ANO LVIII | MAI. JUN. JUL. AGO. 2014 | REVISTA QUADRIMESTRAL | 4,00€ 420 A MENSAGEM para uma catequese renovada O Memorial partir - repartir - unir Eucaristia, Sacramento do Amor de onde «derivam todos os caminhos autênticos de fé, de comunhão e de testemunho» Papa Francisco P A R A R E F L E T I R 6 | A M ENSAGEM | 810 «Só se pode perceber a missa com o coração, isto é, quando se começa a ficar afeiçoado a ela.» Cardeal Danneels «O afeto é o sentimento forte e persistente que liga pela confiança reconhecida e retribuída. Creio que a fé no Deus de Jesus de Nazaré não se compreende sem este húmus vital» Eucaristia, mistério do amor am de Deus por nós José Frazão Correia sj Ouvimos dizer muitas vezes – sobretudo aos jovens: «Eu ia à missa, mas não percebo grande coisa do que lá se passa, para não dizer que não percebo nada». Tal observação não pode ser senão a formulação delicada de uma certa aversão ou má vontade, mas é muitas vezes a tradução exata de algo muito preciso. É enorme a ignorância no que se refere à missa. E não admira. A celebração eucarística é um dado estranho na nossa cultura. Sabemos, certamente, o que é uma refeição. Mas esta é uma refeição de natureza particular, que não sacia a fome. A Eucaristia, aliás, é também sacrifício e, a isso, o nosso tempo é ainda mais alérgico. Leem-se textos extraídos de livros velhos, e a própria simbólica remonta a tempos muito recuados. Todo o pano de fundo judaico e paleocristão necessário à compreensão da missa exige uma séria dose de memória e de hábito. E, acima de tudo, a missa é incompreensível para quem não tem o sentido do invisível, para quem não tem fé. Pensemos nos discípulos de Emaús. Não tinham todos os requisitos necessários para reconhecer Jesus na fração do pão? A sua memória ainda estava habitada de fresco pela recordação de tudo o que tinha acontecido a Jesus na semana anterior; tinham toda a sua cultura judaica habituada a partir o pão e a abençoar o cálice, todos os sábados; viviam sem problemas numa tradição de refeições religiosas que remontavam ao tempo da saída do Egito, para o qual todas as refeições eram santas; mas, sobretudo, eram grandes a sua fé, a sua esperança, a sua caridade. E, contudo, também eles precisaram de tempo para perceber; tiveram de fazer perguntas ao estranho que encontraram no caminho; escutaram, hesitaram, ofereceram a hospitalidade, de admirar que isto nos pareça mais difícil a nós? No entanto, não é impossível, e é esta a razão de ser desta «Palavra de vida» a respeito da missa dominical. O «COMO» E O «PORQUÊ» A abordagem da missa pode fazer-se pela inteligência; podemos fazer perguntas intelectuais: como se desenrola a missa? Qual é a sua missa? Estas são perguntas que se referem ao das. Todavia, mesmo se todas as perguntas des- te tipo tivessem tido uma resposta concludente, isso não seria garantia de que se tivesse percebido a missa. Só se pode perceber a missa com o çoado a ela. A par do «como», há o «porquê» da missa. A resposta aqui é ao mesmo tempo simples e difícil: a missa existe porque Deus nos P A R A R E F L E T I R 8 1 1 | A ME N SAG E M | 7 ama e, por conseguinte, quer habitar entre nós, ressuscitado. A Eucaristia é o mistério do amor de Deus por nós, o mistério da sua Aliança últie os homens nunca mais poderão separar-se. Esta Aliança de amor (e de perdão) começou há muito tempo entre Deus e os homens. Deus já tinha concluído desde logo uma aliança com Noé; mais tarde, com Abraão; depois, com Moisés no Sinai. Mas continuamente o homem voltava aos tas sonhavam com uma aliança que já não fosse inscrita em tábuas de pedra, mas sim no coração, uma aliança que não pudesse ser quebrada. Na Última Ceia, Jesus declara que essa Aliança indissolúvel está doravante presente no seu Sangue derramado na cruz. É o que ouvimos em todas as missas na consagração do vinho. Podemos reunir um grande número de informações sobre a Eucaristia, dissecar toda a liturgia da missa, preparar celebrações soberbas, torná-las transparentes, atender aos a verdadeira compreensão da missa não viria automaticamente, porque é do domínio do coração: só se percebe a missa se se a amar. O que torna a missa cativante deve ser procurado mais deste lado do altar, nomeadamente própria liturgia. Não se produz nada de especial nalgumas celebrações que, no entanto, são entusiasmantes, intensas, cheias de calor. Isto tem a ver não com a estrutura externa das cerimónias, mas com a estrutura interna da assembleia reunida. É a esta compreensão «pelo coração» que gostaríamos de dar algumas achegas. A LONGA CAMINHADA DO AMOR Se há coisa evidente na Bíblia é que Deus não Se apressa a vir: Ele não Se precipita nem faz tudo ao mesmo tempo. O tempo é o aliacaracterística de todos os tipos de amor servirem-se do tempo como aliado e pedagogo. O mesmo se passa com a missa, que prossegue calmamente até ao seu apogeu. Poderíamos muito bem imaginar a priori que muito simplesmente nos reuníamos, consagrávamos imediatamente o pão e o vinho, íamos comungar e acabávamos com uma breve ação de graças. Teríamos o essencial, não é verdade? É claro que sim, mas a missa não é um self-service para gente apressada deste género. A celebração eucarística é uma ascensão paciente para a união com Deus no amor. No caminho para o cume há quatro etapas a transpor. A primeira é a do primeiro encontro: o homem apresenta-se cheio de hesitações diante de Deus, tomando consciência de quem é e de quem é Deus. É a liturgia de abertura, um tatear receoso, uma aproxima- tiva-me!», dizia a raposa ao Principezinho: «Posso ir para o pé de ti?». Vem então o momento do confronto e do face a face. Na liturgia da Palavra, Deus interpela o homem através da sua palavra: expõe as suas exigências e dá a conhecer as suas promessas. Pede também uma resposta. E a Igreja dá-Lhe essa resposta no salmo e na oração universal. O terceiro momento é o da conversa coração a coração, a oração eucarística. Aqui já não se prega, já não se ensina; aqui já não há palavra nem resposta. Já não há senão a linguagem de amor da oração, do coração a coração. Já não há única coisa se impõe: encontrar o bom comprimento de onda e manter-se em sintonia. O último momento é o auge do encontro: a comunhão. Poderia intitular-se «boca a boca» ou mesmo «corpo a corpo». Porque aqui tocamos no próprio Corpo do Senhor e Ele próprio toca no nosso: comemos o seu Corpo e bebemos o seu Sangue. A missa segue simplesmente o caminho do amor: conhecer-se, confrontar-se, falar coração a coração, «tornar-se uma só carne». P A R A R E F L E T I R 8 | A M ENSAGEM | 812 A LITURGIA DE ABERTURA: «SENHOR, PERMITI QUE ME APROXIME DO VOSSO ALTAR…» OS SINOS Uma igreja pode existir sem sinos; a Eucaristia também. Mas a sua presença, o facto de eles tocarem, tem outro sentido para além de um simples sinal sonoro (a cerimónia vai começar). Os sinos são algo mais, algo mais do que um relógio ou o altifalante de uma caravana publicitária. Os sinos «chamam». À sua maneira, dizem que não somos nós que decidimos reunir-nos. É Outro quem nos chama. Vamos à missa porque somos convidados a isso. Porque não fomos nós que amámos Deus — foi Ele que nos amou primeiro quando não fazíamos a menor ideia disso (cf. 1 Jo 4, 10). Os sinos simbolizam algo essencial no nosso culto: a iniciativa da reunião não é nossa, mas de Deus. Há ainda outra coisa. A regra dos mosteiros estipula que «quando o sino toca, abandona-se tudo e vai-se...». Para chegar a tempo? Certamente. Mas ainda mais para se exercitar várias vezes ao dia naquilo que constitui o cerne de qualquer vocação: «Deixando logo as redes, seguiram-n’O» (Mc 1, 18). À sua maneira, os sinos ajudam a aprender certas atitudes do coração que são fundamentais para um cristão: disposição para a escuta, para a obediência, para a disponibilidade. Ora, é por estas atitudes que tudo começa e acaba; elas são a chave de uma vida «mariana», a vida em que se diz «sim» de maneira ininterrupta: “Fiat: faça-se em mim segundo a tua palavra». O SINAL DA CRUZ E A BÊNÇÃO BÍBLICA A missa começa pelo sinal da cruz: todos juntos, fazemo-lo lentamente sobre todo o nosso corpo. Da cabeça ao coração e de um ombro ao outro. ção, alma e corpo – sob o sinal da cruz, e consagramo-nos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Isto quer dizer que a nossa reunião eucarística não é uma reunião amigável qualquer nem um simpósio de deliberação, avaliação ou decisão. Não é um colóquio; nem tem por objetivo recarregar as nossas baterias com vista a ações futuras ou permitir-nos toantes de mais, receber, abrir-nos ao que nos acontece, deixar-nos revestir de Cristo: «Toda a nossa glória está na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. N’Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição. Por Ele fomos salvos e livres» (Antífona de Entrada de Quinta-Feira Santa). A missa começa, pois, por um olhar para a cruz de Cristo. Não nos instalamos diante do espelho para nos vermos a nós mesmos. A nostambém, e não nós, quem faz da nossa comunidade o que ela é. Nós entramos na paixão de Jesus, na sua morte e na sua Ressurreição, inteiros da cabeça ao coração e de um ombro ao outro. Mais: entramos no interior da Trindade, porque também Jesus não existe só em Si próprio, como um profeta independente. Ele leva-nos mais longe, para o seu Pai e para o Espírito Santo. O sinal da cruz reveste-nos de um determinado nome particular, o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O sacerdote responde à nossa consagração em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo pelas palavras: «A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco». Assim, o céu entreabre-se e nós movemo-nos na alegria e na ternura do Batismo de Jesus no Jordão: «Tu és o meu Filho muito amado». O que o Pai dizia então a Jesus, di-lo também a cada um de nós no nosso Batismo. O que também «E com o teu espírito» é a resposta ao sacerdote na língua francesa1. Não é apenas uma pomo-nos inteiramente – de espírito, cora1 Na liturgia da missa, «Et avec votre esprit», em francês, corresponde em português a «Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo». Tendo em conta a explicação que o Autor dá da expressão utilizada para a língua francesa, optámos por traduzi-la simplesmente e não a substituir pela correspondente na missa em português. P A R A R E F L E T I R 8 1 3 | A ME N SAG E M | 9 o celebrante como portador de um «espírito». Ele não é um animador vulgar, um animador mais ou menos competente e talentoso. É Cristo que Se cinge com a toalha para circular entre nós e para nos servir, exatamente como Jesus na Última Ceia. «E com o teu espírito» tem valor simultaneamente de reconhecimento de uma realidade e de encorajamento. Assim, o tom é dado logo a partir do início da celebração. Pelo sinal da cruz e pela elevação do diálogo de abertura, as coisas tornam-se claras: não se trata aqui de um conciliábulo em reunião de amigos, nem de Trata-se do diálogo de amor entre Deus e o homem, diálogo que se enceta lentamente, mas com toda a clareza: Deus vem até nós para nos elevar até Si. A DUPLA «CONFISSÃO»: SANTIDADE DE DEUS, PECADO DO HOMEM «Para celebrarmos dignamente os santos mistérios, reconheçamos que somos pecadores». Que palavra desencorajadora para quem acaba de entrar na igreja! Estará bem situada nesta fase dos primeiros contactos, de exploração hesitante do terreno? Sem dúvida. Primeiro, porque não está isolada; é logo seguida de uma palavra de perdão e misericórdia. O objetivo é, aliás, preparamo-nos «para celebrarmos dignamente os santos mistérios». É-nos, assim, assegurado que Deus so pecado: descobre-nos logo o horizonte na celebração dos seus mistérios. Há uma saída do túnel da culpa para a luz dos «santos mistérios». Além disso, é uma questão de verdade: é verdade que somos pecadores e que Deus é santo. Um diálogo de amor deve sempre partir da verdade. Estar ancorado na verdade é a atitude fundamental de toda a vida cristã. É por isso que a missa começa por aí. Seguem-se as invocações penitenciais. A não ser que se faça um momento de silêncio ou Consciência e reconhecimento do pecado es- tão sempre à procura da expressão mais sincera possível. Usa-se de bastante criatividade na formulação das invocações penitenciais. Mas é zadora. Geralmente isola-se no «eu» e no «nós». Ganharia mais se se orientasse mais para o Pai, o Filho e o Espírito Santo. «Senhor, que consolais aqueles que reconhecem o seu pecado, tende piedade de nós...»; «Cristo, que viestes chamar pecado e a do perdão de Deus), a primeira não deve ser desmesuradamente acentuada. GLÓRIA De repente, a atmosfera de penitência dá lugar a uma alegria exuberante, com «Glória a Deus». Tudo parece sofrer uma reviravolta. todas as parábolas da misericórdia de Lucas, retoma-se regularmente este refrão: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento» (Lc 15, 7) trazem-lhe a mais bela túnica e o anel e para ele matam o vitelo gordo. O «Glória» da missa faz as vezes de «canto de reconciliação». Ele celebra a aproximação entre o céu e a terra («nas alturas [...] na terra»), entre Deus e o homem («Glória a Deus [...] paz aos homens»). O hino começa com o motivo da «complacência de Deus», do seu amor terno e da sua misericórdia para com todos os homens. No centro, há o hino a Cristo-Redentor: «Vós, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós; Vós, que tirais o pecado do mundo, acolhei a nossa súplica […] Só Vós sois o Santo […]». A ORAÇÃO COLETA A oração coleta fecha a fase de «primeira atitude de contacto», em jeito de síntese. É o ta, isto é, oração-recolha. Na coleta «recolhe-se». Como? P A R A R E F L E T I R 10 | A M ENSAGEM | 814 Deus e em Deus; apertar o tecido algo distendido da sua alma; recolher no Espírito as suas energias vagabundas; apaziguar n’Ele as revoltas e as dúvidas; fazer calar as vozes discordantes do egoísmo» (D. Dufrasne, L’Eucharistie, p. 44). Porque, para progredir no caminho do diálogo e do amor, devemos ser levados à unidade no interior de nós mesmos. Mas a oração coleta é «oração-recolha» (coleta) ainda por um outro aspeto: o sacerdote reúne todas as intenções de oração disperoração eclesial dirigida ao Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. Por isso, não é desejável que uma coleta seja demasiado pormenorizada; ela deve poder adaptar-se às mais diversas nós nem sabemos o que nos convém pedir; por isso, ponde Vós mesmo no nosso coração o que nos quereis dar, sejamos abundantemente atendidos por Vós». A LITURGIA DA PALAVRA: O CONFRONTO Depois de nos termos conhecido mutuamente, vem o confronto ou o face a face. É dar mais um passo na verdade. Deus dá-Se a conhecer na Bíblia e o homem escuta. Depois o homem responde com respeito e temor, ajudado por um salmo. Ele não encontra, de facto, outra resposta satisfatória à Palavra de Deus senão esta palavra do próprio Deus. é utilizando as suas próprias palavras. A liturgia da Palavra da missa é concebida como uma conversa a dois, um diálogo. A sucessão dos interlocutores é aqui de grande importância: Deus fala sempre em primeiro lugar. Só Ele, com efeito, é capaz de tomar a palavra; o homem pode apenas replicar, responder, alternar. Isto é típico do Cristianismo. Os pagãos dirigem-se a Deus sem complexos: lançam ao céu as suas orações e exigem uma resposta. Assim procederam ao lado de Elias os profetas de Baal no monte Carmelo, durante um dia inteiro. Para eles tratava-se de acordar Deus e de O lisonjear com sacrifícios (cf. 1 Rs 18, 20-40). Na Bíblia, o cenário é completamente diferente: é Deus quem inicia a conversa - «No princípio havia o Verbo, o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus (...)» ( Jo 1, 1). Esta precedência de Deus na tomada da palavra sobressai quando se considera a estrutura da liturgia da Palavra. Primeiro vem a leitura, depois a resposta. E este ritmo é retomado várias vezes. Normalmente, a liturgia dominical inclui três leituras: uma extraída do Antigo Testamento, uma dos Atos dos Apóstolos, do Apocalipse ou das cartas do do Evangelho. A Igreja responde à primeira com um salmo, à segunda com o cântico de aclamação «Aleluia»; o Evangelho e a homiDurante as duas primeiras leituras está-se sentado, no que parece, à primeira vista, uma atitude banal. Mas não! Sentar-se para ouvir já não é uma atitude muito habitual na nossa cultura. Quantas pessoas dedicam ainda algum tempo a sentar-se para ouvir? Na espiritualidade do casal fala-se de um «dever de se sentar» um com o outro. O facto de se ouvir a Bíblia sentado durante a Eucaristia está nesta mesma ordem de ideias: reservar algum tempo para se tornar vulnerável ao que o outro diz, deixá-lo exprimir-se. O facto de se sentar é também um exercício na verdade. É que na nossa sociedade há muitas caricaturas de face a face. Podemos sentar-nos ao pé de alguém e deixá-lo falar («Vai falando, que eu faço o que quiser...»); ou então procurar apanhá-lo numa armadilha («hei de descobrir o teu ponto fraco...»); ou ainda orientá-lo com a mais viva vigilância; ou muito simplesmente sentar-se porque se é obrigado a isso, como no autocarro, quando não há mais nenhum lugar vago. Ouvir sentado a Palavra de Deus na missa é uma coisa completamente diferente; é uma atitude que alimenta e pumomentos de escuta da vida de todos os dias. É um exercício que consiste em deixar o outro exprimir-se até ter dito tudo o que tinha P A R A R E F L E T I R 8 1 5 | A ME N SAG E M | 11 a dizer, sem se manifestar por meio de «sim, mas...» intempestivos. Depois de cada leitura é conveniente prever um breve momento de silêncio. A Palavra de Deus precisa de tempo para penetrar em nós. Deus não é um produtor de programas de rádio que, logo após cada entrevista, se apressa a «soltar» guitarras endiabradas, não vão os ouvintes ter a impressão de que se passou algo de muito grave. Deus não tem medo do silêncio. E OS MEUS PROBLEMAS? Imperturbavelmente, a liturgia dá a palavra, em primeiro lugar, à Bíblia. Nem sequer se trata de trechos que nós tenhamos escolhirio litúrgico. Porque é que Deus toma sempre a palavra em primeiro lugar? Ouve-se muitas vezes dizer: «Gostava de, ao menos uma vez, poder primeiro interrogar o padre, apresentar-lhe os meus problemas, falar com ele das minhas dúvidas e da minha fé vacilante! Mas é sempre ele quem começa! Porque não transformar a liturgia da Palavra numa discussão, numa troca de ideias?». Com efeito, a Igreja deixa sempre Deus falar em primeiro lugar. Não por O julgar insensível aos problemas humanos, mas por pensar que Deus faz as perguntas que devem ser feitas, as verdadeiras e até as mais atuais. Se a liturgia só tivesse de responder às perguntas que nós fazemos, haveria o grande risco que muitas vezes não é nem a mais urgente, nem a mais fundamental. Às nossas perguntas limitadas Deus só poderia dar respostas nhamente limitado. Tudo se circunscreveria a uns pobres cálculos sem grandes perspetivas. Deus pode dar-nos muito mais do que aquilo que podemos imaginar pedir-Lhe na altura. É conveniente que não sejamos nós a escolher; a liturgia da Palavra existe, com efeito, para nos tornar sensíveis ao caráter diferente de Deus. Porque, sem essa alteridade, sem esse distanciamento, também não seria diálogo. Apenas monólogo. A PRIMEIRA LEITURA: QUAL ERA, ANTIGAMENTE, O ESTADO DO POVO DE DEUS? Excetuando o período entre a Páscoa e o Pentecostes, lemos sempre, primeiro, uma passagem da primeira Aliança. Porque não começar logo pelo Evangelho? Não é ele a papartir de tão longe? É exatamente disso que se trata: tomar balanço. Deus deixa-Se conhecer progressivamente. Leva tempo, muito tempo. Por causa de nós: porque somos incapazes de O captar de uma só vez. Foram precisos séculos, ao longo dos quais Deus nos «educou» como um falcoeiro educa o seu falcão. Para Ele poder dizer a sua última Palavra em Jesus, foram precisas muitas penúltimas palavras. O próprio Jesus é a última palavra de uma frase da qual Ele não é o princípio. Se tantos justos da primeira Aliança souberam esperar tanto tempo pelo seu Messias, porque não havemos nós de esperar um momento pela nossa passagem do Evangelho, o tempo de ouvir uma página do Antigo Testamento? Aliás, há mais: a história de Israel na Primeira Aliança é a nossa história. Estão presentes os mesmos ingredientes: procurar e fugir, aproximar-se e expor-se, adorar e negar, Israel. Neste ponto, não há diferença. Os homaior que todos os profetas. Depois da leitura há que fazer silêncio. As verdadeiras palavras nascem do silêncio: elevam-se a partir dele como o sol nascente emerge do mar. «A palavra nasce do silêncio de maneira tão natural e tão despercebida que parece ser apenas silêncio virado ao contrário, reverso do silêncio. E a palavra também é isso: o verso do silêncio, como o silêncio é o verso da palavra» (Max Picard, Le Monde du Silence, p. 8). Também deste ponto de vista a liturgia tem qualquer coisa de contracultura. Para nós, o barulho – como a música de fundo – é o que é normal, e o silêncio é a exceção; para a liturgia, é o contrário. O silêncio é, de resto, também silêncio do nosso juízo. Submetemo-nos ao juízo de Deus e calamo-nos. P A R A R E F L E T I R 12 | A M ENSAGEM | 816 O SALMO Só a seguir é que podemos responder ao que Deus nos diz. E, mesmo assim, não é com as nossas próprias palavras, mas com o auxílio de um salmo, o salmo responsorial. Porquê? Porque no saltério podemos encontrar todas as respostas que convêm a qualquer discurso de Deus. A gama é completa: os salmos exultam e lamentam-se, cantam louvores e graças, suplicam e choram, intercedem e evocam recordações. Podem ser verdadeiramente entusiastas e por vezes irritantes. O seu registo vai de um extremo ao outro: da lamentação ao júbilo, dos gritos ao murmúrio. O salmo impõe-se ainda por outra razão. Foi o próprio Espírito quem inspirou a palavra de Deus e é Ele quem dá a nossa resposta. Palavra e resposta têm, pois, o mesmo autor. É a garantia de estarem em perfeita harmonia uma com a outra. As suas intenções não Quem melhor do que o próprio Deus pode responder a Deus? Ainda outro motivo para o salmo-resposta: Jesus rezou os salmos, fez deles a sua oração, noite e dia. Aprendidos com Maria e na sinagoga, rezou-os até no Jardim das Oliveiras e na cruz. Assim, rezando os salmos, nós entramos na oração de Jesus. Não é Ele ao mesmo tempo palavra e resposta? Por último, os salmos protegem-nos de uma oração demasiado sufocante e da morosidade. Fazem estoirar o nosso narcisismo. Nos dias sombrios, a liturgia põe nos nossos lábios um grito de alegria; nos dias de alegria, é muitas vezes um canto de penitência ou de lamentação. Assim, a nossa oração escapa ao isolamento do eu; torna-se oração da Igreja. Porque, por mais tristes que estejamos, a Igreja nunca deixa de ter alegria. Há sempre algures pessoas felizes. E, por mais satisfeitos que estejamos, a Igreja nunca deixa de ter sofrimento: há sempre recantos na Igreja em que se chora. Os salmos são caminhos de desprendimento de nós próprios. E não é precisamente aí que está a essência da oração? «Não se faça a minha vontade, mas a tua.» A SEGUNDA LEITURA: QUAL É O ESTADO ATUAL DO POVO DE DEUS? A segunda leitura trata de nós, das nossas comunidades cristãs. É extraída dos Atos dos Apóstolos ou das epístolas. É a epopeia das jovens igrejas, com os seus problemas, os seus suas interrogações e a sua necessidade de linhas orientadoras. É São Paulo quem serve de guia na maior parte das vezes. Faz tudo o que se espera de um líder: observar, explicar, estimular, rede amor de um pai, mais do que de um pedagogo. «[…] ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo», diz ele, «não teríeis muitos pais, porque fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, pelo Evangelho» (1 Cor 4, 15). Ouvindo a segunda leitura, estamos como que a olhar para um espelho: é a nossa história antes de ela acontecer. As comunidades cristãs de antigamente, com o seu pecado e a sua graça, não são senão a aventura das nossas quedas e dos nossos recomeços. Após a leitura, novo silêncio. A seguir, levantamo-nos para ascendermos ao Evangelho. Vamos encontrar o próprio Filho de Deus na sua Palavra. É por isso que cantamos «Aleluia», que quer dizer «Louvado seja Deus». O EVANGELHO: O PRÓPRIO CRISTO SOB A FORMA DA SUA PALAVRA O Evangelho não é apenas uma terceira leitura, não só porque se trata da Palavra outras palavras, mas também porque se trata não de um texto inanimado, mas de uma P A R A R E F L E T I R 8 1 7 | A ME N SAG E M | 13 pessoa viva, Cristo. Quando é proclamado na liturgia, diz o concílio, o Evangelho não se limita a evocar uma mensagem ou um aspeto doutrinal – é o próprio Senhor que fala à sua Igreja de maneira misteriosa (cf. a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº7). O Evangelho é não apenas texto, mas também voz. Isso manifesta-se também por outros indícios. Contrariamente à nossa atitude por tados; pomo-nos de pé para ir ao encontro de Alguém. Levamos a luz e o incenso, sinais antigos de boas-vindas ao hóspede supremo. pessoa «Graças a Deus», mas antes «Glória a Vós, Senhor!». Dirigimo-nos diretamente a Ele, porque Ele está ali. Quem ouve o Evangelho ao domingo deve descobrir nele a passagem ou a palavra que lhe é destinada e que levará consigo para toda a semana. O Evangelho tem um conteúdo tão rico que não podemos captá-lo totalmente: precisamos de selecionar, de nos interrogar sobre o que o Senhor nos diz hoje, pessoalmente. Em breve, na homilia, o sacerdote procurará o que o Senhor quer dizer ao conjunto da comunidade; para esta procura ele tem competência, experiência e graça de estado; é o seu carisma. Mas o que o Senhor me quer dizer a mim só o Espírito Santo me que tenho de ouvir com atenção e fé, sem preconceitos e sem impaciência. A HOMILIA Depois do Evangelho, o Senhor retira-Se para o silêncio e para o mistério. É como se tivesse subido ao céu. Não é para nos abandonar. É antes para entrarmos no Cenáculo. O Espírito Santo recordar-nos-á tudo o que Ele nos disse (cf. Jo 14, 26). É o momento da homilia. O sacerdote não é obrigado a fazer um grande discurso eloquente, não deve dar uma lição de exegese, propor um plano de ação nem acusar seja o que for, nem seja quem for; não se trata nem de um debate contraditório, nem de um conciliábulo familiar. O sacerdote deve simplesmente ajudar o Espírito a realizar o seu trabalho nos nossos corações. Isto supõe uma fazer passar a toda a comunidade a «emoção» do texto bíblico que o tocou, a ele primeiro, tal como uma brisa de verão faz ondular os campos de trigo. Quem faz assim a homilia, línguas do Pentecostes se renova: todos compreendem, do mais velho ao mais novo, sábio ou analfabeto. O sacerdote deve prestar atenção, em particular, à necessidade de se remeter dentro em breve ao silêncio, para deixar que o Espírito continue a falar, porque não é ele, o sacerdote, quem tem a última palavra. Esta é percebida no sussurro do Espírito durante o breve silêncio após a homilia. Assim, esta não deve acabar num remate estrondoso, numa palavra forte destinada a impressionar ou num envio à ação, de tal modo que cada pessoa se sinta logo na borda do banco, pronta a lançar-se na confusão. A homilia deve induzir ao silêncio, ao mistério do pão e do vinho que se prepara. Este calmo episódio de Cenáculo termié oportuno. Porque, no dia de Pentecostes, quando Pedro saiu do Cenáculo, levou 3000 homens à fé e ao Batismo. A oração do «Credo» não é uma ação individual, é um ato de toda a Igreja. Por isso, não é indicado exprimirmos aqui, numa variante, as hesitações da nossa fé. Aqui impõe-se a fé inteira e intacta de toda a Igreja, expressa no seu «Credo» integral. E, naturalmente, este excede amplamente a nossa fraca fé individual. A ORAÇÃO UNIVERSAL A comunidade compromete-se então, pouco a pouco, no caminho da união com o seu Senhor bem-amado, com vista ao «coração a coração» da oração eucarística e ao «corpo a corpo» da Comunhão. Mas no limiar da maior felicidade, os crisvolta, para os outros. Os outros também são P A R A R E F L E T I R 14 | A M ENSAGEM | 818 felizes? A felicidade cristã nunca é um casulo espiritual. É por isso que surge a oração universal. Vamos interceder pelo mundo inteiro. Porque a melhor maneira de obtermos seja o que for para nós próprios é pedindo, primeiro, pelos outros. O rapazinho que pede à mãe uma guloseima para a irmã, também recebe uma naturalmente. Com Deus as coisas passam-se, sem dúvida, da mesma maneira. Há muitas formas válidas de tornar a oração universal atual, convincente, mobilizadora. Toda essa habilidade, no entanto, não nos pode cegar relativamente às armadilhas em que corremos o risco de cair. Com efeito, a nossa oração universal é, muitas vezes, demasiado local ou moralizadora, às vezes demasiado culpabilizante e didática. A oração universal não tem por missão insistir no ensinamento da homilia a respeito da comunidade sob a forma de oração. Independentemente do facto de esse género de homilia ser já suspeito, não é honesto submeter subtilmente -lhes, não só que escutem com respeito, mas também que aprovem em voz alta e remetam tudo para Deus sob a forma de oração. Ora, certas formas de oração universal vão ainda mais longe: dão, por assim dizer, a lição a Deus, indicando-Lhe a maneira como convém que Ele atenda a oração. Algumas formas de oração universal dão testemunho de uma tal presunção e de um tal desejo violento de ação que nos interrogamos muito legitimamente: será que aqui ainda se pede alguma coisa a Deus? «Fá-lo-emos nós próprios... Nós conhecemos os nossos problemas...». As boas fórmulas de oração universal são orientadas precisamente de maneira universal; são formuladas discretamente, cheias de os remédios. Preservam a liberdade de Deus e mas e pormenores demasiado precisos, como se devêssemos receber de Deus apenas isto ou aquilo e não tudo! Há, aliás, uma «ordem» litúrgica das intenções: primeiro pela Igreja, depois pelos responsáveis de todo o mundo, a refugiados, cativos, oprimidos, etc. Finalmente, também pela comunidade eucarística local. INTERLÚDIO: O OFERTÓRIO Este é um momento-charneira: tudo muda. Deixa-se o ambão e a cadeira do celebrante e passa-se para o altar. Já não se está sentado nem de pé, mas põe-se em movimento uma procissão de oferendas, a caminho do centro da Eucaristia. O sacerdote assume o comando das operações; a comunidade dá o seu assentimento. Todo o clima dialogal da liturgia da Palavra dá lugar a uma atmosfera de oração intensa; os olhos orientam-se de baixo para cima e o coração liberta-se das suas preocupações. Dentro em breve, não haverá senão oração; já não se olhará senão numa direção: na direção de Deus. Também mudam os objetos em torno dos quais a celebração se organiza. O missal dá lugar ao pão e ao vinho na mesa do altar. E eis que chega a procissão do ofertório. Traz-se pão e vinho. E tudo o que tem o seu da comunidade para os pobres. O cortejo não tem só valor utilitário (preparar a mesa). O seu sentido é altamente simbólico: a procissão de oferendas sugere que os corações estão dispostos para o sacrifício. E há outro sentido simbólico: o da criação. Deus escolhe de entre aquilo que criou objetos, para fazer deles o Corpo e o Sangue eucarísticos do seu Filho. O ofertório é também um hino à criação como prólogo e húmus da redenção. O trabalho do homem tem, aliás, o seu lugar, porque o pão e o vinho não são elementos que se encontrem tal qual na natureza. São produtos culturais, saídos de mãos humanas. A procissão das oferendas é também hino ao trabalho e à cultura. As bênçãos pronunciadas sobre o pão e sobre o vinho exprimem maravilhosamente este movimento da criação à redenção: «Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos da vossa bondade, fruto da terra e do trabalho do homem, P A R A R E F L E T I R 8 1 9 | A ME N SAG E M | 15 que hoje Vos apresentamos e que para nós se vai tornar Pão da Vida». A mesma ideia será retomada na oração sobre as oblatas. A fórmula-tipo é a seguinte: «Deus, nosso Criador, que tudo nos destes: pão, vinho e tudo aquilo de que precisamos para viver. Tudo isso Vo-lo restituímos reconhecidos. Dignai-Vos transformar esta oblação no Corpo e no Sangue do Vosso Filho, e fazei do nosso trabalho e de toda a nossa vida uma oferta espiritual a Vós». Entretanto, o sacerdote convida a comunidade a rezar: «Orai, irmãos...». O centro da Eucaristia já é só oração. Entramos nele agora. A ORAÇÃO EUCARÍSTICA: DE CORAÇÃO A CORAÇÃO Eis-nos no centro da Eucaristia. De agora em diante não vai haver senão oração. Chama-se a esta parte a oração eucarística, e a Igreja não tem oração maior nem mais importante. É certo que já se rezou muito ao longo da Eucaristia. Mas essas orações pertenciam ao registo da leitura, do ensino ou da explicação, da reação lírica, do encorajamento ou da proJá não se trata disso. Agora trata-se da oração pura, que já não é interrompida. Ela dirige-se, na totalidade, a Deus e só a Ele, nem sequer à assembleia. O sacerdote não olha à sua volta, tem os olhos voltados para Deus e fala-Lhe, só a Ele. Mesmo quando invoca uma narração, esta tem Deus como interlocutor: «Na hora em que Ele Se entregava para, voluntariamente, sofrer a morte, tomou o pão e, dando graças [...]». Não estará aqui a explicação do facto de culdade em prosseguir? Até aqui, podia-se ouoração. Agora, de repente, não há senão pura oração dirigida a Deus, pura oração vertical. Já não há nada a aprender nem a fazer; toda a atividade se retirou para a câmara alta do coração. É um momento frustrante para pessoas como nós, pessoas que gostam tanto de agir. O coração deve, pois, participar, se queremos entrar nesta parte da missa. Tudo se passa no invisível. As construções anexas desapareceram. É a fé pura, o abandono — é deixar-se prender. É difícil? Certamente, exceto para quem tem um coração de criança, que ainda não sabe fazer nada e que, por isso, está disposto a deixar que lhe façam tudo. Quem tem um coração assim, vive sob o regime da graça e não das obras. A oração eucarística desenvolve-se em torno do Pai, do Filho, do Espírito e da Igreja. O Pai – Que Ele seja louvado A oração eucarística começa e acaba dirigindo-se especialmente ao Pai. O prefácio é puro canto de louvor a Ele: «Senhor, Pai santo, Deus eterno e omnipotente, é verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação dar-Vos graças, sempre e em toda a parte por Cristo, nosso Senhor […]». ao Pai volta em jeito de conclusão: «Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória agora e para sempre. Ámen». O louvor ao Pai é, assim, o princípio e o lidamente. O Filho – Comemoramos... No centro da oração eucarística encontra-se a narração da Última Ceia, a instituição da Eucaristia. Aqui é o Filho, Jesus, quem está no centro. «Na véspera da sua Paixão, Ele tomou o pão em suas santas e adoráveis mãos (continua…)