Ruy Duarte de Carvalho: antropologia e ficção na representação do mundo
Chaves, Rita
A vantagem do artista, o seu luxo, assim como seu tormento e sua responsabilidade, é a
de que não há limites para o que ele quiser tentar como executante – não há limites
para seus possíveis experimentos, esforços, descobertas, conquistas.
Henry James
Uma das características mais constantemente apontadas na literatura angolana é
precisamente a sua capacidade de conversar com a história, conversa muitas vezes
direta, carecendo em muitos casos daquele espaço de mediação que permite que a
linguagem ilumine de maneira mais eficiente a realidade dos tempos. Ao optar por um
enfoque em bruto, pautado por uma compreensível urgência de informar, a escrita
literária vive o risco de renunciar perigosamente a sua capacidade de oferecer muitas
leituras do mundo.
Essa vinculação tão nua entre o trabalho artístico e o desejo de explicitar um
compromisso com a realidade circundante não excluindo um outro gênero literário,
tende a privilegiar a narrativa uma vez que o poema, pela natureza de sua linguagem
freqüentemente empenhada na busca de uma certa autonomia em relação ao mundo que
lhe serve de referência, parece melhor protegido das tentações de mergulhar de maneira
desabrida no desvendamento do cotidiano.Ainda que atravessada pela “poesia do
coração”, a narrativa, mais especificamente o romance, como “prosa de circunstância” para lembrar de duas belas expressões de Hegel em “Os diferentes gêneros poéticos”
(s/d, p.190) – revela-se mais permeável ao cenário sócio-cultural que é o fundamento de
sua matéria.
Entretanto, porque menos compromissado com padrões estabelecidos, o romance, se por
um lado abre-se mais facilmente às pressões do universo em que o autor está inserido e
do qual vai procurar tratar páginas afora, por outro lado revela-se capaz de dar corpo a
uma sábia mistura em que se condensam a necessidade de documentar e o desejo de
criar. Nessa potencialidade própria do gênero reside a noção de generosidade que
Roland Barthes reconhece em sua estrutura e assim resume:
O romance ama o mundo porque ele o abarca e abraça. Há uma generosidade do
romance (que não é negada pela sociologia goldmaniana, em sua linguagem), uma
efusão não sentimental porque mediatizada (pensar em Guerra e paz) ( 2005, p. 29)
Em síntese, articular produtivamente a dimensão do real com a dose de fantasia
adequada ao jogo das revelações é um procedimento que está na estruturação do
romance como gênero literário. Se combinarmos o termo fantasia com invenção no
domínio da linguagem, podemos chegar a uma espécie de equação que medula o
trabalho de escritores destacados nos mais variados sistemas literários. No terreno da
literatura angolana, por exemplo, podemos pensar em Ruy Duarte de Carvalho e nos
modos diversos de abordar os problemas que estão no seu horizonte de preocupação,
como homem, como cidadão, como intelectual, como artista. Suas últimas narrativas
(Vou lá visitar pastores, Os papéis do inglês, Actas da Maianga e As paisagens
propícias), sem abrir mão do testemunho de um tempo - o seu no país que vive abrigam e potencializam uma concepção própria da arte de representar o mundo no
trabalho literário.
Entre essas quatro narrativas, que guardam entre si fundas diferenças, há pontos de
aproximação, como a presença de um discurso mesclado, elaborado sobre a atenuação
das fronteiras entre os gêneros que o escritor pode cultivar. Diante delas, o leitor
experimenta um sentimento afim, que é uma certa perplexidade nascida da dificuldade
de distinguir na tipologia convencional a modalidade literária que tem diante dos olhos.
E essa é uma sensação que não se desfaz, pois a complexidade estrutural de cada texto
reforça a nossa hesitação, muito embora nos vá, ao mesmo tempo, conduzir a algumas
convicções. A primeira delas é a qualidade da escrita. Temperada pelo domínio de quem
conhece o ofício, a linguagem de Ruy Duarte de Carvalho é densa, singularizada pela
recusa a certos facilitarismos tão a gosto do mercado. Não vamos encontrar ali nem a
repetição de fórmulas poéticas conhecidas nem o esforço de inovações que, ao atingir
um determinado grau de voracidade, pode se voltar contra a própria obra e afastar o
leitor.
A segunda convicção a que o contato com a obra nos leva está ligada à possibilidade de
se verificar que essa mesclagem de modalidades narrativas não é apenas um
compromisso programático, mas reflete uma concepção de leitura do mundo centrada
em olhares que se movem para exprimir de múltiplas maneiras o que é captado.
Podemos dizer que explorando as potencialidades do romance, o autor angolano
oferece-nos uma narrativa que, ao aproximar de modo inequívoco ensaio e ficção,
inscreve-se como um “terceiro gênero”, na expressão do já citado Roland Barthes
referindo-se a Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.
Em se tratando de Ruy Duarte de Carvalho, seu próprio trajeto sugere pistas para
interpretação de algumas marcas inscritas em sua obra. Poeta, ficcionista, cineasta e
antropólogo, ele é desses homens para os quais a multiplicidade de instrumentos não
significa superficialidade de gesto. Em cada atividade, a linha do rigor é decisiva e
assegura a força de um trabalho que requer sempre novas análises. Não é raro, inclusive,
vê-lo em confronto com processos marcantes em sua atuação, procurando explicitar
algumas idéias a respeito de sua atividade no campo da poesia, do cinema e da
antropologia, como podemos ver em A Câmara, a escrita e a coisa dita...
É o que encontramos, por exemplo, no texto intitulado “Poesia, cinema e antropologia,
três pólos de um exercício em ação”, apresentado em forma de palestra em algumas
universidades italianas em 1990. Partindo do rendimento que pode extrair dos jogos
entre o som e o sentido, graças aos quais, segundo suas declarações, a palavra se
autonomiza e supera os limites do referencial, Ruy Duarte, passando pelo caráter
ritualizante do cinema, expõe o seu roteiro na direção de um universo cultural balizado
por parâmetros que reclamam a sua atenção e, de certo modo, a sua intervenção:
Sou cidadão e agente social num país em que a grande maioria da população se move e
se reconhece num quadro conceptual, ou cultural, se quiserem, a que só tem acesso por
duas vias. Ou pela via da enculturação, isto é de uma aprendizagem integrada enquanto
sujeito desse mesmo quadro, o que não é evidentemente o meu caso, ou pela via de uma
aprendizagem que recorra aos instrumentos do conhecimento que possibilita a sua
apreensão. Ora esses instrumentos são os da antropologia. (1997, p.113)
Tal processo de aprendizagem, que é, claramente, uma via para se aproximar do
universo que fez seu, pode ser encarado como um elemento constitutivo da sua inserção
no país. Natural no terreno da antropologia, a noção de desempenho será trazida para as
outras práticas e, com a radicalidade que caracteriza seus resultados, o trabalho de Ruy
Duarte de Carvalho vai procurar remover o visto e/ou esperado e caminhar na direção
nem sempre cômoda da ruptura, com reflexos visíveis na estruturação de seu discurso
sobre Angola, sobre os angolanos, sobre si próprio e sobre o Outro, em suas mais
variadas materializações.
Os sentidos da ruptura atravessam essa obra literária, na qual se combinam influxos
vindos dos mais diferentes campos. A dimensão de movimento que está na base da
linguagem cinematográfica, a energia conferida ao espaço que o cinema também
costuma cultivar e o sentido da viagem, que é fundamental na experiência etnográfica,
inscrevem-se na sua produção, ganhando maior ênfase nos quatro livros acima
indicados. Leitor arguto, Ruy Duarte traz para os seus textos a voz de outros que,
nomeados ou não, vêm integrar o seu produtivo diálogo com tradições culturais muito
significativas no processo de sua formação, como angolano, como escritor, como
antropólogo, como cineasta, como cidadão de um mundo que precisa investir contra
certos sectarismos. Nesse sentido, comunga com o Clifford Gertz de “O mundo em
pedaços”:
O que precisamos, ao que parece, não é de idéias grandiosas nem do abandono completo
das idéias sintetizadoras. Precisamos é de modos de pensar que sejam receptivos às
particularidades, às individualidades, às estranhezas, descontinuidades, contrastes e
singularidades, receptivos ao que Charles Taylor chamou de “diversidade profunda”,
uma pluralidade de maneiras de fazer parte e de ser, e que devam extrair deles – dela –
um sentimento de vinculação, uma vinculação que não é abrangente nem uniforme,
primordial nem imutável, mas que, apesar disso, é real. (2001, p. 196)
Em sua prosa, assim como em sua poesia, há um foco sobre as particularidades, as
estranhezas, as descontinuidades, espelhando-se na escrita alguns desgovernos da
contemporaneidade, definida por outro poeta, o brasileiro Carlos Drummond de
Andrade, como “tempo de partidos/ tempo de homens partidos” (1973,p. 82). A
consciência desse estilhaçamento do mundo percorre todas as suas narrativas,
sedimentando a crença de que é preciso conjugar as partes para melhor compor o
conhecimento que é sempre parcial, portanto sempre sujeito a novos aportes. Daí a
presença da viagem que adquire nesse quadro uma função primordial. Como é comum
no universo da antropologia, a viagem pode ser mais que a oportunidade de contato, do
desembarque em um outro mundo. Basta lembrar seu papel no percurso de Lévi-Strauss
e de Michel Leiris, entre tantos outros. Um paralelo entre Tristes trópicos e L´Afrique
fântome permite compreender a relevância do ato de viajar na formação desses dois
etnógrafos franceses cuja obra repercute muito positivamente na produção de Ruy
Duarte de Carvalho. De acordo com Fernanda Peixoto:
A riqueza do cotejo das duas narrativas reside também na possibilidade de compreensão
do processo de formação do etnólogo na França dos anos 30, quando se realizam as
primeiras grandes pesquisas de campo. O caminho seguido por ambos, sem formação
básica em etnologia, foi a viagem. Ela representou o instrumento necessário para a
formação dos profissionais, que na mesma época iniciavam-se no ofício, em campos
diferentes: no americanismo, no caso de Lévi-Strauss, no africanismo, no de Leiris. (
1992, p. )
Na trajetória de Ruy Duarte de Carvalho o trabalho de campo propriamente dito não
antecede a busca da antropologia como instrumento de interpretação das realidades que
pretende compreender, todavia não podemos afastar de seu itinerário a experiência dos
deslocamentos por Angola, seguindo roteiros inusitados no quadro da vida no país. Se o
doutorado em antropologia foi feito em Paris, cidade, aliás, a que estão
indiscutivelmente vinculados Lévi-Strauss e Leiris, o caminho para a etnografia foi
preparado pela poesia e pelo cinema. Talvez por isso, em seus textos o ato de viajar
também esteja tão diretamente ligado ao ato de conhecer e se torne central na própria
elaboração da narrativa, como demonstra muito especialmente Vou lá visitar pastores. A
viagem como elemento constitutivo do saber que se acumula interfere na construção da
escrita de que tal saber não pode ser separado. Em nenhum dos textos. Tanto em Os
papéis do inglês como em As paisagens propícias, duas narrativas tonalizadas pela
melodia da ficção, a errância é nota dominante. Temos um narrador em primeira pessoa
que circula pelo sul de Angola e não só. A marca do movimento abre ambos os textos:
Saí sozinho, logo que cheguei, para fotografar pedras à volta do acampamento, no
regresso atravessei uma linha de água em sítio errado e desfiz o rumo (...) quer dizer,
perdi-me. (...) Andei às voltas por me julgar bastante em terreno alheio. (2000, p. 13)
Partimos então no jipe, o Paulino e eu, a caminho de Opuho, na Namíbia, pela fronteira
de Namacunde, Sta. Clara... Essa foi a primeira viagem ... A que estou a fazer agora é a
segunda. (2005, p.11)
Em Vou lá visitar pastores, a idéia manifesta-se já no título, metaforizada na visita a
uma terra distante, muito bem sugerida pelo advérbio “lá”. E são muitas as viagens aí
contempladas. Na verdade, o gesto narrativo é despoletado pela viagem falhada do
Filipe, o amigo jornalista que vive em Londres. O combinado era que partissem juntos
para os terrenos já muito palmilhados pelo autor em suas pesquisas etnográficas.
Todavia o Filipe se atrasa e o tempo interdita a espera.Para preparar a viagem do amigo,
que, entretanto, ainda pode aparecer, ficam gravadas umas cassetes que vão orientar o
percurso do novo visitante. Da transcrição dessas cassetes nasce o texto.
Levando em conta que no decurso de toda viagem a bagagem carregada pelo viajante se
transforma no contato com os mundos que se cruzam, o narrador faz questão de
prevenir:
Vais viver situações novas e uma conveniente disponibilidade poderá colocar-te, se o
permitires, não só perante o desconhecido que a prática dos outros te há-de revelar mas
também face àquele que a tua experiência e a tua sensibilidade vierem a colocar à
consciência que é a tua, tributária ela mesma dos tempos e das idades que te tiver sido
dado cumprir. (1999, p. 103)
Ouvir as cassetes – ou ler a sua transcrição – conduz a outra forma de viagem. Aquela
que se faz pelas palavras, percorrendo, sob a orientação de quem já conhece o espaço, o
universo do Outro. Sem dúvida, é o mundo do Outro, esse dos pastores os quais o autor
pretende dar a conhecer. Ao leitor do roteiro que o amigo não pôde seguir abrem-se
muitas possibilidades de compreender e reorganizar o conjunto de sensações que a
experiência comporta.
Rigoroso em sua proposta, o narrador estende-se por um somatório de dados que
oferecem uma descrição detalhada do quadro em que vem investindo sua atenção há
tantos anos. As rondas, como ele muitas vezes refere, teriam começado em 1992, porém
o fim da transcrição das cassetes gravadas em 1997 ocorre em 6 de maio de 1998, como
está assinalado no fim de seu texto. No decurso desse tempo, sua memória acumulou
referências e possibilita um registro de informações que vão da geografia física da
região aos resultados das pesquisas a respeito dos kuvales. As questões relativas à
mobilidade, à endogamia grupal, à noção de propriedade plural, a laços de parentesco, à
relevância do boi na estruturação daquela sociedade, às possibilidades de sobrevivência
de quem vive à margem, aos impasses que o contato com outras formas de estar no
mundo impuseram estão no texto tratados seriamente pelo autor. Mas não é só daquelas
áreas afeitas ao universo etnográfico que ele nos fala. Outros conhecimentos e
expectativas de outra natureza são partilhados com os leitores.
Os recursos que a literatura disponibiliza são, então, acionados. A metalinguagem, a
força imagética da linguagem, as símiles e outras figuras de linguagem quebram a
expectativa de um discurso monolítico para dar lugar a uma abordagem orientada pela
polifonia, que traz para o interior da narrativa questões que a investigação não esgota,
dúvidas de quem, a despeito do rigor e do cuidado empenhados, sabe das limitações que
o próprio olhar comporta diante da inesgotabilidade do assunto. Nesse aspecto, os laços
de parentesco entre a antropologia e a literatura se apertam: ambos falam do Outro,
ambos procuram ter em conta a alteridade.
Ao cultivar intencionalmente essa ligação, Ruy Duarte de Carvalho oferece-nos um
texto claramente empenhado em romper com limitações, num exercício investigativo de
que não podemos afastar a tentativa de se compreender na dinâmica que examina. São
significativas as passagens em que o olhar do narrador dirige-se também a si próprio,
atualizando um processo de auto-reflexão alimentado neste diálogo com o Outro. Para
isso concorrem procedimentos articulados aos efeitos da mobilidade temporal e
espacial, o conceito da viagem como rito iniciático, o caráter autobiográfico e a
estrutura dialógica. Tais marcas, identificadas por Mohamadou Kane como expressões
da sobrevivência da oralidade nos romance moderno , não deixam de ser freqüentes no
texto etnográfico a partir dos anos 20. Desse modo, a obra de Ruy, se, nos acompanha
nas travessias que o desejo de compreender Angola nos impõe (tal como teria ocorrido
com o Filipe) não deixa de nos conduzir também a outras discussões: o papel do
antropólogo como ator das pesquisas que desenvolve, a constituição da etnografia como
um discurso dialógico, as relações entre antropologia e literatura que ganharam novos
contornos a partir dos anos 20.
Tendo como referências Lév-Strauss, Michel Leiris, Clifford Gertz, Ruth Benedict,
Gregory Bateson, Roland Barthes, sem dispensar a experiência de Darcy Ribeiro e a
sedução de Jorge Luis Borges, o autor angolano desempenha o seu papel de produtor de
um texto que requer de quem o lê uma atitude também produtiva. São várias as leituras
que propõe, completando-se todas na relação viva com o leitor, ou melhor, com os
leitores, pois é na diversidade do contato que a palavra pode reafirmar a sua
legitimidade. Desse modo, refinando a ligação entre a ficção e o ensaio, entre a ciência e
a arte, entre o documento e a poética, Ruy Duarte de Carvalho trabalha para a demissão
da chamada autoridade etnográfica, confirmando a argumentação de James Clifford
para quem :
É intrínseco à ruptura da autoridade monológica que as etnografias não mais se dirijam
a um único tipo geral de leitor. A multiplicação das leituras possíveis reflete o fato de
que a consciência etnográfica não pode mais ser considerada como monopólio de certas
culturas e classes sociais no Ocidente. (2002, p. 57)
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JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.
PEIXOTO, Fernanda. “O nativo e o narrativo – os Trópicos de Lévi-Strauss e a África
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Dados sobre os livros do Ruy Duarte de Carvalho
CARVALHO, Ruy Duarte de. A câmara, a escrita e a coisa dita... Luanda: INALD,
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______________________ . Actas da Maianga. Lisboa, Cotovia, 2002.
_______________________ . As paisagens propícias. Lisboa, Cotovia, 2005. 341pp.
ISBN 972-795-117-1
_______________________ . Os papéis do inglês. Lisboa, Cotovia, 2000. 185pp.
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_______________________ . Vou lá visitar pastores. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000.
387pp - ISBN 85-85469-82-X
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