Associação Nacional dos Leigos Amigos de Murialdo - ANALAM Enc ant ament o e T er nur Encant antament amento Ter ernur nuraa O Amor de Deus Brasil, 2004 Subsídio de Formação nº 8 Sumário Apresentação .......................................................................................... 69 Introdução ............................................................................................... 71 1. DESDE O VENTRE MATERNO ........................................................... 72 2. DEUS ME AMA! QUE ALEGRIA, QUE CONSOLAÇÃO! ........................ 77 3. SEU AMOR É INFINITO, MISERICORDIOSO ..................................... 3.1. Seu Amor é Infinito ................................................................... 3.2. Seu Amor é Pessoal ................................................................. 3.3. Seu Amor é Atual ..................................................................... 3.4. Seu Amor é Terno ..................................................................... 3.5. Seu Amor é Misericordioso ........................................................ 80 81 83 84 86 88 4. SEM A FÉ NÃO SE CHEGA A DEUS E SEM TERNURA ........................ 90 5. PARA QUE NENHUM DELES SE PERCA Responsabilidade Social e Religiosa ............................................. 93 6. Estamos nas mãos .......................................................................... 96 Conclusão .............................................................................................. 100 ANEXO I - Cântico das Criaturas de Murialdo ......................................... 103 Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 69 Apresentação É com satisfação que apresentamos mais um subsídio da Analam. Com este, completamos o oitavo exemplar que chega às mãos dos(as) nossos(as) associados(as). Todo o material produzido pelo Conselho Formativo tem sido de excelente qualidade e tem proporcionado elementos para o crescimento individual e coletivo da Analam. Tenho a certeza, este é um dos mais profundos, se não for o de maior profundidade. Portanto, é um subsídio que deve ser lido, relido, discutido e refletido em diversas ocasiões. Não pode ser lido e guardado em nosso kit, mas, nos deve acompanhar no dia a dia para que dele possamos desfrutar toda sua riqueza. Neste mundo, onde as teorias materialistas acreditam que o nascimento do ser humano é um mergulho na escuridão e no vazio, este material demonstra que, mesmo não percebendo, Deus está nos amando. Seu amor é atual. Isto é, Ele nos ama no momento presente. Sim! Agora no momento em que você está lendo, Ele está lhe amando. Assim, nossa vida não é um salto no vazio, mas, um mergulho para nos encharcar do Amor de Deus. Ao tomar conhecimento do conteúdo deste subsídio, você se sentirá diferente. Perceberá que a vida é diferente do que imaginamos. Que não estamos sozinhos, que Alguém nos ama profundamente e seu amor é encanto e ternura. Portanto, não perca tempo e comece logo a descobrir as maravilhas que São Leonardo Murialdo, há mais de um século, descobriu. Faça a experiência do amor de Deus e sinta-se como Murialdo: amado tão profundamente que, por causa deste amor, não conseguiu deixar, por nenhum momento, de irradiar e propagar este amor. Leonel dos Reis Presidente Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 71 Introdução “Deus nos ama com amor que é infinito, pessoal, terno, atual e misericordioso.” Murialdo afirmou isso durante boa parte de sua vida. Nós estamos ouvindo a presente frase a cada encontro, a cada liturgia, em rodas de nossas conversas nos vários núcleos. Falamos disto para os outros, em nossas famílias, aos nossos meninos e jovens. O que significa mesmo afirmar esta máxima da espiritualidade de Murialdo? Qual o seu conteúdo? Como Murialdo chegou a tal conclusão? E como é possível viver hoje essa certeza de fé? No encontro com a natureza se revelam descobertas incríveis para a ciência. É um caminho possível também para a fé. Os mistérios do Absoluto, da divindade podem ser comparados aos temores de uma montanha que esconde desfiladeiros, lugares sombrios ou altos e ameaçadores penhascos. Costuma-se dizer que é nelas que moram os mistérios. Porém, e é bem verdade, a montanha é o lugar das águias, do descortino da amplidão dos horizontes, das possibilidades maiores de alçar longos vôos. Esses mistérios do Absoluto podem ser comparados com as águas turvas e sempre temerosas de um rio que desenha matas e campos. Naquelas águas moram alguns monstros lendários, mas também carrega-se a verdadeira possibilidade da vida. Cheias da chance do germinar, do crescer, grávidas de toda a forma de vida, as águas parecem correr faceiras para a grande aventura de saciar e irrigar. O encontro com o amor de Deus parece ser assim. Exige que a gente arrisque e vá em busca de quebrar as barreiras do medo, da auto-suficiência ou das justificativas materialistas. É um caminho que começa na direção de si mesmo e que, por isso mesmo, pode parecer de desespero, de lágrimas e decepções. Mas, que sem essa travessia é impossível fazer descortinar paraíso. É por aí que vamos... 72 Subsídio 08 1. Desde o ventre materno ... “O Senhor me dirigiu a palavra: Antes de te formar no ventre eu te escolhi; antes de saíres do ventre materno eu te consagrei e te nomeei profeta dos pagãos.” (Jr 1,4) “Deus me cumulou com seus benefícios, desde meu nascimento.” (São Leonardo Murialdo – Testamento Espiritual) Costuma-se dizer que o coração do carisma de São Leonardo Murialdo é o amor de Deus. Porém, não apenas seu amor, mas esse amor acrescido de adjetivos que lhe dão qualidade e, ao mesmo tempo, convicção vital: amor infinito, amor terno, amor pessoal, amor atual e amor misericordioso. Tornou-se bastante comum ouvirmos de membros da Família de Murialdo, conhecedores dessa mística, que foi com esse mesmo amor que Murialdo se viu na iminência de amar a Deus. E não só a Deus. Como decorrência do amor a Deus, a necessidade de amar aos irmãos. Pois bem, este primeiro capítulo do presente subsídio tem como intenção voltar-se para a origem desta descoberta do grande santo. Ou seja, quais os fatores, quais causas foram determinantes em sua vida para que ele chegasse a conclusões de fé tão profundas e comprometedoras? E a primeira impressão que temos, quando ouvimos falar de sua vida, parece recair sobre sua família e sobre a educação recebida em casa. Pois nos parece evidente que só pode conhecer bem o amor e falar com convicção dele quem faz ou fez a experiência de se sentir amado e de amar de verdade. Também não é menos verdadeira a idéia de que é no período da gestação, infância e adolescência que se moldam os principais traços característicos da identidade de uma pessoa. Então, é para lá que queremos nos dirigir: para a família e a infância de Murialdo. Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 73 Enfim, queremos dizer que para fazer uma imagem tão maravilhosa de Deus a partir de seu amor para com seus filhos, Murialdo só pode ter tido uma infância com uma família que, religiosa, lhe dera muito amor. Conforme estudos recentes sobre a infância, um dos altos preços da modernidade para crianças e adolescentes tem sido o aumento dos casos de depressão. Dizem que houve uma tremenda erosão da família nuclear: o dobro da taxa de divórcios, a redução do tempo que os pais têm para os filhos e o aumento da migração. Perde-se a relação com outros membros da família, além do pai e da mãe. Diz-se ainda que a disseminação da industrialização após a Segunda Guerra Mundial determinou que as pessoas, num certo sentido, não tenham mais um lar. Num número cada vez maior de famílias vem aumentando a indiferença dos pais pelas necessidades dos filhos enquanto crescem. Essa perda das referências para a auto-identidade e auto-estima acarreta também maior vulnerabilidade à depressão. Como resultado vamos encontrar crianças mais inseguras, com baixa-estima, agressivas e de difícil convivência. (Cfr. Goleman, Daniel. Inteligência Emocional. Ed. Objetiva, pp 224ss) Em Turim, na Itália, no dia 26 de outubro de 1828, nasce São Leonardo Murialdo. Apelidado carinhosamente de Nadino, encontra desde sua infância, em sua família, o ambiente estimulador para a educação do seu coração. O amor passa a ser uma das marcas da sua vida. Seu pai, Franchino, rico agente de câmbio, um dos poucos que existiam em Turim, é descrito por A. Castellani como um homem organizado e preciso, prático, tenaz, grande administrador e conhecedor da política. Casou-se aos 40 anos não só por estar envolvido com a atividade financeira, mas, especialmente, porque decidira casar-se somente quando sua pátria estivesse livre da dominação estrangeira. (Cfr. Il Beato Leonardo Murialdo. Vol 1. Tipografia S. Pio X, Roma, 1966, pp 14ss) Franchino era apontado como honesto, largo e generoso com os pobres e infelizes e A. Castellani afirma que ele costumava destinar doações financeiras às obras de caridade, aos hospitais e aos presídios. E sobre estas qualidades de seu pai, Murialdo mesmo escrevia: “Meu pai era um agente de câmbio, de uma profissão então muito delicada. Mas possuía um profundo sentido de justiça, e uma consciência assim correta e quase escrupulosa, que na hora da morte quis fazer um acréscimo ao testamento, destinando uma soma muito elevada, ao Hospital de São Luiz e à Congregação de Caridade da sua Paróquia de São Dalmazzo, para compensar, como ele deixou expressamente escrito, os danos acontecidos, involuntariamente, às pessoas, no exercício da sua profissão.” (Op. cit.p. 17) 74 Subsídio 08 O pai morre quando Murialdo está com 5 anos de idade; na família são 8 irmãos (6 mulheres e 2 homens) e Nadino é o mais novo deles. A mãe, Tereza Rho, conforme o autor acima, casara-se com 20 anos e possuía o “encanto de um coração puro como um raio de sol”. (p.15) Ela era de temperamento sensível, franco e espontâneo. Crescera num ambiente religioso e culto; possuía um profundo espírito de piedade, força de alma e riqueza efetiva de bondade. Se a profissão mantinha Franchino meio afastado de casa, Tereza se dedicava com um apaixonado cuidado à educação dos filhos. No governo da família e na educação dos filhos inspirava-se nos ideais da ordem, do serviço, da piedade e caridade, da sensibilidade vigilante. A. Castellani busca defini-la como mulher forte nas adversidades e nas lidas domésticas, mãe educadora terna que usava a pedagogia do evangelho e do coração. É por isso que Leonardo e seus irmãos a queriam com um afeto cheio de veneração, como a sua maravilhosa e incomparável “maman”. (pp.19 e 20) Sobre sua mãe, Murialdo afirma: “Minha mãe era afeiçoadíssima aos seus filhos e a mim sobretudo.” Com oito anos de idade, a mãe Tereza o encaminha para ser interno num colégio religioso, onde já estava seu irmão Ernesto: “Na minha infância a saúde era débil e frágil”, escreve Murialdo em suas Memórias, “e quem sabe por isto minha mãe decidiu enviar-me ao Colégio das Escolas Pias, em Savona, cidade muito longe de Turim. Para chegar lá eram necessários ao menos dois dias”. Em 16 de março de 1837, cinco meses após o início das aulas, Murialdo escreveu à sua mãe. É o primeiro escrito que se conserva de Murialdo criança: “Minha querida mamãe, eis que mantenho a promessa que te fiz na carta de Ernesto. O teu Nadino é sempre o mesmo para com sua querida mamãe: ele te ama mais que tudo, e não vê chegar aquela hora que você marcou para vir nos abraçar para fazer-te ver de fato aquilo que te digo nestas poucas linhas. Adeus, querida mamãe, dá muitos beijos para a Delfina, e a todas as outras irmãs. Ernesto te diz o mesmo de sua parte. Te abraço e me faço chamar o teu Nadino.” (Escritos) Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 75 Em Savona, até os 14 anos, Murialdo se distinguia pela sua bondade, como também pelo brilhante sucesso nos estudos. Mas isso de distinguir-se pode se tornar um perigo, não só nos colégios. A massificação não suporta quem se destaca. Ele dirá: “Por medo de ser acusado de espião decidi fazer como os outros... e tive a fraqueza e a covardia de abandonar o bom Deus, e que abandono, ó grande Deus! O respeito humano, eis a grande besta que me abateu.” (Testamento Espiritual) Neste período, em dezembro de 1842, o Reitor do Colégio, preocupado, escrevia à sua mãe: “Leonardo está mudando de comportamento, não tolera observações, é fechado com os superiores”. (A. Castellani, p.110) No final do ano de 1843, Leonardo escreve uma carta muito triste à sua mãe na qual manifesta abertamente sua antipatia pela vida colegial, a saudade da família e o desejo de retornar a Turim. Retorna a Turim em novembro, quando tinha 15 anos; lhe faltava apenas um ano para concluir o Curso de Retórica. Aquele tempo de colégio que ele havia identificado como ano “sciagurato”, “maldito”, “infeliz”, será chamado depois de “feliz ano da minha conversão”. Em Turim dedica-se ao estudo da Filosofia. Sua mãe o acompanhava de perto, até mesmo porque Leonardo costumava ser-lhe muito próximo e tinha para com ela uma fé filial de abertura e confiança. Ela sabia acolher suas angústias, ansiedades e dúvidas. Certa vez, enquanto Leonardo estudava, sua mãe aproximou-se e lhe sussurrou: “Nadino, te amo tanto que tenho medo de pecar”. E, segundo A.Castellani, beijou-o na fronte, abraçando-o docemente, como se querendo protegê-lo, como se quisesse prender todas as suas ansiedades, suas aspirações e guardá-lo no seu coração. É essa doce acolhida e a certeza desse amor afetuoso que leva Leonardo a concluir: “Deus me ama! Mais do que minha mãe! Se o meu paraíso fosse nas mãos de minha mãe, quanto feliz eu seria! Mas ele está nas mãos de Deus. Não devo temer.” (Escritos) Leonardo dedica-se a acompanhar a liturgia quaresmal de 1844 junto à Igreja Paroquial de São Dalmazzo, onde fora batizado. Ali, numa tarde ouve uma pregação sobre a eternidade e o inferno, sem perder uma palavra, uma expressão, um gesto do pregador. Ficou muito impressionado e sentiu estar correndo sério 76 Subsídio 08 perigo de vir a perder sua alma, de cair no inferno, de perder Deus, e com Deus, tudo, e para sempre. Sentiu a voz de Deus, clara e decisiva, que o chamava a doar-se totalmente a Ele, numa vida de santidade fervorosa e atuante. Interessante observar que esta experiência poderia ter marcado sua fé de forma repressiva e tê-lo conduzido à construção de uma imagem dura, rigorosa e amedrontadora de Deus. Mas não. Talvez a experiência do amor familiar, do perdão, do respeito, do cuidado terno e pessoal tenha feito com que ele transportasse para o Deus-Pai a experiência da maternidade do amor. Então Deus me ama “demais e não quer que eu me perca”, poderia ter pensado. E como resposta: “nada mais me resta que amá-lo”. Passa a questionar-se sobre sua vocação. Aparece o desejo de ser padre e em 1844 matricula-se na Faculdade de Teologia da Universidade. Em 1850 obtém o doutorado em Teologia e nesta mesma época inicia os trabalhos com os meninos de rua. Em 20 de setembro de 1851 é ordenado sacerdote. Mas continua com suas atividades de catequista e de oratório com crianças, adolescentes e jovens da periferia. Sua mãe tinha morrido em 9 de julho de 1849; Leonardo tinha então 20 anos. No dia 19 de março de 1873, com o apoio de alguns colaboradores (como Pe. Eugênio Reffo), fundou a Congregação de São José. A ela seria confiado o cuidado das crianças, adolescentes e jovens empobrecidos e em situação de risco. Leonardo Murialdo morre em Turim, no dia 30 de março de 1900. E no dia 3 de maio de 1970, através do papa Paulo VI, é proclamado santo. Sua festa passou a ser celebrada no dia 18 de maio. Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 77 2. Deus me ama! Que alegria, que consolação! “Ah! Tempo deplorável, no qual abandonei-me ao vício, em que me gloriava de minha infâmia e me orgulhava de minhas misérias! E vós sempre me suportastes – esperastes – chamastes! E ainda agora, me considerais com bondade. Vós me perdoais com misericórdia. Vós me socorreis com amor!” (São Leonardo Murialdo – Testamento Espiritual) “Quem é Deus?” É esta uma pergunta muito intrigante. Havia um catecismo, original dos inícios dos anos 1900, que era a base de preparação para a Primeira Eucaristia, que assim definia: “Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra”. Depois vinha uma segunda pergunta: “Onde está Deus?” E a resposta era: “Deus está no céu, na terra, e em todo lugar.” Eram respostas que a gente devia saber de cor como porta de entrada para a primeira comunhão. E as crianças se esmeravam nesse intento. E conseguiam, desta forma, colocar Deus lá dentro da inteligência, naquela parte que, segundo os cientistas, é responsável pela memorização. Mas nem sempre sentiam estímulos para colocar a divindade no coração. A teologia tem mil repostas para essas perguntas. Mas não é isto que nos interessa neste momento. Bem antes do aparecimento daquele catecismo, São Leonardo Murialdo fazia a experiência de trazer aquele Deus, que estava lá em cima, para o centro do coração humano. Entendia, desta forma, que já não é a pessoa que deve chegar até Deus, que habita os céus. Mas Deus está aqui, e nós temos apenas que nos abrir a Ele. Murialdo parece querer desmistificar a idéia de um Deus inacessível, que 78 Subsídio 08 só poderia ser desvendado pelo conhecimento. Descobre e afirma constantemente a imagem de um Deus amoroso. E se sentir próximo deste Deus é uma grande alegria, um consolo nas adversidades, nos desafios que a vida vai apresentando. E então o sagrado mora na profundidade de cada pessoa humana e a religião é algo que Murialdo busca passar aos meninos ajudando-os a descobrir Deus dentro de cada um, na instituição, na comunidade, no curso da criação e das criaturas. Busca apresentar-lhes a mesma não apenas para ocupá-los com o exercício de ir à missa, fazer orações, manter vivas algumas devoções... Ele diz, em seus escritos: “Pois quando se tem Deus no coração, tudo fala d’Ele, tudo se ama n’Ele. Ama-se a Deus nas suas obras e nas suas criaturas todas com simpatia sobrenatural com que contemplava a Deus e o amava São Francisco de Assis.” (Vol 37,5) As pessoas que se deixaram envolver pela mística cristã são pessoas também que conseguiram manter encontros marcantes com a divindade. E desses encontros conseguiram sair relativizando algumas situações para conservarem o entusiasmo e se abastecerem de energias para suas lutas quotidianas. A fé passa a ser a expressão de um encontro com Deus que envolve a totalidade da existência, o sentimento, o coração, a inteligência, a vontade. Guiados pelos escritos de São Leonardo Murialdo, poderíamos afirmar que o mesmo sabia que mais do que ouvir falar de Deus, seus meninos precisavam sentir Deus. Bem como, ele sabia que os meninos queriam-no como alguém que falava de Deus a partir de seus sentimentos, mais do que seus conhecimentos. Segundo Pe. E. Reffo, um antigo aluno do Colégio Artigianelli, assim testemunhou: “Uma das coisas que ficou mais marcado em mim é a grande devoção com que rezava a santa missa. Por ocasião do Cinqüentenário do Colégio tive a graça de assistir sua missa na capela do Colégio. Meio profano, disperso e irrequieto que sou, me impressionou muito o modo, a piedade, a devoção em suas palavras cheias de alegria e disse comigo mesmo: É mesmo um santo!” (Vita Del Servo di Dio Leonardo Murialdo. Tipografia Pio X, Roma, 1956, p.237) Cabem-nos algumas perguntas: Se Deus nos ama tanto e estamos convencidos desse seu amor, por que rezar? Por que Murialdo gastava tanto tempo em oração e insistia nesta necessidade? Será que Deus necessita de minha oração? E se o amor de Deus é iniciativa da divindade, para que serve a minha oração? A espiritualidade de Murialdo afirma que mesmo que eu não perceba seu amor, Deus está me amando. Então ainda existe a necessidade de oração nesta relação com o divino? Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 79 No catecismo de outrora se aprendia também que Deus nos amava mais enquanto éramos mais “puros”. Na espiritualidade de Jesus, vivenciada por Murialdo, aparece o inverso. Deus nos ama mais porque precisamos mais do amor Dele. E quanto estamos mais carregados de problemas, mais afastados do bem, é que devemos nos sentir mais acolhidos por ele. É também neste sentido que resta dizer: “Deus me ama: que alegria, que consolação!” É bem verdade que Deus tem todo respeito à liberdade que temos de recusá-lo. Mas isso não significa que deixe de nos amar. O amor Dele é incondicional; é da própria essência divina. Mas por que rezamos tão pouco? É preciso lembrar que a oração não se coloca na esfera da necessidade, como comer, dormir, trabalhar... muito menos na esfera da eficiência do uso do tempo. Ela é pura gratuidade. É claro que existem muitas formas para colocarmo-nos em atitude de oração. A graça supõe a natureza. Ou seja, se a gente não abrir os ouvidos, não escuta a Palavra de Deus. Se não abrir o coração, não acolhe sua graça. Murialdo foi um místico. Os místicos nos ensinam que o tempo sempre lhes é insuficiente. “O místico entra numa dinâmica de paixão amorosa tão fértil, tão vibrante, que pode passar a noite inteira em oração e lamenta ter que parar, lamenta ter que retornar à cotidianidade.” (Frei Betto in: Mística e Espiritualidade. L. Boff e Frei Betto. Ed. Rocco, 2a Edição, Rio de Janeiro, 1994, p.126) Tudo isso nos lembra ainda que a oração não nos eleva a nenhum grau maior ou menor de santidade. Nós não rezamos para deixar de pecar, ou para nos sentirmos mais e melhores que os outros. Mas isto sim: rezamos para nos sentirmos mais pertos de Deus e tão amados por Ele que fica difícil sermos infiéis ao projeto Dele. O que faz com que São Leonardo Murialdo passe a dedicar toda sua vida à causa das crianças, adolescentes e jovens que viviam em situação de empobrecimento e risco? Qual o motivo último, escondido, mas impulsionador desse desejo? Para Leonardo Boff “não há militância sem paixão e mística”. Mais do que ter idéias, trata-se de ter convicções. A expressão de São Leonardo Murialdo: “Deus me ama! Que alegria, que consolação!” é um convencimento mobilizador para o apostolado. Convencido dessa mística do amor de Deus ele se dá conta que por trás das estruturas do real, não há o absurdo do abismo que nos mete medo. Mas que lá existem também sinais carregados da ternura, da acolhida, do mistério amoroso que se comunica com alegria, dos sonhos e desejos escondidos, das coisas e pessoas de convivência solidária e fraterna porque Deus está enraizado naqueles corações... Ele é Pai, é Mãe, cheio de misericórdia, de amor... Ver o mundo assim traz alegria, traz consolação. 80 Subsídio 08 3. Seu amor é infinito, misericordioso... “Deus para mim: Amei-te com amor eterno. Assim te atraí, miserável! Desde toda a eternidade pensei em ti. Chamei-te pelo teu nome e decidi salvar-te, santificar-te, glorificar-te eternamente, por causa do amor infinito com que te amei desde os séculos eternos. E quando devias vir a este mundo, eu olhei sobre a face da terra. Havia uma população de mais de um 1.200.000.000 habitantes. Os cinco sextos eram infiéis ou hereges, sendo um sexto católicos, Eu decidi que nascesses entre a sexta parte feliz, e entrasses na população católica e que, chegando à idade da razão, fosses educado na religião cristã. Por isso te fiz nascer de uma mãe muito piedosa e de um pai praticante.” (São Leonardo Murialdo – Testamento Espiritual) Através dos escritos de São Leonardo Murialdo pode-se perceber que o amor de Deus recebe muitos adjetivos que o qualificam de acordo com a experiência pessoal que ele mesmo vivenciava. Por exemplo, o Pe. Roberto Salvati busca identificar a santidade de Murialdo através de uma chave interpretativa fundamental de sua espiritualidade: a do amor infinito, pessoal e atual de Deus (Espiritualidade de Murialdo. Congregação de São José. Província Brasileira, Caxias do Sul, Tradução, 2001, p1). Por sua vez, Giuseppe Fossati identifica as características do amor de Deus, na espiritualidade de Murialdo, como sendo: Amor eterno e infinito, gratuito, pessoal, terno, paciente, generoso, e atual (O Carisma Josefino. Congregação de São José. Província Brasileira, Caxias do Sul, Tradução, 1999, pp13-18). Tem sido comum também, especialmente na Província Brasileira da Congregação de São José, ouvir-se definir o amor de Deus, de acordo com a mística de Murialdo, em cinco características bem expressivas: amor que é infinito, pessoal, atual, terno e misericordioso. Inclusive o “Projeto Educativo” Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 81 da Escola Murialdo, que busca unificar a prática pedagógica na “rede Murialdo de educação”, atribui essas cinco características ao amor de Deus na espiritualidade murialdina (Cfr. pp15,22). Dessa forma, iremos desenvolver nossa análise tendo por detalhamento do amor de Deus estas cinco características. 3.1 Seu amor é infinito “Deus é tudo, nós o nada... todavia Ele nos ama com amor imenso.” (Escritos, Vol IV, p.21) Uma certeza absoluta que nasce da espiritualidade de São Leonardo Murialdo é esta: o amor de Deus por nós não tem limites. Isto é, Deus se doa Todo a mim, por amor. Murialdo mesmo afirma em seu Testamento Espiritual, lembrando o Evangelho de São João, que “Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho Unigênito. (...) Ninguém tem maior amor do que este: dar a vida por seus amigos.” Sem nenhum receio Deus oferece a cada pessoa humana o bem mais precioso que tem seu Filho Único. Então, não é somente Cristo que está comprometido com as pessoas, mas cada uma das pessoas da Trindade está, pelo mesmo ímpeto de amor, disposta a assumir a dor vivida pelo Filho. Em seus escritos Murialdo afirmava: “Na Trindade Divina não se encontra nem perfeição, nem pessoa que não te ame infinitamente”. Ou ainda: “Deus nos ama com todo o seu ser e com o mesmo amor que une entre si as três pessoas divinas.” (p 392 e 994). Dizer que algo é infinito é dizer que aquilo jamais termina, não tem fim, sempre vai existir... Pensar nas relações humanas que giram ao redor do amor, que são permeadas de promessas de amor eterno, faz a gente constatar a fragilidade das mesmas. O amor deixou de ser uma atitude mágica mobilizadora de corações em favor de um bem, para se tornar “mercadoria” ou produto de barganha no comércio das relações. Quando se desfaz uma relação, como a matrimonial, é comum ouvirmos expressões tais como: “Acabou o amor”, “nossa vida está virada num tédio”, “nós não somos felizes no amor”... Deixou de existir o princípio cristão do “serviço” ao outro. Aliás, o amor é a única possibilidade de fazer as pessoas felizes. Pessoas que se descobriram no exercício da caridade fraterna foram pessoas que tiveram suas existências cobertas de alegria e de sentido de viver. Matrimônios em que os parceiros foram capazes dessa cumplicidade prazerosa de ser motivo de alegria para outro foram casamentos 82 Subsídio 08 “até que a morte os separou”. Fora isto o que temos assistido são espetáculos de ciúmes, de invejas, de cobranças fúteis e vinganças mesquinhas. Por outro lado, também é preciso lembrar que o amor humano, experienciado nos atuais tempos do pleno desenvolvimento da globalização da economia, passou pela máxima de que eu amo a alguém se também for amado por ele. A troca parece ser uma segurança exigida para não ser trapaceado pelo amor. O sentido da gratuidade desaparece para dar lugar à simples troca. Ainda vale dizer que ninguém é amado por Deus porque tenha tal merecimento. Muito menos, que Ele ame mais um ou outro por merecimento do mesmo. Importa acentuar que Deus nos ama com um amor eterno não porque nós sejamos bons, mas porque Ele é a bondade suprema. Talvez até sejam mais amados aqueles que são menos santos, e que por isso mesmo precisam mais do amor Dele. Foi também essa a experiência vivenciada por Murialdo naquele momento crítico de sua vida, conforme descreve no Testamento. Em seu Testamento Espiritual escrevia Murialdo: “Amei-te com amor eterno. Assim te atraí, miserável! Desde toda a eternidade pensei em ti. Chamei-te pelo teu nome e decidi salvar-te, santificar-te, glorificar-te eternamente, por causa do amor infinito com que te amei desde os séculos eternos.” (...) E Ele me ama com amor tão grande, tão perfeito, que é amor igual a Ele, infinito, eterno; pois não há desigualdade em Deus. Não existe mais ou menos. Tudo o que está em Deus é Deus: grande, eterno, infinito como Deus. Deus me ama, pois, no amor infinito.” Sentir-se amado por Deus com este amor infinito, que não coloca exigências de retribuição, traz imensa segurança aos passos da pessoa. Faz perceber que basta deixar-se conduzir por Deus. Entregar-se em suas mãos. Acreditar de fato, leva também a amar de fato: o próprio Deus e as pessoas com quem se faz a convivência. Com certeza Deus, em sua infinitude de amor não precisa que a pessoa o ame; mas, com certeza, no rosto, no corpo e no coração de tantas pessoas Ele pede socorro. Aí podem nascer respostas humanas ao amor da divindade. Então, como dizia o próprio Murialdo, é preciso deixar-se guiar pelas mãos de Deus e estar atentos aos sinais que acontecem ao nosso redor: “Estamos nas mãos de Deus e estamos em boas mãos”. Pensar no amor infinito de Deus não é transportar-se ao mundo das coisas abstratas. Murialdo chega a esta conclusão através de experiências bem concretas de vida. Se a adolescência lhe foi uma fase difícil da vida e carregada Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 83 de desvios, a experiência da amorosidade de Deus é a descoberta que lhe dá fundamentação para uma vida que será marcada por gestos de altruísmo, de bondade e ternura para com os pequenos da sociedade. 3.2 Seu amor é pessoal “Deus é amável pelo amor especial que tem para cada um de nós.” (Escritos, p 353) Em seu Testamento Espiritual, Murialdo manifesta com clareza esta certeza da fé. Basta lembrar o texto onde afirma o amor que Deus tem por ele: “Desde toda a eternidade eu pensei em ti; te chamei pelo teu nome”. Ao se sentir amado por Deus, Murialdo se sente uma criatura única, especial e percebe que toda a sua vida vem sendo conduzida pessoalmente por Deus. Deus, que ele define também como “bom Pai” (Testamento Espiritual) pensa nele a cada instante, o guia, o sustenta e o cumula de muitas graças. Também naquele momento em que se afastou da graça divina, ele continuou sendo amado e procurado pessoalmente por Deus. Ele mesmo se sente tal qual Adão que, após o pecado, continua sendo procurado por Deus no paraíso terrestre: “Leonardo, Leonardo, onde estás?” (Testamento Espiritual). Aqui é preciso reconsiderar a idéia tão difundida de que “Deus ama a todos”. E isso é verdade. Mas não ama a todos enquanto alguém que ama um grupo, a humanidade... numa idéia de impessoalidade. Deus ama a cada um em particular e por isso ama a todos. O amor é vivido numa relação pessoal, não de massa. Ama a cada um como se fosse único na face da terra. (Cfr. Escritos, Vol. III, p 490). Ou mesmo, conforme afirma: “Deus nos ama como uma mãe ama seu filho único” (Escritos, Vol. IV, p 793). Talvez a experiência do perdão, de se sentir perdoado por alguém que é infinitamente bom, tenha reforçado ainda mais a idéia de sentir-se querido por Deus. Então ele podia afirmar com toda a convicção: “Deus me ama. É verdade! 84 Subsídio 08 Deus me ama. Que alegria! Que consolação!” (Testamento Espiritual) E foi por isso que deixou um desejo especial de crença e difusão: “o conhecimento do amor... individual que Deus tem para com todos os homens... do amor pessoal que tem para cada um em particular” (Testamento Espiritual). A relação pessoal com a divindade, própria da espiritualidade de Murialdo, traz uma resposta muito concreta ao indiferentismo que, nos tempos atuais, se vive dentro das relações pessoais. O árido formalismo das relações mais interesseiras que amorosas, o prazer no mau gosto em desmontar a auto-estima dos outros esvaziam o desejo de conviver e fazer comunidade. As exigências de cuidados para não se ferir, para não sair marcado, para não se comprometer com a vida do outro faz das atuais relações pessoais algo muito fruitivo, que foge com a mesma rapidez com que apareceu. A religiosidade que parte dessa certeza absoluta do amor pessoal de Deus parece querer lançar a pessoa humana para uma outra dimensão de convivência. Amar alguém é ao mesmo tempo estar comprometido com o seu bem e a sua realização. É desejar sua salvação; querer que não se perca e estender-lhe pessoalmente a mão. Isso ensina aos pais a importância do amor pessoal esposo-esposa, do amor pessoal para com os filhos. Faz com que os pais percebam seus filhos como seres únicos, que é a cada instante que precisam se sentir amados. E que cada um deles é tão importante como se fosse único. Que eles valem mais do que qualquer outra coisa que possam buscar ou possuir. Que aquele filho que está com mais problema é o alvo da sua maior atenção e amor. Essa mesma experiência passa a ser significativa também para os educadores. Relacionar-se de forma pessoal com seus alunos e buscá-los como seres únicos. Entender que essa arte de ensinar e aprender é uma ação direcionada primeiro para o coração; que a primeira exigência para o prazer de aprender passa pela dimensão da relação educador-educando. Bem como, que é no coração que está a maior preciosidade do outro. 3.3 Seu amor é atual “Deus me ama com amor atual.” (Escritos, Vol.I, p 73) Uma característica, não menos importante da descoberta espiritual de Murialdo sobre o amor de Deus é essa de que seu amor por nós é algo que se exprime em cada instante. Deus me ama agora, neste momento. Então, mesmo que eu esteja vivendo um momento de erro, de desvio dos valores evangélicos, Deus continua me amando e querendo-me bem. É a cada momento que temos necessidade de sermos perdoados, porque nossa resposta ao seu imenso amor Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 85 nunca é total e radical na medida em que é seu amor por nós. Essa convicção de Murialdo faz a gente perceber que o amor de Deus nos acompanha constantemente, passo a passo, minuto a minuto. Em seu Testamento Espiritual, quando apresenta o título “Meus dois Desejos” ele apresenta as características do amor de Deus e sublinha duas vezes o adjetivo “atual” que explica depois, assim: “... é no presente, agora, neste momento que Deus nos ama verdadeira e infinitamente”. Desta forma não se pode mais entender que alguns momentos de nossa vida são mais preciosos do que outros. Ou que alguns são privilegiados sobre outros no nosso contato com a divindade. Mas compreender que todo momento é precioso porque é rico do amor de Deus. Talvez alguns momentos possam ser mais significativos na nossa relação com o transcendente porque nos empenhamos mais em determinados instantes para vivenciar nosso amor por Ele. É preciso, porém lembrar que as contingências do momento presente, suas agruras ou percalços sempre contem a grandeza e infinitude do amor divino. Essa verdade extraordinária pode tornar uma vida extraordinária. Na mentalidade moderna costuma-se definir o homem como artífice de seu destino. Isto é, ele em si mesmo é o único responsável pela sua vida e seu futuro. Por um lado isso tem seu aspecto positivo enquanto condena toda a passividade fatalista do “Deus quer assim”. E, ao mesmo tempo é capaz de reconhecer as limitações insuperáveis da pessoa, medidas, inclusive, em tantos fracassos e desilusões presentes na história da humanidade. Mas nessa mentalidade moderna parece existir espaço para o tema da providência de Deus, ou seja, espaço para a percepção de que Deus cuida de nós sim. Nesse sentido talvez estivesse escrevendo: “O homem não é um menino deitado no berço do qual mamãe espanta as moscas, mas antes alguém que deve ser ajudado a caminhar. Devemos fazer como se tudo dependesse de nós e contar e esperar tudo de Deus como se nós fôssemos nada.” (Escritos, p 684) O amor atual de Deus, na concepção de Murialdo, apresenta a divindade 86 Subsídio 08 encarnada na vida concreta das pessoas. Deus é apresentado com quem contribui e ajuda a pessoa a superar, desde sua interioridade, as contradições de sua liberdade, de sua justiça, de seu amor. E vai abrindo a pessoa para projetos pessoais que dêem significado à própria existência. Deus é providente porque é uma fonte de ações generosas; não permite omissões mas anima a vida através de um otimismo criativo e solidário. 3.4 Seu amor é terno “Deus é nossa mãe. Oh, sim, não é verdade que as mães querem ter um amor mais carinhoso, mais terno e mais afetuoso? Pois bem, Deus tem para conosco afeto de mãe (...) É um Deus todo amor para conosco. Isso não vos causa emoção? Ele vos ama mais do que vossas mães; infinitamente mais!” (Escritos, p 191). Definir o amor de Deus relacionando-o à ternura expressa grande encantamento amoroso. Essa descoberta não nasce da capacidade mental, ela é experienciada no coração da pessoa. Reflete uma atitude interior para com o divino. Atitude essa que se desprende de qualquer medo, receio... mas se carrega de confiança, de segurança, de bem-estar. Essa atitude nasce da possibilidade de poder penetrar no coração de Deus e conseguir “ouvir” seus sentimentos. É claro que para chegar àquela comparação, o amor divino e o amor materno, Murialdo estava fortemente marcado pela experiência do amor da própria mãe. Cada mãe leva dentro de si algo do divino ao carregar uma vida em gestação. Carrega muito mais quando consegue deixar-se encher de ternura pelos filhos. Sem considerar que esta também deve ser uma atitude paterna, precisamos lembrar que Murialdo tornou-se órfão de pai quando ainda era muito pequeno, a ternura é irmã da estima, do carinho, da admiração ingênua, do aplauso, da bondade e da beleza. O amor de mãe, ou de pai, é um amor zeloso, atento, cheio de cuidados especiais. É uma atitude, mais que um sentimento. Atitude que se extasia em contemplar a vida, que faz esquecer-se de si mesmo, que faz redobrar-se de atenções vigilantes. E assim, e muito mais, é o amor de Deus por cada um de nós. Se a santidade é obra-prima do Deus-amor, a mãe foi para Murialdo a imagem do amor de Deus. Ficou bem mais fácil compreender o quanto Deus lhe amava quando lembrava do amor de sua mãe por ele próprio. E é no momento mais complicado de sua crise que ele vai recorrer à sua mãe. E ela o ajudará a Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 87 descobrir o valor real de tal sofrimento. A volta do colégio interno para o colo de sua mãe indica uma fase delicada no seu amadurecimento afetivo. Poderia ter gravada e se deixado marcar por uma imagem negativa de Deus e se tornado um contestador Dele e da própria Igreja. Ao narrar sua volta para casa, ele se apressa em dizer que sua mãe, Tereza, encaminhou-o ao Pe. Pullini, amigo da família e verdadeiro educador cristão. E se as nossas mães, desse mundo moderno, conseguissem ainda estar atentas às crises de seus filhos? Então, quem sabe, nossos filhos, especialmente os adolescentes, conseguiriam procurar primeiro suas mães como chaves de respostas para suas angústias, seus problemas, suas decepções! E se nossas mães conseguissem encaminhar seus filhos para alternativas positivas? Ah! Se as mães conseguissem amar com tal ternura seus filhos! Se estivessem empenhadas em transmitir mensagens positivas e carregadas de ternura sobre Deus e as coisas do alto! É claro: Ah! Se nossos pais fossem...! O amor de Deus se expressa em ternura na eucaristia. Murialdo tinha um fervor especial quando se preparava para esta celebração. Costumava dizer que ela era o ponto alto do dia. Certa vez escreveu: “Ver um Deus que se reduz sob a forma de um pedacinho de pão por nosso amor, ver a Deus que sofre, que morre por nossa salvação!... É grande demais, terno demais seu afeto para conosco...” (Escritos, p 764) A descoberta do amor terno e, mais do que isso, a vivência dessa certeza carrega a pessoa humana de grande auto-estima e de segurança para dar os passos de sua vida. Trata-se de perceber que mesmo que ninguém nos amasse, nem a mãe ou o pai, que nos sentíssemos excluídos dos círculos de amizades, que não tivéssemos a experiência do namoro... que as pessoas não nos aceitassem assim como somos... Apesar desses percalços das relações humanas, Deus nos ama e tem muita ternura por nós. Seu cuidado é afetuoso, de quem transmite carícias, afagos. Perceber-se nessa dimensão de relação com o divino que acaba construindo ou fortalecendo a auto-estima e dando mais segurança para as novas relações humanas que deverão ser desencadeadas. 88 Subsídio 08 3.5 Seu amor é misericordioso “Antes de deixar-vos, quero legar-vos uma lembrança: a lembrança das misericórdias que o bom Deus quis concederme, sendo o mais ingrato dos pecadores. (...) Que história, meu Deus! É a história das vossas misericórdias e das minhas ingratidões! Eu vejo que eu deveria ser o objeto da execração de Deus: mas pelo contrário me vejo o objeto do amor e dos benefícios de Deus. Oh, como vossa misericórdia infinita se tornou sensível naquela ocasião (referência à sua confissão sacramental de sua conversão).” (Testamento Espiritual) Dizem os estudiosos de Murialdo que foi a crise existencial pela qual ele passou que o fez perceber de modo concreto a misericórdia de Deus. Para Murialdo Deus é misericordioso porque o seu amor se faz perdão sem limites e sem medir nossos merecimentos. Tanto é misericordioso que admite de novo o pecador ao convívio do seu coração. Murialdo se percebe como um cristão, um sacerdote ou um religioso que não ama a Deus o suficiente como deveria amálo. Porém, se sente constantemente amado por Deus. Isto o faz ver sua existência continuamente mergulhada na misericórdia de Deus. Misericórdia esta que não é um ato isolado, mas presença e aconchego permanente de Deus junto a ele. Isto porque ele continuamente está também necessitado de perdão. É por isso que nos seus escritos diz que “a misericórdia é para os míseros” (Vol. II, p 263). Em seus Escritos Murialdo costumava citar muitas frases bíblicas. Quando faz referência à misericórdia de Deus traz presente trechos bíblicos sobre este tema. São muito interessantes e dão uma dimensão da riqueza de suas meditações, bem como, de sua visão sobre a divindade: “A tua misericórdia, ó Senhor, me seguia de perto todos os dias.” (Sl 22,6) “A tua misericórdia ainda me circundará.” (Sl 31,10) “Me preveniste com a tua misericórdia.” (Sl 58,11) “É pela misericórdia de Deus que não fomos destruídos.” (Lm 3,22) “Grande é a misericórdia para comigo.” (Sl 85,13) Consegue-se entender muito bem a imagem que Murialdo fazia de Deus em seu coração. Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 89 “Deus é bondade, ou melhor, misericórdia infinita. (...) Deus é mais bondoso e misericordioso do que quanto pensamos, infinitamente mais bondoso. (...) Misericórdia de Deus, vós sois a mais amável das perfeições de Deus. (...) Deus nos ama muito, também se somos pecadores. (...) Os pecadores eram a pupila dos olhos de Jesus Cristo, a pérola mais preciosa aos seus olhos, o tesouro preciosíssimo. (Escritos, Vol. II) Através da experiência pecado-perdão, Murialdo vai percebendo de maneira viva e real a misericórdia que Deus tem por ele. Ela não é algo escrito, meditado apenas, mas experienciado concretamente em sua vida. Ele sabe que Deus trata a todos com grande bondade, também aos pecadores, de acordo com seu amor, com a grandeza de sua misericórdia e não com o grau de nossa perfeição. A misericórdia é a dimensão indispensável do amor, é o olhar de amor que gratuitamente se inclina sobre a miséria. E perdoa. Não só perdoa, ama. Ah! Se nossa educação pudesse ser mais permeada dessa característica do amor: a misericórdia. Se os educadores conseguissem compreender que a misericórdia caminha com o erro e não com os acertos. Que ela é conseqüência do amor pelo outro e não a sua contrapartida ou exigência de retorno emocional. Ah! Se as nossas famílias conseguissem compreender a profundidade do amor misericordioso! Quantos casais se perdoariam sem cobranças e quantas carícias misericordiosas invadiriam os espaços físicos de suas residências! Quantos filhos passariam a admirar e não temer seus pais e fariam com eles grandes projetos de vida; sem asilos, sem ressentimentos, sem abandonos! Quantos filhos estariam sempre com muita vontade de voltar para casa, para o aconchego, para o lugar da estima, da identidade, da segurança... porque a saudade mora no coração de quem se sente amado e perdoado! Não estariam aqui algumas chaves de leitura para compreendermos o mundo e as situações de violência que nos rodeiam. As bem-aventuranças evangélicas também afirmam: “Bem-aventurados os misericordiosos”. Existe um círculo implacável de ódio e ressentimento muito presente nos corações das pessoas do mundo em que estamos vivendo. E isto não se rompe com a violência. Ela acaba gerando ainda mais ódio. Por outro lado, devemos admitir que a aplicação da justiça também não é um dado suficiente para coibir ou apagar tais sentimentos. Todos nós somos testemunhas do quanto nossa geração sofre amargamente por causa desta lógica cruel. E tem, inclusive, pagado altos preços como conseqüência destas distorções existenciais. A espiritualidade de Murialdo aponta para uma solução que se encontra em Deus. Trata-se de redimir os lobos para que se transformem em cordeiros e saboreiem os frutos suaves e saborosos da bondade mansa, da ternura e misericórdia. Ou seja, do poder de perdoar. 90 Subsídio 08 4. Sem a fé não se chega a Deus e sem ternura... “A amizade é o eco do divino sobre a terra e o testemunho mais certo de que Deus está presente em nós com a sua graça.” (Escritos. Vol. 26 - 1050) Um dos pedidos que Murialdo deixou à sua Congregação era esse de que ela se empenhasse em difundir o amor de Deus. Em primeiro lugar, deixava entender que os membros da Congregação são chamados a testemunhar e difundir esse amor entre eles mesmos. Ele estava constantemente preocupado com as relações dos seus educadores para com os educandos. Estava convencido de que a ternura, a misericórdia, a bondade eram linguagens que tocavam o coração. Assim como era necessária a fé para encontrar-se com Deus e experienciar seu amor, não se consegue chegar a outra pessoa sem a bondade. Então tal prerrogativa não valia apenas para o apostolado com os meninos. Seu significado atinge todas as pessoas e em todas as circunstâncias de relacionamentos, inclusive na convivência da comunidade religiosa. Em determinada ocasião ele deixou escrito: “Cada um encontra na vida religiosa aquilo que com ele carrega: se leva guerra, encontra guerra; se leva paz, encontra paz... Se formos dóceis como Jesus, se formos pacientes como Jesus, os outros também serão bons; se não, não...” (Escritos IV, p.468) Murialdo cria um estilo educativo muito próprio enquanto fundamentado Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 91 nesta convicção do amor de Deus. E aqui aparece o segundo campo de testemunho de divulgação do amor de Deus para os membros da Congregação. Tratar-se-ia de estabelecer com os educandos um relacionamento pessoal que permitisse depois realizar algo realmente formativo e que os conduzisse à salvação. Seus textos estão recheados destas notas. Veja-se, por exemplo: “Quanto seria desejável se pudesse introduzir entre nós o espírito de doçura, de familiaridade, de paciência com os meninos. Seria o segredo para fazer um pouco de bem às almas que Deus nos confia;... não há outro jeito de atrair os meninos a Deus a não ser pelo ímã da doçura. Esforcemo-nos, pois, de ter sempre, quando tratarmos com eles, um rosto alegre, um trato gentil, uma conversa agradável, afável, afetuosa; se não o fazemos naturalmente, façamo-lo de forma pensada, com empenho, também com esforço, por amor de Deus e das almas.” (Escritos V, p. 2156) A acolhida das crianças, adolescentes e jovens empobrecidos nascia como decorrência da consciência de ter sido acolhido por Deus com misericórdia infinita e com amor gratuito. Segundo G. Fossati, em Murialdo foi isso que “abriu seu coração e seu braços aos meninos pobres” (Ritornerò da Mio Padre – Itinerario Spirituale sui Passi di San Leonardo Murialdo. Libreria Editrice Murialdo. Roma, 1999, p.103). De fato, comenta o autor, não se pode acolher Deus sem acolher os irmãos, e acolhê-los em nome de Jesus. Mas, mais do que envolver-se com os meninos empobrecidos, é preciso dar atenção especial ao modo de relacionar-se com eles. As recomendações de Murialdo eram de que o estilo pedagógico deveria se resumir em três palavras: doçura, familiaridade e paciência. Esses termos fogem dos espaços da pedagogia, invadem aquele da teologia porque manifestam a forma com que Deus misericordioso age conosco. Escrevia Murialdo: “Sem a fé não se chega a Deus, sem a doçura não se chega ao próximo.” (Escritos IV, p.40) Costumava insistir com seus confrades para que usassem de doçura para com os meninos indisciplinados (Escritos IV, p.241) e especialmente com os jovens mais grosseiros e violentos; doçura nos sentimentos, nas palavras (Escritos II, p.164). Existem duas expressões que podem sintetizar o ensinamento de Murialdo: com os jovens precisa ter “amabilidade positiva” (Escritos V, p. 30) e se deve tratá-los com “doçura nos modos e com caridade no coração.” (Escritos V, p.57) 92 Subsídio 08 Por outro lado, tendo percebido a presença de Deus em sua vida, mesmo quando esteve em situação de pecado, Murialdo apresentava a familiaridade como outra característica da pedagogia junto aos meninos. A familiaridade, para ele, consistia na presença serena e afável em meio aos jovens; mas com todos os jovens, independente de seus comportamentos e de suas respostas à ação educativa. Inspirando-se em São José lembrava que o educador é chamado a viver no meio dos meninos como “amigo, irmão e pai”. Afirmava Murialdo ainda: “... o espírito de doçura, de familiaridade, de paciência com os jovens... é o segredo para fazermos um pouco de bem;... os meninos não se entregam a Deus com outra proposta fora daquela da doçura.” (Epist. V, p.2156) A respeito de Murialdo e seu jeito de acercar-se dos meninos, existem depoimentos muito interessantes do Pe. E. Reffo, que com ele conviveu: Vejamos alguns: “Ele era tudo para seus jovens, os amava sinceramente, mas não tinha preferências; era cortês e imparcial com todos e cada um podia estar certo de ser amado por ele. Ele conhecia bem as condições de família de cada um para saber se relacionar bem com esse e com seus parentes e tinha cuidados especiais para com aqueles que eram oriundos de famílias sem princípios e cheias de misérias morais... Antes de tomar qualquer atitude ou medida mais drástica com relação às indisciplinas, como uma expulsão, consultava os mais velhos duas a três vezes, consultava-se com Deus, colocando-se na capela frente ao Santíssimo Sacramento. Depois de tudo, cedia mais para a misericórdia que para o castigo, as lágrimas dos meninos o desarmavam, e quase sempre ficou muito feliz em ter cedido... Com estes meios ele obtinha muitos resultados positivos e os meninos tinham cuidado para com a ordem e respeito para com os educadores sem, porém, que a disciplina endurecesse e fechasse seus corações bem como, que o Colégio parecesse mais uma prisão que uma família.” (Vita Del Servo di Dio Leonardo Murialdo. Tipografia Pio X. Roma, 1956, pp.56-57) Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 93 5. Para que nenhum deles se perca responsabilidade religiosa e social Murialdo parece fazer com muita clareza a experiência da descoberta do amor a Deus e amor ao próximo como um só movimento. Isto é, que o mandamento do amor é um só. E São João é quem lembra: “Se alguém disser que ama a Deus e odeia seu irmão, é mentiroso.” (1Jo 4,19-21) Entende-se, pois, que não existem dois amores: um amor a Deus e um amor ao próximo. Mas há um só movimento de quem vai ao outro, abraça-o e termina sentido-se abraçado por Deus. Neste movimento conclui que quem tem amor tem tudo. Bem como, que é por aí que passa a salvação: a sua e a do outro. Mais do que as palavras são as práticas de solidariedade e de amor. O mundo atual vive um contexto onde, cada vez mais, se acentua o abismo entre as nações ricas e os países pobres. As estatísticas sobre o nosso país atestam que 53 milhões de pessoas estão vivendo em condições de pobreza e miséria. A exclusão de pessoas, de grandes massas ou, até mesmo, de continentes têm se manifestado como o maior dos males da humanidade. A rápida mundialização da economia, com suas funestas conseqüências para a maioria da população mundial espalhou um vírus que é avassalador: o individualismo com suas expressões de competição, consumismo... a desintegração social. A sociedade acabou colocando suas energias em função das satisfações individuais; mas não de todos, só de alguns. O projeto atual de sociedade mundial colocou a medida da felicidade no consumo. O mercado é o advento da liberdade. Tornou-se um novo deus. Mas isso não é verdadeiro. A prioridade do mercado criou uma nova forma de escravidão. Todos devem comprar e comprar sempre mais. Quem não consegue comprar sofre a repressão dos vizinhos, dos colegas, amigos. O consumo não 94 Subsídio 08 impõe limites. O dinheiro nunca basta. Suas maiores vítimas são as crianças. Como ser cristão neste mundo? Como se deixar inebriar do amor de Deus sem olhar o que acontece ao redor? De acordo com a mística de São Leonardo Murialdo é possível isolar-se desses dados sociais e vivenciar em “paz” o amor de Deus? O amor de Deus por nós não nos refugia em nosso individualismo espiritual? Certa ocasião Murialdo escrevia: “É Deus que faz o bem, mas exige como condição que nós trabalhemos, semeemos, façamos, façamos o que está ao nosso alcance; e depois que rezemos, rezemos.” (Escritos, III, 432,2) O amor cristão tem uma missão. Essa missão nasce do comprometimento com o seguimento de Jesus Cristo. É bem verdade que a opção preferencial pelos pobres, tão presente na ação de Murialdo, foi conseqüência da descoberta do amor de Deus. Sentindo-se tão amado, é impossível não amar. E para amar é preciso ir até o irmão porque Deus, em si mesmo, não precisa do nosso amor. Mas existem filhos seus que precisam sim, e com urgência. A mística do amor de Deus em São Leonardo Murialdo passou a ser uma experiência espiritual cristã que o leva à “carne do mundo” com o mesmo espírito que animava Jesus Cristo. A experiência do amor de Deus não o separa do mundo para elevá-lo e isolá-lo “nas alturas”. Mística e missão aparecem como dois rostos inseparáveis da experiência religiosa de Murialdo. O risco passa a ser aquele da tentação atual de vivermos a perversão desses dados históricos: a mística tornar-se-ia misticismo sem controle e a missão um mero ativismo sem alma nenhuma. Murialdo soube manter unida a paixão por Deus e a missão de serviço aos últimos. E fez também perceber que a verdadeira missão cristã só se mantém enquanto alimentada por uma mística de amor. As obras até podem ser resultado de competências profissionais esmeradas, mas sem esses dados místicos elas Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 95 acabam perdendo suas almas, suas paixões, seus brilhos. Costumava trazer presente também que a salvação dos meninos não se resumia às suas vidas materiais. Que era muito importante apresentar-lhes o caminho do reino dos Céus. Sentir-se amado por Deus, viver esta experiência grandiosa de fé, exigia dele levar essa mesma possibilidade ou a chance de se aconchegar de Deus também na eternidade. E disto as crianças, adolescentes e jovens não podiam ser privados. Assim escrevia aos seus religiosos, em carta circular: “O amor de Deus reine... nos vossos corações. Então cuidai para acrescentar este amor de Deus... O amor de Deus origine o zelo pela salvação dos pequenos; que não se percam, diz São João Crisóstomo; não se percam, não se desviem... mas verdadeiro cuidado para salvá-los, de ensiná-los bem sobre as coisas da religião, apresentar-lhes o amor de Deus, de Jesus Cristo, de Maria.” (Epist. V, p.2187) 96 Subsídio 08 6. Estamos nas mãos... “Deixemos Deus agir. Ele nos quer bem, muito mais de quanto nós mesmos possamos querer. A nossa sorte está melhor nas suas mãos que nas nossas... Nós cristãos estejamos sempre contentes. Pode, por acaso, acontecer-nos algo que Deus não queira?... Tudo vem de Deus, tudo será para o nosso bem. Deus é nosso Pai... Sim, meu Pai! Tudo é para o melhor!” (Escritos in Reffo, E. Vita Del Servo di Dio Leonardo Murialdo.Tipografia Pio X, Roma, 1956, p.229) É bem verdade que a maioria dos cristãos, desde a infância, ouviu dizer que Deus nos ama; e ouvimos isso muitas vezes. Nossos ouvidos já se acostumaram com essa verdade. E ouvir novamente isso já causa pouca repercussão em nossa vida. Usar a afirmativa passou a ser algo já sem muito fundamento e verdade, uma espécie de chavão que se repete sem esforço emocional ou mental. Trata-se, às vezes, de se perguntar se nós cremos mesmo que somos amados tão intensamente por Deus. E, dar-se conta de que se, de fato, cremos também o amaremos. Qual o coração que não ama quando se sente amado com tanto intensidade? E afirmar que amamos a Deus significa também sintonizar a nossa fé com nossa própria vida, isto é, traduzir em atitudes, comportamentos, em atos o sentimento que temos por Deus. Murialdo escrevia: “no mundo reina um escândalo, um erro, e diria, uma impiedade que causa o mais deplorável prejuízo na Igreja de Cristo, e é que não se crê no amor de Deus por nós”. Essa crença transporta a pessoa para um outro contexto de fé: existe um Deus que tudo faz para nosso bem porque nos ama. Tudo o que nos acontece, mesmo a doença, a dor, as privações... tudo é fruto do amor de Deus; um amor, às vezes, Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 97 incompreensível... mas sempre dirigido para o nosso bem. Em determinado momento de sua vida, Murialdo assim se expressara: “Nas doenças, na pobreza, na desolação, nas contrariedades e nas fadigas que se sucedem no cotidiano, reconheçamos sempre a mão paterna de nosso Deus que nos prova, mas para salvar-nos.” (Escritos. Vol. III, p 541) Leonardo Boff, ao analisar as experiências que a humanidade faz em contato com o sagrado e o divino afirma que “o sagrado não está nos objetos, no altar, na eucaristia, no livro sagrado ou em pessoas consagradas. O sagrado é a profundidade de cada pessoa humana. É a misteriosidade de cada ser da Criação.” (Mística e Espiritualidade. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1994, p 67) Seria uma grande tristeza e decepção para uma pessoa ter sede imensa de Deus e não conseguir encontrá-lo nunca. A teologia nos fala da imanência e da transcendência de Deus. Isto é, que ele está aqui dentro do nosso mundo, no coração das criaturas criadas (imanência). E Ele é algo superior a tudo que se possa imaginar, e está lá, no outro lado, acima deste nosso mundo, no além; Ele é o céu (transcendência). Mas que no final se conclui que Deus está aqui e lá; que não existem espaços sem Ele. O papel importantíssimo da religião é esse de ajudar as pessoas a descobrirem Deus dentro de nós, na comunidade, no caminhar da história de cada um e da humanidade. Não pode se reduzir a essa coisa de exercícios, como: ir à missa, fazer orações, participar de reuniões da comunidade... O Deus que se revela na experiência de Murialdo é um Deus vivo que se comunica através de muitos sinais. E se em Deus existe a imanência e a transcendência, podemos afirmar que em Jesus Cristo se dá a transparência. A sua ternura para com os pobres e as crianças, sua abertura para Deus chamando-o de “Paizinho” faz vermos o amor divino. Aquilo que ouvíamos agora vemos. Torna-se transparente. “Quem vê a Mim vê ao Pai”. A transparência aí é a expressão que significa a presença do Pai em seu Filho encarnado. Jesus revela o Pai. Bem como, Deus não é só a luz que ilumina de fora este mundo, mas a luz que o atravessa, que torna a realidade transparente. Através de Jesus nossa realidade de mundo, de história, de cosmos, ficou tocada pela divindade, ficou transparente, sacramental. E vendo esse mundo podemos afirmar que Deus está dentro dele. E é neste mundo que acabamos captando Deus (Cfr. L. Boff. Op.cit. p 71). Pois bem, existem também pessoas que conseguem ser a transparência. Manifestam, sem nenhum esforço, a presença de Deus nelas e nas criaturas. São pessoas muito sensíveis à natureza e nela lêem as manifestações de Deus, 98 Subsídio 08 são suas transparências. Murialdo parece ter sido uma dessas pessoas. Vejamos alguns dos seus pensamentos, retirados dos seus escritos: “É próprio dos santos dar uma alma a tudo o que existe e emprestar a própria a todas as coisas criadas, com o fim de multiplicar o número dos que adoram e amam a Deus.” “Pois, quando se tem Deus no coração, tudo fala Dele, tudo se ama Nele. Ama-se a Deus nas suas obras e nas criaturas todas com simpatia sobrenatural com que contemplava a Deus e o amava São Francisco de Assis.” “Que grande artista é Deus! Artista no olho do homem. Artista na estrela misteriosa. Artista na humilde flor do campo. A natureza é o teatro de Deus. Os céus, a terra, os amores, cantam a sua glória. As ervas, as plantas, as flores e os frutos, as fontes, as aves e os peixes representam a sua vida e a sua fecundidade. Mas milhares de mundos, juntos, não poderiam representá-lo. Sua atividade é permanente e fecunda.” “Gosto de contemplar, nas flores, a imagem do Verbo Eterno que, brotando do seio do pai, mostra visivelmente as belezas e perfeições de Deus, escondidas no segredo de sua essência. Ele se tornou a flor da nossa terra e, em Cristo, a manifestou aos homens. Talvez por isso gostou de ser chamado a flor dos campos, o lírio dos vales.” “O que cantais, meus queridos passarinhos? Eu vos contemplo maravilhado e vos escuto. Foi Deus que vos fez tão lindos. E vós, com vossos gorjeios festivos, cantais a Ele. O seu nome vos torna alegres e exultantes nos matos. Vós cantais a Ele.” Claro que pode existir agora uma pergunta a nos intrigar: O que tem tudo isso acima a ver com a constatação de que “estamos nas mãos de Deus e estamos em boas mãos” de Murialdo? Pois bem, Murialdo é um místico procura sempre ver o que está por trás de cada coisa, procura descobrir o que a constitui e a sustenta. É verdade que não fica preso às coisas, mas busca fazer delas símbolos, sinais, sacramentos, imagens. Para ele o mundo é uma grande mensagem. Vivendo assim ele já não precisou fazer esforço para que a toda hora tivesse que pensar em Deus. Sua proximidade com a divindade o levava a não mais pensar em Deus, pois isto deixaria Deus apenas na esfera da inteligência Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 99 e não em seu coração, em todo o seu ser. Ele estava tão próximo de Deus que já não precisava pensar muito. Bastava sentir. E não é assim mesmo que a maioria do povo faz sua experiência de religiosidade? Mais do que fazer reflexão sobre Deus ele vive Deus no seu cotidiano. Segundo essa experiência mística de Murialdo, mais do que falar de Deus, é preciso deixar que Ele fale em nós, nas criaturas. Ele está presente em nossa vida sem que a gente se dê conta. Assim Murialdo pode concluir que Ele cuida bem de cada um de nós, mais do que a gente mesmo seria capaz. Esse extasiar-se frente tudo leva a concluir que além de qualquer esforço que cada pessoa humana deva fazer existe uma certeza que é absoluta: nada pode abalar uma vida quando ela se percebe protegida por Deus. Trata-se de deixar Deus agir. Ele conhece melhor do que nós o que é útil para nós. Significa viver a sintonia com a natureza, com os cosmos... as várias manifestações da divindade. Esse abandono à providência, que não significa desinteresse da pessoa, é sentir-se livre para permitir que Deus construa a história de cada um. Essa liberdade é, ao mesmo tempo, muito carregada de fé, da confiança filial de quem se vê nas mãos do Pai e que, desta forma, nada tem a temer, pois está em boas mãos. “Deus me ama com amor infinito, pessoal, atual, terno e misericordioso.” Murialdo 100 Subsídio 08 Conclusão Mergulhar na experiência do amor de Deus parece diferente do mergulho que os meninos costumam dar nas águas turvas do Rio Lava-pés, aquele que corta a Fazenda Estrela, lá em Lajeado Grande, município de São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul. No Rio Lava-pés os meninos já elegeram uma pedra como seu trampolim para saltos e mergulhos. Não é qualquer pedra, pelo contrário. É uma pedra grande, não pontiaguda, que se encontra na margem esquerda, lado contrário ao da mata. Está de frente para o pequeno poço que se forma logo após as corredeiras. O local é pequeno, mas bastante amplo para acolher um grupo irrequieto e solidário de aprendizes da arte de se locomover sobre as águas e até debaixo delas. O leito é pedregoso, como também são suas margens. A pedra, aquela do trampolim, serve muitas vezes para quebrar o medo do choque térmico do corpo aquecido por tantas atividades esportivas com as águas que quase sempre são muito frias. A pedra serve também para criar novos saltos, inventar acrobacias... e o bom mesmo é quando os outros estão parados para observar, especialmente os monitores, referências ou autoridades mais legitimadoras dos feitos heróicos dos pequenos. Nem todos saltam. Alguns só observam. Têm medo. A pedra lhes surge como ameaça. Não a pedra, mas o que ela pode fazer: lançar você para algo desconhecido e ameaçador. Aconteceu há pouco tempo que um dos meninos, que dizia com orgulho ter aprendido a nadar e a mergulhar que, ao saltar do “trampolim” para seu mergulho, descuidou-se ou, quem sabe, movido pela paixão da aventura de arriscar as águas mais profundas, foi bater com a cabeça numa das pedras do leito do rio. Nada de tão grave que alguns pedaços de gelo não pudessem resolver. Mas a notícia se espalhou logo entre o grupo. E se aquela pedra já era um símbolo de medo para alguns, passou a assustar também a outros mais. A espiritualidade de Murialdo lança a gente para a vida. A certeza do amor de Deus não parece essa pedra do Rio Lava-pés. Talvez o período de crise que viveu antes de seu aconchego definitivo com a divindade fosse aquela pedra ameaçadora de lançamento para as águas turvas de um rio bastante gelado. A experiência do amor de Deus é carregada de seguranças. Trazer na própria vida essa presença amorosa de Deus afasta os medos do Absoluto. Sim, porque o amor já desmontou aquela imagem de um Deus amargo, turvo, cheio de cobranças. O amor de Deus permite que a gente mergulhe em águas muito Encantamento e Ternura - O Amor de Deus 101 cristalinas, quentinhas, límpidas, seguras... Esse banho de imersão na sua graça reanima, encoraja e nos torna ainda mais ágeis para a missão de amar. Se a fé no amor do Pai nos faz saltar para a experiência de se deixar amar por Deus, de se deixar abraçar por ele, essa mesma fé mostra que na vida existe um só movimento de amor, que engloba tudo. Mostra que, no mergulho para a vida, o mesmo abraço de Deus nos leva a abraçar o próximo. E que o nosso abraço ao próximo é a solidariedade e o amor especialmente às crianças, adolescentes e jovens mais empobrecidos. E que esse abraço está abraçando, assim, o próprio Deus. É Deus que se apresenta como a pedra para o salto, como a água cristalina e acolhedora, porque é Ele que nos ama por primeiro com amor que é infinito, pessoal, terno, atual e misericordioso. Rio Lava-Pés, em Lajeado Grande: crianças brincando durante colônia de férias Família: Lugar de Construção 103 Cântico das Criaturas de Murialdo Senhor, nosso Deus a tua luz e a tua beleza enchem o universo. No azul do céu vemos o teu olhar, o vento torna-se mensageiro de tua luz, também a tempestade manifesta a tua presença. Ergo os olhos para o céu e vejo o azul maravilhoso... Como é belo contemplar a limpidez do firmamento, sinto vontade de cantar. Ao anoitecer, quando tudo escurece e o céu se reveste de estrelas, sinto-me pequeno, pequeno mesmo... Tu criaste a terra e os mares, modelaste monte e vales... É lindo contemplar o mar calmo e sonolento... aquecido e embalado pelo sol. É belo também ver o mar, com suas enormes ondas, e com suas águas espumejantes. Gosto de escutar o gemido das ondas quando se chocam com os rochedos que lhe proíbem passar além. Fizeste brotar as fontes e os rios, fizeste crescer os bosques e os enriquecestes com o canto dos pássaros. Com o sol e a lua enches de beleza e de vida o dia e a noite... Bendito Sejas Senhor por este tempo de férias... Bendito sejas por todas as maravilhas que nos circundam. Dá-nos sempre a sabedoria para te louvar. Faze que vivamos estes dias na liberdade de filhos de Deus, de filhos teus... Que artista é Deus! Artista no olho humano, artista na estrela misteriosa artista na humilde flor do campo. O que vocês cantam, pequenos pássaros? Eu vos observo com admiração e vos escuto... Foi Deus que vos fez assim tão lindos. Vosso canto melodioso e doce louva a Deus todos os dias. A natureza é o palco de Deus... O esplendor dos céus, da terra e dos mares cantam a tua glória... As ervas, as árvores, os frutos, as fontes e os animais representam a fecundidade da vida... Milhares de mundos unidos não conseguiram representar a Deus em toda a sua beleza, sua atividade permanente e fecunda. Um dia o bom Deus, retirará o véu e mostrar-se-á a nossos olhos em seu aspecto original, radiante e imortal. O universo é o templo de Deus cujaabóbada é o céu e lâmpada é o sol... Tudo é grande, tudo é belo e puro na criação... Presta honra a Deus, quem honra a natureza e é capaz de ler palavras e imagens divinas no livro da criação.