A crise dos projetos estratégicos brasileiros: o caso do Programa Espacial∗ Roberto Amaral∗∗ INTRODUÇÃO Este texto se destina a público formado por nãoespecialistas em tecnologia espacial, mas interessado em questões estratégicas nacionais. Resulta de exposição oral dirigida aos integrantes do Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica, da Câmara dos Deputados, em abril de 2009, revista e ampliada (agosto/2009) para integrar o presente livro. Procura resposta para o fato de o Brasil ainda não ser autônomo na construção de satélites e veículos lançadores e, na primeira década do Terceiro Milênio, ainda perseguir capacitação tecnológica em setores estratégicos como o cibernético, o espacial e o nuclear. Assim, o atraso do Programa Nuclear Brasileiro e, principalmente, dos estudos de física nuclear, considerando os estágios que havíamos alcançado nos anos 50; assim, o atraso do projeto do submarino brasileiro de propulsão nuclear, velho de 30 anos1; assim, a renúncia ao domínio das terras raras; assim, ∗ Capítulo do livro NETO. Manuel Domingos(Org.), O militar e a ciência no Brasil. O autor agradece as contribuições de Aluízio Weber e João Ribeiro Jr. E a leitura de Pedro Amaral. As deficiências persistentes, por obvio, são de sua inteira responsabilidade. ∗∗ Ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e Diretor-geral da Alcântara Cyclone Space-ACS. Escritor e professor universitário. 1 EUA, Grã-bretanha, Rússia, França e China desenvolveram seus submarinos de propulsão nuclear a partir de 1955, quando entrou em operação o pioneiro Nautilus, americano. O Brasil tenta desenvolver o seu, na base de Reator de Água Pressurizada, há cerca de 30 1 o atraso na exploração do petróleo, retardando por décadas nossa auto suficiência desse combustível. Ainda assim, a dieta de parcos recursos que tem emperrado nosso desenvolvimento científico e tecnológico, comparativamente aos demais países chamados, como o nosso, de ‘emergentes’. Assim, finalmente, o impasse que coarta o programa espacial. Este será nosso ‘estudo de caso’. Para tal efeito, discutiremos os principais óbices que sobre ele se abatem, e o estado da arte do projeto Alcântara Cyclone Space, fruto de acordo de cooperação entre o Brasil e a Ucrânia. Ver-se-á, desde logo, que a questão espacial é um só aspecto de um tema central, que é a crise do Estado: porque, em nosso país, os projetos estratégicos são tratados como secundários e as raras políticas de Estado subordinadas a uma estrutura jurídico-burocrática descomprometida com os interesses nacionais. Os projetos estratégicos sofrem com a insuficiência de recursos, com a intermitência das políticas ou planos de governo, padecem nas mãos de uma estrutura burocrática perrengue e ainda tem de enfrentar a interferência de dezenas de instituições públicas, autônomas entre si e livres de coordenação, voltadas prioritariamente à construção de meios e controles aos quais não podem resistir as metas de produção. Não há política de Estado se não há continuidade na eleição das prioridades, variáveis não só como resultado da periódica alternância de governos, mas, até, em função do humor ou das simpatias do administrador de plantão ou do burocrata (seja o funcionário público, seja o juiz federal, seja o representante do Ministério Público, seja o ministro do Tribunal de Contas) que faz andar ou parar o processo, as petições, os esclarecimentos, os pareceres, os pedidos de anos. Para sua conclusão, mesmo se adquirir tecnologia francesa, e principalmente, se a Marinha obtiver os recursos financeiros que lhe são devidos e até aqui fornecidos em doses de conta-gotas, são estimados mais 15 anos de trabalho. Com 45 anos de idade terá sua quilha batizada 70 anos após o Nautilus. Ele é desenvolvido no Centro Experimental de Aramar, em Iperó, interior de São Paulo, pela Marinha brasileira. 2 informação, as liberações de recursos e mais isso e mais aquilo. O pano de fundo é o silêncio da sociedade, desinformada, e, portanto, sem opinião, um meio acadêmico pouco afeito a discussões estratégicas ou que sugiram temas supostamente de origem militar, uma ordem militar que ainda supõe que as questões estratégicas estão reservadas à sua domesticidade, uma imprensa desinteressada dos temas nacionais e intoxicada pela busca do escândalo, e, finalmente, um Congresso permanentemente em crise, esvaziado politicamente, acuado pelos meios de comunicação de massa e assim voltado para sua própria sobrevivência como instituição, esta restritivamente entendida como a sobrevivência eleitoral de cada um de seus membros. Não há a menor possibilidade de construção de políticas estratégicas sustentáveis sem o apoio de uma opinião pública bem informada. O Programa Espacial brasileiro como projeto estratégico Todo e qualquer programa espacial compreende um espaço físico (base de lançamentos), veículos lançadores (foguetes) e suas cargas (satélites ou espaçonaves). Sua arquitetura depende, fundamentalmente, de decisão política, como atestam as experiências daqueles países que nos superaram nessa matéria. A ausência de política de Estado, todavia, parece ser a carência que mais tem afetado os projetos estratégicos em nosso país, o que encerra contradição insanável. O Programa Espacial brasileiro, vítima de injustificáveis atrasos, principalmente a partir dos anos 90, foi elevado, recentemente, pela Estratégia Nacional de Defesa-END, à categoria de ‘Projeto Estratégico Nacional’. De tal promoção aguardam-se consequências objetivas. Por enquanto, permanecemos, embora animados de muita esperança, no 3 nível do discurso e das formulações de propósitos que não alcançaram a descoordenação das ações dos diversos e inumeráveis órgãos intervenientes. A END não passa, por enquanto, e até quando não sabemos, de um manifesto de boas intenções. Até porque não basta titular este ou aquele projeto de estratégico, se a legislação relativa aos procedimentos continua a mesma, se os mesmos são os condicionantes orçamentários, se o projeto ‘estratégico’ permanecerá à mercê do arbítrio da burocracia e dos órgãos de controle que não consideram os interesses estratégicos do País, nem respondem pelos prejuízos causados ao erário pela atraso de obras públicas, erário cuja proteção deveria ser seu objetivo. Tratemos da END, porém. A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (no momento em que escrevo, sem titular) e o Ministério da Defesa, definiram uma nova Estratégia Nacional de Defesa (END), a qual, submetida ao Presidente da República por meio de Exposição de Motivos Interministerial2, é aprovada em 18 de dezembro de 2008. Nela se lê a eleição dos programas cibernético, nuclear e espacial, nessa ordem, como de ‘interesse estratégico’. Depois de ressaltar a necessidade de fortalecê-los, aqueles programas, por constituírem ‘tecnologias sensíveis’, diz a END que “Os setores espacial e cibernético permitirão, em conjunto, que a capacidade de visualizar o próprio país não dependa de tecnologia estrangeira e que as três Forças, em conjunto, possam atuar em rede, instruídas por monitoramento que se faça, também, a partir do espaço”3. A todas as razões justificadoras de um Programa Espacial autônomo para país com nossas características físicas -sensoriamento remoto, controle de queimadas e desmatamentos, acompanhamento da fronteira agrícola, comunicações em geral, serviços meteorológicos, controle 2 EMI nº 00437/MD/SAE-PR de 17/12/2008 D.O.U., 19 de dezembro de 2008, p. 4 e segs. O texto integral está acessível no endereço http://www.fab.mil.br/portal/defesa/estrategia_defesa_nacional_portugues.pdf 3 4 do espaço aéreo e de fronteiras, GPSs, etc., e mais interesses econômicos e financeiros —, somam-se necessidades ditadas por razões de Segurança Nacional no Estado democrático. Assim, o Programa Espacial foi, finalmente, elevado à categoria ‘Política de Estado’, e é isso que releva assinalar. Até poucos anos passados, a maioria dos veículos lançadores de satélites era constituída de mísseis convertidos para uso pacífico. Para sorte da humanidade, as ogivas nucleares, tornadas um anacronismo com o fim da Guerra Fria, são substituídas por satélites. Mas hoje, embora já exista uma série de veículos lançadores projetados especificamente para fins de transporte espacial, permanecem os foguetes como ‘tecnologia dual’. Em face do que a esta altura não precisa mais ser explicado, a tecnologia de fabricação e lançamento de foguetes foi protegida pelos seus pioneiros (URSS e EUA) com o mesmo rigor com o qual os EUA haviam tratado os conhecimentos relativos à fissão nuclear. Sob o pretexto de evitar a disseminação de armas de destruição em massa, tratava-se, com o monopólio, de tão simplesmente assegurar o equilíbrio entre as grandes potências e impedir o acesso dos países periféricos às novas tecnologias, mesmo para fins pacíficos. Da mesma forma como ocorrera com a energia nuclear (refiro-me ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear-TNP, de 1968, cujo objetivo era tão simplesmente limitar as armas nucleares aos cinco países então sócios em seu monopólio, a saber, EUA, URSS, China, Grã-Bretanha e França), os países não detentores de tecnologia espacial foram chamados a firmar Tratado que estabelece rigoroso regime de controle de tecnologia. O Brasil aderiu a essa política discriminatória, repetindo a saga, iniciada nos anos 50, de renúncia de sua projeção no campo nuclear4, ao ratificar o ‘Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos 4 Este tema é tratado em Amaral, Roberto & Tranjan, Alfredo Filho. ‘Porque o Brasil precisa de um Programa Nuclear”, Comunicação&política, v. 25, nº 2, p. 125-169 5 Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes’ aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 19 de dezembro de 1966. A disseminação dos novos conhecimentos, sensíveis ou duais, passou a ser tratada como interesse de Estado, subordinada à geopolítica dominante nos anos da Guerra Fria, e permanece intacta até aqui, nada obstante o fim da URSS. Qualquer cooperação entre países visando ao desenvolvimento de políticas espaciais comuns é condicionada não só à adesão ao MTCR (Missile Technology Control Regime) como subordinada à prévia assinatura de Acordo de Salvaguardas, acordo cuja última finalidade é impedir a transferência de tecnologia. Exemplar cumpridor de seus compromissos internacionais, o Brasil, tentando abrir para si as pesadas portas que dão acesso ao restrito Clube dos países espaciais, firmaria Acordos de Salvaguardas com os EUA, a Ucrânia e, mais recentemente, com a Rússia5. O Acordo com os EUA é paradigmático da renúncia à soberania6. Vejamos alguns de seus muitos pontos polêmicos: 5 O marco legal é o “Tratado do Espaço” [Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes”, Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas nº 2222 (XXI)], em vigor desde 1967. Nele encontram-se as diretrizes básicas as quais vieram a ser complementadas por outros tratados e convenções. Até o momento, o Brasil assinou e ratificou: I. O Tratado do Espaço [Decreto Legislativo nº 41/1968, Promulgado pelo Decreto nº 64.362, de 17 de abril de 1969]; II. O Acordo sobre Salvamento de Astronautas [Decreto Legislativo nº 80/1972, Promulgado pelo Decreto nº 71.989, de 26 de março de 1973] e, III. A Convenção de Responsabilidade [Decreto Legislativo nº 77/1972, Promulgado pelo Decreto nº 71.981, de 23 de março de 1973]. Ainda sob a apreciação do Congresso Nacional, encontra-se a Convenção de Registro da qual o Brasil é signatário. 6 O acordo com os EUA foi assinado em 18 de abril de 2000 pelo embaixador Ronaldo Sardenberg (então Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia) e pelo embaixador dos Estados Unidos da América, Anthony S. Harrington. Em 2003 os Ministros da Ciência e Tecnologia, Defesa e Relações Exteriores decidiram recomendar à base parlamentar do governo sua não aprovação pelo Congresso brasileiro. Seu texto integral pode ser conhecido no endereço http://www.aeb.gov.br/download/PDF/AcordoEUA2000-2.pdf 6 1. possibilidade de veto político dos EUA a lançamentos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara (art.III, A); 2. proibição de o Brasil cooperar (aceitar ingresso de equipamentos, tecnologias, mão-de-obra ou recursos financeiros) com países que não sejam membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis – Missile Techonology Control Regime-MTCR (art. III, B); 3. proibição de o Brasil se apoderar de ‘quaisquer equipamento ou tecnologia que tenham sido importados para apoiar Atividades de Lançamento’(art. III, C); 4. proibição de o Brasil utilizar recursos decorrentes dos lançamentos no desenvolvimento de seus próprios lançadores (artigo III, E); 4. obrigatoriedade de o Brasil assinar novos acordos de salvaguardas com outros países, de modo a obstaculizar a cooperação tecnológica (art.III, F); 5. proibição de os participantes norte-americanos prestarem qualquer assistência aos representantes brasileiros no concernente ao projeto, desenvolvimento, produção, operação, manutenção, modificação, aprimoramento, modernização ou reparo de Veículos de Lançamento, Espaçonaves e/ou Equipamentos Afins (art. V, 1); 6. exclusividade dadas às pessoas autorizadas pelo Governo dos EUA para o controle, vinte e quatro horas por dia, do acesso a Veículos de Lançamento, Espaçonaves, Equipamentos Afins, dados Técnicos e das áreas restritas referidas no artigo IV, parágrafo 3, bem como do transporte de equipamentos/componentes, construção/instalação, conexão/desconexão, teste e verificação, preparação para lançamento, lançamento de Veículos de Lançamento/Espaçonaves, e do retorno dos equipamentos e dos dados Técnicos (art.VI, 2); 7 7. concessão exclusiva aos servidores dos EUA (i. é. negada aos brasileiros) de livre acesso, a qualquer tempo, ao Centro de Lançamento para inspecionar Veículos etc. (art.VI, 3); 8. garantia do governo brasileiro de que todos os Representantes Brasileiros portarão, de forma visível, crachás de identificação enquanto estiverem cumprindo atribuições relacionadas com Atividades de Lançamento; referidos crachás serão emitidos unicamente pelo governo dos EUA, ou por Licenciados Norte-Americanos (art. VI, 5). Ao rejeitar tal Acordo, ou ao simplesmente não apreciá-lo, o projeto de Decreto Legislativo permanece na Câmara, o Parlamento brasileiro cuidou de preservar a soberania brasileira e assegurar, no futuro, a possibilidade de nosso país possuir um Programa Espacial Autônomo. Por outro lado, a inexistência de acordo de salvaguardas com os EUA, eis um primeiro impasse, poderá pôr em risco a autossutentação comercial do Projeto Cyclone-4, uma vez que algo como 40% do mercado internacional de satélites são dominados por aquele país, e, em sua maioria, satélites de qualquer origem contêm algum componente sujeito a autorização do governo americano para exportação. Não se trata de recuperar aquele Acordo, mas de negociar com os EUA um acordo de salvaguardas específico para permitir o lançamento, a partir do CLA, pelo foguete Cyclone-4, de satélites de empresas norteamericanas, e satélites de outros países que contenham componentes fabricados nos EUA. Haverá de ser, porém, acordo bem diverso daquele assinado em 2000 pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso7. Eis um segundo impasse. O que é um programa espacial 7 Consultados pelo Governo ucraniano, os EUA afirmaram nada obstar ao acordo entre aquele governo e o brasileiro, embora continuassem entendendo que o Brasil não deveria ter programa espacial. 8 Conditio sine qua non de qualquer programa espacial completo é o seu centro de lançamentos8. O Brasil dispõe de duas bases de lançamentos, o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno-CLBI9, em Natal, tornado hoje quase inviável, como era previsível, desde sempre, em decorrência do adensamento demográfico da cidade. Esse centro, porém, servirá, ainda por algum tempo, a lançamentos de foguetes de sondagem de pequeno porte, destinados à ciência espacial. O segundo centro é o CLA, Centro de Lançamento de Alcântara, Maranhão, de acesso precário, encravado numa península paupérrima, sem serviços e infraestrutura de qualquer ordem, hoje limitado em sua expansão física por decisão do próprio governo10, e carente de investimentos. Mas de excepcional localização geográfica. O país não dispõe de veículo lançador. Seu principal projeto, o VLS, planejado e construído pelo CTA, amarga, em 25 anos de esforços e investimentos, três tentativas frustradas de lançamento, a última delas com o custo dramático de vítimas humanas11. Os satélites brasileiros SCD 8 Centro de Lançamento Espacial, Cosmódromo para os russos e Espaçoporto para os EUA, é formado por instalações habilitadas a assegurar o processamento (montagem e testes) de veículos espaciais e satélites e os seus lançamentos em órbita da terra ou ao espaço sideral. Um Centro pode ser composto de um ou mais sítios de lançamento, estes, por sua vez, podendo ter mais de uma plataforma de lançamento. 9 Embora usualmente denominemos o CBLI como ‘Centro’, ele não atende aos requisitos dessa classificação internacional, pois não permite, por questões de segurança, a decolagem de um veículo lançador, por menor que seja. 10 Refiro-me ao Relatório de Identificação e Delimitação editado pelo INCRA ( D.O.U. de 4/11/2008). Seu inteiro teor pode ser encontrado no endereço http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=3&pagina=110&data=04/11/208 11 O Brasil não possui nem foguete nem plataforma de lançamento. Episódio exemplar do tratamento oferecido, em nosso país, às questões consideradas ‘estratégicas’, é oferecido pelas dificuldades quase insuperáveis que a AEB vem enfrentando para reconstruir a plataforma de lançamento do VLS, destruída, como todos se recordam, no acidente de 2003. Paralisada inicialmente sua construção por liminar concedida pela Justiça Federal a concorrente vencido na Licitação (2006), suas obras foram em seguida suspensas pelo TCU que só as liberou em fevereiro de 2009. Três anos de completa paralização! Não há 9 1/2 (Satélite de Coleta de Dados), previstos inicialmente para serem lançados pelo VLS, dentro do contexto da mal sucedida MEB (Missão Brasileira Completa) que tinha como objetivo lançar um satélite brasileiro, com um veiculo nacional e em solo brasileiro, foram levados ao espaço pelo veículo Pegasus, norte-americano, a preço de ouro. De sorte que o descompasso entre o desenvolvimento dos três segmentos -- inicialmente controlado pela COBAE (Comissão Brasileira de Atividades Espaciais) e depois pela Agência Espacial Brasileira-AEB — revelou-se pura e simplesmente desastroso. Os satélites CBERS (China-Brazil Earth Resources Satellite), desenvolvidos em parceria com a China, são lançados por esse país de seu centro em Taiyuan, com foguete chinês, o “Longa Marcha 4B”. A experiência dos países que estão em nossa dianteira, muitos tendo largado de posições mais atrasadas, aconselha-nos a necessidade, estratégica, de mais de um centro, independentemente das condições objetivas de cada um, e indica, principalmente, a necessidade de um programa espacial completo, ou seja, constituído daqueles três elementos, o que, aliás, foi fixado como política brasileira em 1979, quando da aprovação da MECB12. Ademais, nossos ‘centros’ apresentam graves deficiências, como foi demonstrado em relação à Barreira do Inferno, e como será demonstrado relativamente a Alcântara (CLA). O ‘melhor centro do mundo’ porém uma instância, seja política, seja administrativa, onde se possam avaliar os transtornos que três anos de inércia podem significar para um projeto que emprega alta tecnologia e disputa o seu lugar na comunidade internacional. Muito menos há quem se pergunte quem responderá perante a Nação pelos prejuízos financeiros, inevitavelmente resultantes do reajuste de preço da obra. 12 O acesso ao texto da MECB- Missão Espacial Completa Brasileira está disponível no endereço http://www.aeb.gov.br/download/PDF/pnae_web.pdf - Anexo I – Marco Legal das Atividades Espaciais p. 83. 10 Quando dizemos que possuímos “o melhor centro do mundo”, nos referimos, evidentemente, à área hoje destinada ao Centro de Lançamento de Alcântara, do Ministério da Defesa, sob jurisdição do Comando da Aeronáutica, no Maranhão. Tal qualificação decorre de sua proximidade (2, 2 graus) com a Linha do Equador e do nível de segurança apresentado pelo imenso corredor marítimo, tanto para o Norte quanto para Leste, possibilitando o retombamento seguro dos estágios descartados durante o vôo do veículo. Aliás, essa característica é comum a todo o litoral que se estende do Estado do Amapá ao Ceará, o que assegura nossa possibilidade de escolha vantajosa de novas áreas. Essa observação torna-se necessária quando consideramos que o Centro de Alcântara encontra-se impossibilitado de qualquer expansão física em face de recente decisão do INCRA que transformou em “Território Quilombola” quase toda a Península, inclusive a maior parte da área que, desde 1980, fôra desapropriada para atividades espaciais. Assim, a “melhor localização do mundo” começa a apresentar deficiências, as quais compreendem, além da questão étnica e da incontornável limitação territorial, suficientes para inviabilizar a expansão do projeto, o difícil acesso à Península (sem porto de cargas, dependente o tráfego São Luiz-Alcântara de precário serviço marítimo, condicionado pelas elevadas variações das marés), inexistência de infraestrutura (estradas, escolas, hotéis, serviços públicos), e o conflito com as comunidades locais, originário dos métodos que presidiram sua instalação em 1983 e da remoção de comunidades de pescadores para agrovilas, tensão natural manipulada por interesses exógenos. Como é impossível abrir mão da capacidade de expansão do centro, o governo federal precisa pensar em nova localização para um segundo ou, como queiram (se considerarmos o modesto CLBI), terceiro centro, para assegurar o programa civil, como tal identificado o projeto da AEB. E, ainda que aja 11 imediatamente, estará agindo com muito atraso. Caso resolva, como pretende o Ministério da Defesa, e com estimáveis resultados políticos desfavoráveis, alterar a decisão do INCRA, permitindo a expansão do projeto militar (VLS) a noroeste da Península, atingindo comunidades quilombolas (Mamuna, Baracatatiua e Brito), restará sem espaço o projeto civil, da Agência Espacial Brasileira. O problema permaneceria, donde a necessidade de opção por novo território. Na verdade, dentro do impreciso Programa Espacial Brasileiro, temos três projetos. CLA militar Assim identifico o atual e originário Centro de Lançamento de Alcântara, administrado pelo Comando da Aeronáutica, cujo objetivo é o lançamento do VLS, desenvolvido pelo CTA e cujo quarto protótipo deve ser lançado dentro de quatro a cinco anos, com ajuda tecnológica russa. O Ministério da Defesa pretende a ampliação da atual área reservada e sua expansão, de sorte a poder abrigar em suas dependências, além do VLS e da ACS (Cyclone 4), mais cinco ou seis sítios de lançamentos, comerciais ou não. Alcântara Cyclone Space A ACS encerra um programa autônomo resultado de Tratado de Cooperação firmado entre os governos brasileiro e ucraniano, cujo objetivo é a construção e lançamento, de base brasileira, do Cyclone-4. Por questões exclusivamente táticas, derivadas de i. óbices representados pela temática quilombola e ii. pela decisão do INCRA que reservou grande parte da Península (e nela a área anteriormente reservada para o centro de lançamento da ACS) como área quilombola, a Alcântara Cyclone Space obteve permissão para instalar-se, pelo prazo de duração do Tratado, em área do CLA que lhe foi reservada pelo Comando da Aeronáutica, CLA e CTA. O complexo da AEB 12 Como ‘complexo da AEB’ denomino o projeto do grande Centro Espacial de Alcântara, desconstituído pelo Tribunal de Contas da União após dois anos de análises, e atualmente em revisão, pela AEB, como ‘Complexo Espacial Brasileiro’. Ele compreende uma série de sítios de lançamentos, derivados de outros acordos bi-nacionais dos quais o Tratado com a Ucrânia é um só exemplo. Esses centros seriam, é o projeto, apoiados por campi universitários, unidades industriais de última geração e tecnologia limpa, centros de pesquisa e ensino, constituindo-se em grande parque espacial, similar ou mesmo superior ao de Kourou, na Guiana Francesa. A esta base de apoio científico e tecnológico somar-se-ia o apoio logístico de infraestrutura, lazer e serviços. Esse complexo foi projetado, evidentemente, para instalação fora da atual área do CLA, instalação esta presentemente inviabilizada pela já referida decisão do INCRA, objeto de outros comentários na sequência deste estudo. A busca por um terceiro sítio Independentemente da política brasileira relativa ao CLA, a busca por novos espaços é necessidade do Centro (ou ‘Complexo’ Espacial Brasileiro, pensado pela AEB e maltratado no Tribunal de Contas da União. ÁREAS (AMARELAS) PREVISTAS NO PROJETO "CEB" DA AEB 13 (SÍTIO ORIGINAL DA ACS ASSINALADO COM "AL-1" E ÁREA DO CLA COM ATUAL SÍTIO O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), por intermédio de seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), declarou a quase totalidade da área externa da sede do município e externa ao atual CLA, incluindo, portanto, sua área de expansão e aquela pretendida pela AEB para seu ‘Complexo’, como ‘área quilombola’. Essa decisão (questionada por outra parte do governo) impede igualmente a necessária 14 expansão do CLA (projeto do Ministério da Defesa) e a localização do CEB (projeto da AEB) na Península ao mesmo tempo em que obriga a instalação da ACS dentro do CLA. A necessidade de busca de uma alternativa a Alcântara parece óbvia, principalmente quando se considera que sua importância se encerra na proximidade com o Equador. Outra localização com similares características deve ser identificada o quanto antes para um novo Centro de Lançamento. As regiões litorâneas do Amapá e do Ceará apresentam boas condições, sendo que o litoral cearense oferece mais vantagens devido à infra-estrutura de transportes (acesso ao porto marítimo de Pecém, estradas asfaltadas e ferrovia), a vizinhança de centros universitários de Sobral e Fortaleza e ausência de conflitos étnicos ou sociais. Em qualquer hipótese, permaneceríamos nas proximidades do Equador, usufruindo todos os benefícios dessa localização e conservando as vantagens estratégicas de praticamente sermos a única opção do Hemisfério Sul, ressalvada a companhia de Kourou, da Comunidade Européia. Por óbvias razões, todos os centros de lançamento estão localizados no hemisfério Norte, longe da Linha do Equador. Próxima a essa linha, além de Alcântara, há uma única exceção, imediatamente ao Norte, a já referida base de Kourou, na Guiana Francesa. Ela está nos nossos calcanhares. Pertence à União Européia e dela participam investimentos russos. Assim, foi a França o único país que conseguiu se aproximar da Linha do Equador, por causa dessa possessão ultramarina. Kourou está a 5,2° de latitude norte, bem mais distante da Linha do Equador do que Alcântara, que está a 2,2° de latitude sul. O litoral cearense está a 3° de latitude sul, diferença não significativa com vistas a Alcântara, e ainda vantajosa relativamente a Kourou. AMÉRICA DO SUL 15 A proximidade do Equador faz com que um veículo lançado de nossa base entre em órbita mais fácil e diretamente para as órbitas equatoriais que constituem o maior nicho do mercado comercial do transporte espacial. O aproveitamento do maior impulso da rotação da Terra e a injeção direta, sem a chamada manobra “dog leg”13 que consome muito combustível, significa vantagem competitiva em relação a outros centros. Utilizando o mesmo veículo e a mesma quantidade de propelente, pode-se comercializar a satelitização de cargas mais pesadas, quando lançadas na direção Leste, para órbitas equatoriais. Outra grande vantagem ensejada por Alcântara, Kourou e pelo litoral nordestino é terem o Oceano Atlântico a Leste. Isso facilita muito a tarefa de interdição das áreas de queda dos primeiros estágios do foguete. Os veículos são 13 Manobra para corrigir o azimute. 16 compostos de estágios, que se vão desprendendo à proporção que termina sua fase de propulsão; também a coifa (‘nariz’) se abre e se solta do veículo que voa até a altitude de injeção em órbita, com a propulsão do último estágio e sua carga útil, que, satelizada, se separa do estágio ficando em sua órbita. Com exceção do último estágio, os demais segmentos vão caindo - e isso, por óbvio, não pode ocorrer sobre regiões habitadas. Mas não basta ter área propícia, é necessária a existência de um sítio para lançamento de grandes veículos, assim como o próprio veículo lançador e os satélites e demais cargas úteis, que são a razão de todo o sistema espacial de lançamento. Já fizemos lançamentos de pequenos satélites brasileiros de coleta de dados (SCD-1 e – 2) a partir dos EUA, a preços exorbitantes, como observado anteriormente. Agora, estamos lançando um satélite com desenvolvido em cooperação com a China, com baixa transferência de tecnologia, custos também elevados e lançado a partir do território chinês. O Programa CBERS conta já com mais de 20 anos. Só no período 2001-2005 consumiu aproximadamente 400 milhões de reais14. A Alcântara Cyclone Space O projeto da Alcântara Cyclone Space-ACS, empresa binacional resultante de Tratado de cooperação na exploração espacial firmado pelos governos brasileiro e ucraniano15, supre exatamente essas deficiências. Esse projeto já possui um veículo, o Cyclone-4. É a parte de competência da Ucrânia. O Cyclone-4 provém de uma família de veículos lançadores da antiga União Soviética, com mais de duzentos lançamentos bem sucedidos. Com esse veículo, podemos construir uma plataforma em 14 Dados fornecidos pela AEB O texto integral do Tratado Brasil-Ucrânia http://www2.mre.gov.br/dai/b_ucra_20_5176.htm 15 está no endereço 17 Alcântara e lançar não só os nossos satélites, deixando de mandar divisas para fora, como também - e este é o objetivo da empresa - fazer lançamentos comerciais para outros Estados possuidores de satélites. Ou seja, passaremos a receber divisas. Se o Brasil levar avante o projeto Cyclone-4, seremos o primeiro país do hemisfério Sul e o único da América Latina -- considerando que a Guiana é uma extensão do território francês --, a lançar satélite a partir do seu próprio território. Começamos a implantar o Programa Espacial Brasileiro em 1961, antes de muitos países hoje lançadores, muitos anos antes da Coréia do Sul, mas chegamos a 2009 ainda sem o nosso veículo. O Irã, com toda a sua ebulição e enfrentando pressões externas, acaba de fazer um lançamento espacial. O mesmo ocorreu com a Coréia do Norte, país sabidamente pobre, em dificuldades, isolado pela comunidade internacional. Tão bem sucedida, porém, foi sua experiência, que está causando traumas na ONU, junto à Rússia, aos EUA e aos seus vizinhos, Coreia do Sul e Japão. Nosso atraso é questão sobre a qual todos precisamos refletir, inclusive a silente comunidade acadêmica. Dentre as várias razões determinantes, adiantarei apenas três, às quais retornarei adiante. • A primeira refere-se à fragilidade do nosso sistema de administração do programa espacial. A estrutura que deveria coordenar o programa espacial como um todo está distribuída em vários órgãos, sem coordenação, agindo de forma dispersiva e, em muitos casos, até, conflitante; hoje, atuam no desenvolvimento e administração do programa espacial a AEB, ACS, INPE (Ministério da Ciência e Tecnologia), CTA, COMAR, COMAER, CLA, IAE (Ministério da Defesa). Não há uma Agência Central, como por exemplo a NASA, nos EUA 18 ou o CNRS na França, ou o ISRO16 da Índia. Paradigma desse imbróglio é a malha de órgãos que interferem no Programa, ou dos quais depende a Alcântara Cyclone Space para operar. Nomeio: Ministério da Fazenda (Receita Federal e Procuradoria Geral da Fazenda Nacional); Ministério da Defesa (Comando da Aeronáutica, CTA, CLA, COMAER); Ministério do MeioAmbiente (IBAMA); Ministério do Planejamento e Orçamento; Ministério das Minas e Energia; Ministério do Desenvolvimento Agrário (INCRA), Ministério da Cultura (Fundação Palmares), Secretaria Especial de Políticas Promoção da Igualdade Social, Secretaria Especial dos Portos, Governo do Estado do Maranhão; Prefeitura Municipal de Alcântara; Ministério Público Federal. • A segunda, é a inexistência de uma política de contínua liberação de recursos. Ver-se-á, mais à frente, que, às vésperas dos lançamentos do 2º e do 3º protótipos do VLS, nos anos de 1999 e 2003, o Governo reduziu (1998, 1999 e 2002) drástica e irresponsavelmente as verbas destinadas ao projeto; • A terceira é uma distorção. Embora o projeto brasileiro priorize os lançadores — porque é fundamental ter lançador —, os investimentos e as preocupações foram desviadas para a fabricação de satélites. Nessa área, ainda nos demos ao luxo de remeter grandes recursos para outros países, para a China (programa CBERS) e para os EUA, para lançarem nossos SCD-1 e -2, e para cooperação com a estação orbital internacional (ISS), a qual tive a ocasião de interromper em 2003. 16 Indian Space Research Organization. 19 Exemplo paradigmático de descontinuidade administrativa: o Porto de Alcântara É inimaginável o Centro de Lançamento de Alcântara sem porto; sem porto a ACS e o projeto Cyclone 4 tornam-se inviáveis. A construção do Porto faz parte dos compromissos do Brasil com a Ucrânia, responsável pela infraestrutura do CLA. Mas nem a ACS, nem o CLA, tem porto de cargas, nem o terá em menos de quatro anos, embora o voo de qualificação do Cyclone-4 tenha, por decisão de governo, a data certa de 2010. Examinemos esta saga, que começa exatamente em 1998, com o levantamento hidrográfico na foz do Rio Salgado, a elaboração do Estudo conceituai e do Memorial do Anteprojeto do Atracadouro de Cargas. No ano de 2009, passados onze anos, o Porto não está, sequer, no papel. Apesar de o Projeto haver obtido do IBAMA a Licença Prévia, de ter-se realizado uma licitação e declarado um vencedor (2006), apesar de haver sido elaborado o Projeto Executivo, a obra não foi executada. Chamado, o Consórcio vencedor pediu reajuste de preço, pois não podia manter em 2008 preços cotados em 2005. O reajuste ultrapassava os limites permitidos em lei. Enquanto soluções burocráticas eram pesquisadas (além do mais a burocracia se esquecera da previsão orçamentária para 2007...), a ACS é informada de que, a Marinha do Brasil, após sobrevoo sobre a área, verificara que a localização em Ponta das Pedras (que sobrevivera ao processo acima descrito) era inconveniente por força do assoreamento, indicando como alternativa um porto oceânico, na Ponta Tatinga, porto o qual, ademais, poderia abrigar suas fragatas (2ª Esquadra) e por ela ser administrada. O contrato com a Secretaria Especial do Portos, incumbida da construção original é rescindido pelo MCT e firmado convênio entre a Agência Espacial Brasileira e a Fundação Getulio Vargas-ISAE, que inclui estudos hidrográficos e oceanográficos, para definição de nova localização do Porto de Cargas. 20 Finalmente, em abril de 2009, a AEB solicita à FGV-IESAE que estude a construção de um atracadouro de pequeno porte nas proximidades do sítio da ACS no CLA. Em síntese, passados onze anos não sabemos onde será construído o atracadouro, e muito menos quando. Por que um Programa espacial? Pergunta comum em auditórios sem formação política: por que o Brasil, que carece de quase tudo, vai investir em lançamento de foguete e construção de satélites? Ao examinar a questão do ponto de vista estratégico, diremos que se trata de exigência para a soberania e o desenvolvimento do nosso País. O Programa Espacial procura corresponder às necessidades de uma Nação com território de 8,5 milhões de km², quase 200 milhões de habitantes, cerca de 10 mil km de litoral e mais de 16,8 mil km de fronteira terrestre com nove países independentes e mais a Guiana Francesa. Do lado Oeste, destacam-se fronteiras totalmente desguarnecidas; ao Norte, a vastidão desabitada da Amazônia (com todas as implicações geopolíticas e militares consabidas) e, à Leste, no litoral, nossas principais cidades e a maior densidade populacional, a concentração do parque industrial e algo como 90% das reservas de petróleo. Essa extensão é impossível guarnecer fisicamente se não dispomos de um programa espacial autônomo. Há um outro aspecto importante: o controle do espaço aéreo. Tanto o controle da aviação civil17, quanto o desempenho de nossa aviação militar. 17 Estima-se a participação do Brasil no projeto Global da ICAO (International Civil Aviation Organization), OACI em português, denominado de CNS/ATM (Communication Navigation and Surveillance Air Traffic Management). Sem programa Espacial, teremos de alugar satélites a outros países. 21 Não há uma terceira alternativa: ou controlamos nós o nosso espaço, ou, na melhor das hipóteses, com todas as consequências estratégicas e econômicas óbvias, teremos de transferir essa tarefa, mediante aluguel, a satélite dos Estados Unidos, da França, da Rússia, da Índia, da China ou... do Irã ou... da Coreia do Norte. Defendemos a opção própria. Há outros pontos que precisamos ressaltar. Em 1961, pouco depois do lançamento do primeiro Sputinik (em 1957), o Brasil já se preocupava com o desafio espacial: nascia então o CNAE, atual Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Mas ainda hoje nosso programa está em busca de terreno para pousar. A opção por Alcântara se deu em 1979, mas do CLA só seria lançado o primeiro foguete, de sondagem, em 1989. Em 2009, o CLA não está consolidado, pois, ainda não colocou um só grama no espaço, para o que foi concebido, e é dependente de área para sua necessária expansão. Mesmo seu sítio atual aguarda regularização jurídica. E os projetos da AEB – o Centro Espacial de Alcântara e depois o Complexo Espacial de Alcântara— não saíram do papel. Assim temos que, passado mais de um quarto de século, ao CLA não foram dadas condições para realizar com sucesso uma só operação justificadora de sua criação e os gastos de instalação e manutenção, pois os lançamentos suborbitais poderiam todos ter sido realizados a partir do CLBI. Histórico das atividades espaciais no Brasil • 1961: Instituída a CNAE, embrião do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que veio a ser inaugurado em 1971; • 1965: inauguração do Centro de Lançamento da 22 • • • • • • Barreira do Inferno (CLBI); 1969: - criação do Instituto de Atividades Espaciais IAE 1979: aprovação da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB); e escolha de Alcântara para o novo centro de lançamento; 1980: desapropriados 62 mil hectares em Alcântara para o Centro de Lançamento; 1984: 1º e bem sucedido lançamento do grande e complexo foguete suborbital SONDA IV, no CLBI; 1989: inauguração do CLA; 1990: início da década em que ocorreu o gradativo e forte estrangulamento do Programa Espacial Brasileiro, especialmente quanto a lançadores e centro de lançamento; (cont.) Temos aí o roteiro das preocupações. No final dos anos 70, nossa Barreira do Inferno se esgotava, por variados motivos. O principal, derivava de nossa incompetência, porque permitimos que ela fosse inviabilizada pelo previsível adensamento demográfico, o que levou o governo à conclusão óbvia de que deveríamos ter um segundo (ou, na verdade, um primeiro, para valer) centro. Estávamos em 1979. Em 1980, iniciamos a desapropriação de 62 mil hectares (620 km²) em Alcântara e, em 1993, logramos o primeiro lançamento de satélite brasileiro, mas nos EUA. Observe-se quanto tempo levamos da decisão de fazer Alcântara até o primeiro lançamento: 15 anos. De 1979 a 1993: HISTÓRICO DAS ATIVIDADES ESPACIAIS NO BRASIL (cont.) • 1993: colocado em órbita nos EUA o pequeno (115 kg) e 1º satélite artificial totalmente projetado, 23 • • • • • • • • • • construído, testado e operado no Brasil: o SCD-1; 1993: lançado do CLA, com pleno sucesso, o grande foguete suborbital VS-40, desenvolvido pelo CTA, que alcançou cerca de 1.000 km de altitude e quase 3.000 km de distância; 1994: criada a Agência Espacial Brasileira (AEB) pela Lei nº 8.854; 1996: aprovado o Programa Nacional de Atividades Espaciais - PNAE 1997: 1ª tentativa (frustrada) de lançamento do VLS; 1998: colocado em órbita nos EUA o 2º satélite artificial totalmente projetado, construído, testado e operado no Brasil: o SCD-2 (115 kg); 1999: nível mínimo de recursos para o Programa Espacial Brasileiro; e 2ª tentativa (frustrada) de lançamento do VLS; 2003: explosão do 3º protótipo do VLS na plataforma de lançamento, causando a morte de 21 especialistas; 2003 em diante: lenta retomada dos investimentos na área espacial; 2004: Relatório Final da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, criada para investigar o acidente com o VLS-3, conclui que “A falta de recursos é um dos aspectos fundamentais para explicar a falta de sucesso até agora do VLS e para explicar o acidente ocorrido no dia 22 de agosto de 2003”. 2009: o Ministério da Defesa, irresignado com a decisão do INCRA, pleiteia a extensão do CLA à área hoje ocupada por comunidades quilombolas. Em 1994, criamos a Agência Espacial Brasileira que, lamentavelmente, não foi pensada atendendo a projeto 24 estratégico ou como resposta a uma política de Estado. Carece do indispensável poder de coordenação. Resultou, mais do que tudo, da necessidade de oferecer uma satisfação internacional, para deixar claro que nossa iniciativa era civil, ou seja, sem qualquer implicação militar, apesar de o CLA pertencer ao Ministério da Defesa e ser operado pela Força Aérea. Assim, como Pilatos entrou no “Creio em Deus Padre”, civis foram chamados para dirigir a Agência Espacial Brasileira. Mas a tendência inevitável, porque necessária, é o atual CLA transformar-se em uma grande e moderna base militar, abrigando Base Aérea, Capitania dos Portos e ancoradouro de fragatas, neste caso em convênio já em negociações com a AEB. O imperativo estratégico deriva de sua localização entre o fim do Nordeste e o início da Amazônia legal, de frente para o Atlântico. São compreensíveis as restrições que nos impõem as grandes potências à transferência de tecnologia; sabemos o que significa lidar com área dual. E todas as áreas assim são muito sensíveis, principalmente para quem controla a tecnologia e não deseja sua disseminação, seja por questões de segurança, estratégico-militares, seja por motivações puramente comerciais, como é o caso das restrições norteamericanas, russas e francesas ao projeto Cyclone-4. Para aguçar mais ainda a intenção no cerceamento ao acesso dos países em desenvolvimento à tecnologia espacial, registra-se a preocupação das grandes potencias em assegurar atividades às suas próprias equipes e linhas produção, fazendo com que, mesmo ao custo de subsídios, continuem fornecendo equipamentos espaciais aos países mais pobres. As iniciativas espaciais enfrentam ambas as restrições, pois constituem ameaça ao restrito clube dos fornecedores de lançamentos, e podem, pelo menos teoricamente, ainda ter uso militar, caso que é o do projeto da Coréia do Norte. Mas não foram dadas condições operacionais à Agência Espacial Brasileira, que se transformou – e de certa 25 forma ainda o é, até hoje - numa simples repassadora de recursos. A AEB repassa 94% de seu orçamento e não interfere na programação do CTA, que atua na área de lançadores; não interfere na programação do INPE, que está voltado à produção de satélites, e não interfere em nenhum dos organismos que atuam na área do Programa Espacial Brasileiro. A AEB financia o CLA, mas é despojada de competência legal e administrativa de gerência. Cobra-se dessa agência uma coordenação de atividades que não lhe cabe exercer18, desprovida que está, formalmente, legalmente, administrativamente, politicamente de poderes. Já em 1997, tem início a saga do VLS, quando da primeira e já falha tentativa de lançamento. Em 1999, foi o ano da segunda e igualmente fracassada tentativa de lançamento; e, em 2003, da terceira frustração, muito mais grave do que as anteriores, porque naquelas foi possível a interrupção controlada do voo. É terrível, dramático, lamentável e angustiante ter de repetir e de relembrar (estou me referindo à terceira tentativa) : dois dias antes do lançamento, houve um erro humano (curto-circuito), que fez com que um dos motores detonasse. Daí derivou uma explosão em cadeia: foram destruídos o foguete, o satélite, a plataforma e computamos ainda a perda irreparável de 21 brasileiros. Ao analisar as falhas ocorridas com o VLS, percebese claramente que houve uma grande perda de competência e conhecimento do sistema em relação aos idos de 80, quando foi lançado no CLBI, o veículo Sonda IV, com 7 toneladas, saindo na vertical, com controle de atitude (pilotagem automática) nos três eixos e com êxito total. O estrangulamento dos recursos 18 Este desarranjo institucional está denunciado no Relatório da CPI da Câmara dos Deputados que analisou o acidente com o VLS-3. Seu texto está acessível em http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/88923/1/CPMIAtraso.pdf 26 Quando ocorreu a explosão do terceiro VLS, o autor deste texto era Ministro da Ciência e Tecnologia e declarou que a causa do desastre remontava à dieta de recursos. Essa afirmação provocou celeuma, inclusive no Governo, mas cabe reiterá-la: foi a ausência de recursos que destruiu os três foguetes. Foi a ausência de recursos que apertou o botão da explosão e matou os 21 cientistas e técnicos brasileiros. Não se faz um cientista em dois minutos; não se faz um técnico em Aeronáutica e Espaço em cinco minutos. Isso leva cinco, dez, quinze anos. Não adianta tão-só formálo, a custos altíssimos, se não lhe asseguramos trabalho, porque a tecnologia se aprende fazendo. Como hoje é sabido, um detonador desse acidente foi uma série de erros de concepção, processos e operação, derivada da inexperiência da nossa equipe. Inauguramos o CLA em 1983. Em 26 anos tivemos apenas três lançamentos de veículo lançador, defasados de anos um do outro. Quando se lança o subsequente, a experiência adquirida com o lançamento anterior já se esvaeceu, implicando uma nova reaprendizagem. Qual é a experiência que essa equipe vai acumular? Como resultado, os fracassos das três tentativas e as incertezas relativamente ao futuro. O próprio parque industrial não de sustenta com uma escala tão baixa de produção. As empresas tem que partir para outras atividades como alternativa ao fim das operações. Ademais, a lei de licitações não permite que, depois de haver sido qualificada para o desenvolvimento de um determinado componente com tecnologia agregada, a mesma empresa possa ser contratada para os lotes futuros, no sentido de garantir a qualidade e utilização de seus meios de produção devidamente qualificados. Obriga o sistema a abrir nova licitação e recomeçar tudo de novo, não raro em uma outra empresa que também só raramente tem condições de fornecer dentro dos mesmos requisitos. A carência de recursos também leva à diminuição de ensaios em solo, pois requerem materiais e instalações 27 complexas e caras para testar os equipamentos em desenvolvimento. Muitas vezes as configurações desses modelos de ensaio são simplificadas em nome da diminuição dos custos e outros ensaios são suprimidos, levando-se ao voo materiais com baixa qualificação em solo. A causa mais importante do atraso brasileiro em seu Programa Espacial, a sangria dos investimentos, está registrada no gráfico abaixo: os recursos, razoáveis no período Sarney, caem no governo Collor; na administração Itamar têm um soluço positivo e voltam a cair no governo FHC, principalmente na medida em que se aproximava a terceira tentativa de lançamento do VLS, e só começam a se recuperar na administração Lula. Os recursos cresceram e mantiveram-se em razoável patamar de 1986 a 1989, com um pico máximo da ordem de US$ 120 milhões em 1988. Despencaram, porém, nos anos 90, chegando praticamente a zero em 1999. Naquele 28 ano, foram carreados ínfimos US$ 8 milhões para tudo: satélites, centros de lançamento, foguetes de sondagem suborbitais, lançadores VLS, laboratórios, usina de propelente etc. O gráfico mostra o total executado em cada ano, mas não evidencia outro ingrediente de nossa quase tragédia: com os satélites, desde 1992, investimos bem mais do que em lançadores e centros de lançamento. Em 2002, ainda às vésperas do lançamento do 3º VLS, os recursos destinados a satélites foram duas vezes superiores aos da construção de veículos. Diante do estrangulamento dos anos 90, especialmente do programa nacional de lançadores, a AEB, pouco antes daquele patamar mínimo no ano de 1999, pagou aos EUA, em 1998, quantia elevada para assegurar o lançamento do pequeno e simples satélite SCD-2. Os norteamericanos cobraram o hoje equivalente a cerca de R$ 100 milhões para os dois lançamentos com o veículo Pegasus. O valor total pago aos norte-americanos para os dois lançamentos (SCD-1 e 2) foi equivalente ao custo de construção e lançamento de cinco VLS! E ficou por isso mesmo! Fortunas maiores foram remetidas para o exterior para lançarmos os outros satélites de sensoriamento remoto e de comunicações comprados pelo Brasil: 29 Satélites lançados (todos no exterior) Coleta de dados ambientais • SCD 1 (lançado por Pegasus - EUA em 9/2/1993) • SCD 2 (lançado por Pegasus - EUA em 22/10/1998) Sensoriamento remoto • CBERS 1 (lançado por Longa Marcha - China em 14/10/1999) • CBERS 2 (lançado por Longa Marcha - China em 21/10/2003) • CBERS 2b (lançado por Longa Marcha - China em 18/09/2007) Comunicações • • • • • • • • • Brasilsat A1 (Canadense, lançado em 1985 em Kourou) Brasilsat A2 (Canadense, lançado em 1986 em Kourou) Brasilsat B1 (Estadunidense, lançado em 1994 em Kourou) Brasilsat B2 (Estadunidense, lançado em 1995 em Kourou) Brasilsat B3 (Estadunidense, lançado em 1998 em Kourou) Brasilsat B4 (Estadunidense, lançado em 2000 em Kourou) StarOne C1* (Francês, lançado em 2007 em Kourou) StarOne C2* (Francês, lançado em 2008 em Kourou) StarOne C12* (Estadunidense, antigo AMC-12, lançado em 2005 em Kourou; comprado da empresa SES Americon) O.b.s.: (*) StarOne é a subsidiária da área satélites da Embratel, alienada a grupo estrangeiro em 1998. Assim, contrariando a Política Nacional de Desenvolvimento de Atividades Espaciais, que foi reduzida um livrinho que descansa nas mesas das instituições, ou dorme em suas gavetas, e que priorizava nossos lançadores e centros de lançamento no Brasil, somente os gastos para lançamentos nos EUA, pelo Pegasus, com os pequeninos e simples satélites SCD, bem como com os CBERS e seus lançamentos na China pelo “Longa Marcha”, e com a Estação Espacial-ISS nos EUA, passaram a suplantar em muito, desde 1994, os investimentos em lançadores e centros de lançamento nacionais, que deveriam ser 30 prioritários. Mereciam atenção especial, inclusive, por envolverem maiores avanços e complexidade tecnológica e por serem submetidos às barreiras de outros países. Dentre todos os grandes países emergentes, somente o Brasil, intrigantemente, resolveu, naquela década, sufocar e, praticamente, extinguir o próprio programa espacial. Índia e China investiam e continuaram a investir forte e continuamente em seus programas espaciais. A Índia, na ordem de US$ 750 milhões/ano e a China algo como US$ 1,5 bilhão por ano (dados de 2005). O montante chinês é 12 vezes maior que o “pico” dos investimentos do Brasil (em 1988), e 188 vezes maior que o orçamento brasileiro em 1999, para todo o Programa Espacial! Hoje, China e Índia colhem os resultados do avanço tecnológico e da valorização de suas indústrias e produtos, alcançando patamar muito mais elevado do que o Brasil em soberania, valor agregado de seus produtos industriais e em imunidade a cerceamentos das grandes potências contra seu desenvolvimento tecnológico. PAÍSES QUE POSSUEM PROGRAMA ESPACIAL COMPLETO PAÍS ANO DO 1º LANÇAMENTO DE SATÉLITE EX-URSS* 1957 ESTADOS UNIDOS* 1958 FRANÇA 1965 CHINA* 1970 JAPÃO 1970 REINO UNIDO 1971 ÍNDIA 1980 ISRAEL 1988 IRÃ 2009 COREIA DO NORTE 2009 CENTROS DE LANÇAMENTO 5 5 1 4 2 0 3 1 1 1 31 * Rússia, EUA e China possuem numerosos outros centros menores, do porte do nosso CLBI. ELIMINAÇÃO DOS RECURSOS HUMANOS Pari passu àquele estancamento dos recursos financeiros, decisão de governo, medidas correspondentes foram adotadas nos anos 90 todas elas contribuindo para o esvaziamento de nossos quadros de pessoal técnico. O Comando Geral de Tecnologia Aeroespacial-CTA, encarregado de desenvolver o veículo lançador e adequar o CLA, sofria drástica e crescente carência de recursos humanos, perdendo cerca de 2.500 servidores naquela década, permanecendo sem autorização governamental para reposição. Registra-se o processo crescente e continuado de evasão de funcionários, engenheiros e cientistas, formados e especializados com muito esforço, tempo e recursos públicos que não retornaram na forma de benefícios para o país. São variadas as explicações, a começar pela desmotivação causada pela descontinuidade ou desmantelamento dos projetos e pelos cada vez mais baixos salários na área de ciência e tecnologia, muito menores do que os de todas as demais carreiras de Estado. Por exemplo, um pesquisador com doutorado, em fim de carreira, ganhava menos do que um jovem iniciante agente policial federal de nível médio. O já referido relatório da CPI da Câmara dos Deputados, que investigou o acidente com o VLS em 2003, denunciou: “O vencimento básico do pessoal de nível superior se situa (números de 2003) entre R$1.600,00 e R$2.500,00. A remuneração total vai de R$2.800,00 a R$3.800,00, podendo alcançar valores entre R$4.000,00 e R$5.000,00 por titulação (Mestre) e, em apenas dois casos, em função da gratificação por titulação (Doutor) a remuneração passa de R$5.000,00, mesmo assim alcançando R$5.177,20.” 32 E continua o Relatório: “Há que se considerar, ainda, que a não autorização para reposição do pessoal que se desligava das atividades e o não aumento dos quadros [para “enxugar o Estado inchado”] impedia a renovação das equipes”. A conclusão da Câmara dos Deputados resume bem os problemas até aqui descritos: CPI – ACIDENTE VLS “A Comissão preocupou-se com a condução do Programa Espacial Brasileiro e chegou à conclusão de que a causa remota do acidente foram os baixos investimentos no Programa e, pior do que isto, investimentos que foram diminuindo gradativamente nos últimos 16 anos (a partir de 1988). Pode-se dizer que a Política de Pessoal do setor também está ligada aos baixos investimentos. Baixos salários, falta de reposição dos que se desligavam, não aumento do quadro que seria exigido se o programa fosse intensificado, são conseqüência deste baixo investimento e, também, funcionaram como causa remota do acidente. A organização institucional do setor também foi um problema detectado pela Comissão Externa, já que a AEB, teoricamente responsável pelo Programa Espacial Brasileiro, não tem comando efetivo sobre as atividades, pois nem o IAE/CTA, nem o INPE lhe são subordinados.” Novos tempos? 33 No atual governo, desde 2003, houve significativo aumento de recursos financeiros, como indicado no gráfico seguinte: Contudo, apesar da melhoria na injeção dos recursos financeiros, eles ainda estão em patamares 10 ou mais vezes inferiores aos de países de importância equivalente à nossa, como a Índia e a China, e, principalmente, indicam a construção de uma curva de queda a partir de 2005. Vejamos os níveis dos dispêndios dos outros países em atividades espaciais: 34 35 Como revela o gráfico, nosso País aplica em seu Programa Espacial percentual do PIB inferior, até, ao de 36 países sem tradição na área, como Portugal, o grão ducado de Luxemburgo, Espanha, Finlândia e muitos outros. Brasil–Ucrânia: o Cyclone-4 O último acidente com o VLS reforçou a necessidade de saltarmos etapas. Se houvéssemos conhecido o sucesso em 1997, ainda que tardio, o país teria sido o sétimo a lançar satélite com foguete próprio; em 2009, seria o nono. Precisamos recuperar o tempo perdido. A etapa a vencer é, no nosso entendimento, a do veículo lançador, e a melhor forma para isto é o acordo com a Ucrânia firmado em 2003 e aprovado pelo Congresso Nacional em 2004. Este acordo oferece um foguete confiável e tecnologia para a construção de uma plataforma de lançamentos. E mais, poderá nossa indústria participar da produção de partes dos foguetes, e técnicos nossos acompanhar os trabalhos nas fábricas ucranianas. Profissionais serão treinados em Universidades ucranianas e técnicos ucranianos darão cursos no Brasil. O Cyclone-4 representa duplo avanço tecnológico sobre o projeto VLS, a saber, i. o avanço de classe do lançador19, e ii. a introdução do propelente líquido. É que o Cyclone-4 transporta uma carga 25 vezes maior do que o VLS, na mesma altura de órbita, ou seja, 5.300kg do lançador ucraniano contra 200kg do VLS. Por outro o Cyclone-4 é abastecido com propelente líquido nos três estágios, condição necessária no desenvolvimento de lançadores de grande porte. Assim, é fácil compreender que a associação Brasil-Ucrânia possibilitará ao nosso país, em pouco tempo, e a relativamente baixo custo, adquirir o domínio operacional de lançamento de veículos lançadores de grande porte com combustível líquido. Num segundo momento, de especial nas novas versões do veículo Cyclone, 19 Os lançadores, segundo seu tamanho, são identificados pelas seguintes classes: micro, pequeno, médio, intermediário e pesado. O VLS se enquadra na categoria dos micro lançadores e o Cyclone-4 na classe dos médios para intermediários. 37 nosso país participará do desenvolvimento e fornecimento de componentes de veículos. OBS: GTO = “Geosynchronous Transfer Orbit” (±580 km x 35786 km x 7°) SSO = “Sun Synchronous Orbit” (±800 km x 800 km x 98.6°) O Cyclone-4 resulta da evolução de ótima família de veículos lançadores. Incorpora dois primeiros estágios idênticos aos dos veículos Cyclone-2 e Cyclone-3, com a experiência bem sucedida em 227 missões e somente 6 falhas em quase 40 anos de operação (total de lançamentos = 227, sendo: 106 Cyclone-2 e 121 Cyclone-3). Nesses 227 vôos realizados, o 1º e o 2º estágios tiveram 100% de sucesso. O 3º estágio é a parte mais crítica, pois seu desempenho afeta diretamente a colocação do satélite em órbita. Houve apenas quatro falhas do 3º estágio em 121 lançamentos de Cyclone-3. 38 Para o Cyclone-4, foi desenvolvido um novo 3º estágio, usando conceitos e componentes no estado-da-arte. Aproveita a experiência ucraniana com os foguetes Zenit, Dner e Zenit-3SL. O novo terceiro estágio do Cyclone-4 tem maior capacidade de propelente e motor foguete capaz de múltiplas ignições. Utiliza sistema de controle aperfeiçoado para inserções orbitais mais precisas. O Tratado de cooperação Brasil-Ucrânia pode ser assim resumido: a Ucrânia entra com o desenvolvimento do Cyclone-4, que, como já referido, é o aperfeiçoamento do Cyclone-3; o Brasil entra com o centro de lançamento e com a infraestrutura geral necessária ao apoio do lançamento do Cyclone 4, e as partes brasileira e ucraniana, que compõem a ACS, devem criar o sitio de lançamento específico para a preparação e lançamento do veículo Cyclone 4, o que é muito relevante. Entre prédios, estradas e outras obras viárias menores, são 103 itens-obras a serem executados em Alcântara. Os dois países construirão a plataforma de lançamento em Alcântara utilizando também a indústria nacional como fornecedora e contando com a participação de técnicos brasileiros na implantação do sítio e operação de lançamento do veículo. Como resultado, o Brasil disporá de conhecimento para construir suas futuras plataformas. A parte ucraniana já informou, expressamente, estar disponível para que técnicos brasileiros do CTA acompanhem na Ucrânia os trabalhos do Cyclone-4. Assim, com o Projeto Cyclone-4, asseguraremos a aquisição de tecnologia, que nos foi vedada nos demais acordos. E estamos planejando, para daqui a 15, 20 anos, projetar, em conjunto, uma nova versão, o Cyclone-5, que será desenvolvido pelos dois países. Por que o acordo é vantajoso para os dois países? Para o Brasil, além da transferência de tecnologia, o acordo é vantajoso simplesmente porque nos supre com aquilo de que mais carecemos: lançador. Para a Ucrânia é vantajoso porque, dominando a tecnologia de lançadores e de 39 construção de plataformas, não tem como lançar veículos de seu próprio território, e atualmente já não pode contar com as bases russas em Plesestk e Baikonur, que ficam no Cazaquistão, por sinal, ambas extremamente inadequadas para lançamentos espaciais. O acordo com o Brasil lhe assegura um centro de lançamento na maior proximidade possível do Equador, e de frente para o oceano Atlântico. Mas qualquer projeto estratégico enfrenta dificuldades neste País: a tentativa de constituir a ACS começou em 1991, com o primeiro acordo com a Ucrânia, e ganhou objetividade em 1997, quando nossa representante era a INFRAERO, que negociou com uma empresa italiana, a Fiat Avio, a construção da plataforma para o veículo ucraniano. A empresa italiana, porém, retirou-se do projeto, ‘aconselhada’ por autoridades norte-americanas. Como sabemos, a construção dessa plataforma, todavia, em 2009, ainda não foi iniciada, dependente o início das obras ora da Justiça Federal, ora do Ministério Público, ora do INCRA, ora do IBAMA. Talvez logremos começa-la em 2010 se conseguirmos atender às exigências ambientais, condicionantes da Licença de Instalação. As alterações da política internacional decorrentes da implosão da União Soviética e do fim da Guerra Fria, possibilitaram empreendimento desta envergadura, a saber, o deslocamento de veículo tão potente para ser lançado em outro país para fins pacíficos e bases comerciais. Essa experiência abre oportunidade única para o Brasil, agora em condições de saltar etapas no domínio da tecnologia espacial, o que de imediato vai capacitá-lo com o domínio completo da operação de um veículo de grande porte movido a propulsão líquida. Essa experiência abre caminho para, numa segunda fase, adquirir o domínio completo de um sistema de lançamento espacial. De outra forma, se tivéssemos decidido partir para o desenvolvimento totalmente próprio de motores a propulsão líquida, característica do Cyclone, precisaríamos 40 de investimentos superiores a 2 bilhões de dólares n.a. e pelo menos 10 anos de intensos trabalhos. Temos que retornar a 17 anos passados quando o Brasil sofreu duramente com embargos dos países ocidentais no desenvolvimento do VLS, obrigando-nos reprojetar grande parte do veículo, posto que nos era negada licença de importação até para os mais simples componentes, como conectores elétricos. O Brasil sofreu pressões dos EUA para que empresas nossas suas fornecedoras de equipamentos (como a EMBRAER) não participassem do programa do VLS, sob o risco de terem suas exportações embargadas. O Brasil, assim, era impedido de beneficiar-se dos serviços de sua própria e avançada indústria aeronáutica, na qual tanto investira o poder público, para o desenvolvimento de veículos lançadores. CRONOLOGIA DA ACS Em 1997, a empresa italiana Fiat Avio propõe consórcio para promover lançamentos comerciais utilizando o foguete ucraniano Cyclone-4 a partir do CLA. Em 1999, a Fiat Avio desligou-se do empreendimento julgando-o inviável, em decorrência de comunicação do Governo norte-americano ao Ministério dos Assuntos Estrangeiros italiano, contrária ao empreendimento. Em 2002, em 17 de janeiro, é assinado o “Acordo sobre Salvaguardas Tecnológicas Relacionadas à Participação da Ucrânia em Lançamentos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara”. Em 2003 em 21 de outubro, assinatura em Brasília do “Tratado entre a República Federativa do Brasil e a Ucrânia sobre a Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo Lançador Cyclone-4 no Centro de Lançamento de 41 Alcântara”. O Tratado criou a empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS). Em 2004 a AEB solicitou a formal concordância da Aeronáutica quanto à aprovação da área especificada para a ACS no interior do CLA. O DEPED, em 19/05/2004, comunicou à AEB sua aquiescência. Também em 2004, em 26 de outubro, o DEPED informou à AEB que não mais poderia ser concedida aquela área no interior do CLA, pois ela estaria destinada aos sítios dos veículos lançadores nacionais VLS-2. Ainda em 2004, o Decreto Legislativo nº 5.666, de 2/11/2004, promulga o Acordo sobre Salvaguardas com a Ucrânia. Em 2005, o Decreto Legislativo nº 5.436, de 28/04/2005, promulga o Tratado entre o Brasil e a Ucrânia. Em 2006 é aprovado o Estatuto da ACS. Em 2006, a AEB comunica à Ucrânia a delimitação de área destinada ao sítio da ACS fora do CLA20. 20 Em 2004 a AEB solicitou a formal concordância da Aeronáutica quanto à aprovação da área especificada para a ACS no interior do CLA. A Aeronáutica, por intermédio do DEPED (Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento da Aeronáutica, futuro CTA), em 19/5/2004, comunicou à AEB sua aquiescência. Todavia, apenas cinco meses passados, volta à AEB agora para dizer que não mais poderia ser concedida aquela área pois ela estaria destinada aos sítios dos futuros VLS-2. Em 20/12/2006 a AEB comunicou à NSAU a localização e delimitação de novo sítio, agora fora do CLA, e dentro do complexo CEB, afinal abandonado, com 1.280 hectares, situado imediatamente ao norte e adjacente à região atualmente ocupada pelo CLA. Em face dos obstáculos levantados pelos quilombolas, que reivindicam a área, a ACS retorna ao CLA. Em 8/8/2008 a ACS obteve autorização do Ministério da Defesa para uso, pelo Projeto Cyclone-4, de, agora, apenas 462 hectares de área no interior do CLA. Em julho de 2009, passado quase um ano da pronta autorização do Ministro da Defesa, a ACS ainda aguarda a formalização da cessão de uso, de que depende para a obtenção das licenças exigidas pelo IBAMA para o início das obras e para qualquer negociação visando ao financiamento do Projeto. 42 Em 2007 (5 de dezembro) tem início as atividades da ACS. Em 2008 (18 fevereiro) começou o piquete dos quilombolas em Alcântara, impedindo a continuidade dos trabalhos no sítio concedido pela AEB para a ACS fora do CLA. Em 2008, em 8 de agosto, foi formalizada a autorização do Ministério da Defesa para o uso pela ACS, para o Projeto Cyclone-4, de 462 hectares de área interna ao Centro de Lançamento de Alcântara – CLA. Também em 2008, em 04 de novembro, o INCRA emitiu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) que transformou 781 km2 da península de Alcântara em território quilombola, inviabilizando todos os sítios planejados pela AEB, inclusive o sítio original da ACS fora do CLA. Ainda em 2008, em 18 de dezembro, o Governo Federal aprovou a Estratégia Nacional de Defesa, que elege três setores decisivos para a defesa nacional: o cibernético, o espacial e o nuclear. Em 2009 (6 março), a Justiça Federal autorizou a realização em território quilombola dos trabalhos de interesse da ACS para atender às exigências do IBAMA para obtenção de licenciamento para a construção do sítio no interior do CLA. O licenciamento será outorgado provavelmente entre dezembro de 2009 e fevereiro de 2010. Para viabilizar-se, a ACS renunciou ao seu direito, derivado do Tratado, a uma área em Alcântara específica para a instalação de seu Centro, e concordou em instalar-se, em área inferior, no interior do CLA, sob a jurisdição do 43 Comando da Aeronáutica, dependente, em agosto de 2009, de negociações visando à assinatura de um termo de cessão. Em resumo: desde 1997, com o primeiro ato específico do Projeto Cyclone-4, até agora, em 2009, estamos completando 12 anos, e ainda aguarda-se autorização formal de órgãos governamentais para começar a implantação do sítio do Cyclone-4 dentro do CLA. CONSIDERAÇÕES FINAIS Parece evidente que a sociedade brasileira -- nem a sociedade civil nem a sociedade política – ainda não compreendeu que somente mediante investimentos, maciços e sistemáticos, isto é, contínuos, em ciência, tecnologia e inovação, conseguirá o País superar as amarras do subdesenvolvimento, como superaram, entre outros, Coréia do Sul e China. A alternativa é uma situação de periferia, como o de todos os que se conformaram com o destino de exportadores de matérias-primas e de bens de baixo valor agregado. Certamente a crédito de sagas passadas, como a luta pelo desenvolvimento da tecnologia nuclear, a defesa do petróleo, a industrialização do país, a indústria de aviação, compreendeu o governo brasileiro, e este é o grande mérito da EDN, que o país, velho comprador de ‘caixas-pretas’ e pacotes tecnológicos, terá de investir na produção e aquisição de tecnologia de última geração. Nada, porém, será possível se não houver competência para identificar as questões estratégicas e administrá-las como políticas de Estado. A evidência, porém, é que nada neste país constitui política de Estado, pois os programas não atravessam administrações e numa mesma administração estão a depender das idiossincrasias da burocracia governamental, desapartada dos interesses estratégicos do país, descompromissada com o destino dos projetos nacionais e finalmente desvinculada de compromissos com seu provedor, o Estado. Este, parece múltiplo. Há um Estado que 44 toma decisões, outro que executa, outro que fiscaliza, pondo o controle acima dos objetivos. Não se entendem, e não há linha hierárquica entre si, de sorte que o Estadomeio pode desfazer e sistematicamente desfaz as políticas do Estado-fim. Esse, o Estado que herdamos do neoliberalismo (e nada fizemos para mudá-lo), uma estrutura paquidérmica, inepta, simplesmente incapaz de operar. Essa burocracia não se questiona a propósito das consequências de seus atos e de suas omissões, nem se pergunta ela pelos prejuízos que de seus atos e omissões, de sua desídia, podem advir para o interesse público. Do atraso de uma licitação deriva perda de milhões de reais, e atraso inestimável de cifrões no desenvolvimento econômico e social do país. Embora as negociações, como vimos, remontem ao início dos anos 90, o Tratado de Cooperação Brasil-Ucrânia é de 2003, e só em 2006, foi publicado o estatuto da ACS e só em setembro de 2007 a empresa se instalou. Levamos quatro anos para fazer essa operação. Pior, desde 1997, com o primeiro ato específico do Projeto Cyclone-4, até agora, em 2009, estamos completando 12 anos, e a ACS ainda não adquiriu o direito de instalar-se dentro ou fora do CLA. 45