l ciência
Comecemos pela parte difícil: o que
diria de poder chegar a casa, depois de
um dia de trabalho, abrir o computador,
entrar numa sala de aula virtual, e ter lá
um desafio de matemática computacional lançado por uma das figuras mais importantes da demonstração automática
de teoremas, um professor da Universidade de Denver, nos EUA?
Pode parecer difícil, mas não quebrou o
entusiasmo de um grupo de estudantes
portugueses inscritos na Universidade
Aberta (UAb). Agora vem a parte fácil: é
possível resolver estes problemas matemáticos no conforto do lar e tirar dúvidas
directa e pessoalmente com as tais figuras proeminentes da disciplina, quer se
encontrem em solo norte-americano ou
britânico. Neste último caso, mais precisamente na universidade escocesa de St.
Andrews, terra natal mais que provável
O aluno típico do ensino
online tem emprego, família,
e muitos problemas,
mas também uma vontade
férrea de concluir o curso
JOÃO ARAÚJO, da UAb, criou o curso recrutando professores de topo mundial
Próximos à
FOTOGRAFIAS DR
DISTÂNCIA
Que é possível ensinar à distância – e ainda mais na era
da internet – já sabíamos. Mas a Universidade Aberta, baluarte
desta via pedagógica, alargou o conceito: João Araújo criou um
curso de doutoramento cujos intervenientes são três das figuras de
referência da matemática em todo o mundo. Os alunos agradeceram
Texto de Ricardo Nabais
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do golfe. E em qualquer dos casos, os professores recrutados são do melhor que o
mundo conhece na área: Peter Cameron
começou por leccionar em Oxford – em
trânsito, diz, para St. Andrews –, James
Mitchell, desta última universidade, e Michael Kinyon, de Denver, entre outros.
Sem sair então do cantinho à beira-mar
e ao sol plantado, Edgar Vigário resolveu
dar o salto para este desafio. Programador
informático no Ministério da Educação,
soube da existência deste programa de
doutoramento a distância promovido pela
UAb, e não hesitou. Já tinha feito o curso
de informática na instituição, que foi concebida para ser a universidade pública de
ensino a distância em Portugal, e, por
«pura paixão e para continuar os estudos»,
lançou-se então no doutoramento.
A surpresa inicial de poder contactar
com um ‘elenco’ de topo como Kinyon, Cameron e Mitchell ainda não lhe passou:
«Foi a primeira vez que isto foi feito, pelo
menos no que toca à expansão a outras
instituições». O mesmo sente Pedro Silva, professor na Faculdade de Ciências
da Universidade do Porto. «O que é inovador é que se conseguiu convencer uma
série de pessoas de projecção internacional para integrar o projecto».
João Araújo, do Departamento de Ciências e Tecnologia da UAb, promoveu e organizou a iniciativa. A ideia foi usar as
possibilidades logísticas do ensino
a distância para oferecer um doutoramento cujos docentes seriam
estrelas mundiais da área. A primeira edição é de Outubro de 2013
e neste curso piloto inscreveram-se 15 alunos de Portugal, Brasil,
Moçambique e Cabo Verde. Mas do
núcleo inicial restaram apenas
seis. Mesmo assim «é um número
fantástico» para a primeira edição
de um doutoramento em matemática, atesta Araújo.
O aluno típico do ensino online
tem emprego, família, e
um sem-número de outros problemas, não matemáticos mas também
complexos, para resolver. As desistências são
comuns, e quase sempre por motivos de força maior. «Se eu fosse
empregador, não hesitaria em escolher os
graduados da UAb»,
nota João Araújo, «pela
vontade férrea que demonstram» ao querer concluir um curso com outras responsabilidades exteriores para enfrentar.
Não é fácil, mas um dos alunos deste doutoramento resolveu um problema que já
antes tinha derrotado os especialistas de
St. Andrews. Essa resolução foi anunciada em conferência internacional por Manuel Martins, uma das estrelas da companhia. O jovem, que trabalha na Agência
Espacial Europeia (ESA) em Itália, depois
de passar pela Critical Software – uma das
meninas dos olhos do panorama empre-
sarial português em novas tecnologias,
em particular de desenvolvimento de
software, justamente, para a ESA – entusiasmou-se desde logo com a possibilidade de «mexer um pouco com a massa cinzenta». Sendo um curso totalmente onli-
Manuel trabalha em Itália para
a Agência Espacial Europeia. E
veio para o curso para «mexer
com a massa cinzenta»
PETER CAMERON e Michael Kinyon
ALGUNS alunos: Maria, Manuel e Edgar
ne, há a possibilidade de conciliar
trabalho e estudo. As avaliações obedecem
a prazos que podem ser negociados com
os professores.
O mesmo animou Maria Borralho, que
já trazia no currículo uma pós-graduação em Álgebra na Universidade de Évora. Hoje dá formação em software a professores de Educação Especial, um dos
«dois amores» da sua vida, a par da matemática. «Combater o Alzheimer exercitando o cérebro», diz, meio a brincar,
meio a sério, foi o mote que trouxe esta
ex-professora do secundário e do Departamento de Matemática da Universidade do Algarve a este curso.
Os professores abraçaram logo a ideia
de ter estes alunos estrangeiros para ensinar. Para o norte-americano Michael
Kinyon, em cuja universidade (Denver) se
dão os primeiros passos para começar a
oferecer este tipo de ensino, esta experiência foi enriquecedora em vários sentidos.
«Na minha universidade já há cursos online, mas eu tinha pouco contacto
com eles. Neste caso, foi tudo diferente. Normalmente, quando ensino, confio na improvisação. Mas
aqui tenho de ter cada lição muito
preparada».
Ao seu lado, o australiano Peter Cameron contribui para esta unanimidade. A experiência de ensinar à distância numa sala de aula virtual abre
novas perspectivas. Tanto Kinyon e
Cameron quanto James Mitchell elogiam os estudantes portugueses, sempre «correctos e cumpridores» e ninguém considerou que a
língua fosse um problema. Tendo em conta que
os alunos lidam com a
matemática no dia-a-dia
e tiveram formação na
área, nem sequer foi preciso fazer grandes ajustes aos exercícios. Cameron vai mais longe – em
Inglaterra, o ensino da
matemática está muito
condicionado por um
«ogre» que se vai encontrar no fim do percurso, o exame. A matemática deveria ser
trabalhada na solução de problemas e de
uma forma tão criativa quanto possível.
João Araújo tem, por isso, todos os estímulos necessários para continuar. A relação personalizada com os alunos, mediada pelas novas tecnologias, cria uma nova
realidade. Afinal, diz, «o ensino a distancia é o modelo por excelência do ensino
em proximidade». Pode parecer um paradoxo, mas não é. !
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1/08/14 SOL
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Notícia do Jornal Sol