CONDICIONANTES E REQUISITOS PARA UM SISTEMA DE INTELIGÊNCIA VANTAJOSO PARA O BRASIL Nota Técnica para o Centro Gestão e Estudos Estratégicos Reunião Sistemas de Inteligência, 08 de Abril de 2009 Omnia mutantur, nihil interit. Tudo muda, nada perece. Ovídio (Metamorfoses). Domício Proença Júnior, D.Sc., OMD Professor da Coppe/UFRJ Abril de 2009 [email protected] Sumário Preâmbulo ........................................................................................ 1 Limpeza de Terreno ......................................................................... 3 O mandato de inteligência................................................................ 9 Pontos Nevrálgicos......................................................................... 13 Encerramento ................................................................................. 21 Preâmbulo 1. Vive-se um período de mudanças extraordinárias dos focos, meios e métodos em atividades de inteligência que já dura três décadas, desde o fim da Guerra Fria, desde o momento em que os usos de microeletrônica, informática e telecomunicações se fundiram em termos da digitalização e começaram a avançar sobre a mecânica. Os recortes e temas das atividades de inteligência e suas possibilidades técnicas sofreram e ainda devem sofrer sucessivos impactos, cujo efeito cumulativo é de enorme conseqüência. 2. Estes impactos e efeito revelam ou impõem novas dimensões ou urgências para atividades que buscam produzir, explorar ou proteger assimetrias de informações em diferentes relacionamentos, que é a raison d’etre de atividades de inteligência em primeiro lugar. Determinam que se aprecie o significado de tais impactos e efeitos sobre o que se disponha para realizá-las, usá-las e controlá-las, orientando o desenho de agências e sistemas de inteligência. 3. Com tudo isso, o que caracteriza a situação atual é que: (i) ainda que se possa aprender com os experimentos, dificuldades, fracassos e sucessos de outros; (ii) ainda que haja muito o que conhecer e apreciar quanto à experiência e desempenho de meios e métodos aplicados e potenciais em termos técnicos; (iii) ainda que possa haver grande ganho em refinar o que sejam os interesses, necessidades e oportunidades diante do que esta ou aquela escolha de outros sugere; (iv) ainda que as experiências de mudanças, continuidade e adaptações de várias agências possam ter grande significado para a tomada de decisão neste ou naquele aspecto de um sistema de inteligência, não é possível um modelo único para a construção de sistemas de inteligência. 4. Inexiste um arcabouço que possa ser tomado como base e adaptado aos interesses, institucionalidade e disponibilidades de um dado país. O rumo possível é o de um sistema próprio, o que obriga a que se reconheça a dimensão da tarefa multifacetada que isto impõe, com a temporalidade de um fazer que associa a continuidade do que se tem com a identificação e materialização do que se decide vira a ter. Trata-se de reconhecer que o trabalho de definição de prioridades se confronta com o desafio da apreciação de um estado-da-arte em transformação, demandando uma gestão que articula esforços preparatórios e atividades presentes sopesando oportunidades, riscos e custos. Trata-se, ainda, de lidar com o que isso pode revelar no contexto particular de uma dada institucionalidade, diante dos interesses e das disponibilidades de um determinado país, buscando atender o que sejam as preferências e prioridades de um determinado governo. 5. Esta nota técnica apresenta condicionantes e propõe requisitos capazes de produzir um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil, identificando os contextos e elementos pelos quais se pode governar as atividades de inteligência. Após uma limpeza de terreno, se faz uma apreciação sucinta dos condicionantes pelos quais se pode definir o conteúdo do mandato de inteligência, reconhecendo sua especificidade e apontando para os termos de sua expressão na realidade brasileira. Consideram-se então os elementos políticos que devem predominar no rumo e no processo de -2- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil construção de um rumo próprio para as atividades de inteligência, identificando a necessidade de quadros politica e tecnicamente capazes de governar as atividades de inteligência, tanto internos às agências ou sistema quanto externos a eles. Apresentam-se três pontos nevrálgicos que identificam e articulam os papéis relativos de quem governa e quem administra as atividades de inteligência para a criação, capacitação e operação de agências ou de um sistema. Estes pontos correspondem às instâncias concretas de decisão onde se associam diferenciadamente competências políticas e de conhecimento de inteligência do governante e da administração de agências ou do sistema para: (i) produzir a política de inteligência, (ii) determinar a capacidade de inteligência e (iii) operacionalizar a alocação e prioridade no uso dos recursos de inteligência que esta capacidade disponibiliza em obediência à política de inteligência. A isto se segue um breve encerramento que aponta horizontes não explorados e oferece um panorama do que se realizou no texto. Limpeza de Terreno 6. O que se queira considerar em prol de um sistema de inteligência para o Brasil tem que iniciar se posicionando diante do significado das convulsões nas atividades de inteligência dos EUA. Estas convulsões corresponderam, por um lado, a mudanças substantivas de focos de interesses politicamente determinados, sumariamente, da Guerra Fria à “Nova Ordem Mundial” e em seguida à assim chamada “Guerra Global contra o Terrorismo”. Para além disso, tem-se o horizonte do que venha a emergir, sob a administração Obama, num arranjo em que, por exemplo, o G20 pode vir a se firmar como a instância legítima primeira para a articulação e composição de esforços comuns em escala planetária. Por outro, expressam as assim denominadas “revoluções” nos meios e capacitações dos sistemas técnicos de inteligência, sumariamente, das redes compartimentadas de ciclo completo, passando pela ambição de terceirização de análise com incremento de sistemas de monitoramento e vigilância, até a “redescoberta” da inteligência de fontes humanas. 7. O volume de recursos que os EUA se dispunham a alocar em benefício de suas atividades de inteligência lhes permitiu produzir resultados substanciais ou ao menos ambiciosos de substância em prazos comparativamente curtos. A fungibilidade política, -3- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil a flexibilidade técnica e a exuberância de recursos passíveis de serem alocados para funções de inteligência fazem com que se tenda a tomar as atividades dos EUA como um possível indicador de rumo, como em tantos outros assuntos. Mas isto pode levar a que se persiga intenções que não se fazem gestos, lanços que não se fazem passos, anúncios que são apenas balões de ensaio. Muito dos elementos acima apontados seguiram lado a lado com linhas ou projetos que não passaram de manobras de marketing, arroubos ou experimentos. A estas cautelas se acrescentarão ainda o que venham a ser os efeitos da crise presente nos EUA e em todo o mundo, que podem ter enorme relevância para as atividades de inteligência como para tudo o mais. Mas estes efeitos não pertencem ao que se propõe expor aqui, e portanto, tendo reconhecido sua pertinência e potencial, podem ser deixados de lado. 8. Há certamente um papel de destaque para o que se passa nos EUA no que diz respeito a opções técnicas, notadamente as de maior densidade de capital ou tecnologia. Trata-se de apreciar os ganhos de escala que o sucesso nos EUA pode granjear e, complementarmente, dos eventuais ganhos de escopo que isso pode alavancar para quem provê produtos ou serviços. Tem-se diversos vetores de transformação técnica na área de inteligência que se impõe como práticas, como por exemplo a ampla variedade de usos que a digitalização permite para o processamento e aquisição remota de informação, ou de outro ponto de vista a crescente rede de terceirização de serviços. O ciberespaço, ele mesmo, já se apresenta como uma possível topologia (como terra, mar, ar e o espectro eletromagnético) para o entrechoque de meios coercitivos. Assim como a topologia da órbita próxima à Terra, a certeza de que algo se pode fazer para influenciar a vontade de outros ou para resguardar a nossa vontade contra a influência de outros ainda não encontrou uma expressão clara. Assim como foi o caso do uso do ar para fins bélicos nas primeiras décadas do Século XX, por exemplo, tem-se ambições, receios e militâncias mais ou menos corporativas, mais ou menos mercadológicas, e não se tem como saber qual dentre estas visões, se é que alguma, antecipa o que revelará mais adiante. 9. Há ainda outras possibilidades técnicas de diversas ordens cujo valor segue sendo principalmente potencial. O que seja seu significado depende de medida de especulação e da capacidade de filtrar os esforços de marketing de seus fabricantes. Mas a perspectiva de um detector de mentiras confiável, de biometria em tempo real, de uma transparência logística planetária pelo acesso satélite da posição, -4- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil deslocamento e conteúdo de contêineres, de sistemas de inteligência artificial capazes de lidar com fala e textos em linguagem natural ou o que venha a ser possível em termos de vigilância, monitoramento, reconhecimento e espionagem com veículos autônomos de variadas dimensões, autonomia, capacidade e furtividade (stealth) podem levar a reconfigurações radicais do que se toma hoje como sendo os parâmetros de partida das atividades de inteligência. 10. No entanto, aceitar as escolhas dos EUA como única guia para a apreciação dos assuntos de inteligência pode fazer com que se subestime respostas mais deliberadas e frugais dos países menos aquinhoados com recursos que os EUA – todos os demais. Isto é particularmente relevante na consideração de focos e âmbito das atividades de inteligência, que admitem a confluência de fatores políticos e técnicos. Faz-se importante marcar alguns rumos distintivos que assinalam os desafios de se querer encontrar paralelos que possam servir para suprir, em parte, a ausência de um modelo. 11. Tem-se em muitos casos a aparência de continuidade de repartições funcionais longamente estabelecidas, mas que se transfiguraram em quase tudo o mais. Dentre estes, a associação de estabilidade institucional com transformações substanciais nas responsabilidades e possibilidades da Alemanha parece o mais marcante. Tem-se práticas contingentes despidas de institucionalidade formal, como o engajamento, puro e simples, de diversos dos elementos do aparato de defesa para funções de segurança e inteligência internas na Itália. Tem-se arranjos tão recentes e tão ambiciosos que seus proponentes e praticantes os tratam como tentativos e mesmo como experimentais, como a maciça pré-mobilização social e a indistinção de fronteiras institucionais do Civil Emergency Act de 2004 no Reino Unido. Mais modestamente e talvez mais realisticamente, vivem-se os primeiros momentos do rearranjo que produziu o “Ministério de Segurança Pública e Preparo diante de Emergências” no Canadá, que subordina o Serviço de Inteligência de Segurança Canadense para dar conta da inteligência tanto externa quanto interna (mas distinta da inteligência de polícia). Há expressões menos explícitas de possíveis alternativas de reconfiguração de sistemas de inteligência: a redescoberta da latitude constitucional das prerrogativas do Presidente da França sobre o âmbito e métodos das atividades de segurança do Estado; o que quer que se possa querer perscrutar dos arranjos de inteligência e condução de negócios e diplomacia da China diante de seus resultados e posturas -5- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil internacionais; o impacto da audácia conceitual que corresponde à figura do Controlador Geral na organização das atividades de Estado no Chile. 12. Existe um que de nostalgia (da Guerra Fria) e um que de fantasia (do imediato pós Guerra Fria) quando se aponta para uma “renovada prioridade” dos os usos diplomáticos e de segurança, ou no foco em Estados para o desenho e atividades de sistemas de inteligência depois do 11 de Setembro. O que era (e para muitos países ainda é) a expectativa usual do papel e funcionamento de agências de inteligência expressava o amadurecimento de uma forma quase padronizada de atividades de inteligência, que teve lugar durante a longa Guerra Fria. Configuravam-se clivagens em termos dos modelos Ocidental, Soviético e, em menor grau, das composições eventuais de partes de um ou do outro temperadas por idiossincrasias locais entre os países “não alinhados”. Dentre estes, talvez o caso mais distintivo siga sendo o da Índia, que manteve uma única agência para todos os fins de inteligência até a década de 1960 e que mantém o que talvez seja o manto de sigilo mais opaco de todas as democracias sobre suas atividades de inteligência, das quais se tem apenas raros relances. 13. Quase todos os países democráticos aceitaram como razoáveis recortes (externo/interno ou defesa/polícia, por exemplo) e controles (supervisão pelo legislativo ou comitês parlamentares de privilégios, por exemplo) cuja longevidade faz parecer “naturais”. Apesar de adaptados em maior ou menor grau a cada realidade nacional, eles eram apenas variedades de um mesmo modelo, o que se poderia caracterizar como “o modelo Ocidental”. Esta expectativa, que segue sendo muito da forma como se enquadra a questão, porque é familiar para maioria dos quadros seniores de governo ou em atividades de inteligência, teve e tem enormes dificuldades diante das práticas e possibilidades do presente. 14. Para alguns mais, a questão admitiria a consideração um legado da oportunidade perdida do pós Guerra Fria, que ficou sendo uma mescla de dever-ser com elementos que aspiraram ter sido um diagnóstico. Para os que partilharam desta visão, o fim da Guerra Fria teria tornado obsoletas, mesmo inapropriadas, as formas de inteligência anteriores. Nas versões mais desabridas e sinceras deste entendimento, a inteligência exterior abandonaria o foco em Estados e na segurança para se fazer instrumento exclusivo de relacionamentos com atores estatais e não-estatais pela lógica da cooperação e não do conflito. Ambicionava-se uma inteligência internacional -6- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil assujeitada diante do Direito Internacional, sem apreciar o paradoxo de denominar inteligência um produto de informação a ser feito público em tempo real, buscando explicitamente negar assimetrias de conhecimento entre as partes. Pelos mesmos motivos, as formas de inteligência interior passariam a ser alinhadas com o combate ao crime pela “extinção do inimigo interno”. Aspirava-se a que pudessem vir a ser exclusivamente policiais, sujeitas aos termos e requisitos de sua admissibilidade nos tribunais. 15. Embora esta perspectiva da oportunidade do pós Guerra Fria tenha permanecido mais proposta do que realidade, ela teve e para alguns ainda deveria ter alguma influência. Pode-se encontrar passos tentativos de materialização de parte dessa agenda nos dois pulsos de propostas de reforma da inteligência do início dos governos de John Major e Tony Blair no Reino Unido. Num e noutro caso, as propostas mais ambiciosas de abandono do foco em Estados ou do abandono da inteligência interna à parte da inteligência policial se revelaram excessivamente problemáticas, sendo abandonadas. Os primeiros passos da administração Bush acenaram com a desmobilização da inteligência diplomática do Departamento de Estado em favor de análises terceirizadas e a proposição de uma ênfase ou mesmo de uma exclusividade comercial. De toda forma, o 11 de Setembro transtornou de maneira radical estas aspirações do pós Guerra Fria e o que se pode perceber como dialogando com esta perspectiva parece ter sido abandonado. 16. Para a maioria dos países e agências de inteligência, eram e seguiram sendo as inserções regionais de segurança, regionais e globais de comércio, internas diante de problemas locais e regionais que determinam suas atividades. Em muitos casos, o fim da Guerra Fria permitiu distinguir e em alguns casos terceirizar alternativas de análise de fontes ostensivas de inteligência, mantendo estruturas paralelas de análise de todos os tipos de fonte nas agências de inteligência, atribuindo-lhes mais claramente a responsabilidade pela produção ou proteção da assimetria informacional. 17. Os aspectos técnicos que se revelaram ao longo deste mesmo período tiveram e têm um papel mais destacado. Por um lado, por acenarem com a perspectiva dos ganhos que uma atualização das possibilidades de ação das agências pode aportar, apontando para desenhos diferenciados em termos de estrutura e capacitações, e portanto em termos de densidade de capital e qualificação de pessoal. Por outro, de maneira particularmente incisiva, pelo que as possibilidades técnicas podiam significar -7- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil para a vulnerabilização de informações e comprometimento das atividades das diferentes agências diante de outras mais capacitadas. 18. Ainda assim, “globalização e terrorismo”, “terceirização externa de análise e prioridade para fontes humanas de informação”, ou “digitalização e miniaturização” podem servir de símbolos do tanto que a realidade presente pode questionar padrões de foco e método estabelecidos na Guerra Fria. São questões que desafiam a propriedade de uma separação estrita entre interno e externo, entre defesa e policiamento, entre assuntos de Estado e assuntos privados, entre o “certo” e o “errado” nos termos estabelecidos anteriormente. São dinâmicas que se embaraçam com as possibilidades técnicas que opõe, por exemplo, compartimentalização à fusão de informações. Estas perspectivas podem exigir mudanças estruturais nas atividades e portanto no desenho de um sistema de inteligência. Cada país e suas agências tiveram e têm que lidar com estas realidades de sua própria maneira, edificando à luz de seus interesses, prioridades e possibilidades o arranjo que melhor sirva aos fins que pretendem e aos resultados que ambicionam obter com atividades de inteligência diante dos relacionamentos que lhes interessam. 19. Aqui é oportuna uma breve digressão que serve para arrematar esta limpeza de terreno e que quem sabe possa mesmo semear um pouco. Trata-se de reconhecer a familiaridade de um hábito de pensar para apontar seus limites, ambicionando induzir um olhar mais capaz de lidar com as demandas presentes e o que elas podem sugerir ou vir a impor. 20. O “ciclo de inteligência”, em suas diversas variantes (direção, coleta, análise, disseminação, por exemplo), pode ser percebido com algum ganho pelo que é: uma determinada maneira, uma maneira explicada por um contexto institucional específico, de se descrever o que seria o fluir das atividades da inteligência. O “ciclo de inteligência” correspondeu substancialmente aos arranjos determinados pelo National Security Act de 1947 dos EUA. Diz respeito, principalmente, às atividades que foram associadas a uma agência central, a Central Intelligence Agency (CIA). 21. O que o ciclo queria descrever era a parte que cabia aos diversos elementos de uma estrutura mais ampla de inteligência, segurança nacional e que ainda articulava uma maneira determinada (e limitada) de assessorar diretamente o Presidente e Comandante-em-chefe em paralelo ao apoio de outros órgãos, como o National Security Council ou o Joint Chiefs of Staff. Apesar do grafismo do ciclo ser uma forma -8- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil habitual, corriqueira, para apresentar algumas das tarefas de inteligência e seus relacionamentos, ele trata apenas de alguns dos aspectos abstratos destas atividades, de uma perspectiva que se poderia associar à “cabeça do sistema” ou que corresponderia “ao que há em comum entre as diversas agências” e não da plenitude do que seja pertinente a todas as atividades que se podem realizar em prol inteligência – desde logo, tudo o que dizia respeito à proteção de informação para além de salvaguardas orgânicas, que não pertencia à CIA nos termos do National Security Act de 1947; ou o tanto relativo a interceptação de sinais e codificação, que veio à pertencer à National Security Agency (NSA) e que integrava um sistema multinacional mais amplo, cuja face mais conhecida é o Echelon. 22. Seus autores não tinham a ambição de uma formulação universal de estrutura, apenas a intenção pragmática de um arranjo suficientemente geral que servisse para encaminhar suas atividades e relacionamentos inter-agência. Eram executivos diante de uma questão administrativa, buscando ordenar atividades e minimizar conflitos numa determinada estrutura, não acadêmicos diante do objeto do conhecimento. Queriam uma solução simples e pragmática para um dado arranjo legalmente autorizado e não a identificação dos termos universais de um fenômeno. Por este motivo, o “ciclo de inteligência” é insuficiente para o que se apresenta a seguir. Pode mesmo se tornar um obstáculo para a plena apreciação dos condicionantes e na identificação dos requisitos que a tarefa de um rumo próprio exige. Assim, ele é deliberadamente deixado de lado. O mandato de inteligência 23. O mandato de inteligência corresponde aos poderes delegados pela “sociedade enquanto comunidade política” (polity) e das contrapartidas que se associam a estes poderes para que se tenham as vantagens e proteção de informação que a inteligência pode prover. Este mandato é condicionado pelos termos da constituição, expresso em leis e detalhado em atos de governo. Determina o que se pode e o que não pode fazer nas atividades de inteligência, instituindo no processo de delegação destes poderes os mecanismos de controle explícitos e implícitos que se julguem adequados. O primeiro e mais importante deles é o da responsabilização pelo uso dos poderes delegados no exercício do mandato (accountability) da parte de agentes, agências ou do sistema. Mas se podem ter tantos mecanismos de controle, restrições de uso, preferências de -9- Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil método quantos se deseje. A polity concede um mandato por um ato volitivo que se articula ainda com outras decisões constitucionais, legais ou de governo: por exemplo, a medida de sigilo e transparência quanto a processos e produtos que seja considerada adequada, tão diferenciada em termos de temática ou temporalidade quando se julgue apropriado. 24. Existem diversos instrumentos normativos, interpretações políticas e jurídicas brasileiras do que sejam ou devam ser os poderes e contrapartidas do mandato de inteligência (que nem sempre é percebido enquanto tal). Desde logo, compartilha-se a percepção de que haveria dois entendimentos possíveis do que seriam os limites das atividades e portanto do mandato de inteligência no Brasil. No primeiro, entende-se que elas podem ser feitas de todas as formas que não afrontem a lei, deixando uma medida de lusco fusco para atividades que a lei não proíbe, que ficam ao sabor da apreciação política e do juízo da polity quanto a suas oportunidade e propriedade. No segundo, entende-se que este limite é mais impositivo: que as atividades de inteligência estariam restritas apenas ao que a lei autoriza. Define-se muito de um sistema de inteligência com qualquer um destes limites. A escolha entre eles é um insumo capital para o rumo que se decida seguir, cada qual com seus ônus e bônus. Para os fins desta nota técnica, qualquer que seja o entendimento que se escolha adotar ele é tomado como dado: o encaminhamento de um rumo próprio é condicionado, mas não determinado, pelo que seja este limite. 25. A aceitação pela polity brasileira das propriedade e oportunidade das atividades de inteligência são, deveriam ser, flagrantemente óbvias. Há expectativas evidentes de parte dos cidadãos de que o governo dos Entes Federados ou da União tenha os benefícios da superioridade de informação no encaminhamento de diversas das questões que lhes interessem. Estas podem ir desde a negociação de um acordo em termos vantajosos, passando pelo esvaziamento de problemas potenciais por ações preventivas, até a dissuasão ou solução de um crime. Esta é uma questão que não está oculta nem fica discreta, insinuada, refém de um juízo sobre o que sejam as expectativas da cidadania brasileira. Ao contrário, pode ser encontrada de forma exemplar na fala do Presidente Lula ao explicar o seu silêncio sobre os termos em que conduziria sua negociação com o Presidente George W. Bush. O Presidente Lula explicou que tinha, e o Presidente Bush também tinha, porque sempre se tem, algumas cartas na manga e que portanto não ia falar delas. Algumas destas cartas só - 10 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil tem como ser obtidas como resultado de esforços de inteligência. Que cartas que estejam na manga e não na mesa significa ter uma medida de proteção diante da inteligência do outro. Em ambos os casos, pode-se ter algum uso para um e outro aspecto de inteligência na decisão de como e quando usar as tais cartas. 26. Insistir que a questão de se ter ou não inteligência esteja em aberto no Brasil, ou querer retomar esta questão sempre que se consideram rumos para as atividades de inteligência não corresponde à realidade da autorização concedida pela sociedade brasileira – existe um mandato para tais atividades. Que isto ainda possa seguir sendo dito serve mais para embaraçar do que para avançar a discussão democrática sobre atividades de inteligência. Este dizer tem, para além desse primeiro uso, que pode ser explicado por uma diversidade de interesses, outra possíveis explicações. Estas vão desde o dispositivo retórico de pintar o diabo mais feio do que ele é, passando por agendas moralistas de um dever-ser que se eximem de responsabilidade dos resultados dos rumos que advogam, até o que as paixões e receios possam motivar. Numa democracia, a relevância de qualquer um destes posicionamentos, em si mesmo legítimos até onde possam ir, é dada pela sua capacidade de articular alianças ou de sensibilizar os cidadãos, granjeando ganhos diretos e indiretos. Daí que seu uso reflete um cálculo político de sua rentabilidade em termos dos ganhos dos que os esposam na dinâmica política e social. 27. Numa questão correlata, as expectativas cavalheirescas no relacionamento do Estado com outros atores tão típicos da formalidade ostensiva da diplomacia ou a demanda de transparência completa da informação como um valor pela mídia têm seu papel em determinados contextos. O que se faz com elas noutros contextos não deve servir para que se desconheçam as preocupações que elas evocam. Em determinados termos de relacionamento, a medida de polidez cavalheiresca de parte à parte pode ter um papel importante, mesmo que signifique não usar, ao invés de não se dispor do que a inteligência possa fornecer. E a temporalidade da explicitação do conteúdo, do uso ou da explicação de como se obteve inteligência é tão decisão política como qualquer outra. Cavalheirismo ou transparência, jogo duro ou sigilo implicam custos e ganhos que se podem encontrar nas sensibilidade e resposta dos envolvidos, da opinião pública, da dinâmica política ou mesmo do que seja a resposta mais ampla da polity. 28. Há expectativas que podem ter que ser atendidas mesmo que nenhuma lei obrigue; há demandas que não podem ser atendidas graças a leis que as limitam. E há - 11 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil eventos. Eventos em que a dinâmica política e os termos do exercício de mandatos eletivos ou do próprio mandato de inteligência podem exigir decisões sem precedentes diante do desafio do imponderável, do inesperado, do “inconcebível”. Ou em que a polity pode relembrar, de maneira mais ou menos incisiva, o Artigo Primeiro da Constituição. Aqui se margeia, porque não é oportuno explorar, o desafio que os imperativos da raison d’ État, da consciência individual ou do clamor popular podem por diante de um Estado Democrático de Direito – e apenas insinuar contingências, conseqüências e desdobramentos que porque podem ser relevantes devem ser considerados. 29. Mesmo quando não se trata de testar limites legais, questionamentos têm lugar, como devem ter lugar numa democracia, tanto sobre o que se fez quanto sobre o que se pode fazer no exercício do mandato de inteligência. Uns e outros se justificam em função da memória do uso da atividades de inteligência para fins ditatoriais; ou pelo temor do que o abuso do mandato por governantes, agências ou agentes possa produzir. A accountability pelo uso dos poderes do mandato de inteligência obriga uma resposta. Isto não deveria ter como ser confundido com um questionamento substantivo sobre a necessidade do aparelho de Estado poder dispor da melhor inteligência que se possa ter – nos termos do que a polity aceita, a lei determina e a capacidade disponível permite. Ao contrário, tais questionamentos colocam, relembram, os termos políticos mais amplos de uma discussão republicana, pautada pelos interesses nacionais: qual inteligência, para quem, para que, como, a que custos, com quais salvaguardas, controles, limites. É com estes condicionantes que se pode considerar como os impactos políticos e técnicos que se apresentaram ao início apontam para o que venha a ser o rumo de um sistema de inteligência para o Brasil. 30. O estabelecimento de um rumo para o sistema de inteligência para o Brasil depende de mais do que o compartilhamento do que sejam seus condicionantes. Depende da tarefa de se identificar e implementar uma determinada direção, um determinado projeto, que configure e dirija as atividades de tal sistema. E isto exige que se possa governar a inteligência. 31. Para que se possa governar a inteligência, tem-se que ter pessoal ou organização capazes de apreciar oportunidade e mérito técnico de suas atividades. Capaz de formular um juízo sobre o que são, de fato, as alternativas, escolhas, resultados e conseqüências políticas e técnicas nas atividades de inteligência. Estes pessoal ou - 12 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil organização têm que ter sua lealdade primeira com o governo e não com o aparelho de Estado, ou mesmo com uma determinada agência, o que é dizer que precisam ser externos ao sistema e às agências. Isso não significa desprezar, ou deixar de lado, ou desconhecer o tanto de saberes que se pode encontrar nos profissionais de inteligência – ao contrário, se depende de tais saberes para que se possa ter e proteger vantagens de informação. Mas impõe determinados termos no uso e posse destes saberes, entre outros, para embasar da capacidade de se governar as atividades de inteligência, para que se possa definir e dirigir um sistema de inteligência. 32. O governo da inteligência admite duas vertentes complementares, inseparáveis na prática, uma positiva e a outra negativa. A vertente positiva remete ao processo pelo qual se pode chegar à melhor combinação de alternativas politicamente necessárias e politicamente aceitáveis que são tecnicamente capazes e ao alcance dos recursos que se dispõe para produzir a inteligência que se deseja ter ou proteger. Compreende os processos que buscam a qualidade e a integridade do trabalho de inteligência a serviço dos interesses expressos pelas decisões de um governo e obedientes à institucionalidade democrática. A vertente negativa remete aos processos pelos quais se afirma o governo da inteligência impedindo que suas atividades se façam incompetente ou obsoleta, que possam ser usadas para permitir a tirania sobre polity, ou que possam ser apropriadas para fins privados. 33. Assim se chega à questão mais importante, que anima todo o restante do texto que se segue: a identificação dos focos e processos que materializam a condição de possibilidade do “governar a inteligência”. É necessário e suficiente que se exerça governo em três pontos nevrálgicos para que se governe a inteligência, que correspondem às instâncias onde: (i) se determina a política de inteligência; (ii) se define a capacidade de inteligência; e (iii) se gere a alocação e prioridade no uso dos recursos de inteligência que esta capacidade disponibiliza em obediência a essa política de inteligência. Pontos Nevrálgicos 34. A política de inteligência. A tradução dos princípios, projetos e ambições de quem foi eleito para governar em uma política pública explícita para as atividades de inteligência é a pedra de toque sem a qual nada se pode edificar. Uma expressão - 13 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil declaratória do que se pretende obter e como se pretende governar a inteligência instrumentaliza e pauta a dinâmica política, orientando e blindando governante, agências de inteligência e grupos de interesse. Só desta forma se podem estabelecer os critérios pelos quais avaliar as direções que orientam o desenho e funcionamento de um sistema de inteligência capaz e útil, pelos quais se aferir os resultados que se venham a obter. Só assim se tem o enquadramento capaz de cercear disfunções ou arroubos emancipatórios do governante sobre a polity, das agências ou agentes de inteligência sobre o governo, e todos de tentativas de usurpações ou apropriações privatistas. A política de inteligência informa e coordena o posicionamento, a ação e a apreciação de todos estes atores políticos. 35. A elaboração da política de inteligência resulta de embates no interior do governo e na arena política, confrontando interesses e distintos níveis de discricionariedades e de saberes. Tem-se um processo, usualmente pouco percebido ou apreciado, de composição e negociação dos rumos da ação de governo e de sua expressão num documento diretivo explícito – uma política de inteligência, cujo processo e resultado podem ser tão transparente e detalhado quanto se deseje ou a polity valore. Articula-se o que se deseja das atividades de inteligência em prol das metas de governo com formas de produção de verdade, com o cálculo político do que seja razoável, com o que possa ser um papel para o conhecimento científico, de maneira a se produzir uma política de inteligência capaz de agremiar legitimidades legalmente sustentáveis na produção de resultados politicamente significativos pela escolha de fins, meios e métodos tecnicamente factíveis. 36. Governar a inteligência começa com a “política de inteligência”. Ela é o alicerce que estabelece os critérios pelos quais conduzir o processo de tomada de decisão e avaliar os resultados que se venha a alcançar. Mas ela se realiza no fazer em ato de seu conteúdo, pautando ações de governo e atividades de inteligência. Este fazer articula saberes e atividades políticas e técnicas do governo e da administração de inteligência, atento a todos os condicionantes do mandato de inteligência e ainda aos cuidados e considerandos que uma política pública possa vir a ter. A política de inteligência aponta para os dois outros pontos nevrálgicos porque é a partir dela que se determina a disponibilidade e se orienta a gestão de recursos para aproximar suas metas da maneira que se tenha escolhido como método. - 14 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil 37. Capacidade de Inteligência. Do que o sistema, agências e agentes de inteligência sejam capazes pertence à esfera de decisão de quem governa, é parte do governo da inteligência. Isso significa definir a capacidade de inteligência de um determinado sistema ou de uma determinada agência, que se materializa no estabelecimento das estruturas e na definição das capacitações que conformam os recursos de que os agentes de inteligência podem dispor no exercício do seu mandato. Neste processo, se estabelecem ainda as formas pelas quais se administra os processos que sustentam a disponibilidade destes recursos no tempo – dito de maneira sintética, onde se apontam o que são as atividades-fim e as atividades-meio de inteligência. 38. A definição da capacidade de inteligência tem que permanecer além da esfera decisória das agências ou do sistema de inteligência para que se possa governá-la. Isto significa dar materialidade à política de inteligência pela disponibilização dos recursos obedientes a suas prioridades de meios e métodos, que lhe permitam perseguir suas metas da forma desejada. Esta exclusão da tomada de decisão não se confunde com a perda da oportunidade do subsídio técnico destas agências ou agentes para a tomada de decisão de quem governa – ainda que eles não sejam a única fonte de subsídios para tal decisão. A decisão que define o que seja a capacidade de inteligência está na raiz da possibilidade de se governar a inteligência, porque só desta forma se pode controlar sua capacidade de agir. 39. Governar as atividades de inteligência significa decidir o que elas podem e não podem ser capazes de fazer. Isto só é realmente possível quando se controla e de fato quando se decide qual é a sua capacidade. Isto significa que o efetivo, a estrutura organizacional, o desenho, a dimensão, a natureza e a subordinação de especialidades ou repartições funcionais, os perfis e carreiras de seus quadros, os equipamentos, os procedimentos que pautam atividades e controles (de diversos tipos, desde qualidade até a aderência aos termos legais), os produtos – enfim, tudo que estabelece e autoriza os recursos que disponibilizam alternativas de ação de que agentes de inteligência são capazes – tem que decorrer de decisões políticas e não da própria agência ou do sistema de inteligência. 40. Estas decisões podem ser (e algumas precisam ser) tomadas muito antes que as capacidades que elas autorizam venham a ser necessárias ou mesmo percebidas. A - 15 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil isto se acrescenta ainda a pitada cautelosa de robustez, flexibilidade e alargamento de horizontes que podem ser úteis diante do “inconcebível”. Daí a delicadeza da questão: ou bem se governa a capacidade de inteligência continuadamente, ou pode-se ser confrontado com uma perda mais ou menos gradual de sua utilidade ou com a sua simples disfunção. Ora porque foi a agência ou o sistema quem escolheu sua capacidade e portanto só tem os recursos que quis ter, permitindo escolher apenas entre as alternativas que ela mesma definiu. E estas podem não ser as que se deseja, ou podem mesmo ser as que somente a agência ou o sistema desejam. Ora porque o que seja a capacidade de inteligência resultou de processos inerciais e acríticos, ora porque se deu livre trela a processos idiossincráticos ou incidentais. Pode-se não ter a capacidade de que se necessita, nem quaisquer recursos capazes de oferecer alternativas de resposta diante dos fatos. Ou pode se acabar tendo uma capacidade cuja posse pode ser difícil de explicar ou que contradiz a política de inteligência. 41. Isso revela que a determinação de estrutura e capacitações que definem a capacidade de inteligência é a primeira linha de controle para que uma agência ou um sistema não desandem (fazendo de mais ou de menos) ou se emancipem (fazendo o que não devem). São escolhas políticas que preferem determinados recursos pelas alternativas que oferecem; ou que aceitam outros; mas principalmente que excluem os recursos e portanto as alternativas que consideram incompatíveis com o que se deseja, por exemplo, os recursos que permitem alternativas que sejam contraditórias com os termos da política de inteligência. 42. Alocação e prioridade no uso dos recursos de inteligência. A alocação e a prioridade dos recursos que uma determinada capacidade de inteligência disponibiliza revela uma instância em que a iniciativa e o conhecimento profissional específico de agentes e agências de inteligência se revelam essenciais. Como se distribuem os recursos e prioriza o seu emprego, como se utilizam recursos na execução de ações de inteligência fazem convergir as esferas de decisão de quem governa com as de quem administra o sistema ou uma agência. Isto porque esta gestão do uso de recursos diz respeito às escolhas pelas quais agentes exercem o seu mandato e realizam suas atividades. 43. Nesta articulação entre quem governa e quem responde pelos diferentes níveis de administração de agências ou do sistema para gerir os recursos de inteligência tem-se - 16 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil que reconhecer a superioridade decisória do primeiro, a palavra final, para que se possa governar a inteligência. Esta gestão de recursos corresponde às dinâmicas concretas da produção ou proteção de informações, às atividades de inteligência propriamente ditas. Quem administra ou quem governa toma a iniciativa de propor atividades, buscando determinados resultados, apreciando as conseqüências destes resultados e daí demandando determinados recursos, delineando suas escolhas em termos de trajetos pautados pela busca de legitimidades legalmente válidas. 44. O papel da administração ou de agentes não é mais de subsídio, como foi, brandamente, na formulação da política de inteligência e, mais incisivamente, na definição da capacidade de inteligência. Na gestão de recursos, tem-se a instância da participação dos profissionais de inteligência na decisão politicamente orientada da alocação e prioridade dos recursos de que se dispõe ou de que se podem dispor. A decisão final corresponde à ponderação, por quem governa, do saldo de cada uma e do conjunto das decisões. 45. Na maior parte das vezes, a iniciativa de proposta de uso dos recursos se origina em quem administra as atividades de inteligência: num determinado posto hierárquico no sistema ou numa agência, ou mesmo na esfera individual de tomada de decisão de um agente, como parte de suas atividades profissionais. Expressa um juízo do que suas responsabilidades exigem diante das demandas do momento e o que sua capacidade permite. Elabora-se como resultado uma proposta para o uso dos recursos de que dispõe ou que pode dispor para produzir determinados resultados. Dependendo do que sejam os encargos de um determinado posto hierárquico, pode-se ter que responder ainda por distintos horizontes de temporalidade no atendimento a demandas e portanto no uso de recursos; ou de sustentabilidade da disponibilidade de recursos e continuidade de atividades no tempo; ou do cumprimento de prazos e formatos ou relatos e controles; ou ainda ter que decidir pela distribuição de recursos entre diferentes atividades, unidades ou níveis hierárquicos. 46. A proposta de uso de recursos também pode partir de que quem governa, seja em antecipação ou imediatamente diante de uma determinada questão. Pode expressar a preferência por uma determinada maneira de uso destes recursos, distinguindo determinadas prioridades e usos de maneira episódica ou determinando que estes usos passem a fazer parte o próprio processo profissional de elaboração de proposta - 17 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil de uso dos recursos de inteligência. Pode ainda intervir no momento em que uma dada situação se apresenta, trazendo o foco da autoridade e a capacidade de aportar recursos adicionais, para além dos da própria agência ou do sistema, diante do reconhecimento de uma circunstância ou de um acontecimento que demanda prioridade política em distintas temporalidades. 47. Seja por iniciativa da administração ou do governante, o que venha a ser o uso dos recursos se torna objeto de uma apreciação de quem governa lado a lado com quem esteja no nível hierárquico envolvido (ou no que seja o arranjo entre governo e agência ou sistema que quem governa considere adequado). Esta apreciação considera o juízo de mérito das alternativas profissionais de alocação de recursos e prioridades, construindo uma decisão que pondera resultados e conseqüências do uso de recursos diante dos termos da política pública, especialmente da política de inteligência, e do quanto se valoram os resultados que se podem alcançar. Chega-se a um determinado arranjo para o uso dos recursos de inteligência, seja em termos de um planejamento de maior ou menor alcance, seja em termos de respostas mais próximas do tempo-real. Quem governa aufere os ônus e bônus pelos resultados e conseqüências que o arranjo final do uso de recursos venha a produzir. 48. É perfeitamente admissível que, diante de um determinado planejamento emanado da administração, quem governe possa solicitar mudanças em termos de alocação de recursos ou de priorização de ações. Seja porque busca aproximar os termos da política de inteligência, seja porque realiza um determinado cálculo político quanto a seus possíveis resultados e conseqüências. Pode solicitar um determinado formato para a apresentação dos resultados, ou mais ou menos detalhe, ou mais ou menos freqüência, ou mais ou menos apreciação das situações ou alternativas sobre as quais pretende decidir, ou versões mais públicas ou mais reservadas. Dessa maneira, afina a demanda de inteligência que mais aproxima seus interesses e que lhe seja pareça ser mais útil ou rentável. A administração pode indicar quais recursos estas mudanças demandam e apontar a necessidade de decidir qual, dentre outros usos possíveis, deixará de ser feito, ou alternativamente identificar a necessidade de recursos adicionais. Isso pode admitir ainda outras formas de aperfeiçoamento da demanda, com quem administra podendo indicar a oportunidade de enquadramentos mais amplos para emprestar contexto ou de trabalhos mais específicos para acrescentar densidade; ou propor formas de ligação para emprestar agilidade ao processo de tomada de - 18 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil decisão ou ainda identificar formatos de apresentação mais apropriados a uma dada situação. 49. Este exercício de seletividade discricionária é compartilhado por quem governa e por quem administra, determinando quais serão as atividades de inteligência que serão executadas. Admite as diversas temporalidades que diferentes demandas e os produtos que as atendam podem vir a produzir. 50. Isto pode levar a diversos arranjos que quem governa considera politicamente satisfatórios e que quem administra considera profissionalmente adequados, produzindo pré-enquadramentos ou práticas recorrentes. Estes podem ser tão longevos quanto a continuidade de uma dada decisão de quem governa ou do juízo profissional de quem administra. O que acaba sendo denominado uma rotina diferencia-se da gestão de alocação e prioridade de recursos apenas em termos desta temporalidade entendida, por admitir uma medida de continuidade ou de replicação. Ao se governar a gestão de recursos, dinamiza-se o que pode se fazer inercial, confrontando o endurecimento de rotinas que arrisca emancipar uma decisão de governo numa expectativa ou numa prerrogativa da agência. Busca-se o benefício que se pode ter de um processo de acompanhamento, avaliação e aperfeiçoamento de padrões em termos de maximização de resultados ou economia de recursos. 51. Quando se reconhece um padrão de alocação ou de prioridade que o justifique, isto pode levar a mudanças na capacidade de inteligência ou nos termos da política de inteligência. Esta vivificação da política e da capacidade de inteligência é um dos mais importantes efeitos do governo da gestão dos recursos de inteligência. 52. Governar a inteligência se consubstancia plenamente ao decidir o que os agentes farão em determinado momento, diante de determinado tema ou para dar conta de uma dada circunstância. Isto só é realmente possível quando se controla, de fato, quando se decide sobre os rumos da gestão de uma agência ou sistema, sobre o uso que se dá a seus recursos. Assim, o desdobramento do efetivo em turnos, ou em setores, ou por tarefas, individualmente ou em equipes; a prioridade relativa entre diferentes demandas; a preferência por determinados tipos de encaminhamento ou produtos; a prioridade, a periodicidade, a abrangência ou a densidade com que se antecipa ou responde a determinada situação; as escolhas de mobilização de recursos internos ou externos na execução de cada uma destas alternativas – enfim, tudo que faz uso dos - 19 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil recursos de que se dispõe a uma decisão compartilhadas entre governo e a administração de uma agência ou de um sistema de inteligência. 53. Daí a indelicadeza da questão: ou bem se dispõe de mecanismos e competências do lado de quem governa, capazes de apreciar o mérito das alternativas nos termos em que a especificidade profissional da inteligência as apresenta, ou pode-se ser confrontado com uma distorção mais ou menos inescapável na qualidade, quantidade, oportunidade ou propriedade das atividades de inteligência. Porque se só a agência (ou um agente) é capaz de apreciar o que são os resultados e conseqüências das alternativas de uso dos recursos, pode-se chegar a situações de plena disfuncionalidade. Ora porque a agência decide por ela mesma qual alternativa será executada. E esta pode não ser a que se deseja, ou mesmo pode ser a que somente a agência ou seus agentes desejam. Ora porque pode-se querer decidir por uma alternativa sem compreender o que ela implica. E o que venham a ser os resultados e conseqüências desta decisão podem redundar em tragédias ou embaraços, revelando a incompetência de quem governa no que presume governar. 54. Requisitos. Apreciar a forma compartilhada pela qual governo e agência gerem alocação e prioridade no uso de recursos expressa a realidade mais tangível pela qual se afere e afirma a utilidade (e se impede a emancipação ou perda de foco) de agentes (ou agências, ou do sistema) de inteligência diante do governo e mesmo diante da polity. É nesta instância que se pode materializar a instrumentalidade e melhor buscar a utilidade das atividades de inteligência. 55. Isto só é possível porque se tem articuladas, idealmente alinhadas, a política, a capacidade e a gestão dos recursos de inteligência, configurando suas atividades da maneira que quem governa deseja. Estas três instâncias relacionam-se e em seu conjunto expressam um único aparato: o que permite governar a inteligência. Revelase assim, no momento, na ocasião mais concreta, na decisão de se realizar uma dada atividade a integridade, a necessidade e a propriedade de tal governar. 56. Só desta forma parece possível ter processos continuados que articulem as atividades de inteligência em obediência aos condicionantes da polity para o mandato de inteligência, por um lado, e dando mecanismos para o exercício do ato de governar pelo governante com benefício dos saberes e competências da inteligência, por outro. Estes dois lados da questão expressam, desta forma, a condição de possibilidade de - 20 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil uma governança democrática das atividades de inteligência. Sem tal aparato, qualquer tentativa de rumo para um sistema de inteligência acrescenta, à dificuldade intrínseca e considerável de ter que lidar com os desafios das últimas três décadas, ainda o embaraço colossal da ausência de mecanismos capazes de reconhecer, resguardar e orientar os saberes profissionais de inteligência dos riscos de sua disfunção, distorção ou apropriação. É neste sentido essencial que a instanciação do governar a inteligência nestes pontos nevrálgicos os revela como requisitos sem os quais a tarefa de dar rumos ao sistema de inteligência do Brasil pode ser irrealizável. Encerramento 57. O que seja o rumo de um sistema de inteligência depende da construção de um aparato que governe a inteligência, constituindo e gerindo os recursos que sustentem atividades úteis e tecnicamente capazes. Para tanto, é necessário estabelecer os espaços, nutrir capacitações e disponibilizar meios e métodos que sustentem quadros e práticas profissionais de inteligência tanto dentro das agências e sistema, para que tenham os recursos competentes e capazes, quanto fora deles, de maneira que se possa ter tal governo da inteligência. Através deste aparato, que corresponde aos contornos da condição de possibilidade de uma governança democrática da inteligência, se pode vir a ter um rumo alinhado com as necessidades e expectativas do governo de uma democracia, capaz de produzir resultados vantajosos para o Brasil. 58. Isto remete ao horizonte de concepções e arranjos de sistemas de direção que utilizam e portanto orientam o que se deseja da inteligência e, desta forma, delineiam contornos de possíveis projetos de agências ou sistema. Como subsídio de partida para o projeto de um sistema a ser expresso na política de inteligência, pode-se considerar concepções meta-sistêmicas (no sentido de “sistema de sistemas”) como os complexos de “Comando, Controle, Comunicação, Inteligência e Computação (apoiada por) Sensoriamento, Imagem e Reconhecimento” (C3I.C/SIR; a formulação C4I/SIR contradiz sua explicação e corresponde à uma estética puramente gráfica). As componentes que caracterizam tal complexo apontam para um esquema analítico distintivo, em que, por exemplo, se explicita que o acesso a “SIR” está disponível a todas as funções de C3I, e não apenas à inteligência (I), ou que a computação (C) é distintiva e ‘multiplica(ria)’ estas funções. O C3I.C/SIR tende a ser visto quase que exclusivamente pelo seu uso no controle do uso de forças para defesa e, em menor - 21 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil grau, para a segurança pública. Isto deixa de lado sua centralidade na articulação do Estado, por exemplo, nos arranjos que alimentam o Secretário do Gabinete no Reino Unido ou o Chefe de Staff do Presidente nos EUA. Neste casos se acrescentam diversos outros elementos ao C3I.C/SIR em arranjos “multidisciplinares” e “poliinstitucionais”, orientando a dinâmica, por exemplo, do que seja o briefing diário e o que se pode obter do uso de salas de situação. Estas questões servem para indicar como se pode contextualizar o projeto de um sistema da política de inteligência como componente da política de governo, mas alcança bem mais do que se propôs fazer nesta ocasião. 59. O empreendimento de um sistema de inteligência não depende apenas de uma apreciação ou uma recomendação – interna às agencias, ou externa, por exemplo, nas universidades – de sua relevância ou importância. Tampouco se pode reduzir apenas à expressão volitiva de um desejo por parte de quem governa de ter os resultados da inteligência sem determinar as política, capacidade e gestão dos quais eles dependem. É preciso mais para explicar tudo o que tal sistema pode exigir em termos de gastos públicos em termos com, sucintamente, pessoal, capital e o tanto que se pode colocar na rubrica do custeio que suplementa os dois primeiros e ainda tem suas próprias possibilidades. Depende, fundamentalmente, de processos que façam com que as atividades de inteligência tenham um papel explícito e claro no atendimento das demandas e das expectativas do governo na produção e proteção de vantagens de informação. 60. E aí se pode apreciar o “governar da inteligência” como instrumento de uma governança democrática das atividades de inteligência. Diante da necessidade de compreender o suficiente para formular a política, para definir a capacidade, para apreciar o que cada alternativa de alocação ou prioridade no uso dos recursos pode – e tão importante quanto – não pode produzir, tem-se o rumo do amadurecimento de quem governa diante da inteligência e que quem faz inteligência diante das necessidades de quem governa. Ao situar-se claramente o papel do governante nas instâncias que correspondem aos três pontos nevrálgicos, aperfeiçoa-se o uso da inteligência. 61. Isso remete ao horizonte do projeto de organização da inteligência e das alternativas de sua governança, com tudo o que isso pode significar em termos dos - 22 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil relacionamentos entre o aparato de governo da inteligência e a administração de agências ou do sistema para a escolha de focos, de meios e métodos que configurem o projeto de seu desenho organizacional. Esta é uma questão que vai além da consideração dos rumos de um sistema de inteligência para se consubstanciar em subsídios para a política de inteligência de um governo, extrapolando o que se propôs fazer nesta ocasião. 62. Esta nota técnica apresentou contextualizadamente as condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência. Ciente dos desafios concretos da produção de inteligência para um governo, reconheceu os contextos cambiantes da conjuntura política e do estado-da-arte técnico. Situou, então os poderes e contrapartidas do mandato de inteligência, apontando como a atividade de inteligência deve ser resguardada para apoiar a integridade do seu trabalho. A partir disso, fez-se uma conexão necessária entre governo e atividades de inteligência. Por um lado, afirmaramse os diversos condicionantes que fazem necessário que se governe e as instâncias concretas nas quais é possível governar a inteligência na democracia brasileira. Por outro, reconheceram-se a especificidade e a relevância da competência profissional em inteligência e a necessidade de que tal competência não esteja confinada apenas a agências e agentes. Foram estes dois rumos que permitiram situar e explicar a medida de autonomia subordinada de agências e sistema de inteligência de um aparato de governo da inteligência articulado sobre três pontos nevrálgicos conexos. Neste aparato se identificam as instâncias necessárias e suficientes para identificar, dimensionar, orientar e gerir a inteligência que se julgue adequada e ao alcance dos gastos que se decidam realizar para estes fins. Explicitaram-se as formas como os saberes em inteligência podem contribuir, de maneira adequadamente configurada a cada instância, para a formulação da política de inteligência, a definição da capacidade de inteligência e a gestão (alocação e prioridade do uso) dos recursos de inteligência. Aí se puderam reconhecer nestas instâncias os requisitos para que se tenha rumo para um sistema de inteligência, com consciência de como suas atividades podem servir para que se maximize ganho, minimize perda ou se possa procurar segurança diante da incerteza, mesmo ambicionar (alguma capacidade de) resposta diante do “inconcebível”. Desta forma, apresentaram-se os condicionantes e requisitos pelos quais se estabelecer o aparato capaz de produzir ou proteger informações em prol do interesse nacional na democracia brasileira, o rumo de um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil. - 23 - Proença Jr 2009 Condicionantes e requisitos para um sistema de inteligência vantajoso para o Brasil