante, considerada perigosa. De certa forma, Maíra é inserida nesta
reflexão sobre a categoria Karuwara devido possuir subjetividade na lógica
do grupo.
Revista Estudos Amazônicos • 297
Nas narrativas Tenetehara, os Karuwaras aparecem como homens
dotados de imenso poder11. Quando um indivíduo morre, o seu Karuwara
é liberado da parte física e vai para o céu de Maíra, se este tiver sido um
guerreiro forte. No entanto, se não tiver ajudado o povo, fica na altura das
estrelas esperando para retornar à Terra e atacar os humanos quando
invocada. Constantemente, são chamados pelo pajé, pelas rezadeiras e
pelos cantos para interagir com os humanos. Mesmo reconhecendo que a
categoria Karuwara permite polissemia, ou seja, apresenta sentidos
diversos, a semântica da palavra entre os Tembé do Guamá assemelha-se
ao espírito, considerando-se a concepção ocidental.
Em muitos casos, os Karuwaras atacam os humanos por conta de
transgressões como pescar em horários inapropriados, que são momentos
liminares.
Isso
pode
intersubjetividade
35
ser
considerado
perigoso
devido
à
presente nos corpos de animais, encantados e
humanos.
Karuwara é aqui entendida como a subjetividade que perde sua moradia
terrena (corpo) e, por isso, não mora no espaço dos humanos. Da mesma
forma, o Curupira, o Matim (as duas espécies: tanto a do mato, quanto a
que tem origem humana) e os animais que podem em algum momento
revelar sua essência humana, como os pássaros (nambu é um dos
principais) por conta de suas “forças” – habilidade antropomórfica, além
de causar adoecimentos – são considerados Karuwaras.
Os Tembé da região do Guamá apresentam essa categoria nativa para
se referir a sobrenaturais. Esse pode ser de parentes que morreram –
refiro-me aos que alcançaram o céu de Tupã e Maíra, ou os que ficaram
no nível abaixo do céu de Maíra –, além dos que foram levados para o
espaço das águas e os levados para o espaço da mata (chamados, também,
de encantados), os donos, espíritos Mestres36 e espíritos de animais.
Ambos com possibilidades de ser agentes patogênicos ou auxiliares em
298 • Revista Estudos Amazônicos
curas. Sempre conservando, entretanto, sua condição de afins em
potencial, controlados por especialistas (caçadores, pescadores, mas
principalmente pajés) em determinados momentos, mostrando-se como
um elemento fundamental para entender o universo simbólico dos Tembé.
Artigo recebido em agosto de 2015
Aprovado em setembro de 2015
NOTAS
1CAMARGOS,
Q. F.; DUARTE, F. B. Evidências da Estrutura Bipartida do Vp
na Língua Tenetehára. In: SILEL, 1, 2009, Uberlândia. Anais. Uberlândia:
EDUFU, 2009.
2COELHO, J. R. L. Cosmologia Tenetehara Tembé: (re)pensando narrativas, ritos e
alteridade no Alto Rio Guamá – PA. Dissertação de Mestrado, Programa de PósGraduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas, 2014.
3Conselho Indigenista Missionário (Idem).
4Categoria nativa que se refere a seres humanos não quilombolas e não indígenas, que
residem fora da Terra Indígena.
5ARNAUD, E. O Direito Indígena e a Ocupação Territorial: o caso dos índios
Tembé do Alto Guamá (Pará). Rev. do Museu Paulist. São Paulo: USP, v. 28, s.n.,
1984, p. 221-233.
6 HURLEY, H. J. Relatório Apresentado sobre sua Viagem de Inspeção aos Índios do Guamá e
Gurupi. Belém, p. 15-38.
7 ARNAUD, 1984, p. 331.
8ALONSO, S. Os Tembé de Guamá: processo de construção da cultura e identidade
Tembé. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.
9Categoria nativa difundida entre os Tembé quando se referem a humanos não
quilombolas e não indígenas COELHO, J.R.L. Cosmologia TeneteharaTembé.
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10SALES,
Noêmia P. Pressão e Resistência: os índios Tembé-Tenetehara do Alto Rio
Guamá e a relação com o território. Belém: UNAMA, 1999.
11WAGLEY, C.; GALVÃO, E. E. Os Índios Tenetehara: uma cultura em transição. Rio
de Janeiro: MEC/Serviço de Documentação, 1961.
12LARAIA, R. de B. Tupi: Índios do Brasil Atual. São Paulo: FFLCH/USP, 1987.
13ANDRADE, L. M. M. O Corpo e o Cosmos: relações de gênero e o sobrenatural
entre os Asurini do Tocantins. Dissertação de Mestrado, Universidade de São
Paulo, 1992.
14ZANNONI, C. Mito e Sociedade Tenetehara. Tese de Doutorado, Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual Paulista, 2002.
15GARCIA, U. F. Karawara: a caça e o mundo dos Awá-Guajá. Tese de
Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, 2010.
16CASTRO, E. V. de. A Inconstância da Alma Selvagem e outros Ensaios de Antropologia.
São Paulo: Cosac e Naify, 2002.
17NIMUENDAJU (1915) citado por ZANNONI, C. Mito e Sociedade Tenetehara.
18“Maíra vive, hoje em dia, na grande planície de Ikaiwéra, inteiramente desprovida de
árvores. Ela está situada a oeste das antigas moradas dos Tembé, atrás das cabeceiras
do Gurupí e do Pindaré, mas uma única versão afirma que está à leste. Aí vive Maíra
inteiramente só em uma grande casa. Ele parece branco e usa veste comprida. Ao
redor da casa só crescem flores. Os pássaros aí falam com voz humana e chamam pelo
nome as pessoas que chegam. A jandaia e a maracanã fazem seu ninho no chão porque
não existem árvores e pela mesma razão o mel está nos cupins. Perto da casa de Maíra
está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem magnificamente, para seu sustento
diário necessitam apenas de umas pequenas frutas semelhantes a cuia; sua plantação
não necessita cuidados: ela se planta e se colhe sozinha. Maíra e seus companheiros
no campo de Ikawéra têm o nome de ‘Karuwára’. Quando envelhecem, não morrem
mas tornam-se novamente jovens. Cantam, dançam e celebram festa sem cessar. Da
última aldeia Tembé no cajuapara até os Karuwara a viagem dura – dizem – um mês.
Antigamente, os Tembé procuravam, muitas vezes, chegar a Ikawéra, mas todas as
alternativas falharam. Os que já tiveram contato com o outro sexo nunca mais poderão
chegar lá. Ou não bastam os meios de sustento ou no inverno o campo pelo qual
fazem a viagem, fica inundado ou no verão o solo é de tal modo aquecido pelo sol
que não podem pisar. Muitos viajantes que queriam alcançar os karuwára levaram, de
repente, pedras no lugar de sua rede ou cupins nas costas ou toda sua bagagem
desaparecia subitamente ou deviam sempre voltar novamente para procurá-la. Dizem,
porém, que em tempos muito remotos, várias pessoas foram bem sucedidas nessa
viagem. Uma vez, um grupo de Tembé se dirigiu para a terra dos Karuwára apenas
para aí aprender a cantar, naquele tempo eles não sabiam. Pintado, enfeitado com
penas, chocalho e cetro (araruwaia) ele subiu ao mais alto galho de um pau d’arco da
aldeia e começou a cantar. Os Tembé derrubaram a floresta à volta do pau d’arco,
limparam o lugar e se reuniram novamente para aprender o canto. Antes, porém,
deixou cair na terra seus enfeites. Os Tembé pegaram-nos, tomando-os por modelo
dos enfeites de dança que ainda hoje usam” (NIMUENDAJÚ, 1915 apud
ZANNONI, C. Mito e Sociedade Tenetehara.).
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19“Teríamos
então, à primeira vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa
de tipo espiritual comum aos seres animados, e uma corporal variável característica de
cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa trocável,
descartável. A noção de ‘roupa’ é, com efeito, uma das expressões privilegiadas da
metamorfose – espíritos, mortos e xamãs que assumem formas animais, bichos que
viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em animais –,
processo onipresente no ‘mundo altamente transformacional’ (RIVIÈRE) proposto
pelas culturas amazônicas” (CASTRO, E. V. de. A Inconstância da Alma Selvagem, p.
351).
20Liderança feminina na aldeia Pacoti.
21Esse relato me foi cedido por Jeane Palheta. Faz parte de um vídeo que serviu como
fonte para sua monografia de especialização no Instituto Federal do Pará. Portanto,
tive acesso a algumas de suas entrevistas.
22MAUÉS, H. O Perspectivismo Indígena é somente Indígena? Cosmologia,
religião, medicina e populações rurais na Amazônia. Dossiê – Amazônia: Sociedade e
natureza. Londrine: v. 17, n. 1, 2012, p. 33-61.
23GARNELLO, L.; BUCHILLET, D. Taxonomias das Doenças entre os Índios
Baniwa (Arawak) e Desana (Tukano Oriental) do Alto Rio Negro (Brasil).
Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: ano 12, n. 26, jul./dez. 2006, p. 231-260.
24Termo utilizado para se referir ao terceiro momento do Ritual da Moça, a festa do
moqueado.
25FAUSTO, C. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismos na Amazônia. 1. ed.
São Paulo: EDUSP, 2014, 587 p.
26ZANNONI, C. A Voz dos Espíritos: uma abordagem sobre o maracá em
sociedades indígenas do Maranhão. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO
MERCOSUL (RAM), IX, 2011, Curitiba. Anais. Curitiba: RAM, 2011.
27FAUSTO, C. Donos Demais: maestria e domínio na Amazônia. MANA. Rio
de Janeiro: v. 14, n. 2, oct. 2008, p. 329-366.
28CASTRO, E. V. de. Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo
Ameríndio. MANA. Rio de Janeiro: v. 2, n. 2, 1996, p. 115-144. GONÇALVES,
M. A. O Mundo Inacabado: ação e criação em uma cosmologia amazônica. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. 424 p.
29DELEUZE, G. Instintos e Instituições. In: ESCOBAR, C. H. (org.). Dossiê Deleuze.
Rio de Janeiro: Hólon, 1991.
30SEEGER, A; DAMATTA, R.; CASTRO, E. V. de. A construção da pessoa nas
sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro: n. 32,
1979, p. 2-19.
31 Dona Fátima é uma parteira que viveu entre os Tembé do Gurupi durante trinta
anos. Atualmente, reside em um bairro do município de Capitão Poço/PA.
32Em suma, pode ser entendido como azar, ou seja, nas empreitadas de caça, tanto
caçador quanto seus instrumentos de caça não conseguem obter sucesso nas caçadas
(COELHO, J. R. L. Cosmologia Tenetehara Tembé).
33Antônio Tembé, em entrevista, julho de 2013.
34Seu Pelé é morador da Aldeia Sede, local onde nasceu e constituiu família, sendo
considerado uma das lideranças do Alto Rio Guamá.
Revista Estudos Amazônicos • 301
35Levo
em conta a categoria de análise proposta por Castro (A Inconstância da Alma
Selvagem) que considera intersubjetividade em que o Eu e o Outro como conteúdo da
Forma-Sujeito.
36Verificar em CASTRO, E. V. de. A Inconstância da Alma Selvagem.
38Pedro Teófilo é cacique da aldeia Itaputyr e uma das lideranças responsáveis pelo
fortalecimento da festa da Moça no Alto Rio Guamá.
39Entrevista feita em julho de 2013. Antônio Tembé é cantador e conhecedor das
regras do ritual de passagem da moça.
40Nome da dança difundida entre os Tembé. O kaekae é a categoria nativa quando os
Tembé se referem a dança que embalada pelos cantos e o maracá.
41Pedro Tembé é cacique da aldeia Ituaçu. Essa fala foi feita em entrevista em julho
de 2013.
42Mulher indígena mãe de Ita. Itaputyr é aluna do curso de odontologia na
Universidade Federal do Pará.
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