António Amaro das Neves, Camilo e Sarmento No Centenário da Sociedade Martins Sarmento Camilo e Martins Sarmento No trilho de dois românticos Seide, 9.3.1881. Enquanto você compulsa e exercita estudos austeros e conspícuos como um tudesco pur sang, faço eu literatura de estaminet de sabotagem indígena, com todas as farandulagens sujas, medionais. Você Interpreta os mitos de Avieno; eu escodeio o Alexandre da Conceição. Somos ambos necessários à harmonia do Cosmos. (Camilo, carta a Sarmento) Era 1860. Naquele fim de primavera, entrava pelas portas de Guimarães um homem com pouco mais de trinta anos e o rosto coberto de buracos. Não vinha em busca das preciosidades históricas da cidade nem das “mais lindas mulheres da Península”, de que falara um viajante francês. Os seus passos inseguros procuravam tão somente o refúgio onde pudesse repousar o corpo metido a tormentos de febre e de cansaço. Guiaram-no até ao largo da Oliveira onde, junto aos Paços do Concelho, estava a casa da Joaninha. Não da Joaninha silvestre, de Garrett, perdida no meio da Charneca, mas de uma velha repelente, “curtida em camadas de lixo empedrado”. Obrigado a acoitar-se em tal hospedaria, que era, tal como a descreveu um dia, “um pântano de miasmas”, o viajante encontrou no leito onde ansiara acalmar o estado febril “muito bicho, coevo do rei Bamba, que lhe cravou a oliveira à porta”. E os alimentos que lhe deram, esses, eram capazes de desfazer “febra a febra” o seu estômago agoniado. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento| António Amaro das Neves| 1 O homem agoniado de quem falámos chama-se Camilo Castelo Branco. Ainda jovem, a sua figura já se erguia entre os maiores escritores do seu tempo. Que livro traçaria ele naquela altura? Apenas o romance das horas incertas da sua vida. A sua presença em Guimarães era a de um foragido que viajava incógnito, em fuga aos quadrilheiros da justiça, que o perseguiam com um mandato de captura na algibeira. E estranho crime era o seu: apenas uma paixão feroz por uma mulher casada: Ana Plácido. Camilo apenas permaneceu uma noite entre os bichos do leito da Joaninha. Lembrou-se que, nas Taipas, tinha um conhecido, Francisco Martins, o qual, alguns anos antes, havia publicado um livro de poemas marcado por uma espessa amargura e "um impenetrável desengano”. Do seu encontro com aquele homem dirá Camilo nas “Memórias do Cárcere”: Procurei o conhecido e achei um amigo, como usam raramente ser os irmãos”. Francisco Martins Sarmento era, como o viria a descrever Alberto Sampaio, “alto, magro, de cabelos Pretos, retintos, a tez morena, o passo apressado”. Tal fisionomia marcava profundamente o cepticismo e a desilusão que então caracterizavam a sua personalidade. Aos 27 anos, no dizer de Camilo, habitava no seio dos “seus milhares de amigos”, os seus livros. O tempo, passava-o então metendo braços “em coisas de literatura amena”, com que não conseguia enterrar o desencanto com a vida. Nessa época, Sarmento dedicava-se à actividade jornalística, publicando nomeadamente pequena peças de ficção. Este foi o encontro de dois homens marcados por profundos desgosto efectivos. E juntos passavam os fins de tarde no Rio Ave, num barquinho dentro do qual cada um deixava vogar os seus pensamentos por saudades, desesperanças, desilusões. Sarmento foi então o “voluntário quinhoeiro” das tristezas de Camilo e ”profeta de horrendas desgraças”. Cedo Camilo deixará o seu amigo. Para voltar decorrido algum tempo, ainda em fuga. Desta vez, irá instalar-se em Briteiros, na Casa de Sarmento junto à Citânia, onde passa algumas horas com o amigo (nas “Memórias do Cárcere”, Camilo deixou-nos uma descrição da Citânia). “Mas - escreverá ele - o máximo dos dias e das noites vivi diante de mim próprio, na soledade daquele quarto, ou em perigosas excursões à serra sobre um cavalo, que parecia vezado a passear sobre alcatifas”. Foi nesta altura que visitou com Sarmento o Bom Jesus, de onde trouxe “a peçonha da saudade”. Em 1864 recordará esta visita na obra “No Bom Jesus do Monte”. Passados menos de dois meses, em 1 de Outubro de 1861, Camilo dava entrada na cadeia da Relação do Porto, onde ficará enclausurado na cela onde estivera em 1829 o conselheiro Gravito, antes de ser executado na Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento| António Amaro das Neves| 2 forca. Poucos dias após ter entrado na prisão, em carta a Sarmento, anunciava que procurava livrar-se do cárcere. Contava sair em liberdade em meados do mês seguinte. Confidenciava então: “Estou a cair numa atrofia completa de corpo e alma. Não é desanimação, é doença, a velhice extemporânea, chamada pela desgraça”. As suas tentativas de sair da prisão sairiam baldadas. Só mais de um ano depois de ter sido preso é que Camilo será solto, após ter sido julgado e absolvido (em 16 de Outubro de 1861). Naquele tempo, vivia Sarmento num deserto de solidões. Camilo encontrou nele um homem com profundas cicatrizes do infortúnio. Enquanto o autor de Amor Perdição sofria no cárcere o afastamento violento de Ana Plácido, Francisco Martins vivia encerrado nas masmorras escritas de tristes abandonos. E era também a memória de uma mulher que o acompanhava nas melancolias de romântico. Lélia. A Lélia que ele chorou nas “Páginas d'um Livro”. Tempos viriam em que ele abandonaria estas escuridões de amante desiludido para penetrar noutras mais profundas, mais espessas, mas, talvez, menos insondáveis. Da nova face de Francisco Martins Sarmento falaria um dia Camilo na longa dedicatória de “No Bom Jesus do Monte”. “Desde que - escrevia ele então - o amor das cristãs lhe desmiolou a cavidade craniana, anda em cata de moiras encantadas, no ímpio propósito de moirizar-se, se alguma o envolver nas madeixas negras, destrançadas com pente de oiro e pérolas. Era este o novo Francisco Martins, aquele cuja memória se perpetuaria. As actividades de arqueólogo Sarmento serviriam um dia de argumento ao barão de Sousa Hölstein para, após uma visita Citânia, propor ao ministro do Reino, Duque de Ávila, a outorga ao investigador vimaranense da Comenda de Santiago. Disse Camilo que ele “pediu a comenda cuidando que abria ao rei e ao ministro o ensejo de honrarem Santiago”. Santiago não seria honrado. A comenda foi recusada. “Esta miséria, que deveria ser secreta como prostituições”, chegaria aos ouvi dos de Sarmento. Transcorridos curtos meses, em 4 de Setembro de 1897, é exarado no Ministério do Reino um diploma que nomeia o bacharel Francisco Martins de Gouveia Morais Sarmento “oficial da antiga, nobilíssima e esclarecido ordem de Santiago do mérito científico, literário e artístico”. As razões de tal concessão (as mesmas que estiveram na base da anterior recusa) residiam “nos serviços arqueológicos que especialmente tem prestado na exploração da Citânia”. Este voltar atrás com a decisão régia, no dizer de Camilo, “duplica a porcaria”. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento| António Amaro das Neves| 3 A concessão do hábito foi notícia nos jornais. O “Eco Popular”, de Guimarães, escrevia em 11 daquele mês que “foi um acto de verdadeira justiça que ao sr. Francisco Sarmento se concedeu, é uma demonstração solene da consideração que merecem os importantes serviços que ele prestou à arqueologia”. Mas Sarmento recusou a honraria. Quando se conhece tal recusa, as pessoas perguntaram-lhe razões. E ele responde, seráfico: “--Como queriam que eu aceitasse, já não cabe no cofre dos meus diplomas?” Em carta de Seide, datada de 15 de Setembro, escrevia o seu velho amigo: “Cá vi o hábito de Santiago nas folhas; e vi também o seu sorriso rabelaico”. O duque de Ávila reagiria à recusa de Francisco Martins, perguntando: “Que mais pode querer um escavador de montes?”. Sarmento não responderá publicamente. Num caderno pessoal, anotaria que “tanto recusava o hábito de Santiago como outra coisa mais valiosa, para os que avaliam estas futilidades. O desprezo pelo escavador de montes é que me pareceu sofrivelmente bacoco para um ministro do Reino”. A tentativa do poder para se reconciliar com dos vultos mais destacados da cultura do tempo esbarrara numa muralha de dignidade. No princípio de 1880, este episódio era comentado verrinosamente por Camilo nos “Ecos Humorísticos do Minho”: “Francisco Martins passou pelo asco de ter de rejeitar a grava que lhe vendia por quatro ou cinco dúzias de libras. Esta história, porventura ignorada num império onde reina um príncipe ilustradíssimo (o Brasil) deve precaver os que aspiram a encomendas e títulos, para que saibam que este género está muito caro. Não venham cá, portanto, os meus patrícios do Minho descobrir Citânias em montanhas. Aqui, desenterrar uma cidade, vale menos do que exumar seis lázaros e fazê-los votar no deputado governamental”. Ontem, como hoje... Não passaria, porém, muito tempo sem que o “escavador de montes” português fosse nomeado pelo governo de França cavaleiro da Legião de Honra. Foi em fins de 1880, após a visita À Citânia de Briteiros dos participantes no Congresso Antropológico realizado nesse ano em Lisboa. Uma vez mais, os méritos que os governantes deste cantinho desprezavam foram reconhecidos em terra estranha. Na correspondência de Camilo para Sarmento, publicada em 1905 por João de Meira, estão bem patentes as dificuldades em que constantemente navegou a vida do romancista. Queixava-se Camilo dos entraves que encontrava para ver publicadas, por justo preço, as suas obras em folhetins nos jornais. Para fazer frente à falta de dinheiro, Camilo vendia a Sarmento os livros da sua biblioteca. Em carta de Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento| António Amaro das Neves| 4 Novembro de 1869, escrevia: “sinto que afinal os livros vão para fora e você um dia haja de os comprar por alto preço, ou prescindir de os possuir. Repare, portanto, nos números...” Meses depois, dizendo que ia enviar a Sarmento um outro livro, afirmava: “Estou catalogando 4$ o volume para passado algum tempo o leiloar. Meus filhos são ignorantíssimos. Logo que feche os olhos, vendem isto às mercearias”. Triste condição. As ameaças da doença, da velhice e da morte são presença constante nas cartas de Camilo. Assim, na carta que já citámos, de 1860, ele se queixava da “velhice extemporânea”. Tinha, então, 33 anos. Em 1871, depois de anunciar que havia estado uma semana em Lisboa, lamenta: “Vim mais doente e mais descoroçoado da cura. Consultei todas as mestranças. Mandaram-me esperar”. Anos depois, escreverá, pungente de ironia: “O pior é a falta de saúde: que a santidade da maledicência tenho-a eu como Paulo no areópago de Atenas. Que saudades eu tenho dos meus dias em que trabalhava 10 horas! Hoje, sempre na cama, escrevendo a lápis e de costas; isto, além de plasticamente ridículo, e incómodo”. Em 1880, quando anunciava que o seu filho Jorge −”Um rapaz que eu adorava.”− enlouquecera, surge-nos pela primeira vez a obsessão do suicídio. A cegueira tomava conta da vida do romancista. Em 12 de Outubro de 1887 transmite a triste notícia: “estou quase cego”. Já não leria os “Argonautas” de Sarmento. O último fio de esperança que o ligava à vida estava nas mãos dos médicos de Lisboa. Nesta carta, Camilo denuncia claramente qual o fim que o espera: “Eu bem queria poupar-me ao suicídio; mas desde os 18 anos que pressinto a necessidade dessa evasiva, sem me lembrar que a cegueira seria um impulso justificadíssimo da catástrofe”. Transcorridos curtos três anos, mergulhados nas trevas, Camilo premia o gatilho de um revólver que sustinha apontado à sua têmpora. No tecto daquela sala da sua casa de Seide, ficava esparramado o cérebro do mais prolífico escritor português do século XIX. Era também o fim brusco de uma amizade que se prolongara por mais de quatro decénios. Em vida, fora Camilo um leitor atento da obra de Martins Sarmento. Em Março de 1881, dizia-lhe: “Você interpreta os mitos Avieno, eu escodeio o Alexandre da Conceição. Somos ambos necessários à harmonia do Cosmos”. Aquando da publicação dos “Lusitanos, Lígures e Celtas”, Camilo saudou-o, agourando a Sarmento “uma ovação de silêncios”, que o haveria de incitar a escrever outras obras. Camilo sabia bem por experiência própria qual o destino das obras construídas com seriedade e que não deitassem mão a certos subterfúgios e a ingredientes que as tornassem acessíveis à petulância do tempo. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento| António Amaro das Neves| 5 *** Ainda hoje, bem o sabemos, Francisco Martins Sarmento continua a ser um quase desconhecido. Das suas obras, grande parte continua aguardar publicação. Sarmento não foi ainda lido. Mesmo por muitos daqueles que lhe tecem panegíricos ou vivem à sua sombra. António Amaro das Neves) [Artigo publicado em O Povo de Guimarães, n.º 210, de 10 de Março de 1982] BIBLIOGRAFIA CITADA: Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, (l862) − 8.ª ed., Lisboa, 1966. Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte, (1864) - 1.ª ed., 1864. Camilo Castelo Branco, Ecos Humorísticos do Minho, (1880) - 1.ª ed. Porto e Braga, 1880. Alberto Sampaio. F. Martins Sarmento, in Porlugalia, Tomo I, Fasc. II, 1900. Mário Cardoso, Francisco Martins Sarmento, Guimarães, 1956. João de Meira, - Cartas de Camilo Castelo Branco a Francisco Martins Sarmento, in A Revista, ano de 1905, fasc. 2 e 3, Porto, 1905. Eco Popular, 1.º ano, n.º 53, p. 2, Guimarães. 1879. Diário do Governo, ano de 1879, n.º 203, p. 2109. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento| António Amaro das Neves| 6 No Centenário da Sua Morte Camilo Castelo Branco em Guimarães “O suicídio de Camilo Castelo Branco, o maior romancista português, assombrou de surpresa a quantos conheciam o célebre escritor. Atribui-se geralmente este suicídio ao desespero de sofrimento físico, à tristeza profunda de se ver cego. Seria somente esta a causa de alucinação tão lamentável?” Com o texto acima transcrito, publicado em 9 de Junho de l890, O Comércio de Guimarães dava aos seus leitores a notícia da morte de Camilo Castelo Branco, ocorrida na Casa Amarela de S. Miguel de Ceide, a escassa distância de Guimarães. Pelo menos para um vimaranense, tal notícia não corresponderia de todo à verdade. Desfrutando com o escritor de uma amizade que perdurou ao longo de quatro decénios, Francisco Martins Sarmento foi um confidente das suas desgraças e, para ele, o modo como Camilo morreu não foi seguramente uma surpresa. Em carta de 1880, Camilo escrevia: O meu filho Jorge, um rapaz que eu adorava, endoideceu. Tem 17 anos. Que noite quando lhe apontava a aurora! A paciência também é um suicídio lento. Refugiome no trabalho, mas não vingo amarrar o espírito à galé. Era antiga a obsessão do romancista em relação ao suicídio. Ela aparece na sua obra, desde as suas primeiras produções, tendo inclusive publicado textos de reflexão filosófica acerca moral e do suicídio. Em carta data de Outubro de 1887 e dirigida a Sarmento, Camilo explicita as suas tentações suicidárias: Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 7 “Dou-lhe a triste nova de que estou quase cego. É a anemia dos olhos congénere da anemia geral Faço ainda o sacrifício de ir a Lisboa e sem esperanças, ouvir os especialistas. Se os de lá não souberem mais do que os do Porto, estou pronto. Eu bem queria poupar-me ao suicídio, mas desde os 18 anos que pressinto a necessidade dessa evasiva, sem me lembrar que a cegueira seria o impulso justificadíssimo da catástrofe.” Em Lisboa não encontraria Camilo alívio para os seus padecimentos. Em meados de Maio de 1890, tem notícia pelo Comércio do Porto do regresso a Portugal, para se instalar em Aveiro, do dr. Edmundo Machado, que em França desenvolvera os seus conhecimentos de oftalmologia e vinha aureolado de grande reputação. Camilo agarra-se a uma última esperança, escrevendo-lhe: Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país, durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego. No dia 1 de Junho de 1890, o médico de Aveiro visitou Camilo em Seide. Após observação, confirmou os anteriores diagnósticos, receitando ao escritor, como paliativo para o seu sofrimento, uma estadia no Gerês para uma cura de águas. Camilo estava desenganado. Instantes depois, consumando o destino trágico que para si próprio entrevia havia muito tempo, desfechou um tiro de revólver na cabeça, pondo termo à sua existência e a uma carreira literária que deu às nossas letras mais de centena e meia de obras. Eram antigas as ligações de Camilo Castelo Branco a Martins Sarmento e a Guimarães. No ano de 1855, vinha a lume um livro intitulado Poesias, assinado por F. Martins. Camilo dedicou-lhe um artigo, que incluiria nos seus Esboços de Apreciações Literárias (l865). Aí e lê: As setenta e seis poesias do sr. Francisco Martins, que venho a ler com o vagar de quem estuda uma vida e decifra um homem de vinte e dois anos, são daquelas que marcam o paroxismo da última flama da fé para a escuridão impenetrável do desengano. E, perante toda a carga de amargura e tragédia humana que transpirava daquele livro, Camilo conta que perguntou ao poeta se tudo aquilo seria verdade. Entrou então no segredo de grandíssimas dores. Tal segredo tem sido apontado como a causa do envolvimento de Martins Sarmento nas investigações arqueológicas. É o próprio Camilo que o refere, na dedicatória a Sarmento do seu livro No Bom Jesus do Monte (l864): [...] Desde que o amor das cristãs lhe desmiolou a cavidade craniana, anda em caça de mouras encantadas no ímpio propósito de mourizar-se, se alguma o envolver nas madeixas negras, destrançadas com pente de ouro e pérolas. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 8 Nas Memórias do Cárcere (l862), Camilo descreve-nos como procurou refúgio na casa de Sarmento quando, correndo o ano de 1860, andava em peregrinação pelo norte de Portugal, fugido das autoridades por causa do processo de adultério que lhe foi movido por Pinheiro Alves, brasileiro de torna viagem, marido legítimo de Ana Plácido, com quem Camilo vivia maritalmente. Na cidade de Guimarães, Camilo não encontrara um leito onde encostasse a cabeça. Tendo sido conduzido para o primeiro hotel da terra, denominado o da Joaninha e situado no largo da Oliveira, à sua anfitriã descreve-a como sendo duma velhez repelente, e está curtida em camadas de lixo empedrado. A sua casa é um pântano de miasmas, e os seus leitos guardam nas furnas, roídas pelo dente dos séculos, muito bicho, coevo do rei Bamba, que lhe cravou a oliveira à porta [...]. Não vi onde encostar a cabeça febril, e lembrou-me que tinha ali um conhecido, um poeta, um homem de existência amargurada. No dia seguinte, Camilo dirigiu-se para Briteiros, onde Sarmento o acolheu. Procurei o conhecido, e achei um amigo, como usam raramente ser os irmãos, em Francisco Martins. Na casa Briteiros, Camilo escolheu um quarto, cujas janelas faceavam com um recortado horizonte de arvoredo, e a cumeeira chã de um serro onde se divisam as relíquias de antiga povoação, que lá dizem ter sido citânia, cidade de fundação romana. A estadia em Briteiros foi breve. Passou-a Camilo a ler, a passear com Sarmento num barquinho no rio Ave ou visitando o Bom Jesus a cavalo. Até que lhe chegou às mãos uma carta em que se pedia a sua captura, onde leu que o criminoso é fácil de conhecer, porque tem buracos na cara Era chegada a hora de retomar a fuga. Durante o seu recolhimento em Briteiros, Camilo escreveu um estudo acerca da poesia de Coelho Lousada e de Soares dos Passos, em forma de carta dirigida a Martins Sarmento editada nos Esboços de Apreciação literária. Aí, a propósito daqueles que se revelam poetas na juventude e depois se calam, pergunta: A sua estrela dos dezanove anos, Francisco Martins, que é feito dela? Na obra de Camilo encontram-se diversas referências a Sarmento. No Bom Jesus do Monte (l864) e O Regicida (l874) são-lhe dedicados. Nos Ecos Humorísticos do Minho (l880), Camilo relata a história da recusa do arqueólogo vimaranense em receber a comenda de S. Tiago que lhe havia sido outorgada, depois de anteriormente lhe ter sido negada, por não lhe serem reconhecidos os méritos (a comenda que lhe foi negada havia sido pedida no momento em que, com a deslocação dos participantes no Congresso de Arqueologia à Citânia de Briteiros, Sarmento, pioneiro da arqueologia portuguesa, encontrava a sua consagração científica internacional). E Camilo concluía: Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 9 Não venham cá, portanto, os meus patrícios do Minho descobrir Citânias nas montanhas da pátria. Aqui, desenterrar uma cidade vale menos que exumar seis lázaros eleitores e fazê-los votar no deputado governamental. A presença de Camilo em terras de Guimarães faz-se sentir noutros momentos. Por diversas vezes, por exemplo, queixando-se do mau tempo ou das maleitas que o acometiam, Camilo se dirige para as Caldas de Vizela. Em 1876, em carta ao seu amigo Visconde de Ouguela, escrevia: Cheguei a Vizela há 6 dias. Tomei o primeiro banho e piorei; instado pelo médico tomei segundo e piorei Visto isto, na 3.ª feira de madrugada torno para Seide, onde ao menos tenho sossego e umas árvores que me conhecem há 16 anos. Algumas das obras de Camilo têm como cenário terras de Guimarães, a começar pelas autobiográficas Memórias do Cárcere (l862) em que relata os dias que antecederam a sua entrega à prisão. O primeiro dos Doze Casamentos Felizes (l861), livro em parte escrito na prisão, passa-se ma paisagem poética das margens do Ave, nas Taipas. Por último, em A Viúva do Enforcado, incluída nas Novelas do Minho (l875-1877), dedicada à memória de Afonso Henriques, - com o reparo de que a cidade opulenta [..] não teve até hoje um pedaço de granito que pusesse com o feitio de rei sobre um pedestal! identificámos com facilidade os lugares de Guimarães onde se desenrola a trama inicial da novela (urdida com factos de Guimarães): a Caldeiroa, Urgeses, a igreja da Senhora da Oliveira, a Rua dos Fornos, o Toural, a rua de Vale-deDonas, Ronfe. A amizade de Camilo com Martins Sarmento viria a manifestar-se aquando da publicação do Óbolo às Crianças (l887), curioso livro editado por iniciativa de Joaquim Ferreira Moutinho com a colaboração de duas dezenas de empresas gráficas, com objectivos beneficentes. Aí, o nome do sábio vimaranense aparece na capa ao lado do de Camilo, embora apenas tivesse contribuído com dois textos assinados sob pseudónimo e já anteriormente editados num jornal lisboeta. Convirá aqui registar alguns dos antecedentes que estão por detrás duma “polémica” trocista, onde acontecimentos de história apareciam misturados com referências contemporâneas. No dia 28 de Novembro de 1885, Conde de Margaride, o Dr. Joaquim José de Meira e José Martins de Queirós, procuradores da cidade de Guimarães à Junta Geral do Distrito, foram alvo, nas ruas de Braga, de uma manifestação provocatória, com insultos e apedrejamentos, dando origem a o célebre conflito, que inflamou Guimarães contra Braga. Alguns dias depois, em meados de Dezembro, surgia o primeiro número do 28 de Novembro órgão duma comissão de vigilância que então se constituiu e onde se relatavam os acontecimentos que se sucediam. Aí se irá destacar a voz de Martins Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 10 Sarmento, que pôs de lado as suas pesquisas arqueológicas para animar as movimentações que tinham lugar na imprensa, nos comícios, em reuniões. Camilo, por seu lado, sempre dirigiu para a cidade de Braga o seu olhar mais azedo. Num texto de 1856, incluído no livro Duas horas de liteira, por exemplo, faz-nos uma notável descrição da sua entrada em Braga, traçando um retrato em tons muitos negros das suas ruas e pessoas afirmando ter então sentido opressões de emparedado. Foi neste contexto que, no final de Março de 1887, surgiu no diário de Lisboa As Novidades, dirigido por Emídio Navarro, um texto intitulado Notas de Velha História Pátria, assinado por um tal egresso Bernardo de Brito Júnior e dirigido a Martins Sarmento, com votos de saúde e arqueologia, onde se apresentavam factos e lendas da nossa história medieval, observados através de uma resposta assinada por F. Fagundes. Assim se iniciava uma polémica extravagante e jocosa, na qual a historiografia que se pauta pela exploração patrioteira e bairrista de heroísmos e milagres era sujeita ao escalpelo verrinoso de Camilo (Bernardo de Brito Júnior) e Sarmento (F. Fagundes), numa “contenda” que se estendeu por cinco artigos. No primeiro texto, saído ainda no rescaldo das agitações entre Braga e Guimarães, Camilo referindo-se a um jornal de Braga em que se encomiavam as proezas dos seus arcebispos aquando da invasão o do seu território pelas tropas de dois capitães da Galiza, vem a terreiro acrescentar à notícia do jornal Braguês pormenores relativos a esse passo de armas. Dirigiamse os dois fidalgos por força respeitável, retrocederam sobre Braga resolvidos a roubar de passagem o que tinham deixado. Foi assim que, tendo chegado a Braga, foram-se ao Banco do Minho, onde ensacaram alguns alqueires de Libras, maços de notas, títulos, letras, promissórias, baixela de oiro e prata, e escrínios de jóias empenhadas, das principais famílias. Depois, D Fernando, que era já velhote e glutão, lembrou ao mano que comessem alguma coisa em Baga porque daí até à Galiza não achariam estalagem decente. [...] Resolveram, pois, ir aos Dois amigos comer frigideiras, enquanto a sua gente de armas, a preço de cutiladas, arranjavam que almoçar nas casas dos bracarenses transidos de medo. Iam os fidalgos na duodécima frigideira quando chegou até eles o alarido das hostes do arcebispo, que ao toque das charamelas e da banda musical das Taipas, vinham chegando dos lados da Falperra. Tiveram que largar o repasto e fugir. No largo da Senhora-a-Branca, esperava-os, com um revólver, marca Bull-dog de seis tiros, um estudante de teologia moral, filho de um chapeleiro, Fatacha de seu nome. Quando os dois Castros congestionados de Frigideiras e pavor, apareceram, o teólogo desfecha, e ao quinto tiro vasa um olho do cavalo que se empina escabriado pela dor, e cai morto, entalando a perna direita de D. João Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 11 de Castro. E o acto de heroísmo dos Fatachas conclui-se com o Fatacha Senior a atirar para cima do cavaleiro caído uma bomba de dinamite. A este texto, respondeu F. Fagundes a Frei Bernardo de Brito Júnior, com uns Subsídios para a história das Sociedades Arqueológicas em Portugal. Partindo das suas experiências pessoais, Sarmento conta que existiria em Guimarães uma irmandade a S. Cipriano, formada por gente capaz de não deixar cacos velhos nesta terra de Reburros, que andariam por todo o lado, equipados a preceito, a sacar rutilantes preciosidades à moirama e às possessões demoníacas: pedras com letras safadas, asas de uma panela de barro podre, pregos meios comidos, uns verdes, outros cor de ferrugem, a décima parte dum nariz de metal, etc, etc. Sim; mas os estrangeiros sabiam que aquilo era oiro encantado; trocavam-no por oiro desencantado e levavam tudo. Era uma varredoira. Até que um dia se resolveram a ir sacholar riquezas encantadas para os lados de Bragança. Porém, quando ali se dedicavam à tarefa de retirar da terra um enorme calhau, que não queria sair do seu covão, e onde se viam uns riscos que pareciam letras, o alcaide pequeno de Bragança chegou-se a eles e disse-lhes que se pusessem fora dali. Caso contrário, seriam corridos à mocada. Assim se fez. E, em chegando a Guimarães, reuniu-se a agremiação que, depois de muita discussão, deliberou transformar a irmandade de S. Cipriano, advogado dos arqueólogos, numa irmandade de S. Crispim, advogado dos sapateiros. E logo se viu que, com a irmandade reconvertida, todos os irmãos engordavam e enriqueciam, ao contrário do que sucedia nos tempos em que vendiam as antiguidades aos estrangeiros... Este caso tem muita moralidade concluía F. Fagundes. Um outro vimaranense “colaborou” com Camilo Castelo Branco, embora a título póstumo: João de Meira. Este, revisitando os “romances facetos” de Camilo Eusébio Macário e A Corja, “acrescentou-lhes” um capítulo de sua lavra, intitulado Eusébio Macário em Guimarães - Capítulos suplementares à Corja de Camilo Castelo Branco, um interessante conto publicado em O Mundo Ilustrado, em 1912. Deste autor é igualmente a compilação em A Revista (1905) de 13 cartas de Camilo a Sarmento. Escreveu ainda, em 1902, uma Homenagem a Camilo Castelo Branco, em que traçava a biografia e a bibliografia do grande romancista português. E terminava assim: Tendo posto um ponto por baixo das linhas que precedem, fui-me ao cemitério da Lapa a visitar a tua campa. Lá estava, ao fundo da triste rua areada, a pedra de mármore com a coroa de Visconde e o nome do escritor. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 12 Deus me é testemunha de que chorei ao ver-te como sempre tão só, tão desamparado no jazigo de Urbino. António Amaro das Neves [Artigo publicado em O Povo de Guimarães, n.º 611, de 1 de Junho de 1990] Referências bibliográficas: As citações em itálico foram extraídas das obras referidas no texto. A correspondência de Camilo foi citada a partir de: João de Meira, Cartas de CCB. para F.M.S., in A Revista n.os 2 e 3, Porto, 1905. Aníbal Pinto de Castro, A paisagem do Minho na ficção camiliana, in Boletim da Casa de Camilo, n.º 9/10, Famalicão, 1987. Alexandre Cabral, Dicionário de Camilo Castelo Branco, Editorial Caminho, Lisboa, 1989. Memórias de Araduca | Textos e Documentos |Camilo e Sarmento, António Aamaro d as Neves | 13