RODRIGO CESAR DE ARAÚJO SANTOS
O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NO PENSAMENTO DE CAIO
PRADO JÚNIOR (1964-1968)
Guarulhos, maio de 2013
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RODRIGO CESAR DE ARAÚJO SANTOS
O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NO PENSAMENTO DE CAIO
PRADO JÚNIOR (1964-1968)
Relatório final de pesquisa do Programa
Institucional de Voluntários de Iniciação
Científica (PIVIC) do Departamento de
História da Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (EFLFCH), Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação
da Prof.ª Dr.ª Marcia Barbosa Mansor
D’Aléssio.
Guarulhos, maio de 2013
3
Em rigor, numa investigação histórica, é estudado
um desenvolvimento (ou um declínio),
desenvolvimento ou declínio de um grupo
definido, entre duas datas definidas. Aquilo que
se procura no estudo metodológico é o
instrumento de análise que torne possível a
edificação racional de cada estudo particular. Em
suma, para que a ciência histórica progrida, o que
conta é a aplicação do instrumento ao caso, e não
o instrumento em si; este não deve transformar-se
em objeto de contemplação.
Pierre Vilar
Desenvolvimento econômico e análise histórica
4
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ............................................................................................................... 5
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................... 6
PARTE I
INTERPRETAÇÕES SOBRE CAIO PRADO JÚNIOR: TEMAS E DEBATES ................... 13
1.
Sentido da colonização e totalidade .............................................................................. 14
2.
Circulação, produção e modo de produção ................................................................... 22
3.
Consumo, demanda e mercado interno ......................................................................... 31
4.
Dualismo e desenvolvimento desigual e combinado .................................................... 38
5.
Vias de desenvolvimento capitalista no Brasil ............................................................. 43
6.
Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro ............................. 49
7.
Historiografia e economia política................................................................................ 56
PARTE II
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO ................. 62
8.
A “amputação do espírito”............................................................................................ 63
9.
A teoria da revolução em debate .................................................................................. 70
10. Controle ideológico e o concurso na USP .................................................................... 79
11. Crítica aos economistas ortodoxos ............................................................................... 86
12. Investimentos e industrialização ................................................................................... 92
13. Estado, mercado e consumo ......................................................................................... 99
14. Desenvolvimento desigual e combinado e dualismo .................................................. 103
15. Continuidade e mudança: de colônia a nação ............................................................. 108
16. O desenvolvimento como tema .................................................................................. 115
17. Lições do “livro da vida” ............................................................................................ 121
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 125
BIBLIOGRAFIA E FONTES ................................................................................................ 128
ANEXOS ................................................................................................................................ 133
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AGRADECIMENTOS
À Deise e Ricardo, pela vida e pelo exemplo.
À Carolina e Daniel, pela companhia e amizade.
À Márcia D’Aléssio, pela sabedoria e orientação atenta e cuidadosa.
À Janes Jorge, pelo incentivo, apoio e comentários.
À Dainis Karepovs, pela confiança depositada.
À Valter Pomar e Maximiliano McMenz, pelas sugestões ao projeto de pesquisa.
À Bruno Elias, pelo companheirismo.
À Carlos H. M. Menegozzo, pelas conversas estimulantes.
À Elisabete Marin Ribas e à equipe do Arquivo do IEB/USP, pelo trabalho realizado.
Aos estudantes, professores e funcionários da Unifesp, pelo aprendizado.
Aos colegas de trabalho da Fundação Perseu Abramo, pela convivência cotidiana.
Aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, por suas lutas e conquistas.
6
APRESENTAÇÃO
Atualmente, no plano internacional, enquanto a estagnação e a perspectiva de um longo
período recessivo ameaçam as economias dos países centrais, os chamados emergentes
enfrentam a crise capitalista com menos desequilíbrios. Em virtude da instabilidade mundial e
das disputas imperialistas decorrentes, porém, não é possível realizar projeções precisas, de
médio e longo prazos, sobre os possíveis desdobramentos da presente situação internacional.
De qualquer modo, as economias que nos últimos anos reduziram medidas de austeridade
fiscal e aumentaram investimentos produtivos – ainda que não tenham promovido a
regulamentação do mercado financeiro – vem demonstrando mais preparo para enfrentar a
tormenta. A própria transferência, durante o período de hegemonia neoliberal, dos parques
produtivos das grandes multinacionais para os países pouco industrializados contribuiu para
fazer pender a balança da geopolítica internacional. Há uma tendência ao deslocamento do
centro político e econômico mundial em direção ao sul e ao oriente.
Com o fracasso do mercado desregulado, o terreno é fértil para o ressurgimento de
reflexões sobre a viabilidade do neoliberalismo, bem como as possíveis vias de
desenvolvimento econômico. Mas com uma crise capitalista, o terreno também abre espaço
para debater alternativas ao próprio capitalismo. No Brasil, tornaram-se mais evidentes,
assim, as controvérsias sobre o tipo de desenvolvimento a adotar, inclusive a manutenção ou
transformação do padrão monopolista, dependente e latifundiário de desenvolvimento
capitalista do Brasil no século XX. Recentemente, os debates envolvendo o crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB), o papel do Estado na economia, as taxas de investimento e a
larga escala de inserção de setores sociais marginalizados ao mercado de consumo de massas
reanimam os debates sobre a questão do desenvolvimento.
Com base em diferentes teorias econômicas e modelos de desenvolvimento, forças
sociais de variados matizes do espectro político e inseridas em diversas instituições – tanto da
sociedade civil, quanto do Estado – participam da discussão, opinando sobre temas que dizem
respeito à economia política do desenvolvimento. Entre os debatedores, muitos seguem
inspirando-se em formulações produzidas pela intelectualidade nacional e internacional entre
as décadas de 1950 e 1970, que tratou de assuntos semelhantes, mas em contextos históricos
bem diferentes, obviamente. É vasta, causou forte impacto político e acadêmico e segue
exercendo influência a literatura produzida neste período a respeito das teorias do
7
desenvolvimento
econômico,
da
economia
política
do
desenvolvimento,
do
subdesenvolvimento, da teoria da dependência, do capitalismo tardio etc.
Entre estas formulações encontram-se as de Caio Prado Júnior, que foi não apenas um
historiador proeminente de seu próprio tempo como segue sendo referência obrigatória para
quem deseja conhecer a formação histórica brasileira. Mas foi também um homem de ação,
militante político, membro ativo do PCB, marxista declarado. Neste sentido, compreender o
modo como encarava a “questão do desenvolvimento”, como ele mesmo se refere, pode
contribuir para aprofundar o conhecimento sobre sua análise historiográfica e levantar
questões sobre as relações estabelecidas entre o pensamento econômico desenvolvimentista e
o autor, bem como estimular a reflexão sobre as influências do desenvolvimentismo sobre
uma parcela da esquerda brasileira nos conturbados anos de 1960.
Em uma primeira aproximação, estudar Caio Prado Júnior hoje, depois de tantas
pesquisas realizadas e polêmicas travadas, pode parecer pouco promissor se o que se pretende
é trazer alguma contribuição minimamente relevante para o conhecimento histórico. Mas se a
construção da realidade histórica tem por base a solução de problemas elaborados com
questões do tempo presente, cada momento histórico lançará questões próprias sobre um
objeto que já foi estudado em períodos anteriores. Assim, considerando que no período em
que mais se produziu textos que analisam o pensamento de Caio Prado Júnior a “questão do
desenvolvimento” não esteve tão presente quanto atualmente, estudar o conceito de
desenvolvimento deste autor pode contribuir para levantar novas questões e abrir algumas
sendas interessantes, seja no debate sobre a historiografia brasileira, sobre o pensamento
econômico brasileiro ou sobre uma das principais referências intelectuais de setores da
esquerda que discutem o desenvolvimento hoje.
Na presente pesquisa, analisamos o conceito de desenvolvimento em Caio Prado
Júnior entre 1964 e 1968. Neste sentido, cabe observar que nosso objeto não é o conceito de
desenvolvimento presente no conjunto da obra de Caio Prado Júnior, mas particularmente de
um período específico, principalmente a partir de duas obras: A revolução brasileira (1966) e
História e desenvolvimento (1968). Afinal, para estudar o conceito de Caio Prado Júnior ao
longo de todo o tempo em que manteve sua produção intelectual, seria necessário tanto um
estudo mais amplo e profundo do conjunto de sua obra e de sua trajetória biográfica e
formação intelectual, quanto da história do pensamento econômico desenvolvimentista e da
teoria do desenvolvimento por um período que se estende dos anos 1930 aos anos 1970. Um
projeto com esta envergadura ultrapassaria os limites de uma iniciação científica.
8
Portanto, nossa pesquisa abordará, especificamente, o conceito de desenvolvimento de
Caio Prado Júnior quando ocorre uma importante reconfiguração na esquerda brasileira e no
pensamento desenvolvimentista (1964-1968). Neste período são produzidos os dois textos
citados, que consideramos particularmente representativos de um momento específico da
trajetória intelectual do autor, um momento de síntese.
Consideramos que o estudo do conceito de desenvolvimento utilizado por um
historiador do século XX pode contribuir na compreensão de sua produção historiográfica.
Contudo, prosseguir neste caminho exige enfrentar algumas questões importantes: qual a
influência que os compromissos políticos do historiador exercem sobre a leitura que faz do
processo histórico? Em que medida as discussões políticas de seu tempo sobre o modelo de
desenvolvimento a ser implementado participa da construção de seu conhecimento histórico?
De que maneira a ideia do desenvolvimento como passaporte para o futuro pode interferir na
sua interpretação do passado? Se admitirmos que a construção da realidade histórica tem por
base problemas elaborados com questões contemporâneas, podemos considerar a posição do
historiador diante do desenvolvimento um fator importante no momento de sua produção
historiográfica?
No caso particular de Caio Prado Júnior, é possível identificar a influência de alguma
corrente do desenvolvimentismo? Em que termos ocorreu o diálogo entre ele e as doutrinas
econômicas que formularam conceitos de desenvolvimento nos anos 1950 e 1960? Em que
medida as divergências internas no PCB nos anos 1960 condicionou suas posições a respeito
do desenvolvimento brasileiro? Quais as teorias e interpretações a respeito do
desenvolvimento que Caio Prado Júnior pretende desconstruir? Com quem estabelece
relações de concordância e de divergência quando se trata de compreender processos de
desenvolvimento e propor ações para realizá-los conscientemente? Como se relacionam
desenvolvimento histórico e desenvolvimento econômico nos referidos textos? Quais as
influências exercidas pelos conflitos e contradições vividas por Caio Prado Júnior durante o
processo de concepção e redação destas obras?
Nem todas estas perguntas terão respostas objetivas e conclusivas no âmbito desta
pesquisa. Afinal, elas serviram mais para nos orientar na investigação do que como questões
que precisam ser encerradas. Portanto, ao contrário de querer formular as respostas certas, a
preocupação maior consistiu em fazer as perguntas que nos permitissem percorrer os
caminhos mais promissores.
9
***
A primeira etapa de nosso relatório de pesquisa se ocupa da análise dos intérpretes de
Caio Prado Júnior. Neste relatório, apresentamos e colocamos em contraste aquelas que
parecem constituir as principais contribuições nesta discussão. Com isso, utilizamos essas
interpretações, por um lado, como registro do diálogo suscitado pela obra de Caio Prado Jr. no
que tange à questão do desenvolvimento e, de outro, como recurso para balizar a segunda
etapa de nossa pesquisa: uma leitura própria deste nosso objeto a partir da análise das fontes.
Caio Prado tornou-se um clássico e, como tal, gerou muitas discussões. Seus primeiros
debatedores se depararam com uma produção intelectual inovadora. Obviamente, não tinham
como saber que sua obra viria a influenciar tanto e tão decisivamente sucessivas gerações no
Brasil. Porém, a própria atenção que deram aos seus principais textos, quando publicados, foi
um fator para sua difusão. As polêmicas travadas contribuíram para que suas ideias fossem
conhecidas. Como toda obra que promove rupturas, encontrou resistências diversas para se
afirmar. Apesar disso, foi capaz de produzir uma matriz interpretativa da realidade brasileira,
inclusive porque, por outro lado, também encontrou calorosa acolhida. Nesta tensão, a obra de
Caio Prado Júnior sobressaiu principalmente por sua coerência interna de conjunto e pela
força de suas teses.
Mas em sua vasta e diversificada produção, foram principalmente os textos de história
que conferiram ao conjunto da obra a posição de referência. Não por acaso, é comum (mas
não é consenso) que Caio Prado Júnior seja considerado um historiador. Apesar de suas ideias
não terem se limitado a um campo do conhecimento, foi neste em particular que foi mais bem
sucedido. Sua interpretação da história brasileira tornou-se um paradigma historiográfico, a
partir do qual novos estudos se desenvolveram, seja para aprofundá-lo, contestá-lo ou
simplesmente compreendê-lo melhor.
Entre eles estão os que tomaram a obra e seu autor como objetos de análise ou
investigaram sua contribuição para a discussão de temas específicos, os mais variados. Desta
ampla gama de trabalhos, reunimos e analisamos não apenas aqueles que tratam
especificamente da questão do desenvolvimento no pensamento de Caio Prado Jr. – um
conjunto que nossa pesquisa demonstrou ser significativo. Outros textos sobre o autor
precisaram ser consultados, por dois motivos principais: primeiro, porque alguns trabalhos
que tomam outros temas e questões em Caio Prado como objeto abordam a questão do
desenvolvimento de forma secundária e tangencial; em segundo lugar, porque precisamos
10
compreender uma série de questões relevantes sobre seu pensamento se quisermos uma maior
aproximação de sua concepção de desenvolvimento. Portanto, selecionamos uma bibliografia
que, analisando ou não este tema específico, traz elementos importantes para subsidiar nossa
própria interpretação.
O principal critério que seguimos para a seleção da bibliografia analisada foi, por um
lado, a contribuição que traria para uma compreensão ampla do pensamento do autor, no qual
seu método de interpretação da realidade e o manejo das categorias marxistas são parte
importante. Por outro, procuramos aproveitar a bibliografia que mais poderia contribuir para o
levantamento de temas e questões direta ou indiretamente relacionadas com o nosso objeto de
estudo: o conceito de desenvolvimento de Caio Prado Júnior.
A leitora e o leitor especializados sentirão falta, nesta primeira parte do trabalho, das
obras de Paulo Teixeira Iumatti, Paulo Henrique Martinez e Dainis Karepovs. Elas foram
aproveitadas na segunda parte do texto, sobretudo por não apresentarem diferenças
fundamentais a se destacar em relação à bibliografia coligida e analisada na primeira parte de
nosso trabalho. Farão falta, igualmente, as importantes contribuições de Rubem Murilo Leão
Rego, Raimundo Santos, Igor Zanoni C. Carneiro Leão e Renato Perim Colistete. Neste caso,
suas ausências decorrem mais dos limites de tempo e disponibilidade para lhes dar um
tratamento adequado, uma vez que foram obtidas e estudadas em um momento no qual a
pesquisa se encontrava em estágio mais avançado. Esperamos que os estudos que
pretendemos empreender futuramente possam redimir nossa falha neste sentido.
Realizamos nosso diálogo com os intérpretes de Caio Prado Júnior com o olhar voltado
para questões que a própria bibliografia ressaltou, ou seja, para os principais focos de debate:
1) sentido da colonização e totalidade; 2) circulação, produção e modo de produção; 3)
consumo, demanda e mercado interno; 4) dualismo e desenvolvimento desigual e combinado;
5) vias de desenvolvimento capitalista; 6) Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento
econômico brasileiro; e por fim, 7) história e economia política.
Na segunda parte do presente relatório, apresentamos nossa própria interpretação do
conceito de desenvolvimento do autor com base na análise das fontes de nossa pesquisa.
Interpretando a concepção de Caio Prado Júnior sobre o marxismo e a dialética, Lincoln
Secco afirma que “sua teoria está toda entranhada na narrativa histórica”. Note-se que entre o
artigo homônimo publicado em 2010 e o texto de onde extraímos esta citação, de 2011, Secco
adiciona a palavra “toda” na mesma formulação, reforçando a indissociabilidade entre teoria e
11
historiografia no pensamento do autor. 1 Não se trata de afirmar que toda a concepção teóricometodológica de Caio Prado encontra-se em sua narrativa histórica, uma vez que em diversos
artigos e até mesmo livros inteiros – como as obras filosóficas que escreveu nos anos 1950 ou
a crítica que teceu ao estruturalismo francês no início dos anos 1970 – o autor discorre sobre
as questões epistemológicas, conceituais, teóricas e metodológicas que balizam seu
pensamento. Trata-se, na verdade, de indicar que é na tensa e dinâmica relação entre teoria e
historiografia que poderemos encontrar o caminho para a compreensão do pensamento
caiopradiano em sua unidade e totalidade. Neste sentido, é possível sugerir a hipótese de que a
relação entre a economia política do desenvolvimento e a análise da história em seu processo
de permanente desenvolvimento constitui elemento central do conceito de desenvolvimento
de Caio Prado Júnior.
É importante considerar, porém, que a formulação conceitual de Caio Prado Júnior está
vinculada com as experiências por ele vividas no momento de sua elaboração. Com isso, não
pretendemos dizer que se trata de buscar explicações para os conceitos caiopradianos onde
eles não foram formulados, ou seja, fora de seu pensamento. Mas não se pode compreendê-los
isolando-os da realidade diante da qual o pensamento humano se processou. É neste sentido
que buscamos relacionar, no breve período analisado, a trajetória de vida do autor no contexto
político, social e cultural pelo qual circulou, por um lado, com o pensamento expresso nas
obras que então produziu, por outro. Reiteramos: nosso trabalho visa realizar uma análise
circunscrita ao arcabouço conceitual que orienta o pensamento do autor diante da questão do
desenvolvimento. Neste sentido, ainda que nosso objeto esteja mais vinculado ao pensamento
do autor que às experiências concretas que viveu, sua biografia será abordada como elemento
constituinte e, portanto, indispensável para compreender as reflexões que realizou.
O autor confrontou diretamente algumas forças políticas e sociais e correntes de
pensamento na medida em apresentou suas teses em tom abertamente conflitante. Em diversas
ocasiões nos anos 1960 e 1970 houve uma relação de oposição entre Caio Prado Júnior e os
órgãos de repressão da ditadura militar, as elites conservadoras e parcela da esquerda
brasileira. Ele considerava que a apreciação dos processos históricos serviria de fundamento
para formular as orientações rumo ao equacionamento da questão do desenvolvimento
brasileiro. A compreensão da história contribuiria na definição do sentido do desenvolvimento
1
Cf. SECCO, Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo
de Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010. Idem, Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado
Júnior. In: PINHEIRO, Milton (org.) Caio Prado Júnior: história e sociedade. Salvador, Quarteto, 2011, p. 61.
12
econômico. E para ser alcançada esta síntese, seria necessária uma colaboração entre teoria e
prática que fosse capaz de dar respostas aos problemas criados pela própria ação humana na
história. Não por acaso, portanto, as discussões a respeito do método mais adequado para a
apreensão da realidade e a formulação de interpretações históricas, modelos teóricos e
orientações políticas são elementos cruciais em História e desenvolvimento (1968) e A
revolução brasileira (1966). A análise destas obras visando a compreensão do conceito de
desenvolvimento de Caio Prado Jr. passou, portanto, pelas considerações metodológicas nelas
presentes.
Por fim, com nossa pesquisa pretendemos contribuir para aprofundar a compreensão
sobre a historiografia caiopradiana, levantar questões sobre as relações estabelecidas entre o
pensamento econômico desenvolvimentista e o autor, bem como estimular a reflexão sobre a
influência do pensamento político e econômico na produção historiográfica. Neste sentido,
nos propusemos a trazer ao debate algumas impressões que possam servir como estímulo para
a realização de debates e outras pesquisas. Se conseguirmos gerar inquietações, indagações e
questionamentos nos leitores, e se formos capazes de estimulá-los a demandar mais
conhecimento sobre o tema, nossos objetivos terão sido cumpridos.
13
PARTE I
INTERPRETAÇÕES SOBRE CAIO PRADO JÚNIOR: TEMAS E
DEBATES
14
1.
Sentido da colonização e totalidade
É amplamente reconhecido o mérito de Caio Prado Jr. em inserir o moderno processo de
colonização nos quadros da expansão marítima e comercial européia. Ele teria inovado a
abordagem da realidade brasileira porque primeiro a situou no quadro mais geral do comércio
europeu.2 Não por acaso, é amplamente citada, a seguinte passagem do capítulo “O sentido da
colonização”, de Formação do Brasil contemporâneo:
Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos
constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e
diamantes; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais
que isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem
atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se
organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido:
a estrutura bem como as atividades do país. 3
Tal é a aceitação e a difusão desta tese que seria tarefa exaustiva, enfadonha e
desnecessária tentar mapear as obras em que este trecho aparece. Com tamanha repercussão,
para o leitor contemporâneo, a noção de sentido da colonização soa hoje como uma
obviedade, parece mesmo o ar que respiramos: imprescindível, mas nem o notamos, já que se
tornou senso comum.4 Repisar este assunto, aparentemente, serviria como mero recurso
didático para guiar o leitor rumo à explicação de algum outro conceito presente na obra do
autor, uma vez que subordina toda sua compreensão da formação brasileira a esta categoria
explicativa. Mas um olhar atento à bibliografia nos permite identificar interpretações que
extraem desta categoria alguns aspectos relevantes para nossa investigação.
Escrevendo no início dos anos 1980, Fernando Novais indica que apesar do referido
livro ter sido compreendido pelo público, sua utilização teria sido tópica, limitando-se ao
aprofundamento de temas laterais por ele suscitado ou incorporando elementos de sua
exposição. Ainda não teria sido destacada a articulação mais geral que caracteriza a obra na
qual se formula a categoria de sentido da colonização, ou seja, a visão de conjunto na qual se
tem em vista a integração das várias partes e sua relação com o todo: “o ‘sentido’, isto é, a
essência do fenômeno, explica as suas manifestações, e ao mesmo tempo explica-se por elas
(...), a análise dos vários segmentos vai enriquecendo e comprovando a categoria
2
Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 178.
3
PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 29.
4
Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 181.
15
fundamental”, permitindo que a análise se realize “em dois movimentos: da aparência para a
essência, e da essência para a realidade”. Ao não ter sido tomada como tema a discussão e o
aprofundamento de seu método de análise, tal negligência teria empobrecido o
aproveitamento da obra. 5
Uma leitura mais profunda deveria considerar que, “o ‘sentido da colonização’,
categoria analítica básica, é apreendido através da inserção do objeto (colonização européia na
América) num todo maior, ou seja, os mecanismos comerciais da expansão marítima
européia”, sendo que esta “localização do fenômeno na totalidade de que faz parte, situando
seus nexos, permitiria a apreensão das categorias a partir das quais a reconstrução inteligível
se torna uma possibilidade”. Contudo, tendo em vista que “quando é o próprio contexto mais
amplo que está em questão, a dificuldade reaparece em toda sua força”, pois faz-se necessário
“definir com precisão o que deve ser inserido, e em quê”.6
Diante deste problema, segundo Fernando Novais, a análise de Caio Prado Júnior “se
deteve ao meio do caminho”. Afinal, sendo a expansão comercial européia “a face mercantil
de um processo mais profundo, a formação do capitalismo moderno”, seria necessário
“procurar as articulações da exploração colonial com esse processo de transição feudalcapitalista”. Deste modo, o processo de colonização “não apareceria apenas na sua feição
comercial, mas como um canal de acumulação primitiva do capital mercantil no centro do
sistema”, com o que “se reformularia e aprofundaria a visão de conjunto”. 7
Tal percepção metodológica permitiu a Fernando Novais se notabilizar como o autor
que, partindo da análise de Caio Prado Jr. e a incorporando, demonstrou os vínculos entre a
colonização e a acumulação primitiva de capital nos quadros da transição do feudalismo para
o capitalismo na Europa, aprofundando o conhecimento sobre o mercantilismo e o Antigo
Sistema Colonial: “É esse sentido profundo que articula todas as peças do sistema”. 8
Inúmeros autores seguiram, em linhas gerais, o percurso legado por Novais. Isto é
claramente perceptível em Bernardo Ricupero. Segundo ele, para que “a análise de Caio
Prado Jr. sobre a colônia brasileira fosse realmente completa, ela não deveria se ater apenas ao
5
Cf. NOVAIS, Fernando. Caio Prado Jr. na historiografia brasileira. In: MORAES, Reginaldo; ANTUNES,
Ricardo; FERRANTE, Vera B. (orgs.). Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 15-6.
6
Ibidem, p. 19.
7
Ibidem, p. 19-20.
8
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec,
2006, p. 97.
16
Brasil, mas mostrar como o funcionamento de nosso sistema colonial se articula no
movimento mais geral do capital, particularmente no momento da passagem do feudalismo
para o capitalismo”.9 Este autor também ressalta que Caio Prado Jr. “traça um retrato da
grande exploração, base da colônia, como sistema, em que suas partes constitutivas – a grande
propriedade, o trabalho escravo e a produção voltada para o mercado externo – se articulam
organicamente”. Desse modo, “num processo de síntese, vai reconstruindo o concreto
colonial, até entendê-lo como totalidade”, ou seja, “trata a colônia como uma totalidade,
dotada de um certo sentido, e não um mero amontoado de tendências díspares”. 10
Com perspectiva semelhante, Lincoln Secco diz que “Caio Prado Jr. tinha em vista a
totalidade de relações sociais e econômicas do capitalismo mundial” e, portanto, “só pode
entender a lógica de funcionamento da economia colonial submetida à lógica da acumulação
mundial e, nesta, as formas de produção da colônia são dominadas pela esfera do capital
comercial europeu”. Com isso, conclui que o “estudo do capitalismo precisa passar pela
‘história’ das economias ‘regionais’ do sistema sem olvidar que, na verdade, não há uma
história de uma economia regional ou nacional, somente a história do capitalismo como
sistema mundial” 11.
Mas, logo se coloca um problema: existem diferenças entre Fernando Novais, Bernardo
Ricupero e Lincoln Secco a respeito do uso que Caio Prado Jr. faz da categoria de totalidade?
Analisemos mais detidamente esta questão.
Novais afirma que Caio Prado Jr. utiliza o procedimento metodológico que parte da
aparência para a essência e desta para a realidade – o que permite a construção das categorias
analíticas, no caso, o sentido da colonização. A categoria, por sua vez, pode ser compreendida
por meio da inserção da colonização européia na América nos mecanismos comerciais da
expansão marítima. Assim, a reconstrução inteligível da realidade torna-se uma possibilidade
permitida pela categoria analítica quando se localiza o fenômeno “na totalidade de que faz
parte, situando seus nexos”. Portanto, a crítica a Caio Prado Jr. de que “sua análise se deteve
9
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr.: o primeiro marxista brasileiro. Revista USP. São Paulo, n. 38, junhoagosto, 1998, p.76.
10
11
RICUPERO, Bernardo, Sete lições sobre as interpretações do Brasil, p.147-50.
SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 178-80. Aparentemente, Secco dialoga com uma
idéia sintetizada na seguinte passagem: “Não há mais, verdadeiramente, no mundo contemporâneo, história
econômica deste ou daquele país, mas unicamente a de toda a Humanidade”. PRADO JÚNIOR, Caio. História
econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 275. Note-se, porém, que este trecho se encontra no
capítulo intitulado “Imperialismo” e que o autor restringe tal afirmação para o “mundo contemporâneo”, ou seja,
o momento posterior à II Guerra Mundial.
17
no meio do caminho” decorre da compreensão de Novais de que inserir o Brasil “na expansão
marítima européia seja um recorte que apanhe apenas algumas dimensões da realidade, não
levando o olhar até a linha do horizonte” – no caso, “o conjunto do mundo colonial”. Fazia-se
necessário extrapolar “a face mercantil de um processo mais profundo, a formação do
capitalismo moderno”, e passar a “procurar as articulações da exploração colonial com esse
processo de transição feudal-capitalista”. Percebe-se, assim, que na interpretação de Fernando
Novais, a totalidade pensada por Caio Prado Júnior – expansão marítima mercantil no
contexto de formação do capitalismo – não é capaz de apreender as articulações do conjunto
do mundo colonial, pois não aprofunda nem o estudo do processo histórico metropolitano,
nem a relação entre as partes do sistema colonial.
Diferente é o enfoque de Bernardo Ricupero, que chega a falar que o autor “reconstitui a
totalidade do passado brasileiro”12:
(...) Caio Prado, com o marxismo possivelmente limitado que conhecia, foi capaz
de fazer uma obra monumental, precisamente por ter sabido reter do marxismo o
que nele é mais importante: a abordagem. Abordagem esta que lhe permitiu elevarse do abstrato ao concreto, reconstruindo, nesse ínterim, a totalidade da experiência
brasileira. 13
Mais adiante, Ricupero reitera a noção de totalidade que atribui a Prado Jr. ao dizer que
“Enquanto outros autores privilegiaram um aspecto ou outro de nossa realidade, Caio Prado,
particularmente ao considerar a Colônia brasileira e a grande exploração agrária como
totalidades, abre caminho para se entender como seus diferentes elementos se combinam de
forma original.”14 Ademais, diferentemente de Fernando Novais, que concebe o sistema
colonial em sua dimensão mundial, Ricupero utiliza a expressão “sistema colonial brasileiro”,
considerado como o “todo” no qual se inserem e se articulam seus elementos. Interpretando
Caio Prado Jr., este autor considera que a partir do objetivo mercantil e em função dele teria
se criado “uma totalidade, a colônia, espécie de corpo social subordinado a outro corpo social,
a metrópole.” Contudo, o mais interessante da leitura de Ricupero é que logo depois de
considerar a colônia uma totalidade na qual se encontra o mais importante de seus elementos,
a grande unidade produtora, diz que esta “grande exploração seria, portanto, a exemplo do
sistema colonial, uma totalidade”, que por sua vez seria constituída por três elementos: 1) a
12
RICUPERO, Bernardo. “Caio Prado, cem anos depois”. Comunicação em seminário do Instituto de Estudos
Brasileiros, outubro de 2007. http://www.acessa.com/gramsci/?id=797&page=visualizar (acessado em
01/06/2012, grifos nossos)
13
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr.: o primeiro marxista brasileiro, p.71. (grifos nossos)
14
Ibidem, p. 71
18
produção de bens de alto valor no mercado externo; 2) em grandes unidades produtivas; 3)
trabalhadas pelo braço escravo.15
Com isso, se para Fernando Novais seria necessário ir além do mero aspecto mercantil
da expansão colonial e considerar a acumulação primitiva de capital nos marcos da transição
do feudalismo para o capitalismo em processo na Europa para uma abordagem totalizante da
colonização, é possível fazer a seguinte suposição: ele consideraria que a interpretação de
Ricupero sobre a totalidade em Caio Prado Jr. afasta ainda mais o nosso autor da “linha do
horizonte” por atribuir-lhe uma visão demasiadamente concentrada nos aspectos internos da
colônia, negligenciando seus nexos com a formação do capitalismo em escala global.
Lincoln Secco, por sua vez, apesar de não fazer referência a Fernando Novais, concorda
com sua tese, segundo a qual Caio Prado Jr. “ficou ao meio do caminho”, pois ao invés de
ampliar os quadros narrativos para a compreensão mais ampla do contexto de formação do
capitalismo mundial – ou ao menos para a economia atlântica como um todo, como comentou
Fernand Braudel – teria deslocado seu “olhar geográfico para as áreas de povoamento
internas.”16 Mas, se isso é verdade, como é possível dizer que o autor “tinha em vista a
totalidade de relações sociais e econômicas do capitalismo mundial”? Não seriam estas
análises excludentes entre si?
Para saber como essas interpretações se relacionam com a questão da totalidade,
devemos analisar a leitura que o autor faz da questão do método em Caio Prado Jr. Segundo
Secco, o percurso que ele realizou para compreender a economia colonial deduz do sentido da
colonização tudo que a compõe (suas partes, podemos dizer) e “suas articulações externas,
incluindo aspectos demográficos, povoamento, alimentação, formas de produção, crises etc.”
O fundamento da obra está na inserção dessa totalidade num quadro geral, que é o
capitalismo mundial. Esse é o ponto de partida (oculto) e o ponto de chegada,
sendo a economia colonial um concreto empírico que perfaz a mediação entre o
abstrato (capitalismo mundial destituído de concretude) e o concreto pensado (a
economia mundial capitalista concreta no seu todo, incluindo a dinâmica européia e
seu “complemento” colonial).17
Esta ideia de que a economia colonial é uma totalidade, composta por elementos
deduzidos do sentido da colonização, aproxima Secco da análise de Ricupero. Ao mesmo
tempo, vemos que também se considera a economia colonial como um concreto empírico
15
Cf. idem. Sete lições sobre as interpretações do Brasil, p.140-41
16
SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p.180.
17
Ibidem, p. 179-80.
19
complementar à dinâmica européia, ou seja, ambas seriam elementos de outra totalidade, “a
economia mundial capitalista concreta no seu todo”, com a diferença de que a segunda seria o
centro dinâmico em função do qual se organizaria seu “‘complemento’ colonial”.
Assim, podemos sugerir que, para Lincoln Secco, Caio Pardo Jr. ficou “no meio do
caminho” não apenas por deixar de ampliar o quadro narrativo em escala mundial, não
alcançando o horizonte da acumulação primitiva do capital no contexto da transição do
feudalismo para o capitalismo como uma totalidade (como pretende Novais), como também,
em consequência do deslocamento de seu “olhar geográfico” para dentro, por considerar a
própria colônia como uma totalidade (conforme Ricupero).
Com isso, entre Fernando Novais, Bernardo Ricupero e Lincoln Secco, ao menos
aparentemente, existe uma divergência irreconciliável no que se refere à utilização da
categoria de totalidade por Caio Prado Jr.: o primeiro, considerando a totalidade como a
relação entre os diferentes elementos em escala mundial, afirma que Caio Prado Júnior não a
alcançou; o segundo, considerando o Brasil como uma totalidade que, por sua vez, é parte do
capitalismo mundial18, afirma que Prado Jr. faz boa utilização da categoria de totalidade e que
está aí o melhor do materialismo histórico de nosso autor19; e o terceiro, ora considerando que
o autor tem em vista a totalidade do capitalismo mundial, ora afirmando que desloca o olhar
geográfico para o meio interno, ficou ele mesmo a meio caminho.
Contudo, em nossa opinião, aquela divergência só é irreconciliável se ao critério
espacial geográfico for atribuída a preponderância para a utilização da categoria de totalidade.
Lincoln Secco parece sugerir isso quando chega ao extremo de afirmar que “não há uma
história de uma economia regional ou nacional, somente a história do capitalismo como
sistema mundial”. Fernando Novais e Bernardo Ricupero, a partir de nossa discussão,
parecem sugerir semelhante preponderância à questão geográfica para se definir uma
abordagem totalizante. Contudo, todos os autores destacam que, na verdade, é a devida
atenção dada por Caio Prado Jr. para a relação entre as partes que permite a compreensão do
todo em sua complexidade.
Assim as diferenças de interpretação entre Novais, Ricupero e Secco, podem ser
decorrentes: a) da posição em que cada um insere a dimensão geográfica no manuseio da
categoria de totalidade; b) do tratamento ambíguo ou das margens de interpretação legadas
18
Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo:
Departamento de Ciência Política da USP. Fapesp, Editora 34, 2000, p. 41.
19
Cf. RICUPERO, Bernardo. “Caio Prado, cem anos depois”.
20
por Caio Prado Jr. ao utilizar a totalidade como instrumento de análise histórica; ou c) do fato
de que Caio Prado realmente soube utilizar criativamente a categoria de totalidade no
processo de tradução ou nacionalização do marxismo para a realidade brasileira, aplicando-a a
objetos de estudos inseridos em diferentes dimensões geográficas e temporais.
Para saber se este todo se define pelo espaço geográfico para o qual se volta a análise
histórica cabe considerar que, segundo a lógica dialética, uma parte contém contradições
internas que exigem uma abordagem de sua totalidade para compreendê-las, o que implica
analisar também as contradições que esta parte estabelece com as outras partes constitutivas
de um todo maior no qual estão inseridas. Portanto, apesar de estabelecer o recorte espacial no
qual se insere o objeto estudado, a escala geográfica não define, por si só, se uma análise
histórica é totalizante: independente do espaço analisado, a categoria de totalidade pode ser
utilizada na medida em que se buscar compreender as inúmeras e complexas relações
contraditórias encerradas no interior das partes constitutivas do todo e nelas entre si.
De qualquer modo, é no método de investigação e na narrativa histórica que se
manifestam concretamente a lógica dialética. Para Caio Prado Jr., afirma Jorge Grespan, a
interpretação da história não é arbitrária, ela deve traduzir o sentido real no movimento
próprio do pensamento – um autodinamismo dialético –, deve expressar não apenas o
predomínio de uma das forças em luta, mas a luta mesma das forças opostas, da qual resulta
um sentido sempre mutável.20 Maria Odila Leite da Silva Dias nos dá uma pista de como Caio
Prado desenvolve sua análise, que considera uma “manifestação magistral da tão propugnada
história global, que desafia as forças dos historiadores, dedicados a reconstruir totalidades
expressivas do passado”. Para ela, o autor
(...) persegue a diversidade das formas sociais específicas como princípio norteador
de conceituação de seu trabalho: remontar ao passado, devassar o vir a ser das
formações sociais do Brasil tanto nas relações de dependência internacional,
quanto e sobretudo, no seu contexto nacional, interiorizadas nas subordinações
regionais.21
Ao buscar a compreensão dialética do processo histórico brasileiro, Caio Prado Jr.
demonstrou que o marxismo, como teoria aberta, desenvolve e um método capaz de permitir a
20
Cf. GRESPAN, Jorge. A teoria da história de Caio Prado Júnior: dialética e sentido. Revista do IEB, São
Paulo, n.47, setembro de 2008, p. 71.
21
LEITE DIAS, Maria Odila Silva da. Impasses do inorgânico. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e
Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Editora UNESP; Brasiliense; Secretaria de Estado da Cultura,
1989, p. 382. (grifos nossos)
21
compreensão de diferentes contextos históricos como totalidades, desde que não se subordine
a realidade às formulas da teoria ou a teoria ao mero empirismo.
Mas o que nos interessa mais especificamente no presente trabalho é saber em que
medida a totalidade (ou as totalidades) considerada(s) por Caio Prado Jr. condicionou sua
visão sobre o processo de desenvolvimento brasileiro. Conscientemente ou não, a questão da
totalidade anima a polêmica em relação à esfera que, segundo Caio Prado Jr., é prioritária na
definição dos processos econômicos na história: seria a da produção ou da circulação?
22
2.
Circulação, produção e modo de produção
As interpretações mais recorrentes e influentes são aquelas que conferem à esfera da
circulação a principal chave explicativa para a formação histórica do Brasil na obra de Caio
Prado Jr., sendo praticamente inexistentes as teses que defendem que na produção se
encontraria o dinamismo que condiciona os processos econômicos. Afinal, em diferentes
momentos, o próprio autor deixou explicita sua compreensão sobre o assunto, sem
ambigüidades, deixando pouca ou nenhuma margem para interpretações distintas. Por isso, é
também muito recorrente a citação de outra passagem de Formação do Brasil contemporâneo
quando se debate criticamente a abordagem caiopradiana a respeito da prioridade dada à
esfera da circulação: “A análise da estrutura comercial de um país revela sempre, melhor que
a de qualquer um dos setores particulares da produção, o caráter de uma economia, sua
natureza e organização. Encontramos aí uma síntese que a resume e explica.”22
Esta compreensão, como muitas outras do autor, perduram ao longo de sua obra, que
atravessa um período de mais de cinco décadas. Como indica Florestan Fernandes em 1988,
Caio Prado Júnior “não se impôs uma revisão crítica”, uma vez que “estava convicto da
veracidade de suas descobertas e do seu retrato da evolução histórica do Brasil e de outras
sociedades periféricas e marginais (...)”.23Ao menos no que se refere à primazia dada ao
mercado e à circulação na dinâmica econômica, esta tese se confirma com uma passagem
pouco citada da tese para concorrer à Cadeira de História da Civilização Brasileira da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, escrita 26 anos depois de Formação do
Brasil Contemporâneo, na qual o autor polemiza com a chamada teoria ortodoxa sobre a
explicação do processo de crescimento econômico:
O simples fato da inversão, como pretende a teoria ortodoxa, ou mesmo o fato mais
geral e amplo da origem e formação do capital e sua acumulação, pouco ou nada
explica acerca dos fatos originários que impulsionam o crescimento. O que deve
ser considerado e que dá conta desse crescimento é o que se encontra na base e por
detrás das inversões (e que são, em si apenas, unicamente um momento e aspecto
no processo global de produção). A saber, e essencialmente, as circunstâncias
gerais e os fatores originários que condicionam, promovem e impulsionam a
22
23
PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo, p. 241. (grifo nosso)
FERNANDES, Florestan. Os enigmas do círculo vicioso. In: PRADO JR. Caio. História e desenvolvimento.
São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 7.
23
produção; é em primeiro e principal lugar, a conjuntura mercantil, isto é, as
características da demanda.24
Portanto, apesar de levar em conta as condições em que a produção se organiza e as relações
de produção se estabelecem, Caio Prado considera o mercado – esfera da circulação e
realização de capital – como o motor do desenvolvimento econômico.
Segundo Marcos Antônio M. da Rocha, esta sobredeterminação que a estrutura
econômica mercantil exerce nos diagnósticos de Caio Prado prejudica o sentido prático de sua
obra:
A desconsideração sobre a diferenciação do capital mercantil e daí a diferenciação
no interior da burguesia, com a formação de novas frações de classe, resultam em
outro aspecto problemático na obra do autor. Ao considerar a superestrutura
política como formada por um bloco homogêneo controlado hegemonicamente
pelo capital mercantil, Caio Prado ignora a articulação das diversas frações de
classe em torno do aparelho de Estado, levando-o portanto a considerar o aparelho
de Estado como facilmente adaptável às exigências do capital mercantil. 25
Mas Rocha não é preciso na identificação do problema, que não reside em uma suposta
visão homogênea do capital e da burguesia. Afinal, o que Caio Prado enfatiza é a relação mais
de colaboração do que de conflito entre as frações de classe e seus capitais, não uma
homogeneidade. O problema, na verdade, é que ele subestimou a profundidade da
transformação na estrutura produtiva brasileira e, portanto, no padrão de acumulação,
promovida pelo capital monopolista estrangeiro, sobretudo a partir dos anos 1950.
Reconhecendo as posições de Prado Jr. a respeito da preponderância no momento da
circulação e do capital mercantil, Marcia R. Victoriano afirma, inclusive, que esta ênfase
analítica “pode ser compreendida no âmbito de uma tendência que ocupou o pensamento
marxista não só nacional, mas principalmente internacional, sobre a questão do
subdesenvolvimento e da dependência externa”. 26
Situando o importante papel atribuído por Caio Prado Jr. ao capital mercantil
metropolitano no sentido da colonização, boa parte de seus intérpretes concluiu que o autor
24
PRADO JÚNIOR. Caio. História e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 26. “Para Caio Prado Jr.,
a emergência da modernidade não está somente dificultada pela precária acumulação de capital (...), mas também
pela inexistência de mecanismos do mercado, como a concorrência, a concentração da produção e o progresso
tecnológico como fator de produtividade”. VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.:
uma interpretação original do Brasil. São Paulo: Edições Pulsar, 2001, p. 56. Analisaremos a discussão sobre a
categoria demanda em Caio Prado Júnior mais adiante, quando tratarmos do consumo.
25
ROCHA, Marcos Antônio M. da. Desenvolvimento Nacional, estrutura e superestrutura na obra de Caio Prado
Júnior. Oikos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, 2009, p. 275-77.
26
VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 34.
24
pensa o Brasil como uma formação social altamente determinada pela dinâmica externa.
Escrevendo nos anos 1960 e 1970, os formuladores da teoria da dependência (André Gunder
Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso,
Enzo Faletto etc.), foram aqueles que mais se valeram deste pensamento caiopradeano para
fundamentar sua interpretação da realidade brasileira.
Por outro lado, alguns autores não deixam de registrar que Caio Prado Jr. não pensa
unilateralmente a presença marcante da esfera da circulação e do mercado externo no
desenvolvimento histórico brasileiro. Para Fonseca, Caio Prado Jr. teria sido “precursor da
Teoria da Dependência ao afirmar que são os processos sociais internos os responsáveis pela
dinâmica histórica, e que, primordialmente, configuram seu sentido.”
27
De modo análogo,
para Antonio Carlos Mazzeo,
(...) ainda que reconheçamos a presença, na visão caiopradeana, de certo
superdimensionamento do papel da esfera da circulação (...), lembramos que o
fundamental da análise caiopradeana não é apresentar a esfera da circulação
desconectada da esfera produtiva.28
Em sentido semelhante, Leandro Konder considera que
(...) a situação lá fora era, para ele, a situação do mercado mundial, que deveria ser
avaliada em função de nossa situação interna, isto é, das vicissitudes do nosso
modo de produção. Nossos problemas eram os problemas da nossa sociedade e da
nossa articulação com o mercado mundial.29
Para Konder, o “reconhecimento da centralidade das contradições sociais criadas em
torno do modo de produção e a percepção aguda luta da luta de classes” teria feito com que a
atenção dada aos “mecanismos que punham a nossa economia numa situação de dependência
direta de movimentos comandados por forças instaladas no exterior” lhe permitissem, ao
mesmo tempo, “recolher subsídios que elucidavam, no essencial, como se realizou a formação
da sociedade brasileira”.30
27
FONSECA, Pedro Cezar Dutra da. Homenagem a Caio Prado Jr. Análise Econômica, ano 8, n. 14, nov. 1990,
p. 151-55 (grifo nosso).
28
MAZZEO, Antonio Carlos. O Partido Comunista na raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do
capitalismo. In: MAZZEO, Antonio Carlos; LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunistas
brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003, p. 164.
29
KONDER, Leandro. A façanha de uma estréia. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e Ideal: ensaios
sobre Caio Prado Júnior, p. 136.
30
Idem, Caio Prado Jr.: nadador e aviador. Revista USP. São Paulo, n. 38, junho-agosto, 1998, p. 62. Para
Marcia R. Victoriano, “A importância dada pelo autor não só às determinações abrangentes e externas, mas às
especificidades do desenvolvimento econômico brasileiro está sustentada pelo renitente e indispensável uso de
um instrumental teórico que é a própria perspectiva histórica ou dialética”. VICTORIANO, Marcia R. A questão
nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 42.
25
Para ambos, o autor não tem uma visão unilateral das influências do mercado externo e
da esfera da circulação no direcionamento da formação econômica brasileira. Mas, aqui surge
um problema crucial para se pensar a questão do desenvolvimento em Caio Prado Jr.: qual é o
lugar da categoria de modo de produção em sua análise da realidade brasileira?
Não se encontra com facilidade definições categóricas a respeito da economia brasileira
na obra de Caio Prado Jr., afirma Lincoln Secco. Ele não se preocupava em desenvolver
conceitualmente sua matéria ou classificar a realidade histórica, sua teoria estava entranhada
na narrativa histórica. Em seus textos, portanto, havia o uso escasso de categorias marxistas.31
Isso levou alguns analistas, como Carlos Nelson Coutinho, a considerarem que “o estoque de
categorias marxistas de que se vale Caio Prado não é muito rico” e que, em seus trabalhos de
história,
(...) tem pouco peso o conceito de “modo de produção”, o que o leva por vezes a
confundir, na análise da Colônia e do Império, o predomínio inequívoco de
relações mercantis com a existência de um sistema capitalista (ainda que
“incompleto”), o que deriva da prioridade metodológica que ele conscientemente
atribui à esfera da circulação em detrimento da esfera da produção.32
Mazzeo polemiza direta e abertamente com Coutinho:
(...) longe de “confundir” o capital comercial com o capitalismo complexo
resultante da era industrial, Prado Jr. evidencia explicitamente que o caráter
capitalista da colonização desde sua origem insere-se no amplo processo que irá
desaguar no imperialismo, análise que de per se demarca, ontologicamente – e
rente à visão marxiana sobre a construção do capitalismo –, a noção de
processualidade genética do próprio capital em seu momento de afirmação, a partir
do século XVI, visto por Marx como o momento mesmo do nascimento da era
capitalista.33
Podemos perceber que esta divergência entre Coutinho e Mazzeo acerca da concepção
de Caio Prado sobre a participação do capital mercantil na formação social brasileira é, na
verdade, parte de um debate mais geral a respeito da formação do capitalismo brasileiro, do
qual participam outros autores. Neste particular, é interessante notar que quando elabora o
prefácio à terceira edição de História e desenvolvimento, Florestan Fernandes identifica o
31
Cf. SECCO, Lincoln, Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 176. Idem. Tradução do marxismo no Brasil:
Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010, p. 11.
32
O autor reconhece, porém, que “a prioridade atribuída à esfera da circulação não o impediu de definir de modo
substancialmente adequado a formação econômico-social da era colonial, identificada por ele como um
escravismo mercantil fundado na grande exploração rural, produtora de valores de troca para o mercado
internacional.” COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo. In: D’INCAO, Maria
Angela (org.). História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 116-7.
33
MAZZEO, Antonio Carlos, O Partido Comunista na raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do
capitalismo, p. 163-4.
26
grande peso que tem o capital mercantil na obra e tece críticas ao autor que, em linhas gerais,
são pertinentes. Para ele, “Caio Prado Jr. se prende demais ao conceitual, à lógica dos
conceitos que são essenciais em seu esquema descritivo e interpretativo”, fazendo-o focalizar
de modo insuficiente
as relações do capital mercantil com o capital industrial, e, após a II Grande Guerra
e a ditadura militar, com o capital financeiro típico do capitalismo monopolista e da
espécie de imperialismo que ele engendra, em nossos dias. Há deslocamento na
economia. O capital mercantil não desaparece. Mas perde sua função hegemônica e
determinante. O circulo vicioso persiste, mas não por sua conta. A investigação
histórica deverá ir mais longe e aprofundar-se para explicá-lo.34
Evidente que, de acordo com Fernandes, Caio Prado Júnior não perseguiu este caminho
na pesquisa. Ele teria razão “indiscutível” ao reter “os vínculos mais ostensivos procedentes
do impacto do capital mercantil”, mas o elemento decisivo não seria este. A questão central
(...) consiste no nexo estabelecido com a forma histórica da dominação externa e
com as alterações do cenário mundial, que obrigaram as nações capitalistas centrais
e sua superpotência a praticarem uma contra-revolução defensiva em escala
mundial, que se alicerça sobre a internacionalização do modo de produção
capitalista, do mercado moderno e das operações financeiras complexas.35
Assim, Caio Prado Jr. consegue captar muito bem as continuidades históricas do sentido
da colonização, a ausência de momentos de profunda ruptura na história brasileira e a
capacidade de incidência das oscilações conjunturais dos mercados externos e do capital
mercantil na dinâmica interna da economia brasileira. Por isso mesmo, porém, parece
subestimar as mudanças no desenvolvimento do capitalismo em escala mundial e seus
impactos nacionais, que não se deram de modo abrupto. Ao captar essa peculiaridade do
pensamento caiopradeano, Florestan antecipa, em certa medida, o debate que posteriormente
travariam Coutinho e Mazzeo.
Ressalte-se, portanto, que está em jogo nesta discussão não apenas uma interpretação
desinteressada da obra de um autor, mas a própria noção de capital e capitalismo, seu
surgimento, desenvolvimento e consolidação em escala global, regional e nacional. Em outras
palavras, a divergência não é pontual, não se refere apenas à dicotomia circulação-produção,
mas envolve diferentes enfoques teóricos no interior do marxismo, inclusive quanto à
caracterização de capitalista a uma determinada formação histórica e ao entendimento que se
34
FERNANDES, Florestan. Os enigmas do círculo vicioso, p. 9-10. Fica evidente que Florestan não se afasta da
ideia de determinação externa. Pelo contrário, a mantém e reforça quando afirma que ela é distinta e assumiu
novas feições.
35
Ibidem, p. 10-11.
27
tem da categoria modo de produção: se engloba unitariamente produção, distribuição e
consumo; se é uma totalidade que articula as estruturas econômica, jurídico-política e
ideológica; se é o conceito de formação social que abrange o modo de produção e a
superestrutura da sociedade; se numa formação social concreta podem estar presentes vários
modos de produção; se, neste caso, haveria um como dominante etc.36 Porém, avançar nestas
polêmicas nos faria desviar da análise pretendida neste momento da discussão bibliográfica.
Em função da referida preponderância à estrutura comercial, aos mercados e ao capital
mercantil, cunhou-se o epíteto de circulacionismo, conferido a Caio Prado Jr. e demais
autores que se apoiaram na perspectiva por ele desenvolvida. Foi utilizado por diversos
críticos, sendo Jacob Gorender o mais proeminente, sobretudo a partir clássico O escravismo
colonial, em que afirma:
Esta vinculação do escravismo colonial ao mercado mundial fez nascer as
chamadas teorias circulacionistas, cuja análise se concentra no modo de circulação
e por meio deste pretende explicar o modo de produção (quando simplesmente não
o omite). (...) A partir desse enfoque teórico hoje chamado de circulacionista, não
se vai mais longe do que foi o próprio Caio, ou seja, até a demonstração de que a
produção escravista era orientada para a exportação e subordinada à espoliação
colonialista. (...) Em última análise não é a circulação que desvenda a organização
da produção, mas o contrário.37
Neste sentido, Gorender aumenta o tom da crítica e considera uma “extremação do
enfoque circulacionista” a tese de Fernando Novais, segundo a qual “é a partir do tráfico
negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial”. Para ele, colocadas as coisas
em seus devidos termos, “verifica-se que o tráfico negreiro existiu por causa da escravidão,
por causa do modo de produção escravista colonial, e não o inverso”
38
. Aparentemente,
porém, Gorender não compreendeu que, em Novais, o tráfico negreiro está para a explicação
da escravidão africana colonial, assim como, em Marx, a posição da anatomia do homem está
para a explicação da anatomia do macaco. Não se trata, portanto, de uma relação de causa e
efeito, como parece sugerir, mas do método de investigação mais adequado para entender a
realidade.
Com base em sua crítica à linha de interpretação “que se concentrou no mercado e dele
fez a chave explicativa da economia colonial”, resultando na “sobreposição da esfera da
circulação às relações de produção”, Jacob Gorender propõe “a inversão radical do enfoque:
36
Cf. SANDRONI, Paulo et. al. Dicionário de economia. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 283.
37
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010, pp. 201-2 e
542.
38
Ibidem, p. 562.
28
as relações de produção da economia colonial precisam ser estudadas de dentro para fora, ao
contrário do que tem sido feito, isto é, de fora para dentro”. Deste modo, seria possível
“correlacionar as relações de produção às forças produtivas em presença e elaborar a categoria
modo de produção escravista colonial na sua determinação específica.” Para ele, haveria a
carência de “uma teoria geral do escravismo colonial que proporcione a reconstrução
sistemática do modo de produção como totalidade orgânica, como totalidade unificadora de
categorias cujas conexões necessárias, decorrentes de determinações essenciais, sejam
formuladas em leis específicas.” 39
Mas Bernardo Ricupero considera que seria uma tolice “caracterizar um modo de
produção específico o que é simplesmente uma situação particular no interior do capitalismo”
e, portanto, o “circulacionismo de Caio Prado, pelo menos no que se refere à Colônia, não é
inteiramente equivocado”. Afinal, como “o mais importante eram as relações econômicas
exteriores à sociedade brasileira”, como “o que realmente contava eram as relações da
Colônia com a Metrópole no quadro da economia mundial capitalista em constituição”, Caio
Prado Jr. teria mantido “o rigor ao se abster diante de um impasse teórico, a conceituação do
modo de produção colonial”.40
Em defesa de Caio Prado Jr. também se levanta Lincoln Secco, para quem seus críticos
(...) não atentaram para o fato de que, na periferia, o estudo da esfera da
distribuição é que conduz à totalidade. Isso porque o dinamismo do modo de
produção está no centro do sistema e é este que dita a lógica de reprodução global
sistêmica ou, nas palavras de Caio Prado Júnior, dá o “sentido da colonização”. As
áreas colonizadas, por definição, não são nacionais (mesmo no colonialismo
indireto a partir do fim do pacto colonial) e não possuem um modo de produção
autônomo; logo, porque partir da estrutura produtiva delas para explicar o todo?
(...) [Caio Prado Júnior] Não podia e não devia, portanto, dar atenção às formas de
produção escravistas como se elas fossem o alfa e o ômega do processo de
acumulação, pois esse processo se dá em escala mundial, e não nacional ou local. 41
Neste texto de 2008, Secco não deixa dúvidas de que adota para si o pensamento de Caio
Prado quanto ao estudo da esfera de circulação como o mais capaz de conduzir à totalidade.
Em 2010, porém, publica um artigo que parece dizer o contrário, ao afirmar que Prado Jr.
39
Ibidem, p. 53-5. Não pretendemos aprofundar uma análise crítica a respeito da pertinência ou não de buscar a
reconstrução de um modo de produção historicamente novo como totalidade orgânica da economia colonial, pois
isto escaparia em muito dos objetivos deste trabalho. Para uma abordagem favorável à análise caiopradeana,
vide: FERRARI, Andrés; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A escravidão colonial brasileira na visão de Caio
Prado Júnior e Jacob Gorender: uma apreciação crítica. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 32, n.1, p. 161-196, jun.
2011. Para uma síntese dos debates em torno das teses de Jacob Gorender, ver: MAESTRI, Mario. O escravismo
colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. In: GORENDER, Jacob. O escravismo colonial, p. 13-44.
40
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 154-5.
41
SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 177-8.
29
“rejeita a determinação simples, o economicismo (esta forma de idealismo), sem perder de
vista o primado ontológico do modo de produção na explicação da formação social.” 42
Infelizmente, carecemos de um maior desenvolvimento da questão, pois o autor do
artigo não explica nem fundamenta esta tese. Permanece a seguinte questão: se a explicação
de uma dada formação social em sua totalidade é obtida se for considerado “o primado
ontológico do modo de produção”, não seria necessário, para apreender as relações entre as
partes desta formação, investigar o modo de produção predominante na própria formação
social periférica – mesmo que ele não seja autônomo e que o pólo dinâmico da acumulação de
capital esteja no centro do sistema? Mesmo se admitirmos que as relações externas às da
colônia são, de fato, as mais importantes (o que por si só é polêmico), ao realizar deixar de
lado o referido “impasse teórico”, o autor não perde de vista elementos importantes para a
explicação da formação econômico-social da colônia? Afinal, é correto pensar que as
formações econômicas coloniais não teriam um modo de produção hegemônico no sentido
clássico de Marx, porque em última instância o domínio do sistema é exterior ao espaço
dominado?
43
Ou, na verdade, o capital comercial (expressão desse domínio), por estar
enquadrado na esfera da circulação e apenas servindo de veículos à troca de mercadorias,
existiria em qualquer formação social que produzisse mercadorias, exigindo o deslocamento
do estudo teórico do processo de circulação ao processo de produção? 44
Certamente, considerar a esfera da circulação como predominante no sistema colonial
não significa, necessariamente, negar a existência real de um modo de produção específico na
colônia; e a não realização de uma reflexão teórica e conceitual a respeito deste modo de
produção não implica, de imediato, negligenciar suas implicações no processo histórico, que
podem ser identificadas, observadas e descritas em uma formação social concreta. Contudo,
isso não nos impede de considerar que o emprego da abstração como instrumental
42
SECCO, Lincoln. Tradução do Marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de
Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010, p. 8-22 (grifo nosso). Guido Mantega apresenta posição
análoga: “A correta apropriação do marxismo por parte de Caio Prado Jr começou pela utilização de categorias
que não são exclusivamente econômicas nem políticas, como a de modo de produção”. MANTEGA, Guido.
Marxismo na economia brasileira”. In: SZMRECSÁNYI, Tamás; SUZIGAN, Wilson (orgs.). História
Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em História
Econômica, Editora da USP, Imprensa Oficial, 2002.
43
CARAVAGLIA, Juan Carlos. Modos de Produción em America Latina. México D.F.: Ediciones Pasado y
Presente, 1986, p. 14. Apud: RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil,
p.155.
44
ASSADOURIAN, Carlos Sempat. “Modos de producción, capitalismo y subdesarrollo em America Latina”.
In: ASSADOURIAN, Carlos Sempat et. al. Modos de producción em America Latina. Córdoba, Cuadernos
Pasado y Presente, 1973, p. 68. Apud: FERRARI, Andrés; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A escravidão colonial
brasileira na visão de Caio Prado Júnior e Jacob Gorender: uma apreciação crítica, p. 165.
30
metodológico para se pensar a produção colonial em sua essência poderia enriquecer ainda
mais a análise da dinâmica interna da colônia como realidade concreta e, consequentemente,
suas conexões com o capitalismo mundial em formação.45
Ainda assim, de toda esta discussão, o que mais nos interessa, por enquanto, não é
assumir uma posição definitiva na polêmica. Esta tarefa exigiria não apenas o prosseguimento
e aprofundamento de nossa pesquisa como, principalmente novos estudos com um enfoque
específico em tais questões, diverso ao que nos propusemos para a compreensão do conceito
de desenvolvimento no pensamento de Caio Prado Jr. Mais importante neste momento é, com
base nos elementos proporcionados pela discussão bibliográfica até agora desenvolvida, poder
nos aproximar de outra questão crucial para o pensamento econômico e histórico sobre o
desenvolvimento e que animou intensos debates internacionalmente e no interior da sociedade
brasileira nos anos 1950 e 1960: considerando-se a relação entre circulação e produção na
economia, qual a inserção do consumo, da demanda e do mercado interno no processo de
desenvolvimento?
45
Note-se, porém, que somente a partir de 1965, com a publicação de The poltical economy of slavery [A
economia política da escravidão], de Eugene Genovese, esta preocupação passa a ocupar os estudiosos do
escravismo moderno. Seria, portanto, anacrônico repreender as gerações anteriores e Caio Prado Jr. em particular
por não abordar a questão quando formulou sua interpretação histórica do Brasil nas décadas de 1930, 1940 e
1950.
31
3.
Consumo, demanda e mercado interno
Como vimos, o conceito de sentido da colonização exerceu forte influência no
pensamento social brasileiro. Por certo período, predominaram os estudos que analisavam a
realidade brasileira a partir de suas relações de subordinação e dependência no contexto
atlântico e mundial. Segundo José Roberto do Amaral Lapa, somente no último quartel do
século XX a questão do mercado interno colonial passa a ganhar a devida atenção dos
estudiosos:
Antes, preferia-se cientificamente não o considerar. Era como se não existisse.
Como se tivéssemos apenas uma economia de autoconsumo, desvaliosa sequer
como objeto de estudo, enquanto que a produção chamada nobre, inteiramente
voltada para o exterior, recebia e recebe todas as atenções e estímulos
institucionais, científicos e econômico-sociais. (...) Conhecer a organização do
comércio interno, a articulação ou simples desdobramentos entre produtores e
comerciantes, o financiamento e lucros, as firmas comerciais e manufatureiras, as
unidades de produção agrícola, o transporte e os atravessadores, a estocagem e
perecimento dos produtos, as crises e reações do mercado, a distribuição e
equilíbrio, a especulação e os preços, é o que nos falta. 46
Lapa explica que em todo o seu texto, publicado em 1982, permeia “um esforço no
sentido de rever a visão unívoca que o nosso conhecimento produziu até época recente”,
segundo a qual, o antigo sistema colonial “comportava um núcleo nervoso que chamava a si
todo o poder de decisão”, de onde “partiam as irradiações de imposição ou estímulo, às quais
competia às colônias apenas responder como se fossem uma massa amorfa, sem qualquer
sentido próprio, uma vez que o sentido só lhe era conferido pelo núcleo do qual e para qual
viviam”.47 O autor não cita Caio Prado Jr. mas é evidente que dialoga criticamente com a
matriz historiográfica que ele fundou e já tinha forte projeção à época, inclusive porque havia
recebido a pouco tempo um de seus aportes mais significativos com a publicação em 1979 do
livro Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1977-1808), de Fernando
Novais.48
Contudo, Maria Odila Leite da Silva Dias revela que Prado Júnior foi um precursor dos
estudos relativos ao mercado interno impulsionado pelo setor considerado inorgânico.
Uma tensão estrutural básica inspirou o plano do livro Formação do Brasil
Contemporâneo, onde o autor descreveu dois núcleos opostos da sociedade
46
LAPA, José Roberto do Amaral. O antigo sistema colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 39 e 44.
47
Ibidem, p. 8.
48
Com acréscimos, correções e revisões, trata-se de sua tese de doutoramento, defendida na USP em 1973.
32
colonial: o núcleo orgânico do sistema colonial de produção propriamente dito,
localizado na grande lavoura escravista do litoral e sua periferia inorgânica,
continuamente engrossada em número pelo crescimento vegetativo da população,
que se espalhava pelo imenso território, propiciando o povoamento interior do país
e garantindo a sua articulação sempre na dependência da grande lavoura. 49
Ela nos lembra, ademais, que este autor
(...) descerrou o tema dos marginalizados da História do Brasil, abrindo caminho
para futuras pesquisas sobre as relações sociais e as condições de vida destes
amplos setores marginalizados da sociedade colonial. Em sua obra, apontou o
método e os temas de pesquisa para o estudo das possibilidades de organização de
sobrevivência, que ainda não podia detectar na documentação de que dispunha.
Sugeriu as diretrizes para a elaboração das especificidades de sobrevivência e de
articulação social dos grupos marginalizados, dadas as condições de vida mais
soltas ou distanciadas da vizinhança avassaladora da grande lavoura. (...) Embora
no conjunto o historiador manifeste certo ceticismo quanto às formas de
organização possíveis do setor inorgânico, lançou o tema com uma multiplicidade
de implicações para estudos posteriores. 50
Tal procedimento impactou na compreensão de Caio Prado não somente sobre o passado
colonial brasileiro em sua totalidade, mas também na relação que mantém com seu devir.
Sem perder de vista as ligações com o sistema capitalista internacional em formação, ele
observava a relação de complementaridade e subordinação com o mercado interno, visto
como virtualidade de uma futura integração nacional. O nacional assumiria uma conotação
econômica, a eventual satisfação das necessidades básicas do povo, e se referiria a uma
organização da produção que, opostamente à Colônia, teria por finalidade o bem-estar da
população brasileira.51 A construção da nação, como expressão do tempo histórico no qual seu
significado foi concebido e utilizado, seria a construção do Estado-nação, uma delimitação de
espaço e uma integração de regiões em função do triplo movimento “produção-circulaçãoconsumo”, que institui e é instituído pela industrialização moderna. Isso teria significado a
primazia do mercado na esfera econômica, sendo o espaço econômico da nação moderna
construído internamente. 52
49
SILVA DIAS, Maria Odila Leita da. Impasses do inorgânico, p. 380.
50
Ibidem, p. 404.
51
Cf. Ibidem, p. 385 e 390. “Economia colonial e economia integrada nacionalmente, eis o binômio que define
os limites (passado e futuro) do capitalismo periférico”. SILVA, Sérgio. A crítica ao capitalismo real. In:
D’INCAO, Maria Angela. História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 304.
52
Cf. D’ALESSIO, Marcia Mansor. História e Historiografia: inquietações em torno do conhecimento histórico.
2011, Tese (Livre Docência em História) Departamento de História da EFLCH da Universidade Federal de São
Paulo, Guarulhos, p. 83.
33
Neste sentido, e reconhecendo que para Prado Júnior um mercado interno integrado
seria a base de qualquer economia nacional, Francisco Luiz Corsi nos apresenta uma
interessante síntese da questão:
O problema da integração do mercado não é apenas de integração regional, mas
sobretudo de integração do grosso da população, que vive à margem da vida
nacional em termos sociais, econômicos e políticos. É essa incapacidade de
integração do conjunto da população que estaria obstando a constituição de um
sistema nacionalmente integrado e manteria vivo o passado colonial.53
Segundo Bernardo Ricupero, se há no sistema colonial brasileiro uma articulação entre seus
elementos constitutivos, que cria um todo social orgânico, existe também uma desarticulação entre a
produção, voltada para fora, e o consumo da maior parte da população, elemento inorgânico do
sistema. Em contraste com os países capitalistas centrais, onde a produção, de forma geral, criou o
consumo, no Brasil e em países como o nosso, havia uma desarticulação entre produção e mercado
interno, por ter sido o externo o mercado principal. Para ele, Caio Prado Júnior pensa a relação
entre Colônia e Nação em uma perspectiva dialética, ou seja, não apenas de oposição.
Reconhece, portanto, que apesar de todos os seus problemas e gostando disso ou não, foi no
passado colonial brasileiro que se inscreveram os fundamentos da nacionalidade e seria a
partir dele que se poderia seguir em direção contrária.54
Com isso, Caio Prado Jr. identificaria justamente no grupo menos afetado pela grande
exploração os fundamentos para a constituição de uma nação:
Em linhas gerais, Caio sugere que o que é defeito na Colônia pode converter-se em
qualidade na Nação. Até porque a segunda situação deve ser a negação da primeira.
Portanto, é naquilo que não pertence inteiramente ao corpo da colônia, seu setor
inorgânico, que deve-se procurar as bases para a futura nacionalidade brasileira. Se
o que caracterizou a vida da colônia foi estar toda ela voltada para fora, para o
mercado externo, a Nação deve justamente ter como fundamento produzir para
dentro, para o mercado interno. Ora, os grupos ativos nos setor inorgânico, por
escolha ou por falta dela, agem direcionados para o mercado interno. 55
53
CORSI, Francisco Luiz. Caio Prado Júnior e a questão do desenvolvimento. In: MAZZEO, Antonio Carlos;
LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez,
2003, p. 140.
54
Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 140, 155 e 133-4. Ao
assumir a Colônia como um pressuposto para a construção da Nação, Prado Jr. nos mostra que assimilou uma
célebre passagem de Marx: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem
sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” MARX,
Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: idem, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997, p. 21.
55
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 142.
34
Lincoln Secco não apenas corrobora com essa leitura em suas linhas gerais como considera
que “a aporia do inorgânico que precisa fazer-se portador de uma nova economia (voltada ao
interior e não ao exterior)” é um dos principais problemas legados pela obra de Caio Prado. 56
Sendo assim, podemos supor que a importância dada ao setor inorgânico na construção
da nação no processo histórico corresponde, em grande medida, à importância dada ao
mercado no desenvolvimento econômico. De acordo com Marcia R. Victoriano, Caio Prado
Júnior considera que a imobilização do capital na sua forma-mercadoria quando não é vendida
compromete a inversão do ciclo produtivo do capitalismo, o que se explica pelo subconsumo
latente no funcionamento do sistema capitalista. A autora considera que, ao inserir a questão
do subconsumo das massas trabalhadoras como principal entrave para o desenvolvimento, o
autor polemiza com os economistas keynesianos, que propugnam a transformação do Estado
no grande consumidor capaz de compensar com seus gastos o subconsumo das coletividades
que vivem em regime capitalista. Para Prado Jr., o consumo produtivo estatal não seria capaz
de compatibilizar de forma duradoura e equilibrada a potencialidade da produção moderna
com o consumo, pois o subconsumo das massas trabalhadoras é que estaria na raiz da
desarticulação entre produção e consumo. 57
Todavia, nota João Antônio de Paula, o marxismo de Caio Prado tem uma explícita
vocação eclética, pois não hesitava em reconhecer certa validade – limitada, é certo – às teses
keynesianas e estaria adotando o ponto de vista da centralidade do mercado interno no
processo de desenvolvimento econômico. Isso teria significado inserir certas teses
keynesianas na interpretação marxista da realidade econômica brasileira, como a do
predomínio da categoria da demanda.58 Para fundamentar sua interpretação, João Antônio de
Paula apresenta uma passagem significativa de Diretrizes para uma Política Econômica
Brasileira:
56
SECCO, Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista Marxista – Núcleo de
Estudos d’O Capital. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 2010, p. 20.
57
Cf. VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p.
29-30. Cf. PRADO JÚNIOR. Caio. Esboço dos fundamentos da teoria econômica. São Paulo, Brasiliense, 1961,
p. 109-38. Não podemos deixar de questionar se nas colocações de Caio Prado sobre o subconsumo presentes no
Esboço dos fundamentos da teoria econômica haveria realmente uma “nítida referência às teses de Ruy Mauro
Marini”, como pretende Victoriano. A hipótese plausível não seria justamente a inversa, tendo em vista que
enquanto Prado Jr. publica em 1957, Ruy Mauro Marini estava apenas concluindo seus estudos de Ciências
Sociais na Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap), da Fundação Getúlio Vargas (FGV)? Cf.
TRASPADINI, Roberta; STÉDILE, João Pedro (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão
Popular, 2005, p. 53.
58
DE PAULA, João Antônio. Op. cit., p.6-7.
35
Embora as condições do Brasil sejam tão profundamente distintas daquelas para as
quais teorizaram e indicaram os economistas da “revolução keynesiana”, essa
“revolução” e a autoridade que traz no seu bojo podem servir entre nós pelo menos
para facilitarem o deslocamento do ponto de vista de muitos economistas e
orientadores da política econômica do país, da questão da produção para o
consumo; o que no Brasil, e nas condições atuais é particularmente importante
(...).” 59
Por sua vez, Cesar Mangolim de Barros, apesar de não traçar a mesma identificação de
Prado Jr. com algumas teses keynesianas, considera que ele teria uma “fixação
mercadocêntrica”. Isto o impediria de perceber que não é a demanda do consumidor que
impulsiona o desenvolvimento do capitalismo. O autor não teria se dado conta de que mesmo
mantendo vastas parcelas da população em gritantes níveis de pobreza e miséria, o
capitalismo no Brasil desenvolve-se criando tanto um mercado interno para as camadas altas e
médias da população como um mercado intercapital que propiciavam as condições para a
acumulação e reprodução de capital. Neste diálogo crítico, Barros chega a dizer que a
integração do grosso da população não se daria apenas pelo desenvolvimento puro e simples
do capitalismo60, mas consideramos descabido imputar a Caio Prado Jr. uma visão que
remonta aos primeiros textos da CEPAL, pois ele foi um dos pioneiros e principais críticos
dos que costumavam depositar grandes expectativas na industrialização para a superação do
subdesenvolvimento.
Ademais, Barros parece sugerir que Caio Prado Jr. era adepto das teses estagnacionistas,
muito em voga no pensamento econômico brasileiro a partir da crise monetário-financeira em
1961-62 e da recessão iniciada em 1963, que consideravam o Brasil condenado a permanecer
em um longo período de estagnação econômica caso não resolvesse seus problemas de
elevada concentração de renda que restringia o mercado interno de massas, o que exigiria a
realização das aclamadas reformas de base, com destaque para a reforma agrária. Guido
Mantega e Maria Moraes consideram que a quase unanimidade entre os setores de oposição
ao “estabilishment” quanto às graves consequências econômicas que trariam o permanente
estrangulamento do mercado interno deixa entrever a aceitação geral das teses
subconsumistas, desenvolvidas na virada do século por Rosa Luxemburgo e por vários
reformistas que, de ângulos variados, procuraram fazer a crítica aos esquemas marxistas de
reprodução do capital:
59
PRADO JÚNIOR, Caio. Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1954, p.
197. Apud: DE PAULA, João Antônio. Caio Prado Júnior e o desenvolvimento econômico brasileiro, p. 6.
60
Cf. BARROS, Cesar Mangolim. Desenvolvimento e revolução no pensamento de Caio Prado Júinor. Ipech
Digital, n. 1, 2007.
36
A grosso modo, as teses subconsumistas afirmam que a produção capitalista estaria
fadada a enredar-se numa contradição fundamental: à medida em que se expande às
custas da pauperização da classe operária, a produção capitalista, mesmo tendo
lucros crescentes, priva-se do principal mercado consumidor de seus produtos. (...)
[No caso do] subconsumismo no Brasil, essa tese baseava-se na falsa premissa de
que as classes populares constituíam o grosso do mercado consumidor, quando na
verdade este era formado, em grande parte, pela própria classe capitalista (seja sob
a forma de demanda de bens de capital, seja sob a forma de demanda de consumo
duráveis) e pela parcela mais abastada da classe média. 61
Fica visível que, além da discussão sobre o lugar ocupado pelo consumo e a demanda
(sobretudo a demanda efetiva, também chamada de demanda solvente62) no processo de
desenvolvimento econômico, questionava-se a caracterização que Caio Prado e outros autores
faziam do mercado consumidor. Mas cabe lembrar que, escrevendo no final dos anos 1970,
Mantega e Moraes tinham a seu favor a possibilidade de analisar empiricamente o período
que ficou conhecido como o “milagre brasileiro”, entre 1968 e 1973, no qual o país vivenciou
uma forte retomada no crescimento, com o predomínio da acumulação industrial, ao mesmo
tempo em que promoveu o achatamento do poder de compra do salário mínimo.
No livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito entre 1966 e 1967,
quando a economia brasileira ainda se encontrava em recessão, Fernando Henrique Cardoso e
Enzo Faletto defenderam a ideia de que era possível o capitalismo se desenvolver no Brasil
mesmo sem a realização das reformas de base e mantidos a concentração de renda e um
restrito mercado interno de massas, pois a realização do capital dependeria, em grande
medida, do consumo produtivo das próprias empresas. 63
Porém, a crítica aos pressupostos do estagnacionismo já era feita antes mesmo da crise
monetário-financeira de 1961. Na “Tribuna de Debates” do V Congresso do PCB, publicada
no Jornal Novos Rumos, João Amazonas dizia que “a burguesia no Brasil está vinculada direta
ou indiretamente com o latifúndio, sendo difícil encontrar o industrial ‘puro’, livre dos laços
com a terra ou com os bancos ligados ao monopólio da terra.” Por este motivo, a burguesia
mais poderosa “vai conciliando com o imperialismo, se unindo a ele, progredindo à custa da
inflação que recai penosamente sobre o povo”. As modificações recentes da economia, ou
seja, a industrialização dos anos imediatamente anteriores, não afeta “no domínio do capital
61
MANTEGA, Guido; MORAES, Maria . A economia política brasileira em questão (1964-1975). São Paulo:
Editora Aparte, s/d, p. 16.
62
“Demanda de bens e serviços para a qual existe capacidade de pagamento. Na economia de mercado, a
demanda solvente é a única que conta, embora seja inferior à demanda corrente das necessidades do conjunto da
população.” SANDRONI, Paulo et. al. Dicionário de economia, p. 105.
63
Cf. CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina:
ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
37
monopolista norteamericano que, ao contrário, tem conseguido aumentar a exploração do
povo brasileiro”. Daí ser equivocado “pensar que as contradições entre o desenvolvimento do
capitalismo e o monopólio da terra são antagônicas, como afirmam as Teses”. Para ele, “o capitalismo,
seguindo o caminho prussiano, pode se desenvolver no campo, conservando o latifúndio”.64
De qualquer maneira, nesta discussão sobre como Caio Prado pensava o
desenvolvimento e vislumbrava suas perspectivas no Brasil, é preciso considerar também a
influência das idéias dualistas e a noção de desenvolvimento desigual e combinado.
64
AMAZONAS, João. Uma Linha Confusa e de Direita. Novos Rumos, Rio de Janeiro, n. 66, 03 a 09 de jun.
1960, Tribuna de Debates, p. 06. Mais adiante abordaremos a questão do “caminho prussiano”.
38
4.
Dualismo e desenvolvimento desigual e combinado
Segundo Lincolns Secco, Caio Prado Jr. não foi o primeiro a perceber a convivência de
diferentes tempos históricos no Brasil, a coexistência do arcaico e do moderno, pois foi
antecedido por Oliveira Viana, Euclides da Cunha e outros. Porém, foi ele que, por refletir de
modo original a respeito esta imbricação do presente com o passado, tirou daí consequências
fecundas para se pensar a sociedade brasileira e, especificamente, seu desenvolvimento. Secco
chega a dizer que, para Prado Júnior, o Brasil sempre foi pobre e rico, desenvolvido e atrasado
dependendo do ciclo econômico que observamos no tempo. Em seguida faz a seguinte
citação: “(...) infância, juventude, adolescência, maturidade, velhice e senilidade encontram-se
presentes em nosso país e em sua economia, hoje como em qualquer outra época do
passado”.65
Como decorrência desta sua compreensão da realidade brasileira, concebeu inclusive
uma orientação metodológica muito peculiar para pesquisar a história do país, ressaltada em
diversos textos sobre Caio Prado Jr., e a seguiu na prática ao longo de sua vida: como o
passado poderia ser visto no presente com os próprios olhos, para ele, seria “muitas vezes
preferível uma viagem pelas diferentes regiões, à compulsa de documentos e textos”66. Tal
originalidade também seria perceptível nas críticas que fez às ideias que figuravam o arcaico
em oposição ao moderno – muito presente em um dos clássicos do dualismo, Os Dois Brasis,
de Gustave Dalembert –, uma vez que destacava desta relação a sua complementaridade. 67
Semelhante leitura tem Bernardo Ricupero, que, assim como Márcia R. Victoriano, cita
passagens de Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, reconhecendo em Caio
Prado a noção de que há, no Brasil, o convívio entre situações características de tempos
históricos variados, acumulando-se lado a lado formas econômicas de contraste chocante que
pertenceriam a épocas muito afastadas entre si e fazendo com que nossa história fosse, em
muitos casos, uma atualidade: em não havendo processos de ruptura com as formas sociais e
econômicas básicas, o tempo se projetaria no espaço.
65
PRADO JUNIOR, Caio. Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira. São Paulo: Gráfica Urupês,
1954, p. 68. Apud: SECCO, Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior. Mouro: Revista
Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital, p.11.
66
Ibidem, p. 30. Apud: IGLÉSIAS, Francisco. Um historiador revolucionário. In: IGLÉSIAS, Francisco (org.).
Caio Prado Júnior – História. São Paulo: Ática, 1982, p. 35.
67
Cf. SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Impasses do inorgânico, p. 403-4.
39
Mas ao invés de extrair daí a ideia de que os diferentes setores e grupos necessariamente
se opõem, como pensavam os dualistas e comunistas latinoamericanos, Prado Júnior veria a
relação entre os setores que produzem para o mercado interno e os voltados para o mercado
externo não apenas como de oposição, mas também como de complementaridade. Assim,
apesar de falar em “dualidade de setores ou sistemas econômicos”, o autor não seria dualista,
pois, considerando-os “imbricados um no outro”, ele trabalharia com a noção de pares opostos
dialeticamente unidos, não simplesmente excludentes entre si como pressupunham os
dualistas. 68
Por outro lado, Marcos Antônio M. da Rocha, apoiando-se em Plínio de Arruda
Sampaio Jr., atribui ao autor uma noção de dualidade que,
diferentemente da utilização usual do conceito no debate econômico, se define
como a articulação interna da economia colonial em transição, ou seja, a existência
de um setor que se forma para o fornecimento de gêneros ao centro capitalista e um
segundo setor estruturado a partir das necessidades do setor exportador, isto é,
voltado para dentro.69
Em seguida, Rocha apresenta uma passagem de História e desenvolvimento que atua
como forte contraponto à leitura de Bernardo Ricupero:
Em síntese, a presente fase do processo histórico brasileiro se caracteriza, vimo-lo
no correr do presente trabalho, pelas contradições que resultam fundamentalmente
de uma dualidade de setores ou sistemas econômicos imbricados um no outro: um,
o tradicional, centrado na produção de gêneros primários destinados à exportação;
o outro, emergente desse e constituído em seu seio, mas que se volta para o
mercado interno, e tem por base essencial a indústria. Trata-se de um dualismo,
porque essencialmente ambos os setores se caracterizam a parte um do outro e
não se recobrem. Isto é, cada um deles tem sua orientação comercial própria e
exclusiva – um para o mercado externo, outro para o interno –, e somente se
confundem e sobrepõem secundária e subsidiariamente; e até mesmo, muitas
vezes, apenas excepcionalmente.70
Na concepção dialética de unidade dos contrários, neste caso, Caio Prado parece privilegiar a
relação de conflito em detrimento da colaboração.
Em relação a esta questão, Carlos Nelson Coutinho apresenta, pelo menos em uma
primeira aproximação, uma posição dúbia. Por um lado, afirma ter Caio Prado combatido com
acerto a ideia presente no dualismo cepalino e naquele implícito nas propostas do PCB, de
68
Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 173-8.
69
ROCHA, Marcos Antônio M. da. Desenvolvimento nacional, estrutura e superestrutura na obra de Caio Prado
Júnior, p. 270.
70
PRADO JÚNIOR, Caio. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática
do desenvolvimento brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1999, p. 131. Apud: ROCHA, Marcos Antônio M. da.
Desenvolvimento nacional, estrutura e superestrutura na obra de Caio Prado Júnior, p. 271 (grifos nossos).
40
que supostos “restos servis” constituíam óbices ao desenvolvimento do modo de produção
capitalista no país. Por outro, identifica o autor com o paradigma segundo o qual a passagem
definitiva do Brasil para a “modernidade”, seu desenvolvimento, estaria bloqueado pelo
“atraso”.71 Contudo, ao destacar uma significativa passagem de A Revolução Brasileira,
Coutinho pende a balança para o lado da crítica ao dualismo:
(...) as sobrevivências capitalistas nas relações de trabalho da agropecuária
brasileira, longe de gerarem obstáculos e contradições opostas ao desenvolvimento
capitalista, têm pelo contrário contribuído com ele. O “negócio” da agricultura – e
é nessa base que se estrutura a maior e principal parte da economia rural brasileira
– não se mantém muitas vezes senão graças precisamente aos baixos padrões de
vida dos trabalhadores, e pois ao reduzido custo da mão-de-obra que emprega. 72
Aqui, porém, o autor privilegia a relação de colaboração em detrimento do conflito73. Assim,
por perceber que a agricultura brasileira era capitalista e, portanto, não se constituía como um
entrave ao desenvolvimento econômico74, e por ressaltar que os baixos custos de reprodução
da força de trabalho favorecem o desenvolvimento capitalista, Caio Prado Júnior antecipa a
crítica de Francisco de Oliveira ao pensamento dualista75 e as teses de superexploração dos
trabalhadores de Rui Mauro Marini.
Em 1984, Guido Mantega tinha perspectiva diferente, pois considerava que “Marini
procurou dar maior consistência teórica a uma questão apenas sugerida por [André Gunder]
Frank, qual seja, a da superexploração da força de trabalho”. 76 Ora, Gunder Frank, em “A
agricultura brasileira: capitalismo e mito do feudalismo”, publicado na Revista Brasiliense,
edição 51, janeiro/fevereiro de 1964, ainda não sugeria nada que pudesse nos remeter à tese
da superexploração da força de trabalho. Ela passa a ser fazer presente somente a partir de sua
principal obra, Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina, originalmente
publicada pela Monthly Review Press, em 1967, em Nova Iorque. Portanto, Caio Prado Jr.
pode ser considerado precursor desta “sugestão”. Mas, tempos depois, em um trabalho
71
COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo. p. 121 e 128.
72
PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 97-8. Apud: COUTINHO,
Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 121. No parágrafo anterior Prado Jr. desenvolve
mais o problema, mas isto será objeto de análise na segunda parte de nosso trabalho.
73
Para Ricupero, a aparente ambigüidade na discussão de Caio Prado Jr. a respeito do capitalismo brasileiro
refletem as próprias ambigüidades do capitalismo brasileiro. Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a
nacionalização do marxismo no Brasil, p.181.
74
Cf. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico
desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 203.
brasileiro:
o
75
ciclo
ideológico
do
Cf. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica á razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2011. O ensaio
“A economia brasileira: crítica à razão dualista”, foi publicado pela primeira vez em Estudos Cebrap, n. 2, 1972.
76
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 261.
41
apresentado ao I Congresso Brasileiro de História Econômica, realizado na USP em setembro
de 1993, Mantega parece reconhecer isso: atribui a Prado Júnior a hipótese de que as “formas
mais primitivas de exploração do trabalho” e o decorrente “barateamento da mão-de-obra”
contribuíam para o avanço do desenvolvimento capitalista ao reduzir custos e alavancar a
acumulação. Ademais, considera que essa idéia seria “generalizada e aprofundada na década
de 1960 por Rui Mauro Marini e Theotônio dos Santos”.77
Com base no entendimento de que Caio Prado não vê antagonismo, mas sim
colaboração entre os diferentes setores da economia brasileira, alguns autores passaram a
considerar que ele é próximo ou faz uso da lei do desenvolvimento desigual e combinado,
formulada por León Trotsky a partir de suas observações dos países considerados atrasados.
Neste particular, é curioso que Ricupero desenvolva sua reflexão a respeito da relação
de complementaridade entre os setores econômicos ao longo de seu livro sem debater se
Prado Jr. utiliza ou se aproxima da categoria de desenvolvimento desigual e combinado, mas
afirme, no penúltimo parágrafo da obra: “Assim, dentro do desenvolvimento desigual e
combinado que caracteriza o capitalismo, Caio Prado notou que o que marca países como o
nosso que estão entre a ‘civilização e a barbárie’ e que não são, portanto, nem Oriente nem
bem Ocidente, é esse convívio promíscuo entre moderno e arcaico, que se explica pela forma
como o moderno se utiliza aqui do arcaico.”78 Considerando que a questão tem implicações
teóricas e políticas importantes, que nos remete à relação de nosso autor com o trotskismo,
Ricupero poderia ter deixado mais claro se adota a categoria para si ou se a atribui ao
pensamento caiopradiano.
Felipe Demier, por outro lado, considera que “de certa maneira, o historiador brasileiro,
ainda que sem fazer uso explícito da lei do desenvolvimento desigual e combinado, confirmou
empiricamente em suas pesquisas sobre o Brasil a validade de uma teoria que o
revolucionário russo propusera em suas reflexões sobre a historicidade de outros países
atrasados”. Demier nota que “Michael Löwy, ao trabalhar com as produções teóricas de Caio Prado
Jr. e desses intelectuais latino-americanos [que atribuíam uma particularidade ao processo histórico
no continente] alocou-as ao lado das de notórios adeptos da IV Internacional”.79 Por sua vez,
Victoriano explica a questão da seguinte maneira:
77
Idem. Marxismo na economia brasileira, p. 159.
78
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 235.
79
DEMIER, Felipe. A lei do desenvolvimento desigual e combinado de León Trotsky e a intelectualidade
brasileira: breves comentários sobre uma relação pouco conhecida. Outubro, São Paulo, n . 16, 2º semestre 2007,
42
(...) à falta de uma sofisticação conceitual, o autor utiliza o recurso da ênfase no
nível descritivo do problema, que acaba transbordando para um patamar
explicativo; é assim que se pode abstrair de suas repetidas menções e descrições da
desintegração, desconcexão, descontinuidade do desenvolvimento econômico
colonial e nacional a colocação da categoria analítica do desenvolvimento desigual
e combinado, como o que articula e sintetiza toda sua reflexão sobre a questão. 80
Nesta passagem, a socióloga considera a descrição do processo histórico como uma
alternativa para suprir uma suposta “falta de sofisticação conceitual”, não levando em conta
que, para Caio Prado, o fundamental é, na verdade, submeter os conceitos à realidade concreta
observada e descrita.
Para ela, os nexos constitutivos do problema do desenvolvimento econômico em termos
amplos não tem em Trotsky qualquer referência explícita ou implícita feita por Caio Prado Jr.
Neste campo, sua interlocução se deu com os chamados teóricos anticíclicos, keynesianos, e
com os teóricos do desenvolvimento e da dependência (marxistas e cepalinos). Contudo,
mesmo não nomeando explicitamente a categoria do desenvolvimento desigual e combinado,
todo o seu conteúdo lógico e histórico estaria presente na abordagem caiopradiana. Assim,
Caio Prado Jr. encararia o problema das relações entre passado e presente como
caracterizadas por um trânsito do país pela unidade e pela dispersão, integração de
desintegração, totalidade e fragmentação. Seu pensamento estaria cimentado pelo signo da
desigualdade, com o resgate minucioso e criativo das especificidades do dilema do
desenvolvimento brasileiro, de caráter cíclico e desconexo.81
Percebe-se que parte dos intérpretes de Prado Júnior tem dificuldades em lidar com a
ausência de expressão textual dos conceitos e categorias de que o autor se utiliza para analisar
a realidade histórica, decorrendo daí abordagens variadas e mesmo antagônicas. No presente
tópico, elas vão desde as que o consideram inserido no dualismo hegemônico no período até
aquelas que o identificam com as análises de correntes trotskistas.
De qualquer maneira, ainda fica em aberto a seguinte questão: como Caio Prado Jr.
compreende os caminhos tomados pelo capitalismo no Brasil em seu processo de
desenvolvimento?
p. 94 e 103-4. Ver também LÖWY, Michael (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos
dias atuais. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 40-43.
80
VICTORIANO, Marcia R. A questão nacional em Caio Prado Jr.: uma interpretação original do Brasil, p. 40.
81
Cf. Ibidem. p. 40
43
5.
Vias de desenvolvimento capitalista no Brasil
É relativamente influente a interpretação de que Caio Prado Jr. considera o Brasil como
capitalista desde o início da exploração colonial. Isso apesar da opinião de que ele não
costumava fazer definições categóricas, como já vimos. O enfoque do capitalismo desde as
origens encontra-se, por exemplo, em Guido Mantega. Em sua opinião, Caio Prado e Gunder
Frank tendiam a qualificar o modo de produção predominante no Brasil colonial “como modo
de produção capitalista desde praticamente o descobrimento”. Daí extrai a tese de que para
Caio Prado existiria na colônia um “primitivo capitalismo comercial”. Segundo Mantega, o
autor considera que “capitalismo colonial”, por não ter encontrado aqui “modos de produção
estabelecidos como na Ásia”, teria implantado no Brasil
(...) um sistema colonial mercantil, que só não seria exatamente capitalista por
causa da utilização da mão-de-obra escrava. Note-se que para ele desde o
escravismo já estariam dadas praticamente todas as condições do capitalismo ou o
conjunto de seus elementos estruturais, excluindo, assim, a possibilidade de
existência de modos de produção pré-capitalistas.82
Para demonstrar a validade de suas teses, Mantega cita Prado Júnior:
O fato é que com a substituição definitiva e integral do trabalho escravo pelo livre,
acharam-se presentes no Brasil, o conjunto de elementos estruturais componentes
do capitalismo. Esse sistema não representa, em última instância, mais do que o
termo final do processo de mercantilização de bens e das relações econômicas, o
que se completa precisamente quando esse processo atinge e engloba a força de
trabalho transformada em simples mercadoria que se compra e vende. É isso,
justamente, que se verifica no Brasil com a abolição, pois os demais elementos
estruturais da economia brasileira já eram de início de natureza essencialmente
mercantil.83
Sua conclusão é de que a natureza estrutural da grande exploração, segundo Caio Prado,
não foi afetada pela substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, uma vez que já seria
capitalista em sua essência, mesmo quando baseada em relações de produção escravistas.
Mantega diverge de tal perspectiva caiopradeana, pois “sugere similitude entre trabalho
escravo, com remuneração in natura, e trabalho livre, cuja remuneração também se dá,
segundo ele, muitas vezes, em formas não-monetárias”. Assim, Caio Prado dispensaria um
82
83
MANTEGUA, Guido. A economia política brasileira. p. 240-1.
PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966, p. 148. Apud: MANTEGA,
Guido, A economia política brasileira, p. 242.
44
tratamento genérico ao “trabalhador da grande exploração rural, pouco importando se for
escravo ou livre.”84
Assim como Guido Mantega, Cesar Mangolim de Barros se coloca como um crítico de
tal abordagem: “dar à formação da Colônia um caráter capitalista é forçar um pouco a
história”. Se apóia em João Quartim de Moraes para demonstrá-lo:
(...) o equívoco, do ponto de vista do marxismo, fica patente na identificação de
‘sistema mercantil internacional’ a ‘sistema internacional do capitalismo’. O
caráter mercantil da produção, isto é, o predomínio da produção para a troca não se
confunde com o caráter capitalista das relações de produção, que se baseiam no
intercâmbio do trabalho vivo com o salário. Ao confundi-los, para sustentar que a
economia brasileira é capitalista desde as origens, o ‘mercadocêntricos’ privaramse da possibilidade de explicar a desigualdade de desenvolvimento entre os países
que permaneceram submetidos ao jugo colonial e os que dele se emanciparam.85
Quem talvez apresente esta interpretação do pensamento de Caio Prado de modo mais
enfático é Luiz Carlos Bresses Pereira. Para ele, a análise do autor deu origem ao que
denominou de “interpretação funcional capitalista” da sociedade brasileira: “Era uma
interpretação claramente ressentida. O Brasil passava a ser agora capitalista desde Martim
Afonso de Sousa. E o capitalismo era um só, sem fraturas, sem descontinuidades.” 86
Mas é Sedi Hirano que busca desconstruir de maneira sistemática a tese do capitalismo
na formação colonial brasileira. Escrevendo em 1986, diz que esta idéia de um “Brasil
colonial já capitalista (desde a sua origem) foi esboçada por Caio Prado Júnior, há mais de
quarenta anos”. Para ele, este tipo de análise faz deslocar o conflito teórico para o espaço da
realização peculiar do modo de produção capitalista no Brasil colonial. Ele se utiliza de uma
citação dos Grundrisse, de Marx, para dizer que em tal interpretação é “incluída no termo
capital muita coisa” que, “aparentemente, não pertence ao conceito”. E prossegue:
Na medida em que extrai seus argumentos da esfera da circulação simples de
“capital”, acaba embutindo, sem mais, as determinações da esfera da circulação
ampliada do capital. Elide-se, desta maneira, do modo de produção considerado
capitalista a discussão referente à produção de mais valia, a qual só pode ser gerada
84
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, p. 244.
85
MORAES, João Quartim de. O programa nacional-democrático: fundamentos e permanência. In: MORAES,
João Quartim de; DEL ROIO, Marcos (org.). História do Marxismo no Brasil. Vol. 4. Campinas: Editora
Unicamp, 2000, p. 151-209. Apud: BARROS, Cesar Mangolim. Desenvolvimento e revolução no pensamento de
Caio Prado Júnior, p. 9-10.
86
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. De volta ao capital mercantil. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História
e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 287-8.
45
no processo de produção capitalista resultante da utilização do trabalho livre
assalariado, contratado, na esfera da circulação, pelo capitalista. 87
Segundo Hirano, uma das variantes da referida tese, assumida por Fernando Novais, privilegia
a produção para o mercado mundial, deslocando o lócus teórico para a esfera da circulação,
que seria classicamente conhecida como capitalismo mercantilista e assumida como uma
etapa já capitalista. Porém, compreende que “optar por essa colocação teórica equivale a
aceitar a etapa de acumulação primitiva originária de capital como sendo, embora não o seja,
capitalista”. Baseando-se agora em O Capital, afirma que na concepção marxista a
acumulação capitalista é o resultado da produção e da reprodução ampliada do capital,
centrado na esfera da produção, onde se produz valor por meio da exploração do trabalho
livre e assalariado, que resulta na acumulação capitalista ao se realizar na esfera da circulação.
Para ele, “o capital-dinheiro acumulado na esfera da circulação, por ser originário/primitivo, é
uma acumulação não-capitalista de capital, portanto, pré-capitalista.” 88
Por sua vez, Lincoln Secco nos mostra que os contemporâneos interlocutores
comunistas de Caio Prado, adeptos da tese feudal, também polemizavam com sua concepção
de que não existiria uma formação pré-capitalista no Brasil colonial. Contudo, sempre
tratavam de incluir o autor de História Econômica do Brasil (1500-1820), Roberto Simonsen,
no alvo das críticas, indicando que ambos seriam defensores da idéia de um capitalismo
colonial. Porém, Secco busca demonstrar como a perspectiva caiopradeana se justifica. Diz
ele que a influência da crise de 1929 e dos impasses do capitalismo financeiro quando Caio
Prado Jr. escreveu sua obra teriam lhe permitido “dar ênfase ao capital como fluxo de riqueza
que se reproduz e se realimenta de diferentes formas de produção em diversas partes do
globo. Para ele, o capital poderia ser ‘tranquilamente escravista’.” 89
Contudo, a perspectiva de Bernardo Ricupero nesta questão é diferente. Para ele, Caio
Prado Jr. evita equívocos como o de considerar o Brasil como capitalista desde sempre, pois
nunca disse que a colônia era “capitalista desde Martim Afonso de Souza”, nem que era uma
“economia colonial capitalista”, justamente por saber que o que caracteriza um modo de
produção é o tipo de relações de produção que prevalecem em uma formação econômicosocial concreta.90 Podemos observar, aqui, uma clara oposição à interpretação de Mantega, em
87
HIRANO, Sedi. Formação do Brasil Colonial: Pré-Capitalismo e Capitalismo. São Paulo: Editora da USP,
2008, p. 20.
88
Ibidem, p. 24-5.
89
SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 183-6.
90
Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 154 e 182.
46
especial, pois é quem mais problematiza o lugar das relações de produção no pensamento de
Caio Prado. Enquanto, Ricupero nega que Prado Jr. considerava a colônia como capitalista, a
leitura que Mantega desenvolve contribui, inclusive, para se atribuir a Prado Jr. a idéia de que
existia no Brasil um “capitalismo incompleto”. Virgínia Fontes fundamental tal opinião da
seguinte maneira:
O capitalismo, desde sempre presente na sociedade brasileira (...), seria incompleto
por ser incapaz de oferecer o volume de bens de consumo necessários e por não
assegurar uma sociabilidade civilizada. (...) Caio Prado Jr., exatamente o autor que
apontou, antes de muitos outros, não apenas a existência do capitalismo no Brasil,
como para sua precocidade, retomava, por outro viés, a concepção de um
capitalismo ainda a completar-se, quer por sua autonomização frente aos países
centrais, quer pela interiorização do cosumo e sua extensão às massas populares,
quer, ainda, pela generalização de uma condição de vida mais próxima dos países
centrais. A própria existência precoce, no caso brasileiro, se traduziria em sua
permanente impossibilidade de concretizar-se. 91
Assim, as dificuldades para o desenvolvimento ao longo do século XX “não residiriam na
existência de restos feudais ou pré-capitalistas, posto que o caráter capitalista derivaria dos
primórdios da colonização, mas adviriam de um capitalismo colonizado, incompleto.”92 Por
sua vez, Bresser Pereira chamou tal perspectiva de capitalismo “sem fraturas” e “sem
descontinuidades”, enquanto Hirano disse se tratar de uma constituição do capitalismo “sem
transição”. Tais colocações tornam relevante discutir as vias pelas quais o capitalismo no
Brasil se desenvolveu segundo Prado Júnior.
Citando expressões utilizadas por Caio Prado Jr. em Diretrizes para uma Política
Econômica Brasileira, Lincoln Secco considera que para o autor “nosso capitalismo não
evoluiu de um desenvolvimento espontâneo e endógeno, pois ele veio ‘de fora’ e ‘por cima’.”
93
Para Carlos Nelson Coutinho, o tratamento dado aos “traços extremamente peculiares em
nosso capitalismo” permitiu ao autor contribuir para a compreensão dos processos e
modalidades de modernização conservadora ocorridos no Brasil e o enriquecimento do
próprio conceito de vias “não clássicas” para o capitalismo.94 Em sua opinião:
O leitor atento de Caio Prado não tardaria em reconhecer a proximidade de suas
análises da questão agrária brasileira com a descrição lenineana da “via prussiana”.
Para o historiador paulista, a modernização de nossa estrutura agrária não se deu
segundo uma “via clássica”; não se pode falar, aqui, da supressão radical da grande
91
FONTES, Virgínia. “Autores clássicos e questões clássicas – O Capitalismo no Brasil e Caio Prado Jr.” In:
Revista Espaço Acadêmico, n. 70, mar. 2007.
92
Ibidem.
93
SECCO. Lincoln. Tradução do marxismo no Brasil: Caio Prado Júnior, p. 11.
94
COUTINHO, Carlos N. Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 116-7.
47
propriedade pré-capitalista e de sua substituição pela pequena propriedade
camponesa.95
Coutinho toma o cuidado de dizer que o autor aponta os traços singulares e específicos do
processo de “modernização conservadora” no Brasil, o que permitiria “distingui-lo de outros
casos igualmente ‘não clássicos’, como o da própria Alemanha dos Junkers, ao qual se referia
Lenin.” Observe-se, contudo, que para atribuir tal leitura a Caio Prado, deve-se primeiro
admitir como pressuposto que ele considerava existir previamente uma “propriedade précapitalista”. Aparentemente, Coutinho tem esta perspectiva, o que seria contrariar as teses de
que Caio Prado Jr. pensa o Brasil como capitalista desde a colônia:
(...) o que no Brasil se adaptou “conservadoramente” ao capitalismo não foi um
domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifúndio peculiar: uma
exploração rural de tipo colonial (ou seja, voltada desde as origens para a produção
de valores de troca para o mercado externo) e fundada em relações escravistas de
trabalho.96
Para Antônio Carlos Mazzeo, a introdução do conceito de via prussiana na análise do
Brasil deu maior dimensão e profundidade ao que já vinha sendo formulado por Caio Prado, o
que insere no corpo conceitual “marxiano” para a interpretação da realidade brasileira um
“valioso instrumental que revela as especificidades históricas das formações sociais
capitalistas”. Contudo, apesar de adepto da noção de vias “não clássicas” para se pensar o
desenvolvimento capitalista no Brasil, Mazzeo prefere fazer uso daquilo que chama de “teoria
da via colonial”, uma vez que “eleva e possibilita apreender, em sua dimensão ontológica, o
elemento morfológico de gênese colonial – preoconizado por Caio Prado Jr.(...)”. Note-se,
portanto, que é ao paradigma caiopradeano que Mazzeo se vincula para atribuir superioridade
ao conceito de via colonial para o capitalismo. Para ele, afinal, “o maior mérito de Prado Jr.
está na percepção de que é próprio da processualidade histórica brasileira, sua característica
de essencialidade, quer dizer, o elemento colonial-escravista do capitalismo brasileiro.”
Afinal, de acordo com esta interpretação, o Brasil, para Caio Prado, seria uma “forma
capitalista não-clássica, já que a transição da economia mercantil para o processo de
95
Ibidem, p. 119. Bernardo Ricupero tem acordo com a proximidade entre a análise de Caio Prado a respeito da
transição brasileira para o capitalismo e a caracterização de Lênin da “via prussiana”. Contudo, destaca que José
Chasin, (em O Integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Ciências Humanas, 1978, p. 628), tem “inteira razão
em apontar que o grande interesse da ‘via prussiana’ para nós brasileiros, que também passamos para uma via
não-classica de desenvolvimento capitalista, está em ambos os casos serem ‘singularidades distintas (...) que
antes os separam dos casos clássicos, do que os identificam entre si’.” RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e
a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 185.
96
Ibidem, p. 119.
48
industrialização ocorre sem a eclosão de uma ruptura revolucionária com sua morfogênese
colonial”. 97
Por também compreender que há em Caio Prado Júnior uma leitura da história
brasileira, presente sobretudo em Evolução Política do Brasil, na qual seria ausente qualquer
processo revolucionário de ruptura, Coutinho o aproxima de Antônio Gramsci.
As analogias entre o Risorgimento italiano e os eventos que constituem o processo
da Independência e da consolidação do Estado imperial no Brasil são significativas.
Assim, não é casual que Caio Prado Júnior, escrevendo sobre esses eventos em
1933 – no mesmo momento, portanto, em que Gramsci elaborava seu conceito de
“revolução passiva” –, tivesse chegado a resultados muito semelhantes aos do
pensador italiano.98
Afinal, ambos consideram que, embora tivessem sido conduzidos “pelo alto”, os processos
em questão levaram a mudanças efetivas ao mesmo tempo em que isso ocorre no quadro geral
da conservação de importantes elementos políticos, econômicos e sociais da velha ordem.
Entretanto, para analisar o Brasil contemporâneo, Caio Prado
(...) captou com acuidade o momento “conservador de nossos processos de
transição, [mas] tendeu a minimizar e subestimar os elementos de “modernização”
que eles também trouxeram consigo. (...) Embora Caio Prado certamente reconheça
que o caminho “não clássico” para o capitalismo brasileiro gerou mudanças em
nossa estrutura social, tende a pôr uma ênfase maior no momento da conservação,
da reprodução do velho.99
Nesta discussão sobre a concepção de Caio Prado Jr. quanto ao desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, verificam-se duas grandes posições. De um lado, aqueles que atribuem
ao autor a idéia de existência do capitalismo no Brasil desde o período colonial, que faria das
mudanças verificadas aqui entre os séculos XIX e XX a expressão de uma transição do
capitalismo mercantil para o capitalismo industrial, e não uma transição rumo ao capitalismo.
De outro lado, encontram-se quem considera que Caio Prado analisa o capitalismo brasileiro
como advindo de um processo de transição de uma formação pré-capitalista para uma
formação capitalista, aproximando-o dos marxistas que formularam conceitos sobre vias “não
clássicas” de desenvolvimento capitalista.
97
MAZZEO, Antônio Carlos. O Partido Comunista na raiz da teoria da Via Colonial do desenvolvimento do
capitalismo, p. 165-9. Contudo, devemos registrar que, como bem nota Cesar Mangolim de Barros, o conceito de
“via prussiana” foi explicitamente utilizado por Nelson Werneck Sodré (1958), em Formação Histórica do
Brasil, e por João Amazonas (1960), no já referido artigo na Tribuna de Debates ao V Congresso do PCB.
BARROS, Desenvolvimento e revolução no pensamento de Caio Prado Júnior.
98
COUTINHO, Carlos Nelson. Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 123.
99
Ibidem, p. 126-7.
49
6.
Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro
Se para analisar uma obra é necessário compreendê-la como uma totalidade concreta,
observando sua coerência interna e a relação entre as partes; se nas divergências que existiam
entre Caio e seus ambientes encontram-se boa parte da importância de sua obra100; portanto,
devemos nos questionar: qual é o lugar de Caio Prado Jr. na contribuição do marxismo para o
pensamento econômico brasileiro? De que modo sua tradução do marxismo influenciou a
economia política no Brasil? O debate exposto acima, por si só, nos permite ter certa noção de
seu lugar no pensamento econômico brasileiro. Todavia, investigar mais detidamente as
relações que esta totalidade (o pensamento de Caio Prado Júnior) tem com o contexto no qual
está inserida nos aproximará ainda mais de sua compreensão e portanto, de nosso objeto, que
é uma das partes deste todo: o conceito de desenvolvimento em Caio Prado Jr. Tal
procedimento poderá trazer importante suporte para a formulação de nossa interpretação na
segunda parte da pesquisa.
Sobre a contribuição do marxismo para o pensamento econômico brasileiro, dois
autores em especial representarão posições opostas. Maurício Chalfin Coutinho afirma ser
“possível sustentar que a economia política marxista não exerceu um impacto decisivo no
pensamento econômico brasileiro”, uma vez que, “com raras exceções, a obra dos
economistas assumidamente marxistas permaneceu imersa no caudal do desenvolvimentismo,
raramente se distinguindo e/ou estabelecendo argumentos originais”. O principal argumento
mobilizado para justificar tal afirmação é de que não haveria distinção marcante entre os
autores marxistas e os demais. Segundo Chalfin Coutinho, pelo fato do marxismo ser uma
doutrina orientada para a ação e caracterizada, sobretudo, pela “existência de uma moldura
partidária”, seus adeptos não se desvencilhariam das contingências da luta política e das
propostas de transformação social, mantendo-se pautados pelas vicissitudes do movimento
comunista e disputas internas na esquerda. Em certa medida, isso os aproximaria dos “mais
proeminentes economistas brasileiros”, cujas principais características seriam a atenção dada
aos problemas do desenvolvimento nacional e um certo pragmatismo na reflexão, ou seja,
pela importância dada às circunstâncias políticas.101
100
101
Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 39-42.
Cf. COUTINHO, Maurício Chalfin. Incursões marxistas. Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, n. 41, jan.abr. 2001, p. 35.
50
Porém, com isso ainda não está elucidada a declarada imersão dos marxistas no interior
do pensamento desenvolvimentista. Basta dizer que os chamados monetaristas eram tão ou
mais pragmáticos que os desenvolvimentistas, mas nem por isso podemos considerar que se
assemelhassem. A explicação deve se deslocar, portanto, ao conteúdo das propostas.
Neste quesito, o autor afirma que, com poucas exceções, tanto os economistas de
esquerda quanto os desenvolvimentistas assumiam o programa de “reformas estruturais” e as
explicações estruturalistas da inflação. Ademais, marxistas e socialistas também teriam
adotado “sem maiores problemas” as análises da CEPAL por considerarem que estas trariam
substância a um programa de esquerda por defenderem os capitais nacionais e lutarem contra
um arcaísmo no meio rural. Contudo, estas são características peculiares do marxismo
brasileiro predominante entre os anos 1930 e meados dos anos 1960. Nas décadas seguintes,
entre as principais críticas ao pensamento desenvolvimentista e cepalino estariam aquelas
formuladas por marxistas, mas para Chalfin Coutinho elas não passam de “raras exceções
relevantes” 102.
Quanto à contribuição do marxismo no pensamento econômico brasileiro, há uma
evidente aproximação entre Mauricio Chalfin Coutinho e Ricardo Bielschowsky. Enquanto o
primeiro afirma que a participação do marxismo no pensamento social brasileiro “não chegou
a se estender ao território da Economia” e pouco teria penetrado nos ramos da Economia
Geral e Aplicada103, o segundo considera que até mesmo entre os membros da corrente de
pensamento que ele denominou como socialista, “o uso da própria economia marxista foi
limitado”. Para Bielschowsky, mesmo quando faziam uso de conceitos marxistas, “o contexto
em que são usados tinha, porém, uma remota relação com o âmbito analítico próprio da teoria
econômica marxista”. Aliás, a rigor, seria mesmo “difícil, no caso dos socialistas, falar em
teoria econômica subjacente às análises”, pois
toda sua reflexão se fazia a partir da perspectiva revolucionária discutida e definida
pelo Partido Comunista Brasileiro (...), toda a reflexão econômica da corrente
socialista está subordinada e mesmo sobredeterminada pela discussão interna no
partido a respeito de sua tática revolucionária e de sua plataforma de lutas
sociais.104
102
Ibidem., p. 35-6.
103
Ibidem, p. 36.
104
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo,
Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p.182-3 (grifos nossos).
51
A princípio, Bielschowsky parece não abrir margem nem para a existência de exceções
no período de 1930 e 1964, em que estudou o chamado ciclo ideológico do
desenvolvimentismo. Na verdade, porém, reconhece que as obras História Econômica do Brasil
(1945), de Caio Prado Jr., Capitais estrangeiros no Brasil (1959), de Aristóteles Moura, e Inflação e
monopólio no Brasil (1963), de Alberto Passos Guimarães, significaram momentos de destaque do
pensamento econômico dos marxistas brasileiros.105 Portanto, seria mais correto dizer que ele as
reconhece, mas as subestima.
Essa tendência a diminuir a contribuição do marxismo no pensamento econômico
brasileiro talvez decorra de uma hipótese levantada por Mantega. Segundo ele,
o marxismo nunca foi aplicado de forma pura, mas mesclou-se com outras
doutrinas e correntes de interpretação mais próximas, para dar conta de um objeto
de análise – a realidade brasileira – que não se enquadrava imediatamente no
figurino dessa teoria, formulada para analisar o capitalismo pioneiro da Inglaterra,
Franca e Alemanha.106
Somadas às lacunas deixadas pelos fundadores e os primeiros adeptos do materialismo
histórico dialético, esta suposta inadequação teria obrigado os marxistas brasileiros e latinoamericanos a “recorrer a autores como Keynes, Schumpeter, Kalecki e outros expoentes da
Economia política para esmiuçar a dinâmica dos países de capitalismo retardatário.” Assim, o
pensamento materialista da esquerda brasileira teria sido forjado em um contexto de
assimilação recíproca, abrangendo o marxismo, o keynesianismo, passando pela CEPAL e por
vários autores não alinhados com a ortodoxia liberal.107 Esta hipótese parece plausível, mas se
equivoca em um aspecto: tal ecletismo decorre não de uma inadequação da teoria marxista
para analisar realidades diferentes daquelas para as quais Marx olhava, mas era produto das
leituras dessa teoria que tentavam dela extrair modelos, ao invés de assimilar seu método de
análise da realidade, indissociável da prática e, portanto, da própria realidade que se pretende
compreender e transformar.
Ainda assim, porém, Guido Mantega é quem afirma categoricamente que a “economia
política marxista exerceu uma influência decisiva na constituição do pensamento econômico
brasileiro”, uma vez que entre “os pensadores que mais contribuíram para a formação de uma
105
Ibidem, p. 185-200.
106
MANTEGA, Guido. Marxismo na economia brasileira, p. 147-8
107
Cf. Ibidem, p. 147-8.
52
economia política crítica no Brasil destacam-se os representantes da esquerda marxista
brasileira” 108:
Se quisermos estabelecer um marco inicial para assinalar o advento da análise
marxista da economia brasileira, adotaríamos, sem muita controvérsia, os três
trabalhos publicados por Caio Prado Jr. entre 1933 e 1945, os quais representaram
a primeira tentativa bem sucedida de aplicação do materialismo histórico ao caso
109
brasileiro.
Para este autor, das “três principais correntes do pensamento econômico brasileiro em
sua primeira fase”, que compreenderia o período entre os anos 1950 e início da década de
1970, duas são de inspiração marxista: o Modelo Democrático-Burguês, representado
principalmente pelas opiniões do PCB e seus intelectuais, e o Modelo do Subdesenvolvimento
Capitalista, na qual estariam inseridos Rui Mauro Marini, André Gunder Frank e Caio Prado
Jr. A terceira corrente é a que Mantega denominou como representante do Modelo de
Substituição de Importações, na qual se inserem Celso Furtado, Ignácio Rangel e seus
“herdeiros” (Maria da Conceição Tavares, Paul Singer e Luiz Carlos Bresser Pereira), que
estariam sob influência direta das idéias da CEPAL.110
Apesar de também relacionar o pensamento de marxistas com sua filiação à correntes
políticas e suas respectivas organizações – a III Internacional, vinculada ao pensamento de
Lênin, e a IV Internacional, associada à Trotsky –, Mantega dá destaque ao que existe de
original nas formulações que os afastam tanto do desenvolvimentismo de inspiração cepalina
quanto da orientação difundida pelo PCB. Não por acaso, na análise deste autor e de Maria
Moraes, pensadores marxistas aparecem como protagonistas de uma discussão realizada entre
1964 e 1975, na qual se buscava novas interpretações para explicar a realidade econômica em
rápida transformação e, portanto, travavam-se duras polêmicas entre os representantes de
diferentes correntes do pensamento econômico. 111
Trabalhamos aqui com a hipótese de que as conclusões distintas sobre a contribuição do
marxismo no pensamento econômico brasileiro se relacionam com três fatores. O primeiro
deles é a falta de parâmetros precisos e compartilhados entre os autores para definir o grau da
influência exercida pela economia política marxista no Brasil. Para uns, o critério mais
108
Ibidem, p. 147
109
Idem, A economia política brasileira, p. 134.
110
Cf. MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, p. 20.
111
Cf. MANTEGA, Guido; MORAES, Maria. A economia política brasileira em questão.
53
adequado é a contribuição dada em termos de ciência econômica. Para outros, trata-se de
saber a influência concreta que o pensamento econômico exercera na economia.
O segundo diz respeito ao recorte temporal adotado, uma vez que a presença de
marxistas com contribuições marcantes se concentra, sobretudo, a partir dos anos 1960.
Assim, quando a ênfase é dada ao período entre 1930 e 1964, em geral predominam as
avaliações sobre o pequeno peso do marxismo no pensamento econômico brasileiro. Quando,
porém, a ênfase recai no período iniciado nos anos 1960, as análises ressaltam maior
participação do marxismo na economia política.
Note-se, ademais, que para Guido Mantega, a organização do atualmente famoso grupo de
intelectuais em São Paulo, em 1958, para o estudo sistemático de O Capital e obras correlatas,
constitui um passo decisivo para a consolidação do marxismo no Brasil em direção a uma análise
materialista e dialética da sociedade brasileira. Segundo Ricupero, é com o marxismo uspiano que
passa a existir um marxismo brasileiro, pois os intelectuais marxistas vinculados a esta universidade
teriam capazes de formular, nas décadas de 1950 e 1960, uma explicação do Brasil.
112
Já Fernando
Novais diz:
A discussão e a crítica das formulações da CEPAL parece ter levado a uma
revitalização do marxismo, passando-se de uma concepção um tanto tosca para
uma visão mais aberta e refinada. Nesse sentido, poder-se-ia sugerir que o
‘pensamento cepalino’ se situa em face do marxismo latino-americano como,
mutatis mutandis, a economia política clássica estava para a gênese do marxismo.
113
O terceiro fator é o lugar ocupado por Caio Prado nas análises que estes autores
empreendem sobre o assunto. Como Prado Júnior tem expressiva produção intelectual
anterior ao período de concentração de trabalhos marxistas mais significativos e como se trata
de uma importante referência para aqueles que, entre os marxistas, reformularam as
problemáticas, análises e propostas para a realidade econômica e social do país, a posição que
Prado Jr. ocupa no pensamento econômico brasileiro segundo cada autor pode indicar a maior
ou menor importância que atribuem ao marxismo.
Assim, apesar de Mantega e Bielchoswky sugerirem que o agrupamento dos marxistas
em correntes de pensamento econômico está vinculado à filiação de cada autor às correntes
políticas do marxismo, extraem daí conclusões diferentes em relação à posição ocupada por
112
Cf. MANTEGA, Guido. Marxismo na Economia Brasileira, p. 160; Cf. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado
Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, p. 10.
113
NOVAIS, Fernando. Sobre Caio Prado Júnior. In: Aproximações: estudos de história e historiografia. São
Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 293.
54
Prado Jr. Enquanto Bielschowsky o inclui na corrente que denominou de socialista, junto com
os pensadores alinhados com a política oficial do PCB, Mantega o afastará do correspondente
Modelo Democrático-Burguês, inserindo-o, como já foi dito, entre os partidários do Modelo
de Subdesenvolvimento Capitalista, que teria operado uma ruptura com a interpretação
pecebista.
Chalfim Coutinho, por sua vez, apesar de inserir Caio Prado Júnior entre as “raras
exceções” de pensamento original no marxismo, considerando sua iniciativa como
“exemplar”, afirma que “os estudos marxistas sobre o desenvolvimento econômico sofreram
pouca influência da pesquisa histórica inspirada no marxismo”. Para ele, teria sido “somente
ao final da década de 70, e por meio de uma nova onda de estudos sobre a escravidão, que
houve uma penetração marcante da perspectiva marxista na investigação histórica”, referindose aos trabalhos de C. F. Cardoso, A. B. Castro, F. Novais, J. Gorender, e, mais tarde, J.
Fragoso e M. Florentino. Ademais, os “estudos que abordam o desenvolvimento econômico
brasileiro a partir de uma perspectiva marxista surgiram, rigorosamente, em contraposição ao
modelo estruturalista de desenvolvimento econômico”. Esta consideração o leva a afirmar que
o livro Formação Econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, influenciou “decisivamente
a reflexão marxista dos anos 70”, enquanto silencia a respeito da influência de Caio Prado
Júnior no florescimento da crítica ao estruturalismo cepalino e ao modelo de substituição de
importações, além de negligenciar a presença de sua obra na formação dos pensadores que ele
mesmo considera como responsáveis pelos novos “estudos de desenvolvimento econômico
influenciados pelo marxismo”: Sérgio Silva, João Manuel Cardoso de Mello, Chico de
Oliveira, Paul Singer, entre outros114.
Visto isso, consideramos que Mantega é quem dá mais ênfase à contribuição do
marxismo à economia política brasileira, justamente por ter visualizado exatamente o que
existe de original no pensamento de Caio Prado Jr., bem como seus vínculos com a geração
posterior de marxistas que assimilou e promoveu a superação dialética de suas teses sobre a
relação entre as particularidades da formação histórica brasileira com o tipo de
desenvolvimento capitalista que aqui se processou.
No entanto, não corroboramos com a inserção de Prado Jr. no chamado Modelo do
Subdesenvolvimento Capitalista por considerar que as diferenças que o próprio Mantega
ressaltou serem suficientes para afastá-lo do grupo:
114
Quando dá algum destaque a Caio Prado Jr. o autor limita-se ao tema da questão agrária, desconsiderando a
questão do desenvolvimento. Cf. COUTINHO, Maurício Chalfin, Incursões marxistas, p. 37-45.
55
A contribuição de Caio Prado Jr. para o Modelo de Subdesenvolvimento
Capitalista foi decisiva por ter fornecido uma extensa e minuciosa análise das
relações de produção na agricultura brasileira desde os tempos da colônia até a
época contemporânea, fundamentando a concepção de capitalismo colonial
subdesenvolvido de Frank e Marini. Porém, a despeito disso, Prado Jr., manteve
profundas divergências quanto ao rumo das transformações político-econômicas
professadas por esses autores. Assim, embora crítico ardoroso da tese feudal e
pioneiro na caracterização de um Brasil mercantil e capitalista desde os tempo de
colônia, discordava de que o próximo passo da sociedade brasileira fosse uma
revolução socialista, como supunham Frank e Marini. 115
É justo registrar, porém, que tal procedimento, se não permitiu destacar o pensamento
caiopradiano como dotado de uma particularidade e especificidade próprias, pelo menos
contribuiu para evitar que ele seja imerso acriticamente seja no desenvolvimentismo, seja na
matriz clássica do PCB.
115
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira, p. 236.
56
7.
Historiografia e economia política
Como vimos acima, visando traçar um quadro do pensamento econômico brasileiro
entre 1930-1964, ao estudar a corrente que denomina socialista, Ricardo Bielschowsky,
escrevendo na primeira metade dos anos 1980, afirmou que é difícil falar em uma teoria
econômica subjacente às análises. Possivelmente, tal dificuldade decorra de sua orientação
metodológica: por considerar que “toda reflexão econômica da corrente socialista está
subordinada e mesmo sobredeterminada pela discussão interna no partido a respeito de sua
tática revolucionária e de sua plataforma de lutas políticas”, o autor é levado a concluir que “a
caracterização do pensamento econômico da corrente socialista deve partir de uma apreciação
dos traços gerais da evolução do PCB no período”, o que envolveria, inclusive, “o
conhecimento do conteúdo econômico das diferentes formulações políticas correspondentes
aos diversos estágios dessa evolução”. Assim, o autor se atém mais às dimensões políticas e
ideológicas das diretrizes econômicas que defenderam do que às suas implicações em termos de teoria
econômica propriamente. Para Bielschowsky, parte das análises econômicas dos socialistas
“tinha inspiração não na economia marxista propriamente dita, mas no método do
materialismo histórico”; o âmbito analítico desta corrente não seria o mesmo da teoria
econômica marxista, “isto é, o âmbito da análise econômica da acumulação de capital e das
contradições que a acumulação engendra”.116 Ao tomar a evolução política do PCB como fio
condutor de sua análise, o autor perde de vista outras dimensões do pensamento econômico
dos socialistas e toma o todo pela parte.
A teoria econômica pode ser um instrumental que, a rigor, é mesmo difícil de ser
identificado nos programas e resoluções de um partido. Mas isso não significa nem que seja
ausente, nem que os intelectuais marxistas identificados com o PCB desconhecessem ou
ignorassem a teoria econômica. As Diretrizes para uma política econômica brasileira (1954)
e o Esboço dos fundamentos de teoria econômica (1957), de Caio Prado Jr., se inserem como
exceções, às quais iria se juntar posteriormente História e desenvolvimento (1968). Nestas
obras, o autor reiteradamente defende a necessidade de reconhecimento das particularidades
históricas de países como o Brasil, que está inscrito na história moderna de expansão do
capital a partir dos séculos XV e XVI sob a condição colonial e, portanto, suscetível às
oscilações da dinâmica econômica metropolitana e, posteriormente, imperialista.
116
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo,
p. 182-3.
57
Francisco Iglesias parece ter este entendimento ao destacar uma citação de Caio Prado
Jr. onde se diz que seria a partir do reconhecimento do que existe de singular no
desenvolvimento histórico das diferentes formações sociais que seria possível formular “não
uma pseudociência econômica abstrata e absoluta que seria um pobre e inútil substituto do
velho direito natural; e sim uma teoria econômica que nesse momento e para o Brasil em que
vivemos deverá ser a expressão de uma economia em germinação no âmago do nosso país e
nacionalidade de seu longo passado colonial”117. Com isso, Iglesias indica que se evidencia “a
necessidade para os periféricos de uma teoria econômica que seja expressão autêntica de suas
experiências, fundada pois em seu processo histórico”118.
Para João Antônio de Paula, porém, seria preciso inserir as contribuições de Caio Prado
Júnior neste sentido como manifestações de uma época na qual foi redescoberto que não eram
leis naturais e inexoráveis que promoviam a desigualdade econômica política e social entre os
países, mas assimetrias e desigualdades construídas historicamente a partir de relações
econômico sociais. Nas palavras do autor,
Esse tempo, marcado pela urgência e pelo compromisso, foi tanto o da eclosão de
várias perspectivas críticas – que buscaram apontar os limites do pensamento
econômico convencional, a tradição liberal-neoclássica, em dar conta do fenômeno
assim batizado de subdesenvolvimento – quanto da busca de instrumentos teóricos
e práticos, técnicos e políticos, capazes de superá-lo mediante a construção do
desenvolvimento econômico-social como processo de universalização dos frutos do
progresso científico e tecnológico.119
Trata-se, portanto, de formulações em comum com as obras de Gunnar Myrdal, Albert
Hirschman, W. Arthur Lewis, Raul Prebisch e Celso Furtado, todas elas divergentes em
relação à ortodoxia do pensamento econômico de então, que desconsideravam as
peculiaridades dos diferentes desenvolvimentos históricos de países e regiões periféricas e
subdesenvolvidas120.
Reconhecidamente influenciado pela obra de Keynes, que teria trazido de volta à teoria
econômica o elemento tempo, atravessando a barreira artificial e juntando história e teoria,
Celso Furtado considera que o desenvolvimento econômico entende-se como processo
histórico, que não se esgota pela capacidade explicativa das categorias puramente
117
PRADO Jr. Diretrizes para uma economia política brasileira. São Paulo, Gráfica Urupês, 1954, p. 239-40.
Apud IGLÉSIAS, Francisco. Um historiador revolucionário, p. 36.
118
IGLÉSIAS, Francisco. Um historiador revolucionário, p. 37.
119
DE PAULA, João Antônio. Caio Prado Júnior e o desenvolvimento econômico brasileiro, p. 3.
120
Cf. Ibidem, p. 3.
58
econômicas. Assim evidencia-se por que suas primeiras obras privilegiam a história:
L’Economie Coloniale Brasiliene (1948), A economia brasileira (1954) e, a mais conhecida,
Formação econômica do Brasil (1959). Este economista afirmou, inclusive, que se uma teoria
do desenvolvimento deve ser explicada pelo processo de acumulação de capital, deve-se
identificar os elementos específicos do processo histórico que estabeleceram as formas de
distribuição e utilização da renda, os sistemas de organização da produção, enfim, e não por
meio de categorias abstratas com pretensões à universalidade. 121
No livro História e desenvolvimento (1968), de Caio Prado Júnior, verifica-se que,
realmente, no que se refere ao estatuto da história na concepção de desenvolvimento
econômico, há forte relação entre essas matrizes teóricas:
É na história, nos fatos concretos da formação e evolução de nossa nacionalidade
que se encontra o material básico e essencial necessário para a compreensão da
realidade brasileira atual e sua interpretação com vistas à elaboração de uma
política destinada a promover e estimular o desenvolvimento. E não as puras
abstrações da análise econômica onde aqueles fatos aparecem fatalmente
distorcidos e desfigurados, uma vez que tais abstrações, mesmo quando são até
certo ponto justificáveis em outras situações para as quais e na base das quais
foram elaboradas, não se ajustam a situações tão distintas como as nossas. Mais
ainda que em países e povos que já atingiram um elevado nível de
desenvolvimento, e que por assim dizer, e de certa forma, já romperam suas
amarras com aquele passado (pelo menos para os fins da análise econômica), é
sobretudo em nosso passado que se há de buscar a informação necessária para a
proposição adequada e a solução acertada dos problemas atuais. O tema do
desenvolvimento penetra assim em cheio na historiografia. E esta lhe ocupa mesmo
a maior e principal parte. 122
Seja para a análise econômica, seja para a definição de políticas econômicas, percebe-se
claramente que, para ambas as abordagens, o desenvolvimento histórico de cada formação
social específica constitui chave explicativa e orientadora mais eficaz do que teorias que se
pretendem aplicáveis à quaisquer situações.
Mas nem tudo são semelhanças. Segundo Lincoln Secco, Prado Jr. discordava de muitas
teses de Furtado; apesar de reconhecê-lo como um grande economista, reduziu a obra de
Furtado a uma interpretação “sobretudo monetária” da história econômica brasileira; escreveu
121
Cf. GONÇALVES, José Sérgio Rocha de Castro. Celso Furtado: pensamento e ação. In: FURTADO, Celso.
Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. IX e XVIII. (publicada
originalmente em 1967). Bielschowsky (2000) e Mantega (1984; 2002) também destacaram a relação entre Celso
Furtado e a história. Observe-se, ademais, a semelhança entre os títulos das obras de Celso Furtado (1967) e de
Caio Prado Jr. (1968), ambas destacando a relação entre reflexão teórica e atuação prático-política.
122
PRADO JR. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do
desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 18-9. Apresentamos aqui esta passagem apenas para
demonstrar o lugar da relação entre a historiografia e a teoria econômica no pensamento de Caio Prado Jr.
Analisaremos melhor o conjunto de questões envolvidas no trecho citado na segunda parte de nossa pesquisa.
59
sobre uma cópia de um artigo de Furtado, ao lado de uma frase grifada: “é a única afirmação
deste artigo que tem sentido concreto”; além de tudo, sentiu-se desprestigiado por não ter sido
citado em Formação econômica do Brasil (1959). 123
Curioso, porém, é o fato de que, apesar da reflexão sobre a relação entre história e
economia em Caio Prado Jr. ser relativamente farta – levando inclusive à polêmicas sobre um
suposto economicismo presente em seu pensamento –, não encontramos nenhuma bibliografia
que se concentrasse especificamente sobre uma relação entre teoria da história e economia
política em Caio Prado Jr., ou seja, a maneira como a economia política participa de sua
historiografia e, simultaneamente, como a história se insere nas suas análises econômicas.
Podemos dizer que Francisco Iglesias perdeu a oportunidade de fazê-lo quando, ao comentar
o livro História e desenvolvimento, disse em tom de menosprezo:
Concluir da tese que a história tem seu elemento esclarecedor no processo
econômico ou que o estudo do desenvolvimento é fruto do processo histórico é
muito pouco. O certo é que o pequeno texto não chega a produzir entusiasmo: de
quanto fez o autor em história é o livro menos expressivo.124
Escrito em 1982, o texto de Iglesias é pioneiro. Dificilmente seria possível inferir se esta
opinião influenciou os demais estudiosos de Caio Prado Jr. a ponto de, igualmente,
considerarem menos importante o referido livro. Segue aberto um campo de investigação no
qual a análise minuciosa de História e desenvolvimento, em conjunto com suas obras de 1954
e 1957, citadas acima, e da significativa bibliografia a respeito da teoria da história em Caio
Prado Jr.125 podem trazer interessantes leituras sobre as relações que nosso autor estabelece
entre teoria da história e economia política.
Tal enfoque enriqueceria sobremaneira nossa percepção a respeito de sua concepção de
desenvolvimento, além de aprofundar nossos conhecimentos no que se refere à relação entre
historiografia e teoria econômica, entre a escrita da história e a economia política, entre
história e desenvolvimento, entre historiadores e economistas. Não poderemos desenvolver
esta questão ao longo de nossa pesquisa, tarefa para a qual seria indispensável uma reflexão
123
SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 167-8
124
IGLÉSIAS, Francisco, Um historiador revolucionário, p. 30.
125
Sobre a teoria da história no pensamento do autor, ver principalmente: GRESPAN, J. A teoria da história de
Caio Prado Júnior: dialética e sentido. Revista do IEB, São Paulo, n.47, set. 2008; NOVAIS, Fernando. Caio
Prado Júnior, Historiador. Novos Estudos Cebrap, n. 2, 1983; Idem, Caio Prado Jr. na historiografia brasileira.
In: MORAES, Reginaldo; ANTUNES, Ricardo; FERRANTE, Vera B. (orgs.). Inteligência brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
60
teórico-metodológica baseada em literatura especializada, o que nos afastaria de nossos
objetivos.
Vale a pena, porém, levantar a hipótese de que Caio Prado Jr. encontra-se de alguma
maneira tensionado entre a crítica da economia política e a economia política clássica.
Dialogando com as principais correntes de pensamento econômico e pensamento histórico
face aos problemas do desenvolvimento, em 1960, Pierre Vilar afirma que Adam Smith “se
mantém um historiador e que, apesar de sua declaração de guerra aos mercantilistas, ainda
pensa em termos de wealth of nations; simultaneamente riqueza e poder que, no século
seguinte, se afirmará como o quadro histórico por excelência: a ‘nação’ moderna.” Por outro
lado, “Marx – porque leu Ricardo – encontra-se em certo sentido mais próximo da teoria
abstrata moderna do desenvolvimento do que o estiveram Smith e os mercantilistas, porque
não examina o desenvolvimento das ‘nações’ mas sim o processo de acumulação e de
reprodução alargada no seu aspecto mais geral, aplicável tanto à empresa isolada quanto à
economia global. (...) Pondo o acento sobre o processo puramente econômico e ‘endógeno’ da
reprodução
capitalista,
Marx
coloca-se,
ao
fazê-lo,
à
cabeça
dos
teóricos
do
desenvolvimento.” Contudo, Vilar toma o cuidado de lembrar que “este autor nunca confunde
o procedimento metodológico que é a abstração com o fim real da investigação, que é a
explicação da realidade histórica.” Assim, como Marx compreende que os modelos que
extraiu da observação do capitalismo de sua época não seriam aplicáveis de maneira absoluta
a realidades passadas ou futuras “a análise se torna histórica, pois os modelos por ela
propostas não são nem eternos nem universais, e modificam-se no interior de uma realidade
mais ampla da economia ‘pura’: a totalidade das relações humanas.” 126
Considerando o peso que tem o conceito de nação no pensamento de Caio Prado Júnior
e sua ênfase na esfera da circulação, como veremos mais adiante, encontramos pontos de
contato com a perspectiva de Smith. Por outro lado, sua crítica à transposições mecânicas de
modelos de desenvolvimento e sua compreensão do sentido da colonização, que analisaremos
a seguir, o coloca em proximidade com a economia política marxista. Trata-se de um
interessante foco de tensão na relação de Caio Prado Jr. com a economia política, o que
mereceria atenção de pesquisadores.
126
VILAR, Pierre. Desenvolvimento econômico e análise histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 16-7.
61
De qualquer modo, mesmo impedidos de prosseguir neste caminho de investigação,
esperamos que os resultados de nosso estudo venham a contribuir de alguma maneira com
novas pesquisas que queiram abordar esta questão.
62
PARTE II
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTO
HISTÓRICO
8.
A “amputação do espírito”
A biografia intelectual de Caio Prado Júnior escrita por Paulo Teixeira Iumatti abre com
uma epígrafe, de autoria do próprio biografado, elaborada em 1948, ano em foi encarcerado
depois que teve seu mandato de deputado estadual pelo PCB em São Paulo cassado:
Nem é sem riscos, e tão pouco sem consequências graves, que um homem de
pensamento malbarata o que de mais precioso ele tem, e que é precisamente esse
pensamento; que lhe retira o fio cortante, que o embota com concessões de toda
ordem. Cada transigência, toda acomodação de ordem financeira, social ou outra
qualquer, representa uma amputação do espírito; não há talento, não há inteligência
por mais vigorosa que seja, capaz de resistir muito tempo a uma tal mutilação
continuada e sistemática das fontes vivas da inspiração e da produção intelectual.127
É pouco provável que o próprio autor tenha sido capaz de passar incólume, sem
nenhuma “amputação do espírito”, pelas tribulações impostas tanto por suas convicções
políticas e pessoais quanto pelos infortúnios da vida. Ao longo de sua trajetória pública e
privada experimentou momentos de tensão e tristeza que certamente lhe moldaram a
personalidade e o pensamento: duas separações (1939 e 1969), o suicídio do filho (1970), o
fechamento da Revista Brasiliense (1964), o exílio no Chile (1969-70), a apreensão da
tipografia do PCB que havia financiado (1932), os permanentes conflitos internos do partido,
a constante vigilância dos órgãos de repressão e as mortes, prisões e desaparecimentos de
amigos e companheiros de militância128.
As prisões também acompanharam sua história: antes de abril de 1964 Caio Prado
Júnior já havia sido detido pelas forças policiais algumas vezes. A primeira ocorreu durante a
campanha presidencial de Getúlio Vargas. O então jovem membro do Partido Democrático,
que havia aderido à campanha da Aliança Liberal em agosto de 1929, integrava a comissão de
recepção organizada pelo partido para a chegada de seu candidato à capital paulista agendada
para o dia 2 de janeiro de 1930. Durante o corso do candidato Júlio Prestes na Avenida
Paulista em 31 de dezembro de 1929, Caio Prado Júnior bradou “Viva Getúlio Vargas”. Horas
127
PRADO JR. apud IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual. São Paulo,
Brasiliense, 2007, p. 5.
128
Em telegrama não datado, Caio Prado escreve a Benedito Camargo, que se encontrava em Pindamonhangaba:
“Queira aceitar expressão meus profundos sentimentos lamentavel desaparecimento grande amigo muitos anos
cuja memoria conservarei grande carinho”. (Código: CPJ-CA065, Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros,
doravante AIEB). Não sabemos a quem o autor se refere.
64
depois, quando deixava o baile de réveillon do Automóvel Club Paulista129 na madrugada do
dia 1º de janeiro de 1930, a polícia o deteve sob a alegação de “desacatar” o candidato
governista. O jovem militante foi libertado naquele dia: a punição esperava-se exemplar130.
Porém, quando Vargas chegou a São Paulo para sua campanha, Caio Prado prosseguiu
cumprindo suas funções na comissão de recepção: dirigiu o veículo que conduzia o candidato
e esteve com ele na casa de José Carlos Macedo Soares, que se tornaria o ministro das
Relações Exteriores do novo governo131.
A segunda detenção veio no contexto das mobilizações da Aliança Nacional Libertadora
– ANL durante o ano de 1935, das quais Caio Prado Jr. participava ativamente, fazendo
discursos em comícios, publicando folhetos, organizando reuniões e concedendo entrevistas à
imprensa. Então com 28 anos de idade, era vice-presidente, em São Paulo, da ANL132. Em
suas memórias não publicadas, Catullo Branco afirma que viu Caio Prado Júnior ser preso
quando falava em um comício no dia 5 de setembro de 1935, realizado em um salão de
patinação numa travessa da Avenida Nove de Julho. Além de intelectuais, artistas e
militantes, assistiam ao comício alguns militares afetos ao General Miguel Costa. 133
A terceira prisão veio pouco depois, no contexto de seguidas “quedas” em função do
fracasso do episódio que ficou conhecido como a “intentona comunista de 1935”. Foi detido
no Rio Grande do Sul em 27 de novembro daquele ano, acusado de ter se reunido na sede do
jornal A Platéa com o médico José Maria Gomes e o advogado Danton Vampré e de ser
portador de ideias extremistas. Segundo o correspondente em Porto Alegre do periódico O
Jornal, havia sido preso, “a pedido da polícia paulista, o sr. Caio Prado, membro da Ação
Libertadora de São Paulo e que aqui se encontrava a passeio”.134 Caio Prado Júnior ficou
preso até meados de 1937, primeiro no presídio Maria Zélia e depois no Paraíso.135
129
Segundo Maria Célia Wider, Caio Prado foi detido ao sair do Club Athlético Paulistano. Cf. WIDER, Maria
Célia. Caio Prado Júnior: um intelectual irresistível. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 38.
130
Cf. MARTINEZ, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935). São
Paulo: Edusp, Fapesp, 2008, p. 70-1.
131
Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 29.
132
O documento de sua detenção assinalava que Caio era presidente do Diretório Estadual da ANL. Ibidem, p.
51.
133
Ibidem, p. 51.
134
Prisões efectuadas em Porto Alegre, O Jornal, Rio de Janeiro, 29 nov. 1935, p. 7. Disponível em:
http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
135
Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p. 31-2; SECCO, Lincoln. Caio
Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 50-1. Sobre a militância de Caio Prado Júnior na ANL, indicamos a
análise de MARTINEZ, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p.238-51.
65
A quarta prisão veio em 1948. Depois de ter publicado um manifesto com outros
parlamentares pecebistas que tiveram cassados seus mandatos, Caio Prado Jr. foi detido.
Depois de aproximadamente dois meses de reclusão, prestou depoimento na 2ª vara criminal
ao juiz Elias Cruz Martins. De acordo com reportagem da Folha da Manhã, depois de
declarar “ser o seu próprio advogado no processo” alegou que desde que foi preso “não teve
nenhuma informação segura sobre a autoridade que ordenou a prisão e os motivos dela”.
Depois, evocou artigos da Constituição para responsabilizar a autoridade policial “pela ação
ilegal praticada contra o depoente, não apenas prendendo-o o mantendo-o preso sem ordem
legal, como deixando de comunicar ao juiz competente a prisão efetuada”. Para Caio Prado, a
denúncia não passava de “mera perseguição política” e seria obscura, “pois o promotor tirou
conclusões em desacordo com o texto do manifesto”.136 O habeas-corpus foi concedido no dia
17 de junho daquele ano e o recurso contra a prisão preventiva decretada por Martins foi
considerado procedente. Tomada a decisão, na noite do mesmo dia, os advogados João
Bernardes da Silva e Rio Branco Paranhos foram ao quartel da 1ª Companhia Independente da
Força Pública acompanhados do escrivão do Tribunal de Justiça e restituíram a liberdade dos
detidos. 137
Durante o intervalo relativamente democrático de quase 16 anos que separou a quarta e
a quinta detenções, os órgãos de repressão não deixaram de investigar sua vida e as
perseguições aos comunistas não cessaram. Em abril de 1964, porém, já nos primeiros dias
que se seguiram à deposição de João Goulart da presidência da república iniciou-se uma nova
sequência de prisões de militantes e de repressão às organizações e instituições progressistas e
de esquerda, da qual Prado Júnior e a Revista Brasiliense não escaparam.
No dia seguinte ao golpe, Caio Prado foi passear pelos bairros operários de São Paulo
para verificar que a classe operária estava indiferente à nova situação política do país e não
dava sinais de interesse em oferecer resistência. Em um primeiro momento, ele teve atitude
bem distinta. Procurado por Paulo Alves Pinto em sua própria casa, decidiu pegar a estrada no
jipe de seu amigo em direção à região sul do país, onde participariam do movimento de
resistência que estaria sendo organizado. Quando estavam próximos da divisa de São Paulo
com o estado do Paraná, Caio Prado Júnior teria se dado conta de que seria inútil seguir a
136
Concluído o interrogatório dos signatários do manifesto comunista, Folha da Manhã, São Paulo, 1 jun. 1948,
p. 5. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
137
Na ocasião, foram libertados: Caio Prado Júnior, Celestino dos Santos, Mario de Souza Sanches, Milton
Caires de Brito, Roque Trevisan e João Talbo Cadorniga, Mario Schemberg, Armando Mazzo e Nestor Veras.
Cf. Postos em liberdade os ex-parlamentares comunistas, Folha da Manhã, São Paulo, 8 jun. 1948, p. 5.
Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
66
empreitada: “Paulo, eu vou esperar esse negócio em casa mesmo, se houver resistência a
gente adere”, teria dito. Maria Célia Wider apresenta o depoimento de Alves Pinto: “Não
tínhamos para onde ir e começamos a rir: só se fossemos para a rua, armados, resistir. A
fronteira estava fechada. Não tinha para onde escapar para organizar uma resistência. Isso
contado numa revolução européia é deboche.” O amigo de Caio Prado disse, inclusive, que
nas vésperas do golpe esteve com Luís Carlos Prestes, que lhe teria assegurado que estariam
prontos a sair às ruas a qualquer momento, não havendo motivos para preocupação. Como se
sabe, não foi assim que se passou. “O clima em que se vivia era meio incompreensível”,
analisou Paulo. 138
Aos olhos de Caio Prado Júnior, as massas operárias pareciam alheias e não se
incomodaram com a nova situação instaurada. O próprio, porém, foi diretamente atingido
pelas circunstâncias desfavoráveis: na tarde de 24 de abril, depois de interditar e lacrar a
Gráfica Urupês “sob a acusação de que imprimia livros subversivos e de tendências
esquerdistas”, o DEOPS-SP o deteve ao lado de Caio Graco da Silva Prado, seu filho, e
Agenor Parente por serem dirigentes da Editora Brasiliense.139 Os originais da edição número
52 da publicação que editava, a Revista Brasiliense, que já se encontrava na gráfica pronta
para ser impressa, foi confiscado e teve sua composição destruída. A revista foi extinta pelo
regime militar e não voltaria a circular. Mesmo após os pedidos de militantes como Marco
Antônio Tavares Coelho, Roberto Schwartz e outros, que foram até a casa de Caio Prado
solicitar que insistisse com a publicação, o editor chefe da revista preferiu não mais se
envolver com a publicação de um periódico140.
Ainda que nos anos 1960 fosse um militante marginal no interior de seu partido 141, Caio
Prado circulava em ambientes artísticos, políticos e intelectuais de prestígio. Não foi apenas
138
Cf. WIDER, Maria Célia. Caio Prado Júnior: um intelectual irresistível, p. 94.
139
DOPS fecha gráfica e prende Caio Prado Jr., Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 7, 25 abr. 1964. Disponível em:
http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
140
Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p, 163; SECCO, Lincoln. Caio
Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 109; KAREPOVS, Dainis; GIANCRISTOFARO, Christiani Marques
Menusier. Caio da Silva Prado Júnior: um perfil biográfico. In: KAREPOVS, Dainis (coord.). Caio Prado
Júnior: parlamentar paulista. São Paulo: Alesp, 2003, p. 23.
141
Esta condição tem raízes no fracasso da tentativa de reorganizar o PCB em 1945 sob o predomínio do Comitê
de Ação em detrimento a Comissão Nacional de Organização Política (CNOP) e com base na proposta de uma
“Aliança Democrática e Popular” com a União Democrática Nacional (UDN). Sobre a conjuntura de 1945 e a
participação política de Caio Prado Jr. na reorganização do PCB e no rearranjo de forças políticas no país,
recomendamos os estudos de Paulo Teixeira Iumatti, Diários políticos de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo:
Brasiliense, 1998; e Raimundo Santos, Caio Prado Júnior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad,
Faperj, 2001, principalmente o capítulo 4: “A transição de 1945 como emblema da ciência política”.
67
uma parcela da esquerda militante que reconheceu a importância de A revolução brasileira.
Parte expressiva da intelectualidade considerou relevante a contribuição do livro para o
pensamento social brasileiro, o que rendeu a Caio Prado Júnior o troféu Juca Pato de
intelectual do ano em 1966, prêmio concedido pela União Brasileira de Escritores – UBE.
Assim, o autor foi projetado a uma condição de ainda maior evidência e notoriedade. Entre
outros, Antônio Cândido, que então já era um renomado intelectual, foi um dos que o
parabenizou pela premiação, obtendo resposta de caloroso agradecimento.142 Daí em diante, o
autor viveria uma nova situação: passou a chamar muito mais atenção tanto de seus
admiradores quanto de seus inimigos. Apesar do prestígio, ou justamente por causa dele, os
caminhos nublados e espinhosos de Caio Prado ficavam mais estreitos.
As correspondências que trocou entre 1967 e 1968 nos mostra que recebeu inúmeros
convites para participar da colação de grau de formandos na condição de paraninfo em
diversas universidades, integrar comissões julgadoras e bancas de avaliação de concursos
acadêmicos, proferir palestras e conferências sobre temas variados em diferentes instituições,
bem como escrever artigos em periódicos e capítulos de livros. Porém, teve que declinar boa
parte deles, seja em função de compromissos previamente agendados e viagens planejadas,
por estar ocupado com outros afazeres, ou mesmo por impedimento legal de se ausentar de
São Paulo, como foi o caso da colação de grau na Universidade Federal da Paraíba:
Instaurou-se na Justiça Militar um processo contra mim, na base de entrevista que
concedi a uma revista de estudantes da Universidade de São Paulo. Nestas
condições, não poderei me ausentar enquanto não se resolver o assunto. Estou com
um pedido de habeas corpus pendente no Supremo Tribunal Federal. Se esse
recurso me for concedido como espero, estarei livre. 143
Caio Prado se referia à edição número 4 da revista Revisão, publicada pelo grêmio dos alunos
da Faculdade de Filosofia da USP. Apesar de ter deixado evidente sua opinião de que não
havia oportunidade histórica para a luta armada no Brasil, a ditadura militar utilizou o
material como “prova” de que ele estaria “incitando o público à Guerra e à subversão da
ordem político-social” e instaurou um Inquérito Policial-Militar (IPM) perante o Conselho
Permanente de Justiça da 2ª Auditoria da 2ª Região Militar. 144
142
Cf. Carta a Antônio Cândido, de 7 de abril de 1967 (Código: CPJ-CA149, AIEB).
143
Carta às formandas da Universidade Federal da Paraíba, de 18 de novembro de 1968 (Código: CPJ-CA031,
Arquivo do IEB).
144
Cf. KAREPOVS & GIANCRISTÓFARO, Caio da Silva Prado Júnior: um perfil biográfico, p. 25; SECCO,
Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 116.
68
Confirmando suas expectativas, a viagem à João Pessoa foi impedida, uma vez que
até o dia 4 de dezembro, quando tornou a escrever às organizadoras da formatura para
atualizá-las de sua situação, o recurso ao Supremo ainda não havia entrado em pauta e não
poderia, portanto, ser julgado a tempo. “Continuo assim respondendo ao processo na Justiça
Militar, o que impossibilita minha ausência”. Como alternativa, pensou em remeter-lhes um
discurso, de modo semelhante ao que fez um ano antes quando não pode se fazer presente, em
função de viagem ao exterior, para paraninfar na colação de grau da turma de 1967 do Curso
de Sociologia e Política do Instituto de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de
Pernambuco. Na ocasião, a seu pedido, Manoel Correia foi incumbido de representá-lo e ler
seu discurso.
Contudo, a formatura em João Pessoa ocorria em um contexto distinto e Caio Prado
Júnior negou a ideia de remeter um discurso, que ele mesmo havia vislumbrado: “(...) além do
pouco interesse que isso teria, que poderia eu dizer?”, questionou. Sua opção de não repetir o
gesto de enviar um texto anexo à carta foi justificada:
Na situação em que me encontro, e processado precisamente por ter dado uma
entrevista a estudantes, encontro-me naturalmente coagido e impossibilitado de
exprimir meu pensamento. Infelizmente é esta a situação em que nos encontramos,
e somente nos resta esperar que ela se modifique. E nisto o papel de vocês é
naturalmente muito grande. Só me resta solicitar-lhes que transmitam à turma de
formandos que tanto me honraram com a escolha de meu nome para paraninfo, os
meus agradecimentos. E com ele meu apelo para que, louvando-se no ocorrido e
que tão lamentavelmente perturbou o programa de festejos de formatura, ele se
compenetrem da triste situação política em que o país se encontra, e não poupem
esforços, mesmo depois de formados, para lutarem por um Brasil melhor.145
Logo se percebe que a conjuntura instaurada pela ditadura militar foi responsável por
imputar a Caio Prado Júnior restrições e condicionamentos de diversas ordens. Obviamente,
porém, em virtude da visibilidade que tinha como escritor consagrado e de renome
internacional entre intelectuais, estudiosos e militantes, a repressão se abateu sobre ele com
intensidade
muito
menor
quando
comparada
à
onda
de
perseguições,
prisões,
desaparecimentos e assassinatos que se abateu sobre sindicalistas, militantes e dirigentes de
organizações que se articulavam para a resistência ao novo regime. De qualquer modo, é certo
que a etapa histórica aberta pelo golpe de 1964 exerceu influência decisiva para que Caio
Prado sistematizasse em livro teses que já vinha desenvolvendo pelo menos desde o final dos
anos 1950, sempre enquadradas na sua interpretação historiográfica do Brasil, elaborada nos
145
Carta às formandas da Universidade Federal da Paraíba, de 4 de dezembro de 1968 (Código: CPJ-CA032,
AIEB).
69
anos 1930 e 1940. Como veremos, a nova situação, direta ou indiretamente, contribuiu para
que escrevesse tanto o livro A revolução brasileira quanto a tese com a qual concorreria, em
1968, a vaga para a cátedra de História do Brasil da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da Universidade de São Paulo (FFCL/USP), História e Desenvolvimento.
70
9.
A teoria da revolução em debate
Apesar do fim da Revista Brasiliense em 1964, a linha de publicações da Editora
Brasiliense foi mantida até 1968. A produção de livros foi facilitada por algumas medidas do
governo Castelo Branco e o crescimento do mercado editorial foi uma marca da segunda
metade dos anos 1960. Contudo, a partir de 1968 – depois da adoção de medidas como o Ato
Institucional nº 5 (AI-5), a censura e a proibição de publicação que se opunham ao governo –
a editora passou a enfrentar dificuldades financeiras, sendo levada a queimar parte de seus
estoques. 146
Ainda assim, as editoras que publicavam livros de autores socialistas e marxistas
continuaram funcionando por algum tempo. De qualquer modo, a continuidade na edição de
livros não contemplava de todo as aspirações da esquerda brasileira em realizar o diálogo
político e teórico possibilitado por publicações periódicas como a Revista Brasiliense,
principalmente em um momento que exigia um profundo balanço. Em certa medida, o órgão
que preencheu a lacuna deixada foi a Revista Civilização Brasileira (RCB), que existiu entre
1965 e 1968. Tendo M. Cavalcanti Proença como diretor responsável e Ênio Silveira como
secretário do Conselho de Redação (posteriormente substituído por Moacyr Félix), a RCB
tornou-se a revista política e cultural de maior difusão na história deste tipo de imprensa
periódica no país e foi considerada um dos marcos fundamentais na história da cultura e do
pensamento político progressista no Brasil no século XX.147 Não por acaso, portanto, foi
justamente por meio deste periódico que o debate a respeito da revolução brasileira ganhou
corpo. Nela se encontram diversos artigos sobre o assunto, publicados antes e depois do
lançamento do livro A revolução brasileira em meados de 1966 pela editora Brasiliense –
bem como a resposta de Caio Prado Júnior a um destes escritos, que posteriormente foi
incorporada às novas edições da obra como um complemento148.
146
Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p. 163.
147
Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma
revisão histórica. São Paulo: Ática, 1977, p. 205-7.
148
Ver MARTINS, Luciano. Aspectos políticos da revolução brasileira. Revista Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, ano I, n. 2, mai., 1965, p. 15-37; GUEDES, Fausto. Revolução brasileira: nova fase de um debate antigo.
Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 3, jul., 1965, p. 13-25; TAVARES, Assis. Causa da
derrocada de 1º de abril de 1964. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 8, jul., 1966, p. 9-33;
SILVEIRA, Cid. Teoria marxista da revolução brasileira. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n.
8, jul., 1966, p. 127-45; TAVARES, Assis. Caio Prado e a teoria da revolução brasileira. Revista Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 11-12, mar., 1967, p. 48-80; MALTA, Cesar. ‘A revolução brasileira’, de
71
Mas outros órgãos também passaram a veicular artigos analisando a obra de Caio
Prado: a revista Teoria e Prática, em sua segunda edição, publicou artigo de Ruy Fausto
intitulado “A Revolução Brasileira de Caio Prado Jr.”, de agosto de 1967; a revista
Argumentos, em edição não datada, publicou o artigo “Os equívocos de Caio Prado Júnior”,
de Paulo Cavalcanti; até mesmo a Revista Mexicana de Sociologia, em 1967, publicou texto
sobre o tema, de autoria do brasileiro Ruy Mauro Marini, intitulado “Crítica a A revolução
brasileira, de Caio Prado Júnior”.
Marini havia lido a edição do livro em português, mas o público de língua castelhana
não tardaria a ter acesso ao texto caiopradiano: em carta de 15 de fevereiro de 1967, o
argentino A. Peña Lillo entrou em contato com Caio Prado Júnior demonstrando interesse em
traduzir e publicar seu livro. No mesmo mês o autor responde, remetendo um exemplar,
impondo suas condições de direitos autorais e aceitando a sugestão de que Rodolfo Puiggrós
traduzisse a obra. A esse respeito, disse Caio Prado que a escolha do tradutor “muito me
satisfaz e honra, pois há muito conheço sua grande obra de interpretação histórica.”
149
Em
carta do dia 19 de março, o editor sugere a inclusão de um prefácio do tradutor. Em resposta
do dia 31 do mesmo mês, Caio Prado Jr., editor experiente, apresenta sua concordância e
solicita a fixação de prazos para a publicação:
Rogo-lhes todavia fixarem um prazo, que sugiro seja de um mês para a decisão
sobre a publicação, e em seguida, seis meses para a publicação. Os srs.
compreenderão certamente meu interesse em ver o assunto logo resolvido, tanto
mais que tenho recebido outras ofertas de edição.150
A edição em castelhano é publicada com o prefácio assinado por Rodolfo Puiggrós, mas a
tradução leva a assinatura de Alfredo Cepeda. O livro não apresenta data de lançamento151,
mas independentemente de haver sido cumprido o prazo sugerido pelo autor o importante é
que em pouco tempo os leitores latinoamericanos tiveram acesso ao “best-seller con dos
edicciones agotadas de inmediato”, ainda que os “sectários” preferissem “no leerlo para
mantener incólume su fe y no hacerse sospechosos ante la autoridad de sus respectivas y
Caio Prado Jr. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano I, n. 9-10, set-nov., 1966; PRADO JÚNIOR.,
Caio. Adendo a ‘A revolução brasileira’. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, ano II, n. 14, jul., 1967.
149
Carta a A. Peña Lillo, de 28 de fevereiro de 1967 (Código: CPJ-CA152, AIEB).
150
Carta a A. Peña Lillo, de 31 de março de 1967 (Código: CPJ-CA150, AIEB).
151
Cf. PRADO JÚNIOR. Caio. La revolucion brasileña. Buenos Aires: A. Peña Lillo editor, s/d. De acordo com
Lincoln Secco, “Céspedes” é um pseudônimo utilizado por Puiggrós. Fica a questão, porém, sobre os motivos
que levariam o argentino a assumir a autoria do prefácio, mas não da tradução, bem como sobre a diferença entre
as assinaturas presentes na edição de A. Peña Lillo, “Cepeda”, e aquela atribuída por Secco. Cf. SECCO,
Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 113.
72
estériles sectas.”152 O livro teve uma segunda edição ainda em 1966, e outras em 1968, 1972,
1977 e 1978. Em 1987 chegou à sua sétima edição. Em janeiro de 1970, dava-se início aos
contatos para o processo de tradução do livro para a língua japonesa.153
A sorte das edições do livro e das publicações que veicularam artigos comentando-o
ilustra bem o impacto que causou na intelectualidade e na militância de esquerda brasileira e
latinoamericana, sobretudo por se integrar a um movimento mais amplo de balanço e revisão
das formulações no campo de esquerda como expressão “de um momento em que as
consciências progressistas se viram obrigadas a debruçar sobre si mesmas para autoavaliação”:
No torvelinho que se seguiu a 1964, não será arriscado afirmar que duas análises
provocaram intenso debate e revisão ideológica nas searas progressistas: a
primeira, no plano mais geral, de autoria de R. Stavenhagen, as Sete Teses
Equivocadas Sobre a América Latina (1965), contestando as interpretações
dualistas que embebiam os estudos sociais, econômicos, políticos, antropológicos
(e que iam de Furtado a Lambert, de W. Sodré a Bastide); e a segunda, de Caio
Prado Júnior, A Revolução Brasileira (1966), no plano interno, e mais
especificamente dirigida ao pensamento de esquerda, apontava os desvios das
interpretações ditas marxistas, que produziram diagnósticos pouco eficazes e que
ajudaram a levar à derrocada dos setores progressistas em 1964. 154
Vivia-se uma grave crise na esquerda brasileira como consequência da derrota de 1964.
Como era de se esperar, por desconstruir teses então hegemônicas neste campo político, Caio
Prado Júnior recebeu duras críticas tanto de quadros do Partido Comunista Brasileiro (PCB),
vide os artigos publicados na Revista Civilização Brasileira, como de seus dissidentes, vide o
folheto intitulado A questão agrária no Brasil e a contra-revolução do Sr. Caio Prado, de
autoria de Wladimir Pomar, que à época militava no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e
considerava o livro “um verdadeiro requisitório contra o movimento revolucionário”.155
Os militantes de esquerda cobravam explicações para a derrota de 1964 e o PCB era
identificado como o principal responsável pelo fracasso e desmoralização no enfrentamento
152
PUIGGRÓS, Rodolfo. Prologo. In: PRADO JÚNIOR. La revolucion brasileña. Buenos Aires: A. Peña Lillo
editor, s/d, p.12-3.
153
Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 113. Neste período, também os leitores
de língua inglesa teriam contato com a produção intelectual de Caio Prado Júnior. Em 31 de novembro de 1968,
o autor recebeu carta de Berkeley, Califórnia, da University of California Press, informando a publicação de The
Colonial Backgorund of Modern Brazil, a tradução de Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. Cf. Carta
de Caio Prado Júnior a Hartan Kessel, de 11 de dezembro de 1968 (Código: CPJ-CA130, AIEB).
154
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma revisão
histórica, p. 203.
155
POMAR, Valter. A questão agrária no Brasil e a contra-revolução do Sr. Caio Prado. Rio de Janeiro:
Edições Alvorada, 1969, p. 1. A assinatura do folheto por “Valter Pomar” correspondia ao pseudônimo utilizado
pelo autor.
73
aos golpistas. Entre os membros da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária
(ORM-Polop) e demais organizações sob influência do pensamento de Leon Trotsky e Rosa
Luxemburgo, A revolução Brasileira teve especial aceitação. Segundo Jacob Gorender, o
livro de Caio Prado “abriu as cabeças”. Naquele momento de intensos debates, era “uma voz
no tom que a esquerda queria ouvir”
156
. Mas se suas críticas às teses defendidas pelo PCB
eram compartilhadas por novos setores da esquerda, suas propostas de ação e reformas iam de
encontro com a convicção de algumas dissidências comunistas, para as quais a revolução
brasileira teria um caráter socialista, como sugeriam as análises de Che Guevara para a
América Latina, o crescimento do trotskismo no Brasil e o próprio prestígio que as posições e
a influência orgânica da Polop passariam a ter.157 Segundo Denise Rollemberg:
Algumas organizações, seguindo as análises da Polop, sustentaram que a revolução
seria socialista; outras continuaram, como na tradição pecebista, a ver a revolução
em duas etapas, de libertação nacional e, em seguida, socialista. A reatualização do
marxismo acontecia num contexto de revalorização da revolução no cenário
internacional, com o foquismo e o maoismo. O foquismo “adaptava” a revolução
para a realidade latino-americana, respaldada numa certa leitura da significativa
vitória cubana; o maoismo, legitimado igualmente por outra revolução vitoriosa, a
chinesa, “adaptava” a revolução num país com forte tradição rural. 158
Em um cenário como este, no qual o balanço e as perspectivas para a revolução no Brasil e na
América latina era pautas prioritárias nos diferentes setores da esquerda, o livro de Caio Prado
Júnior foi reconhecido como leitura obrigatória para quem quer que estivesse envolvido
nestas discussões e independentemente das posições que assumissem diante dele.
Significativo, de qualquer modo, é o depoimento do editor e militante comunista
Antônio Roberto Bertelli a Lincon Secco em maio de 2007:
Quanto ao livro de Caio Prado, penso que não me causou nenhuma comoção.
Sabíamos e acompanhávamos suas posições por meio da Revista Brasiliense.
Talvez o que tenha causado algum espanto foi o fato de ter sido lançado depois do
golpe. Mas, quanto à sua posição teórica, não era novidade. Lembre-se que Alberto
Passos e Rui Facó já tinham escrito sobre isso, como Fragmont Borges e outros. 159
156
GORENDER, Jacob. Do pecado original ao desastre de 1964. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). História e
ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 263.
157
Cf. GARCIA, Marco Aurélio. Um ajuste de contas com a tradição. In: D’INCAO, Maria Angela (org.).
História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, p. 271-8.
158
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucília de Almeida Neves (org.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século
XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (O Brasil Republicano, v. 4), p. 59.
159
BERTELI, Antônio Roberto. apud SECCO, Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 114.
74
Certamente, o contexto de crise na esquerda contribuiu para que as posições de Caio Prado Jr.
– uma vez reunidas, sistematizadas e publicadas em um único volume – tivessem grande
repercussão entre os militantes.
Mas, afinal, a qual “posição teórica” Bertelli se refere?
Caio Prado Júnior parte do princípio de que a elaboração de uma teoria da revolução
adequada às especificidades brasileiras dependeria da compreensão das contradições
particulares do país. Afinal, não se deveria buscar “a solução dos pendentes problemas
econômicos, sociais e políticos” senão “nas mesmas circunstâncias em que tais problemas se
propõem”. Portanto, “as respostas a essa problemática e as diretrizes que se hão de adotar e
seguir” teriam origem “no mesmo processo histórico” em que se configuram o próprio
problema.160
Caio Prado Júnior rejeitava a interpretação daqueles que chamou de “pseudomarxistas”,
segundo a qual a humanidade em geral e cada país em particular deveria passar por etapas
sucessivas em uma evolução histórica que se processaria invariavelmente até dar afinal no
socialismo.161 Portanto, quando trata da propalada existência de “restos feudais” no Brasil dos
anos 1960 ou a presença de feudalismo em algum momento de nossa história, sai em busca
dos problemas metodológicos que levaram a tais conclusões equivocadas.
Para ele, não teriam sido questionadas as formulações do Programa da Internacional
Comunista adotado pelo IV Congresso Mundial, realizado em setembro de 1928, em Moscou,
para os países “coloniais”, “semicoloniais” e “dependentes”, enquadrados em bloco no
mesmo esquema decalcado do modelo europeu. Com isso, ao ignorar as particularidades
daqueles países e do Brasil em particular, aquelas formulações defendiam a noção de que
nestas regiões o capitalismo teria sido precedido pelo feudalismo, cujas reminiscências
supostamente teriam se estendido no tempo. Sua conclusão é de que buscou-se a coincidência
entre o “esquema presumido” e os “fatos observados”, forçando a adequação da realidade no
“molde prefixado”. As evidências que não pudessem servir às “tentativas de deformação e
enquadramento” foram postas de lado e não foram consideradas. As bases de tal interpretação
equivocada seriam encontradas na negligência em relação ao método dialético de análise e
interpretação históricas, que, segundo o autor, teria como principal contribuição “a explicação
dos fatos e das situações históricas pela emergência progressiva destes dentro de um processo
160
Cf. PRADO JÚNIOR. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 14. Doravante RB.
161
Cf. RB, p. 32.
75
em permanente devenir”. Ao se projetar “para o futuro numa perpétua renovação”, não
permitindo que o passado pudesse se repetir, a evolução da história, sob tal ponto de vista,
não poderia ser fixada em esquemas preestabelecidos. 162
Portanto, o equívoco mais agudo foi o de
(...) partir como se fez no caso da interpretação da evolução brasileira , da
presunção, admitida a priori, de que os fatos históricos ocorridos na Europa
constituíam um modelo universal que necessariamente haveria de se reproduzir em
quaisquer outros lugares e, portanto, no Brasil também. Essa maneira de abordar a
consideração dos fatos históricos, escusado dizê-lo, é inteiramente descabida. 163
Realizava-se a elaboração de teorias “sob o signo de abstrações, isso é, de conceitos
formulados a priori e sem consideração adequada dos fatos” e “procurando-se posteriormente
(...) encaixar nesses conceitos a realidade concreta”; os chamados “fatos reais” sofriam um
processo mais ou menos forçado de adaptação “aos conceitos aprioristicamente
estabelecidos”. A teoria da revolução brasileira, em função da “longa fase de acentuado
dogmatismo que imperou em todo pensamento marxista” contribuiu para consolidar
“concepções falsas e em inteira discordância, muitas vezes, com os fatos reais” e ainda
“impôs uma certa maneira de considerar os fatos econômicos, sociais e políticos”: ao invés de
partir da “análise daqueles fatos como realmente eles se apresentam, a fim de os interpretar e
determinar a sua dialética”, realiza-se operação oposta, ou seja, “admite-se a priori essa
teoria, e procura-se nela encaixar os fatos, por mais que eles se deformem nessa arbitrária e
singular manipulação”.164
Assim, “as graves distorções observadas na interpretação da realidade política,
econômica e social brasileira contribuíram para os erros que vinham sendo cometidos desde
longa data na ação política da esquerda, e que levaram afinal ao desastre de 1º de abril”.
Segundo o autor, estes erros
(...) se agravaram consideravelmente depois da renuncia de Jânio Quadros em
agosto de 1961, degenerando então nesse elementar e grosseiro oportunismo a que
fizemos referência, e que caracterizou a situação deposta em abril de 1964. Não é
de admirar que as esquerdas brasileiras, privadas de uma teoria satisfatória e capaz
de as conduzir com segurança a seus objetivos, se tivessem deixado levar pelas
seduções de demagogos instalados no poder.165
162
Cf. RB, p. 34-7.
163
RB, p. 33.
164
RB, p. 29-30.
165
RB, p. 23.
76
Caio Prado Júnior considerava que o conceito de “revolução” deveria ser compreendido
como um processo histórico marcado por “reformas e modificações econômicas, sociais e
políticas sucessivas, que, concentradas em período histórico relativamente curto, vão dar em
transformações
estruturais
da
sociedade”.
A
resultante
de
tal
processo
seria,
consequentemente, mudanças “das relações econômicas e do equilíbrio recíproco das
diferentes classes e categorias sociais”. Assim, analisava a conjuntura vivida pelo país como
potencialmente revolucionária, pois se encontraria em face ou na iminência de um momento
“em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do
país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas”. Portanto, o
Brasil finalmente estaria em condições de solucionar “as aspirações da grande massa de sua
população que, no estado atual, não são devidamente atendidas”. 166
Contudo, se por um lado identificava a possibilidade de mudanças estruturais, por outro
lado não fazia uma avaliação otimista da realidade:
O Brasil se encontra num desses instantes decisivos da evolução das sociedades
humanas em que se faz patente, e sobretudo sensível e suficientemente consciente a
todos, o desajustamento de suas instituições básicas. Donde as tensões que se
observam, tão vivamente manifestadas em descontentamento e insatisfações
generalizados e profundos; em atritos e conflitos, tanto efetivos e muitos outros
potenciais, que dilaceram a vida brasileira e sobre ela pesam em permanência e
sem perspectivas apreciáveis de solução efetiva e permanente. 167
De acordo com Caio Prado Júnior, a situação do país era “efeito e causa ao mesmo tempo” da
inconsistência política e da ineficiência da administração pública em seus diversos setores e
escalões, de desequilíbrios sociais e da crise econômica e financeira que vinha se arrastando
de longa data e também da insuficiência e precariedade das bases estruturais do país. “É isso
que caracteriza o Brasil de nossos dias”. 168
Sua proposta programática e estratégica para uma adequada orientação da revolução
brasileira depositava um papel decisivo na melhoria das condições de trabalho e remuneração
dos trabalhadores rurais, a partir do impulso e organização do sindicalismo agrário e de sua
aliança com o proletariado urbano169. Por este motivo, criticava o fato do PCB negligenciar o
Estatuto do Trabalhador Rural em seu programa170.
166
RB, p. 11-12.
167
RB, p. 12.
168
RB, 12-3.
169
Cf. RB, p. 173-5.
170
Cf. RB, p. 54.
Portanto, se carregava consigo o
77
pessimismo da razão ao analisar a situação do país, isso parecia não ser motivo para deixar de
lado o otimismo da vontade, no que se refere às perspectivas para a transformação profunda
desta mesma realidade a partir do fortalecimento das lutas no campo:
Essa luta, embora ainda incipiente e em geral esporádica e sem continuidade vem
se intensificando. A sua potencialidade se revela muito bem, entre outros, nos
grandes movimentos de massa verificados nas usinas e engenhos do Nordeste,
particularmente em Pernambuco. Além disso, embora ainda pese sobre a
generalidade dos trabalhadores rurais brasileiros uma intensa ação repressiva
policial que depois do golpe de 1º de abril de 1964 ainda se ampliou muito, a
mobilização daqueles trabalhadores vem ganhando força e impulso, desde a
organização sindical até o desencadeamento de greves. 171
Sua avaliação parecia não admitir um eventual cenário no qual a ditadura poderia
recrudescer a repressão, como de fato veio a acontecer a partir de 1968. Segundo Caio Prado,
não havia dúvidas de que “superada a situação política atual derivada do golpe reacionário e
repressivo de 1º de abril, o movimento ascensional das massas rurais se reatará em ritmo
acelerado”.172 A organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1984
talvez tenha confirmado esta previsão, mas apenas em parte: a mobilização das massas rurais se
realizou, mas em desacordo com a proposta política do autor, ou seja, em torno da reivindicação pela
terra e não por melhores condições de trabalho e salário. 173
De qualquer modo, a preocupação maior de Caio Prado Júnior era com as condições de
vida e os interesses imediatos e estratégicos do povo brasileiro, com especial atenção para a
massa de trabalhadores rurais. Neste sentido, no discurso proferido ao receber o troféu Juca
Pato demonstrou preocupação com aquela conjuntura, na qual pareciam coincidir, por um
lado, “um máximo de necessidades e aspirações do povo brasileiro, a exigirem amplos horizontes e
perspectivas”, e por outro lado, “o projeto, bem marcado e abertamente proclamado pelas atuais forças
171
RB, p. 138.
172
RB, p. 138.
173
Em relação à luta pela terra, afirma o autor: “Os movimentos e agitações que tem por base a reivindicação da
terra são de pequena expressão, e assim mesmo se relacionam em regra com situações muito particulares e
específicas (...) a reivindicação e a luta pela terra não tem no Brasil a significação revolucionária que se lhe
pretende atribuir com base na simples teoria. Não é suficiente o simples fato do elevado índice de concentração
da propriedade fundiária rural, como se verifica no Brasil, e de a grande maioria dos trabalhadores rurais não
disporem dessa propriedade, para daí se concluir, sem mais (como tão frequentemente se faz), que a questão da
terra se propõe de forma generalizada, e muito menos ainda que se propõe em termos revolucionários”. RB, p.
138-9. A discussão sobre a questão agrária brasileira em Caio Prado Júnior nos afastaria demasiadamente de
nossos objetivos. Para a análise da questão, ver REGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil: Caio Prado
Júnior – continuidades e mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Editora da Unicamp,
2000 (principalmente o capítulo “A pertinácia do atraso: a questão agrária”, p. 175-204); SECCO, Lincoln. Caio
Prado Júnior: o sentido da revolução (principalmente o capítulo “A questão agrária”, p. 203-26); D’INCAO,
Maria Angela (org.) História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior (principalmente os capítulos da parte “A
questão agrária”, p. 141-205); SANTOS, Raimundo. Caio Prado Júnior: valorização do trabalho e sindicalismo
rural. In: idem. Agraristas políticos brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2007, p. 15-51.
78
dominantes do país, de limitar aquelas perspectivas e encerrá-las na tutela de um estreito horizonte”.174
Por este motivo questionou contundentemente a “formula político-filosófica que orienta a
presente situação brasileira”, que faz o país caminhar para em direção ao referido “estreito
horizonte”:
Pois não põe ela a sua grande e principal ênfase na segurança nacional, erigidas
em princípio diretor da política e administração pública? O que pode significar esta
“segurança nacional” elevada do simples nível de procedimentos policiais, para o
plano da filosofia política, senão a consagração do imobilismo econômico, social e
político?175
Para ele, não seria permissível “reduzir as diretrizes da vida brasileira à luta contra a
corrupção, a subversão e a instabilidade da moeda; e pautá-la por reformas ditadas por
tecnocratas, ou que se julgam tais, encerrados em seus gabinetes ministeriais e Escolas
privilegiadas”. Prosseguiu o discurso criticando isto que chamou de “tecnocracia
economicista”, que tentava “resolver os problemas brasileiros por modelos econômicos e
outras fórmulas misteriosas somente acessíveis, no fundo e na forma, aos iniciados”, e
ademais não considerava que “estão em jogo, no caso, fatos sociais, humanos”. Inserida,
portanto, “neste terreno que é o do comportamento de seres racionais, e não de objetos
físicos”, a solução dos problemas prementes da realidade brasileira “implica a determinação
de indivíduos livres, e não se consegue portanto sem o consenso destes mesmos
indivíduos”.176
Mas, como hoje sabemos, não foi na busca de consenso que o regime alicerçou a
principal base da indispensável estabilidade política que garantiria um ambiente propício à
implementação seu projeto econômico de desenvolvimento, que ficaria conhecido como o
“milagre brasileiro”: o destaque seria dado à coerção, como o próprio Caio Prado Júnior teve
a oportunidade de verificar pessoalmente em mais de uma ocasião.
174
Discurso de Caio Prado Júnior na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de
março de 1967. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
175
Ibidem.
176
Ibidem.
79
10. Controle ideológico e o concurso na USP
Segundo Nilson Borges, a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) criada pela Escola
Superior de Guerra (ESG) serviu como base ideológica do regime e contribuiu para a
formação do aparato de informações da nova ordem institucional. Foi o mecanismo utilizado
pelas Forças Armadas para legitimar sua ação, definindo os chamados inimigos internos que
deveriam ser contidos e traçando fronteiras ideológicas que separavam uma parte do povo de
outra no interior da nação – uma noção geopolítica que encontra sua origem na situação de
guerra fria. As lutas políticas que se processavam no interior do Estado-nação eram, assim,
“decompostas em função de elementos reais ou potenciais de subversão que eles, militares,
poderiam conter e das medidas contra-revolucionárias que aí corresponderiam”.177 Com isso,
a política passou a se submeter à geopolítica e à estratégia militar:
Toda a política nacional, portanto, é reorientada em função da segurança, sendo
que as esferas militar e política são indissoluvelmente ligadas, de maneira que a
política deixa de ser uma arte civil para se transformar em arte militar. A guerra
interna ou a eliminação do inimigo interno passa a ser uma estratégia imposta pelos
imperativos da segurança nacional. A estreita ligação entre a Doutrina de
Segurança Nacional e o quadro global das novas estratégias de guerra interna e da
luta anti-subversiva explica a concepção que esta doutrina faz da luta política como
forma de guerra interna. 178
Entre os diversos papéis exercidos pelo aparato militar, o aparelho repressivo organizado e
implementado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) foi o que mais se sobressaiu na
tarefa de garantir os princípios fundamentais da Doutrina. O SNI foi criado com o apoio de
consultoria norteamericana três meses após o golpe militar e inicialmente chefiado por
Golbery do Couto e Silva. Nos primeiros anos de existência, o órgão buscava estruturar-se e
atuava como fornecedor de informações para o presidente Castelo Branco. Depois, com a
vitória da chamada linha dura das Forças Armadas consolidada na posse de Costa e Silva, o
Serviço, como era chamado, teve suas atribuições ampliadas pelo Conselho de Segurança
Nacional, passou a ser dirigido pelo ministro-chefe da Casa Militar, o general Jayme Portella
177
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA &
DELGADO, O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 28.
178
Ibidem, p. 28.
80
de Mello e transformou-se no “monstro”, epíteto criado posteriormente por Golbery, seu
criador. 179
Foi amparada nestes dispositivos que a ditadura militar pôde exercer o controle
ideológico nas universidades brasileiras em geral, e na USP em particular.
Na edição de 15 de maio de 1964 do jornal O Estado de São Paulo, publicou-se carta de
Paulo Duarte endereçada ao editor Júlio de Mesquita Filho relatando o que se passava na USP
a partir do golpe. Nela é descrita o modo como se deu a prisão de Mário Schemberg; a
invasão da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia; a invasão de sala de aula da
Faculdade de Filosofia com professor estrangeiro lecionando; a prisão motivada por aposta; a
invasão do campus de Ribeirão Preto; as prisões e perseguições em São José do Rio Preto;
bem como o abaixo-assinado à Câmara dos Deputados solicitando a exclusão das Ciências
Sociais do currículo.180 Não se tratava, contudo, de ações que contrariavam a administração
central da instituição. Antes pelo contrário, a repressão policial contou não com sua
conivência, mas com sua colaboração. O reitor da universidade estabeleceu um mecanismo
interno de “caça às bruxas” reunindo um grupo ligado diretamente aos órgãos de segurança
que visava promover expurgos com base em critérios pessoais e ideológicos, um artifício
produzido sob medida para o objetivo de permitir aos setores conservadores o monopólio de
poder na universidade.181
A existência de uma comissão especial secreta instituída e nomeada pelo reitor Gama e
Silva foi denunciada pela imprensa em artigo na Folha de São Paulo do dia 26 de julho de
1964:
Há indícios, infelizmente fortes, de que pelo menos em certos núcleos da
Universidade de São Paulo a política do 'dedo-duro' se esteja implantando, visando
de maneira particular a alguns elementos mais brilhantes daquela corporação. Há
indícios de que, alegadamente em nome de ideais identificados com os da
revolução, se procura atingir a própria carreira de elementos de valor que
naturalmente buscam a cátedra. Na decisão de concursos já estaria pesando a
suposta ideologia dos candidatos. 182
179
Cf. Ibidem, p. 23. FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda; os pilares básicos da
repressão. In: FERREIRA & DELGADO, O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do
século XX, p. 175-6.
180
Cf. ASSOCIAÇÃO dos docentes da USP, O controle ideológico na USP (1964-1978). São Paulo, Adusp,
2004, p. 13-6. Doravante ADUSP.
181
Cf. Ibidem, p. 13-6.
182
Ibidem, p. 17.
81
Tal postura de restrições ideológicas em relação aos concursos para a admissão de novos
docentes, porém, não era uma completa novidade, pois já havia atingido o próprio Caio Prado
Júnior ainda em 1963, quando foi convidado a dar aulas na Faculdade Estadual de Araraquara
– na época, um dos institutos isolados que posteriormente passariam a fazer parte da
Universidade Estadual Paulista, a Unesp. O governo do estado vetou sua contratação por
razões políticas, mesmo depois de seu nome ter sido aprovado pela Congregação da
instituição. 183
No dia 9 de outubro de 1964, o jornal Correio da Manhã publicou o fac-simile das duas
últimas páginas do relatório final da referida comissão, contendo, inclusive, a assintaura de
seus membros. Ao final do relatório a comissão concluía “serem realmente impressionantes as
infiltrações de ideias marxistas nos vários setores universitários, cumprindo sejam afastados
daí os seus doutrinadores e os agentes dos processos subversivos”. Ao final, sugeria-se a
suspensão dos direitos políticos de 52 membros da comunidade universitária: 44 professores e
8 alunos e funcionários184. A elaboração de tal relatório ocorreu no contexto da realização de
IPMs no segundo semestre daquele ano. Na Faculdade de Filosofia um IPM foi instalado sob
um “clima de grande hostilidade por parte de alunos e professores”:
Foram ouvidos Mário Schenberg, Cruz Costa e Florestan Fernandes. Fernando
Henrique Cardoso, também acusado, já havia então aceito o convite para lecionar
no exterior e deixado o país. Durante o inquérito, foi preso o professor Florestan,
em virtude da carta protesto [de 9 de setembro de 1964] que entregou ao coronel
responsável e que constituía apenas uma defesa da dignidade da função de
professor. A onda de protestos provocada por esta prisão parece ter contribuído
para o encerramento do IPM185.
Em fins de 1966 os acusados foram absolvidos e o clima na universidade parecia
melhorar. A Universidade de São Paulo como um todo passava por momentos conturbados,
mas na opinião de Fernando Novais o Departamento de História tinha uma peculiaridade:
Ao contrário de outros departamentos, na História havia colegas denunciando
colegas, pessoas que torciam pelo golpe. Creio que em outros departamentos não
havia esse tipo de atitude. De certa forma, a História era mais conservadora. Não é
que seja mais conservadora como domínio do conhecimento, mas a História é
diferente desses outros campos. 186
183
Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr.: o sentido da revolução, p. 107.
184
Cf. ADUSP, p. 18
185
ADUSP, p. 29.
186
NOVAIS, Fernando. apud MORAES, José Geraldo Vinei; REGO, José Marcio (dir.). Conversas com
historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 122.
82
Não nos parece que a patrulha ideológica, o apoio aos militares e as denúncias a colegas de
trabalho se restringia ao departamento de História, mas é possível que naquele setor o
conservadorismo fosse mais pronunciado. Avaliação semelhante à de Novais pode ter sido
feita por Sérgio Buarque de Holanda e, somada ao contexto geral da USP, contribuído para
que começasse a pensar em se aposentar ainda em 1965. Maria Odila da Silva Dias relata que
logo depois de defender seu mestrado naquele ano sob orientação de Sérgio Buarque, ele teria
começado a falar em se aposentar na USP. Entre 1965 e 1968, o historiador esteve envolvido
com um comitê de estudos das culturas latino-americanas da UNESCO, com a realização de
conferências em universidades no exterior, como as de Columbia, em Harvard e na Califórnia,
e com a atividade de docência nas universidades de Indiana e do Estado de Nova Iorque, em
Stony Brook.187 Em certo sentido, portanto, a intenção de se aposentar não significava,
necessariamente, interromper sua atividade intelectual. Mas uma vez tomada a decisão, teria
afirmado que gostaria que Caio Prado Júnior o sucedesse.
Eram muito amigos, respeitavam muito um ao outro. (...) Eram duas personalidades
muito diferentes, tinham enorme prazer de conversar e um grande respeito um pelo
outro. Eram amigos, se admiravam, cada um tinha o seu espaço, não se percebia
entre eles nenhuma sombra188.
Segundo a historiadora, Sérgio considerava Caio Prado o grande historiador que o Brasil
havia produzido no século XX. Ademais, era um dos poucos intelectuais que, além de
envergadura suficiente para substituir um historiador do porte de Sérgio Buarque, tinha o
título de livre-docente, pré-requisito que lhe autorizava a concorrer à cátedra na USP. Obteveo em 1954 com a tese Diretrizes para uma economia política brasileira, com a qual
concorreu para docente da cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito, a mesma na
qual tornou-se bacharel em 1928. De acordo com Iumatti, talvez o desejo do professor da
cátedra de História do Brasil da FFCL, com o convite para que ocupasse seu lugar na cadeira,
fosse motivá-lo a retomar os estudos históricos. Afinal, as últimas pesquisas historiográficas
de Caio Prado Júnior remontam aos anos 1940, ou seja, haviam se encerrado vinte anos antes,
aproximadamente. 189
Foi assim que, estimulado por amigos, em especial Sérgio Buarque de Holanda, Prado
Jr. aceitou o desafio, inscreveu-se no concurso e pôs-se a escrever a tese com a qual
187
Cf. SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Sergio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados, v. 8, n. 22,
set-dez, 1994, p. 269-71.
188
SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. apud MORAES & REGO, Conversas com historiadores brasileiros, p.
190-1.
189
Cf. IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual, p. 177.
83
concorreria ao cargo de professor titular do Departamento de História, intitulada História e
Desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do
desenvolvimento brasileiro. Ao que tudo indica, o concurso foi aberto antes que Sérgio
Buarque consumasse sua aposentadoria, que se efetivou somente em abril de 1969, revoltado
com afastamento compulsório dos professores da USP. Novas pesquisas nos arquivos da
universidade poderão elucidar esta questão com mais precisão.
No final de 1971, poucos meses depois de ser libertado de seu quinto aprisionamento,
Caio Prado Jr. redige as primeiras versões da apresentação do livro que visava levar ao
público a tese. Sua versão definitiva data de março de 1972 e tem início com um breve relato
sobre o surgimento e o destino dado ao seu texto:
O presente livro reproduz a tese com que pretendi um momento concorrer para a
livre-docência de História do Brasil na Universidade de São Paulo. Isto foi em
1968. Os notórios acontecimentos da época – em que se destaca, no meu caso
pessoal, o decreto que me “aposentou” no título de livre-docente da Faculdade de
Direito da U.S.P. – frustraram minha pretensão, e a tese foi arquivada. 190
Cabe registrar que a escola de história da USP naquele momento vinha sofrendo uma
influência cada vez mais pronunciada do marxismo, contando com três fatores para este
fenômeno: a recepção dos trabalhos de Albert Soboul e Pierre Vilar, que traziam novas
propostas no interior da escola dos Annales e vieram ao encontro das preocupações presentes
na sociedade brasileira, como a questão do desenvolvimento, da inserção no capitalismo e da
mudança social; as reflexões proporcionadas pela leitura das obras de Maurice Dobb, Paul
Sweezy, Paul Baran, Cristopher Hill e Heckerscher, centradas, principalmente, na transição
do feudalismo para o capitalismo, essencial para a compreensão da natureza da colonização,
da sociedade por ela gerada e das formas de inserção do Brasil no capitalismo; e a
reverberação destas influências, cujas questões levantadas ganhavam fôlego na escola de
sociologia da USP com as reflexões de Octávio Ianni, Florestan Fernandes e outros, que se
articulavam com as pesquisas de historiadores como Emília Viotti da Costa e Fernando
Novais, que vinham participando de grupos de estudos sobre o marxismo. Neste contexto, as
análises de Caio Prado Júnior constituíram um importante referencial para a historiografia da
escola uspiana. 191
190
PRADO JÚNIOR. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e a prática do
desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1978 (2ª Ed.), p. 7. A versão preliminar e a definitiva da
apresentação do livro encontram-se no Fundo Caio Prado Júnior do Arquivo do IEB.
191
Cf. CAPELATO, Maria Helena Rolim; GLEZER, Raquel; FERLINI, Vera Lucia Amaral. Escola uspiana de
história. Estudos Avançados, v. 8, n. 22, set-dez, 1994, p. 353 e 357. Registre-se que as autoras não estabelecem,
em seu estudo, uma divisão de tais influências em três fatores, sendo esta formulação de nossa responsabilidade.
84
Ainda assim, porém, o autor não se tornou docente da Universidade de São Paulo. Em
seu prefácio, não usa aspas por acaso ao falar do decreto que o “aposentou”. No dia 28 de
abril de 1969, Gama e Silva, como ministro da Justiça, assinava com Costa e Silva e Tarso
Dutra, ministro da Educação, um decreto que aposentava compulsoriamente servidores de
órgão da Administração Pública Federal, mas incluíam na lista três professores de uma
universidade estadual. Hélio Lourenço de Oliveira, Vice-Reitor em exercício substituindo
Gama e Silva, protestou. Em resposta, no dia seguinte (29 de abril) novo decreto foi assinado,
desta vez dirigido especificamente contra a USP, no qual se aposentava, ou demitia quando
fosse o caso, o Reitor e mais 23 professores. Caio Prado Júnior constava na lista, mas se
tratava novamente de uma grave incorreção no próprio texto do Decreto, pois entre os 24
professores da USP, seis não eram da instituição. Caio Prado Júnior não tinha cargo na
universidade, possuía apenas o título de livre-docente, que, como dissemos, lhe dava o direito
de poder vir a disputar um concurso de cátedra, tornando-o uma ameaça latente e constante
aos olhos dos professores conservadores da USP. Em função do equívoco, os atos foram
republicados “por terem saído com incorreções". Neste sentido, O Diário Oficial da União de
20 de maio de 1969 republicou o texto do decreto de 29 de abril com um adendo: "determinar
a cessação de quaisquer outros vínculos com a mesma Administração, ainda que não tenham
caráter empregatício". Entre os nomes listados estão Fernando Henrique Cardoso, Florestan
Fernandes, Paul Singer, Mário Schenberg, Octávio Ianni, Emília Viotti da Costa, Paula
Bieguelman, Maria Yedda Leite Linhares, entre outros192.
Maria Odila lembra-se que no dia seguinte à promulgação do decreto193 ela foi com
Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia a uma assembleia no prédio da antiga reitoria da
universidade.
Lembro também de Fernando Henrique Cardoso escrevendo o nome dos cassados
na lousa – que a 'Voz do Brasil' noticiava. Dentre eles, Octávio Ianni, Florestan
Fernandes, Emilia Viotti da Costa, Paula Bieguelman, Paul Singer e do próprio
Fernando Henrique Cardoso, cuja mão tremia ao segurar o giz. Na saída, a polícia
cercou o campus e nós tivemos que passar a noite no Crusp, e só nos soltaram por
volta das seis horas da manhã. No dia seguinte, professor Sérgio se aposentou num
De qualquer modo, suas análises estão de acordo com as opiniões de Mantega, Ricupero e Novais sobre o
marxismo uspiano e o grupo de estudos marxistas que se reuniu a partir do final dos anos 1950 em São Paulo,
que abordamos no capítulo “Caio Prado Jr. e o marxismo no pensamento econômico brasileiro” deste trabalho.
192
193
Cf. ADUSP, p. 45-59
Apesar de afirmar em sua entrevista que o ano era 1968, é provável que se referisse à primeira versão do
decreto, de 28 de abril de 1969.
85
gesto de solidariedade para com os professores compulsoriamente aposentados da
Universidade. O clima era pesadíssimo. 194
A essa altura, depois de decretado o AI-5 e cancelado o concurso, Caio Prado Júnior, a
contragosto, já considerava o exílio uma possibilidade real diante do fechamento do cerco
pela ditadura militar. A viagem a Santiago do Chile, uma verdadeira operação de fuga, foi
organizada por Danda Prado, sua filha, e contou com a colaboração de seu neto, Nelson, e
Roberto, seu filho. Pouco tempo depois ele resolveu voltar ao Brasil e, em março de 1970, se
apresentou à Justiça Militar. Ciente de que seria condenado, teria levado ao tribunal uma
maleta de roupa. O Marechal Stenio Caio de Albuquerque e Lima afirmou a Danda Prado que
a prisão de seu pai tinha por objetivo dar um exemplo aos intelectuais e assustá-los.
195
A
imprensa noticiava: “Caio Prado Jr. e Antonio Padua Prado Júnior, responsáveis pela Editora
Brasiliense, serão julgados hoje na 2ª Auditoria de Guerra por crime contra a Lei de
Segurança Nacional”.196 O Conselho Permanente de Justiça o condenou a quatro anos e seis
meses de prisão por considerar que mesmo não se podendo afirmar que “o acusado e outros
intelectuais de grande prestígio tenham sido provocadores diretos dessa criminalidade” – ou
seja, a luta armada – eles a admitiam “desde que os elementos conjunturais a aconselhem”.197
194
SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Apud MORAES & REGO, Conversas com historiadores brasileiros, p.
188.
195
Cf. WIDER, Maria Célia. Caio Prado Júnior: um intelectual irresistível, p. 18-19 e 100-2.
196
Julgamento na 2ª auditoria, Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3, 25 mar. 1970. Disponível em:
http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013. Na verdade, como indica a
exposição na exposição digital organizada pela Biblioteca Nacional, Antônio nunca trabalhou na Editora
Brasiliense, e sim na revista Revisão, onde foi publicada a entrevista que rendeu a Caio Prado Júnior a acusação.
197
2ª Auditoria: condenado Caio Prado Júnior, Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 4, 25 mar. 1970. Disponível em:
http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
86
11. Crítica aos economistas ortodoxos
Ao apresentar sua tese para a obtenção da cátedra de História do Brasil na USP, Caio
Prado Júnior tinha diversos objetivos. O principal era “pesquisar na evolução social histórica
brasileira e na formação econômica e social do país algumas das premissas essenciais da
problemática atual”, centralizada “em torno do ‘desenvolvimento’.”
198
Além disso, visava
também: demonstrar que é na história do país “que se encontrará a interpretação do atual
processo em curso do desenvolvimento brasileiro”; “destacar, no conjunto dos fatos que
constituem a nossa história, os traços fundamentais em que se articula aquele conjunto, e onde
se marca a direção geral e a dinâmica do processo histórico brasileiro”; proporcionar “a visão
precisa e apreciação segura do desenrolar daquele processo e dos fatores que em sua fase ora
em curso atuam no sentido do nosso desenvolvimento, bem como em sentido contrário”;
“mostrar o grande papel da historiografia e daqueles que a cultivam, na tarefa de encaminhar
a solução dos problemas brasileiros da atualidade”; e orientar convenientemente o
desenvolvimento, mas como este último objetivo seria matéria da política econômica e da
política, considerou-as “além dos limites” daquele trabalho. 199
Pouco antes de escrever a tese e na sequência das críticas que desferiu contra
“pseudomarxistas” que hegemonizaram a esquerda brasileira antes de 1964, Prado Jr. insistiu
em suas considerações sobre método. No discurso que proferiu na formatura da turma de 1967
do Curso de Sociologia e Política do Instituto de Ciências Políticas e Sociais da Universidade
de Pernambuco, confrontou a prática recorrente de se buscar modelos exógenos para pensar a
realidade brasileira.
Nós brasileiros somos por tradição já muito antiga, e diria mesmo original, eternos
buscadores de modelos estranhos, sempre desconfiados de nossas forças e
temerosos de nos afastarmos do já consagrado em outras plagas por autoridades
incontestes que submissamente respeitamos. (...) Penso que o temor e fuga de
nossas realidade verdadeira, esta nossa alienação do que constitui a experiência
vivida por nós como coletividade com seus caracteres específicos, em proveito de
padrões estranhos que nos são propostos com o selo de autoridades consagradas,
penso que isso decorre em última instância de nossa formação filosófica. Somos
ainda, no âmago de nossa racionalidade, escolásticos inconscientes. 200
198
PRADO JÚNIOR. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do
desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 1. Doravante HD.
199
200
HD, p. 31-2.
Discurso de paraninfo da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política, de novembro de 1967 (Código:
CPJ-CA040, AIEB).
87
Logo na sequência, esboçou algumas explicações para a predominância deste tipo de
pensamento e apontou uma alternativa que confere ao método o elemento essencial da ciência
e do conhecimento:
Herdamos isso de nossa mãe-pátria portuguesa, esse país que ao contrário do
restante da Europa, não teve Renascimento, e prolongou pelos tempos modernos
afora o respeito aristotélico dos textos consagrados. Ao livro da vida, temos a
tendência de preferirmos sempre o livro da letra de forma. E esquecemos que
“ciência” é essencialmente método; que “conhecimento” não é mais que
instrumental necessário para a interpretação de nossa experiência própria e sua
utilização com vistas à ação prática. E é isso somente, e não a exibição de rígidas
Verdades eruditas a serem decoradas e indefinidamente repetidas, ou receituário de
fórmulas a serem religiosamente e respeitosamente aplicadas e cumpridas. 201
No que é fundamental, como veremos, à exceção das considerações sobre as origens do
problema, é semelhante o caminho traçado pelo autor quando critica a orientação
metodológica dos comunistas do PCB e dos chamados economistas ortodoxos.
A negligência quanto àquilo que chamou de “nossa experiência própria” seria, para
Caio Prado Júnior, o principal equívoco de ambos os setores, uma vez que relegaram a
história a um plano secundário e marginal, “como simples ilustração, ou antes, como
elementos a serem ‘encaixados’ dentro do modelo proposto”
202
. Neste sentido, “a teoria do
desenvolvimento se faz em capítulo da economia, e a história se relega no assunto a um
subsidiário e apagado plano”. Com isso, a análise econômica, “como decorrência de sua
própria natureza e estilo de trabalho, e privada de uma suficiente perspectiva histórica, irá
ocupar-se do assunto com métodos específicos e exclusivos, e por isso altamente insuficientes
para a abordagem e consideração dele em seu conjunto e totalidade” 203.
É com base nestes fundamentos que lança sua critica ao economista norte-americano
W. W. Rostow, para quem o ponto de partida em direção às suas conhecidas “etapas do
desenvolvimento econômico” era “aquilo que se denominaria a ‘sociedade tradicional’, que
compreenderia genericamente todas as formas econômico-sociais que precederam o
capitalismo industrial”.204 A negligência da história consistia no tratamento universalista dado
a diferentes sociedades pré-capitalistas:
Não se tratará de caracterizar essa “sociedade tradicional”, determinar suas
relações de produção e trabalho; defini-la como momento ou fase de um processo
201
Ibidem.
202
HD, p. 21
203
HD, p. 20.
204
HD, p. 27
88
evolutivo, e sim unicamente marcar com ela um ponto de partida cômodo onde
fosse possível situar o modelo de crescimento econômico de antemão preparado.
Em suma, a “sociedade tradicional” não se caracteriza por si e em si; e sim apenas
em contraste com o que vem depois dela, com o desenvolvimento que ela antecede
(...). 205
Desconsiderando-se a “natureza própria daquela sociedade” não se revelam “as
circunstâncias e fatores nela imanentes e que constituem as premissas do desenvolvimento”,
tornando-o “inexplicável a não ser pela intervenção de fatores estranhos e exteriores ao
processo analisado que ficam por isso sem explicação”. Com isso, “nem Rostow, nem os
demais que o acompanham na sua maneira de interpretar o desenvolvimento explicam ou
procuram explicar, no contexto histórico que estão considerando” as razões da ocorrência dos
fatores que consideram “estimuladores do processo cumulativo das inversões e do
consequente desenvolvimento” – como a ciência moderna e o progresso tecnológico, as ideias
e esperanças de progresso econômico ou a intervenção de uma nova classe de indivíduos
empreendedores e dinâmicos, os “novos tipos de homens de empresa”. 206
Caio Prado Júnior, aqui, parece se aproximar, se não mesmo incorporar, uma
formulação apresentada por Pierre Vilar alguns anos antes, que questiona a validade da
proposta de Rostow:
Mas, na imagem que nos é proposta da “sociedade tradicional”, existirá
verdadeiramente um “modelo”, ou um simples cliché negativo? O desenvolvimento
define-se com base na produção forte, na indústria dominante, na atitude científica.
A sociedade tradicional, partindo da debilidade da produção, da subordinação da
indústria, da atitude a-científica. É-nos dito o que ela não é, mas não o que ela é. E
não sabemos, portanto, o que pode nascer dela. 207
Segundo Caio Prado Júnior, a incapacidade dos “teóricos ortodoxos do
desenvolvimento” em interpretar precisamente as condições históricas que permitiam o
desprendimento da “sociedade tradicional” a partir do que Rostow denominava “arranco” –
gerador de um processo auto-impulsionado de acumulação capitalista e inversão progressiva
que condicionam o desenvolvimento econômico – assentava suas bases no fato de que tal
teoria ortodoxa do desenvolvimento não se propunha a questão do surgimento dos fatores que
205
HD, p. 27-8
206
HD, p. 28-30
207
VILAR, Pierre. Desenvolvimento histórico e progresso social. Etapas e critérios. In: Idem. Desenvolvimento
econômico e análise histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 143. O texto de Vilar foi publicado
originalmente no periódico La Pensée, em 1961.
89
propiciavam o desenvolvimento “com as condições próprias e específicas da situação e com a
conjuntura do momento em que aquele surgimento se verifica”. 208
Ora é precisamente isso o que mais importa. A saber, o processo histórico global e
de conjunto que liga o passado ao presente; que se forja naquele passado e que abre
perspectivas para o futuro. Essa continuidade se encontra, e somente aí nos é dado
descobri-la, nos fatos específicos e sua interligação que vai dar naquele processo
histórico e o configura. Processo que é sobretudo histórico, e não se ajusta a
modelos construídos a priori na base de ocorrências que caracterizaram (aliás
parcialmente apenas) a institucionalização das relações capitalistas de produção
nos países que foram seus pioneiros. 209
A elaboração de uma teoria do desenvolvimento econômico adequada às especificidades
de uma sociedade subdesenvolvida dependeria, portanto, da análise dos processos específicos
e contraditórios de desenvolvimento histórico pelos quais ela passou e que ela acumulou ao
longo do tempo. Este seria “o ponto de partida necessário da investigação da questão do
desenvolvimento”. Assim, no caso brasileiro tal perspectiva se reforça, uma vez que em suas
instituições não estariam presentes nem as “formas amadurecidas do capitalismo” nem, em
suas origens, “as formas clássicas” a partir das quais tal capitalismo evoluiu. Isso seria
importante assinalar, segundo Caio Prado, pois são justamente essas formas que
condicionaram “os padrões segundo os quais se conduz a análise econômica que se pretende
agora substituir à análise historiográfica própria e específica do país subdesenvolvido” em
questão. 210
Em nenhum dos casos, contudo, a prioridade dada à análise historiográfica ou à análise
da realidade conjuntural do tempo presente significa a negação da teoria ou dos modelos
teóricos. Para Caio Prado Júnior, seria “perfeitamente lícito” que os modelos teóricos de
análise econômica constituíssem “possíveis hipóteses de trabalho a serem testadas no
confronto com a observação dos fatos, e convenientemente modificadas para nele se
ajustarem”, uma vez que “são tão somente instrumentos teóricos já em definitivo preparados
para o fim de orientarem, e isto apenas, a análise econômica”. O problema reside quando
ocorre justamente o inverso; ou seja, quando, “no caso de o confronto revelar discrepância
entre a realidade histórica e o modelo”, são procurados os “eventuais obstáculos” que teriam
208
HD, p. 30
209
HD, p. 30-1
210
HD, p. 16
90
afetado o funcionamento “logicamente previsto” do modelo e seu sistema para serem
rejeitados, ao invés de incriminar o próprio esquema. 211
Mais uma vez, é perceptível a semelhança entre Caio Prado e Vilar, uma vez que, para o
historiador francês, se não é tarefa dos historiadores “intervir na elaboração de fórmulas e dos
cálculos planificadores que presidem ao desenvolvimento harmonioso de um mundo cada vez
mai amplo” eles teriam papel fundamental na consideração das “condições preliminares à
aplicação, à realização daquelas fórmulas e daqueles cálculos, pois essas condições entram no
campo da análise histórica e não da economia pura.” 212
Desta maneira, compreende-se o confronto empreendido pelo autor brasileiro às
expressões matemáticas, sejam elas algébricas ou geométrico-figurativas, pois elas
representam o “nível da alta abstração” dos “modelos empregados na análise econômica
ortodoxa”, cujo “assunto específico” é o funcionamento do sistema capitalista em sua “mais
pura e essencial expressão”. E como o “passado histórico” dos países não identificados com o
que se passa “nas sociedades de alto amadurecimento capitalista” legou ao presente “uma
estrutura, um comportamento econômico e mesmo relações de produção” muito distintos,
seria simplesmente inviável assimilar “as relações econômicas incluídas nos modelos teóricos
consagrados” a essas diferentes trajetórias históricas. 213
Não por acaso, portanto, Caio Prado Júnior lançou severa crítica aos economistas que
trabalhavam para o regime. Apesar de não citá-los, provavelmente fazia menção a figuras
como Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos, respectivamente ministro da Fazenda e
do Planejamento de Castelo Branco, bem como Delfim Netto e Hélio Beltrão, que
respectivamente substituíram aqueles no ministério montado por Costa e Silva, que havia
tomado posse em 15 de março de 1967,214 poucos dias antes da solenidade de entrega do
troféu Juca Pato:
Quanto ao setor mais “humanista” dessa política tecnocrática, ela se exprime muito
bem na afirmação do Sr. Presidente da República, quando ainda candidato e
dirigindo-se em discurso às classes produtoras do Rio de Janeiro: do que se trata é
fazer que “os ricos sejam mais ricos, para que os pobres sejam menos pobres”.
Fórmula esta que lembra um outro pensamento muito difundido na geração que
211
HD, p. 22
212
VILAR, Pierre. Desenvolvimento histórico e progresso social. Etapas e critérios, p. 140.
213
HD, p. 22-3
214
PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O “milagre” brasileiro; crescimento acelerado, integração
internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA & DELGADO. O tempo da ditadura:
regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, p. 213-19
91
chegava a seu ocaso em princípios do século, e que assim se expressava: “Que
seriam dos pobres se não fossem os ricos que lhes proporcionam empregos?” A
teoria em que se inspiram nossos economistas ortodoxos de maior projeção, e que
faz consistir o desenvolvimento, o progresso e as soluções sociais no ritmo dos
investimentos privados, traduz em termos técnicos aquele pensamento de nossos
avós. É isso em suma que impera no Brasil oficial de hoje. 215
Estaria enganado quem, a partir de um olhar precipitado de seu discurso, pensasse que a
divergência do autor em relação aos “economistas ortodoxos” é somente política e ideológica.
Seu ceticismo quanto à capacidade dos investimentos privados em promover o
desenvolvimento brasileiro se explica também do ponto de vista econômico e histórico.
215
Discurso de Caio Prado Júnior na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de
março de 1967. Disponível em: http://bndigital.bn.br/expo/caioprado/index.htm. Acessado em fevereiro de 2013.
92
12. Investimentos e industrialização
Demarcando com o pensamento econômico tradicional, Caio Prado afirmava que
desenvolvimento e crescimento econômico não são o mesmo conceito, apesar de estarem
relacionados.
Com frequência, o que se vê compreendido no conceito [de desenvolvimento] é tão
somente o crescimento quantitativo que se exprime nas estatísticas da renda
nacional do país, seja global ou per capita; ou nos dados relativos à produção,
movimento comercial, giro financeiro etc. Mas tudo isso, e o mais da mesma
natureza, por importante e expressivo que seja, informa, por si apenas, muito pouco
relativamente à verdadeira situação do país e de seus habitantes; diz muito pouco
de seus reais padrões de vida e dos bem estar que usufruem. 216
Assim, avaliar os níveis de desenvolvimento de uma coletividade a partir de índices como a
renda per capita não seria desejável. Uma vez que este índice “exprime apenas uma média
aritmética, e quase nada nos diz acerca da situação particular dos indivíduos que entram nos
cálculos, e mesmo, eventualmente, da massa da população”, deixaria de registrar a
concentração de riqueza. Sendo as condições de vida o que “verdadeiramente importa, e que o
índice de renda per capita não revela”, não se pode considerar desenvolvido um país que
produz muita riqueza mas a mantém concentrada em pequenos estratos da população. Isto
seria verdadeiro para o Brasil, na medida em que era possível observar extremos de
abundância e privações agudas e onde se apresentavam índices que indicariam luxo e
modernidade, mas que na maior parte do país existia, na verdade um primitivismo
estarrecedor, no qual nem mesmo as necessidades vitais eram plenamente atendidas. Por aqui,
portanto “a questão do desenvolvimento toma um sentido bem diferente daquele que se encontra nos
textos ordinários da literatura econômica ortodoxa e nas análises financeiras de rotina.” 217
Com essa premissa, que coloca a realidade social do conjunto da população como
prioridade para se avaliar o nível de desenvolvimento de uma nação, Caio Prado Júnior busca
desconstruir a “tese inversionista”, na qual os investimentos e suas vicissitudes aparecem em
posição central da teoria do desenvolvimento econômico elaborada por importantes correntes
da chamada economia ortodoxa. Identificada com a Teoria Geral do Emprego do Juro e da
Moeda, de John Maynard Keynes, e partindo da análise dos ciclos econômicos, tal teoria teria
destacado particularmente “o papel representado pela flutuação das inversões”. Seu erro mais
216
Discurso de paraninfo na formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 (CPJ-CA012, AIEB).
217
Ibidem.
93
sério e grave, no que se refere a interpretação e ação prática em países subdesenvolvidos
como o Brasil teria sido a tendência de aproximar “o subdesenvolvimento à situação
verificada na fase de recessão do ciclo econômico”. Logo, sendo a insuficiência das inversões
o problema básico de tais economias, a política econômica recomendada “seria o estímulo e
incremento às inversões”. 218
A transposição de soluções de uma realidade característica de país capitalista maduro
para economias subdesenvolvidas demonstraria “o anacronismo de tal aproximação”. Afinal,
segundo Caio Prado,
(...) se no equacionamento da problemática das flutuações econômicas a questão
das inversões se propõe com relevo incontestável, já no plano mais geral e amplo
do desenvolvimento e sua interpretação, as inversões, e mesmo a circunstância
geral que as condiciona e que vem a ser o processo de acumulação capitalista,
muito pouco ou quase nada informa relativamente à dinâmica do desenvolvimento
que se insere no conjunto e complexo, tomado na sua integralidade, dos fatos
históricos que configuram aquele desenvolvimento.219
Portanto, não apenas o processo geral de acumulação capitalista, caracterizado pela formação
do capital e sua progressiva valorização a partir dos investimentos, mas principalmente a
situação geral da produção e da atividade econômica deveria ser considerada, com especial
atenção para as relações de produção vigentes. As inversões viriam apenas em último lugar e
“como incidente apenas”, uma vez que deveria se observar, prioritariamente, a conjuntura
mercantil, as características da demanda, as condições de produção e as relações de produção
estabelecidas, que condicionariam, pois, o afluxo de capital, sua formação e acumulação e, só
então, em último lugar, a inversão produtiva deste mesmo capital. 220
As teorias que voltam centralmente seu olhar para a renda nacional e os ciclos
econômicos caracterizados pelo ritmo das inversões acabam por sugerir o incremento dos
investimentos desconsiderando os custos sociais que podem trazer.
O a-historicismo e subestimação da especificidade histórica dos países
subdesenvolvidos torna a teoria ortodoxa incapaz de avaliar as
circunstâncias peculiares que em cada lugar ou categoria sócio-econômica
condicionam as inversões e dão a medida de sua fecundidade e capacidade
de determinar um processo auto-estimulante de crescimento que é o que se
procura realizar. 221
218
HD, p. 24-5.
219
HD, p. 25-6.
220
HD, p. 26.
221
HD, p. 134-5.
94
Sem ignorar a importância do crescimento econômico para a promoção do
desenvolvimento, Caio Prado Júnior chama a atenção, especificamente, para o fato de que a
formação, acumulação e reinversão do capital nas atividades produtivas são elos de um
mesmo processo cíclico não apartado do mercado. São elos de um mesmo processo, porque o
capital investido proporciona atividade produtiva e, inversamente, a atividade produtiva gera
o capital. E são condicionados e proporcionados pelo mercado porque, sendo o capital tanto o
ponto de partida como o momento final do processo produtivo, depende de sua circulação e
retorno acrescido do lucro realizado no mercado, dando ensejo a um novo ciclo. 222
Nesta perspectiva, Caio Prado considera que foram as conjunturas comerciais
favoráveis, ou seja, a existência de mercado para os produtos produzidos no Brasil, que
constituíram o fator e impulsos decisivos nas fases de progresso econômico verificadas na
história do país: “A própria formação e existência de nosso país tem aí suas raízes, como a
história fartamente o comprova”.
As vicissitudes da nossa economia e da própria sociedade brasileira, no seu
conjunto e em todas as partes de que geograficamente se compõe, acompanharam
sempre, muito estreitamente, as flutuações da conjuntura comercial dos respectivos
produtos de exportação, tanto nos seus altos quanto nos baixos. O capital, as
inversões, as atividades produtivas e tudo mais, até mesmo os índices
demográficos, se condicionaram direta e imediatamente àquela conjuntura. São seu
reflexo e sua consequência. 223
A partir deste diagnóstico – que identifica a economia brasileira em situação de
subordinação a situações alheias à sua realidade interna e fora do alcance de suas decisões e
iniciativas de política econômica – o autor formulou sua crítica ao processo brasileiro de
industrialização. É verdade que ainda nos anos 1950, quando aprofundou seus estudos em
economia para escrever Diretrizes para uma política econômica brasileira (1954) e Esboço
dos fundamentos da teoria econômica (1957), Caio Prado já havia elaborado as bases de sua
crítica à industrialização por substituição de importações. Então, afirmava que tendo resultado
de “uma insuficiência das exportações para cobrirem as necessidades da economia brasileira”
a débil indústria brasileira naquele momento não passava de “solução eventual de um
problema proposto pelo sistema colonial”, ou seja, a “impossibilidade de balancear com as
exportações, os nossos débitos no exterior.” 224
222
HD, p. 136. No capítulo que segue, abordaremos a questão do mercado mais detidamente.
223
HD, p. 137-8.
224
PRADO JÚNIOR, Caio. Diretrizes para uma política econômica brasileira. São Paulo: Gráfica Urupês,
1954, p. 132.
95
Posteriormente, dialogando direta ou indiretamente com Maria da Conceição Tavares –
que em 1963 havia publicado o ensaio que em pouco tempo já seria considerado um clássico
na literatura sobre o desenvolvimento econômico brasileiro, Auge e declínio do processo de
substituição de importações no Brasil – Prado Júnior, em A revolução brasileira, também
apresentou suas considerações a respeito da industrialização por substituição de importações.
O surto relativamente vigoroso observado no pós-guerra, gerador de tantas ilusões
“desenvolvimentistas”, e que se alimentou sobretudo da industrialização na base da
produção substitutiva de artigos antes importados, alcançou seu limite muito cedo.
Já em 1962 começou a esmorecer, para dar lugar, em seguida, à estagnação e às
sérias dificuldades que o pais atravessa no momento (1966). 225
Ao fim e ao cabo, com um desenvolvimento industrial nesta base, o progresso obtido teria
sido mínimo, sendo seu sentido precário e insatisfatório. Sua produção, sendo orientada
prioritariamente para o atendimento de “um consumo que, nas condições do Brasil pode ser
considerado suntuário e conspícuo”, atingia reduzidas parcelas da população. A lista de bens
que ocupavam “o centro das atividades produtivas de maior significação e para onde,
inclusive as básicas, elas em última instância convergem”, atestava a situação. Assegurava-se,
assim, o conforto de minorias muito pequenas com “o maior requinte e refinamento
modernos” ao passo que os padrões gerais da população eram de um “primitivismo
generalizado que basicamente caracteriza o país”. 226
Desarticulada das condições próprias de demanda e consumo da população brasileira e
dependendo de empreendimentos e iniciativas estrangeiras de investimento produtivo, a
industrialização brasileira não guardava relação com a conjuntura econômica interna do país
e, portanto, ao invés de contribuir para a superação da dependência, mantinha a subordinação
da economia às circunstâncias e contingências estranhas ao país.227 Os empreendimentos
estrangeiros instalados no Brasil tinham por objetivo tão somente produzir em condições mais
vantajosas os produtos que antes eram remetidos. As perspectivas desta industrialização não
seriam apreciáveis, pois em relação à situação anterior não teria havido modificação
fundamental: continuaríamos uma economia basicamente exportadora de produtos
primários.228
225
RB, p. 160.
226
RB, p. 160-1.
227
Cf. RB, p. 157.
228
Cf. RB, p. 188.
96
Mas quais seriam circunstâncias que impunham as limitações da indústria montada
sobre tais bases? Segundo o autor, elas eram de duas ordens. Em primeiro lugar, por depender
dos investimentos de capitais estrangeiros, não poderiam ultrapassar as disponibilidades de
divisas proporcionadas pelas contas externas, o que colocava no valor das exportações a
determinação da capacidade de investimento e, pois, o ritmo do desenvolvimento industrial.
Em segundo lugar, por não modificar a amplitude do mercado consumidor antes abastecido
pelas importações, a indústria no Brasil se limitava a seguir o ritmo das unidades produtivas
estrangeiras aqui instaladas e que se destinavam a especial e essencialmente produzir aqui o
que antes precisariam exportar. 229
Em 1968, Caio Prado Júnior mantém sua avaliação crítica da industrialização por
substituição de importações. Contudo, aprofunda significativamente sua interpretação da
emergência e evolução deste processo. Se dois anos antes ele não deixava de mencionar a
influência das contas externas no desenvolvimento industrial brasileiro,230 agora tratava-se
principalmente do detalhar suas relações com a balança de pagamentos, os investimentos do
capital estrangeiro, a desvalorização cambial e o consequente processo inflacionário, a
demanda por equipamentos e recursos tecnológicos e as perspectivas de mercado para seus
produtos. Apresentaremos, a seguir, uma breve síntese da formulação apresentada pelo autor a
respeito da questão. 231
Vinha de longa data o desequilíbrio das contas externas do país. Como o tradicional
sistema econômico do país se assentava nas exportações de gêneros primários, o
abastecimento do mercado interno demandava crescentes importações. Enquanto as
exportações geravam divisas suficientes, a balança comercial mantinha-se equilibrada, mas
bastava que novos produtos entrassem em concorrência com os brasileiros no mercado
internacional ou conjunturas externas desfavoráveis restringissem as perspectivas de
exportação para o desequilíbrio se abatesse. Ademais, intensificando-se a integração da
economia brasileira na ordem internacional do capitalismo, o pagamento de serviços de
empréstimos públicos e financiamentos privados, a remuneração das inversões estrangeiras
realizadas no país e demais compromissos financeiros que se avolumavam só poderiam ser
quitados com os recursos oriundos das exportações, aumentando a dependência da economia
interna às vicissitudes de circunstâncias a elas alheias.
229
Cf. RB, p. 188.
230
Cf. RB, p. 88-91.
231
A síntese que se segue baseia-se em HD, p. 106-18.
97
O crescente endividamento externo do país, assim, reflete o funcionamento deficitário
da economia brasileira ao mesmo tempo em que ele próprio reforça continuamente este
déficit, por resultar em aumento dos gastos com juros e amortizações de novos débitos
contraídos para saldar débitos anteriores. Somado a esses fatores, as inversões de capitais
estrangeiros e as operações de empresas internacionais aqui instaladas reforçam o
desequilíbrio ao mesmo tempo em que resultam dele. Seu agravamento, pois, evidencia
crescentemente o enfraquecimento da função exportadora que impulsiona a economia
brasileira.
O crescimento econômico do país, proporcionado pela ampliação de tais investimentos,
por sua vez possibilitada pelo impulso das exportações nas conjunturas favoráveis, ampliava
desproporcionalmente os compromissos com o capitalismo internacional, agravando o
desequilíbrio. Como resultado, para compensar a nova situação, novas perspectivas de
diversificação produtiva se abriram para o país. Assim, a desvalorização cambial da moeda
decorrente do crescente déficit nas contas externas e agravada depois da crise internacional de
1930 em função da queda das exportações brasileiras, ao encarecer os produtos importados,
atuou como incentivo à produção nacional de artigos substitutivos. Os momentos de maior
prosperidade da indústria foram, sobretudo, portanto, aqueles em que a moeda se
desvalorizava e a substituição de importações pela produção interna funcionava em benefício
da indústria brasileira.
Em função da II Guerra Mundial, perspectivas ordinárias da indústria não eram as do
mercado externo, mas apenas do interno. Por outro lado, aumentaram os saldos do comércio
exterior em função do aumento de preços de matérias primas e gêneros alimentares. Com o
aumento das exportações e a queda nas importações, o aumento da emissão de moeda para
absorver o excesso de divisas promoveu aumento de preços e inflação generalizada dos
produtos nacionais, o que resultou em pressão da demanda de importações. O desafio seria
afastar a concorrência dos produtos importados ao mesmo tempo em que se favorecia a
aquisição no exterior de equipamentos e insumos industriais. Tal exigência contraditória, não
podendo ser resolvida pela desvalorização cambial, pois esta aumentaria os preços dos
produtos importados em geral, foi resolvida com a instituição de licença prévia para
importação, permitindo o controle das disponibilidades cambiais. Tratava-se de um
prolongamento da substituição de importações, mas agora com expressa orientação de
favorecer os empreendimentos industriais na compra de equipamentos e com uma ação
98
deliberada de política econômica naquilo que antes se realizava com base nas forças de
mercado.
Em suma, o crônico desequilíbrio das contas externas e a dependência de capitais
estrangeiros resultaram em uma debilitada estrutura produtiva industrial. A industrialização
brasileira seguiria uma marcha sem um processo autopropulsor e “por impulsos descontínuos
e desordenados, ao sabor das vicissitudes que lhes são estranhas, como em particular a
caprichosa conjuntura das finanças externas.” 232
Tratar-se-á de uma indústria desordenadamente implantada, sem outro critério que
as excepcionais e tão artificiais facilidades oferecidas, o estímulo imediatista de um
lucro fácil e rápido. Uma indústria que não terá passado pelo crivo da seleção pela
concorrência, nem mesmo potencial, ou de um planejamento integrado e de
conjunto. Uma indústria em suma formada de caótico aglomerado de atividades
implantadas no geral, sem atenção alguma à sua viabilidade, a longo prazo (...). E
incentivada unicamente pelo vácuo deixado com a exclusão de alguns produtos
antes importados e cujo preenchimento se promovera tão artificialmente. 233
Nota-se que Caio Prado Júnior, apesar de considerar que é na perspectiva do mercado que as
atividades produtivas devam ser consideradas e que a concorrência tem o aspecto positivo de
contribuir para a seleção da indústria, contrapõe o estímulo imediatista à viabilidade de longo
prazo e as forças de mercado ao planejamento integrado e de conjunto. Precisamos, portanto,
compreender melhor o lugar do Estado, do mercado, da circulação, da distribuição e do
consumo em seu conceito de desenvolvimento. Sobretudo porque, para o autor, se por um
lado a medida do mercado interno brasileiro e da demanda dos consumidores não foi
suficiente para se constituírem como força propulsora eficaz do desenvolvimento industrial,
por outro lado, esta industrialização e seu aparelhamento produtivo não significou nem
objetivou um melhor atendimento do consumo do conjunto da sociedade, mas tão somente de
um setor reduzido, especializado e excepcional da demanda. O Brasil, assim, conservou-se
antes um produtor que um consumidor, tendo suas atividades produtivas orientadas para um
consumo estranho. 234
232
HD, p. 122.
233
HD, p. 116.
234
Cf. HD, p. 119-21.
99
13. Estado, mercado e consumo
Uma das principais queixas de Caio Prado quando analisava o desenvolvimento
econômico do país era a liberdade permitida à iniciativa privada, tema que abordou nos
pronunciamentos que fez em 1967. A transformação do Brasil para equipará-lo ou ao menos
aproximá-lo da mesma ordem de grandeza dos países dos grandes centros modernos – e seria
esse, afinal, o grande objetivo a ser almejado – não se poderia conservar intacto o interesse
dos negócios privados e pelo lucro como único impulso da sociedade. O desafio colocado
seria demasiado grande para que “uma linha de desenvolvimento traçada unicamente pelo
choque de interesses privados e afirmações individualistas logre superar o retardo em que
ficamos relativamente aos níveis e padrões do mundo moderno.”
235
Afinal, o cumprimento
deste objetivo exigia que se desvencilhasse do sistema internacional do capitalismo afim de
assegurar uma existência nacional própria e autônoma para conseguir se organizar “em função
das necessidades e aspirações próprias e dos conjunto da nossa população”:
E para isto também se exige uma ativa e vigorosa política voltada para a
remodelação de nossas instituições econômicas e sociais. Não podemos relegarnos, para a realização de objetivos tão amplos, no livre jogo das forças econômicas,
na liberdade dos negócios e na livre iniciativa privada. Trata-se mais que tudo de
um problema político, que politicamente há de ser equacionado e resolvido. 236
Por este motivo, o autor não tem dúvidas em afirmar que “é no campo do
intervencionismo e em oposição à liberdade econômico que se colocam e efetivamente se
devem colocar as forças progressistas da política brasileira”.237 Afinal, era necessário
reestruturas e reorientar a economia brasileiro no sentido do atendimento daquelas aspirações,
sendo condição indispensável a direção e controle das atividades econômicas:
Deixados á livre iniciativa privada e aos estímulos espontâneos do mercado, as
atividades econômicas tenderão sempre ao atendimento dos reduzidos setores
efetivamente presentes naquele mercado, e não haverá assim modificação
apreciável da situação. 238
Portanto, por não se tratar de simplesmente garantir o aumento da “renda nacional” –
que seria a preocupação insistente dos chamados economistas ortodoxos com quem Caio
235
Discurso de agradecimento na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966, em 28 de março
de 1967.
236
Discurso de paraninfo na formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 (CPJ-CA012, AIEB).
237
RB, p. 126.
238
RB, p. 159.
100
Prado polemizava – mas sim da distribuição e repartição efetiva e não meramente estatística
daquela renda, visando em primeiro e principal lugar a elevação dos padrões materiais e
culturais da grande massa da população brasileira, o problema deveria ser tratado “dentro da
planificação e direção gerais das atividades econômicas em que se combinarão as iniciativas e
empreendimentos públicos com a iniciativa privada devidamente controlada e orientada”.
Tornava-se necessário, portanto, “a intervenção decisiva do poder público na condução dos
fatos econômicos e na orientação deles para objetivos prefixados”, ou seja, “uma distribuição
mais equitativa de recursos financeiros e dos proventos e benefícios derivados das atividades
econômicas”.239 Em síntese, o objetivo seria organizar as atividades produtivas para que se
colocasse em primeiro plano a produção para o mercado interno no nível do consumo final,
dando prioridade aos bens e serviços básicos, essenciais e acessíveis à massa da população. 240
Como as contingências da formação histórica brasileira e as permanências do sentido da
colonização teriam promovido uma desarticulação entre produção e consumo, que não se
entrosariam nem se completariam estimulando-se mutuamente, seria necessário superar os
vícios orgânicos da estrutura econômica e social brasileiras. Neste sentido, se “o sentido
processo de desenvolvimento econômico do desenvolvimento capitalista originário, tal como
ele se apresentou na Europa no século passado, foi essencialmente o da produção”, no caso
brasileiro, fundamentalmente distinto, “ele deve ser essencialmente o da distribuição”:
E assim o papel que o lucro capitalista (que provê muito bem à produção, pois dela
se alimenta e com ela se mantém) desempenha no capitalismo originário, não está
em condições de desempenhar numa situação em que é a distribuição que
sobreleva. E a iniciativa privada, que tem no lucro e somente nele a sua razão de
ser, não é suficiente assim para assegurar um desenvolvimento adequado. 241
Na esfera da circulação, portanto, para o caso brasileiro em particular, encontra-se parte
indispensável do problema do desenvolvimento. A contribuição da historiografia para a teoria
e a prática do desenvolvimento – subtítulo do texto de 1968 – seria, portanto, o de comprovar
que foram invariavelmente as conjunturas comerciais favoráveis e, portanto, a ocorrência de
mercados aos produtos brasileiros que se constituíram como fatores e impulsos realmente
decisivos nos momentos e fases de desenvolvimento econômico na história do Brasil, cuja
própria formação e existência teria aí suas raízes.242 Uma teoria que se propusesse a promover
239
RB, p. 167-8.
240
Cf. RB, p. 169.
241
RB, p. 164.
242
Cf. HD, p. 137.
101
o desenvolvimento em tal formação econômica e social deveria, necessariamente, levar isso
em conta, sendo essa uma de suas críticas à chamada teoria ortodoxa:
É assim na perspectiva do mercado, em última instância, ou pelo menos também
dele, e no caso brasileiro diremos mesmo sobretudo, que a capitalização e o
conjunto das atividades produtivas hão de ser consideradas. E pois também o
desenvolvimento. Isto não é para dizer que a teoria ortodoxa deixa de lado o
mercado, que se inclui em seus esquemas como uma das variáveis. Mas é uma
variável dependente das inversões.243
Ou seja, seria na localização e enquadramento dos mercados interno e externo no
processo de desenvolvimento econômico, nos vínculos e articulações existentes entre si e,
pois, nas relações que manteriam com os investimentos produtivos que deveriam ser
considerada uma teoria econômica adequada à realidade brasileira. Portanto, sendo a questão
do mercado aquela que ocupa o centro da problemática do desenvolvimento no caso do Brasil,
seria indispensável caracterizá-la adequadamente.
E é somente na história e na especificidade própria das diferentes situações
históricas brasileiras que o mercado para os artigos de nossa produção, a natureza
dele, sua estrutura e vicissitudes, podem ser compreendidas e devidamente
avaliadas. A começar pelo característico dualismo daquele mercado rigidamente
discriminado e dividido em dois setores bem apartados um do outro e
inconfundíveis: respectivamente o externo e o interno.244
Assim, enquanto na teoria ortodoxa haveria uma equiparação entre os mercados externo
e interno, sendo somente uma subdivisão do mercado em geral e equivalendo-se ainda que
sofram variantes e circunstâncias distintas, o assunto não poderia ser considerado desta forma
no caso brasileiro, pois uma análise em perspectiva histórica demonstraria que “a significação
e papel do mercado externo avultam de tal maneira que esse mercado se singulariza e
individualiza inteiramente à parte”. Com isso, o mercado interno se caracteriza e individualiza
em contraste com o externo, como mera decorrência das circunstâncias impostas pela
presença dele. Ao invés de se situar paralelamente e em plano semelhante ao mercado
externo, como pensa a teoria econômica tradicional, o mercado interno é uma função deste
último, podendo-se dizer, inclusive, que dele deriva. 245
Segundo Caio Prado Júnior, pois, se por um lado existe na economia brasileira um
descompasso entre produção e consumo – ou, em outras palavras, entre oferta e demanda –
como permanência da estrutura colonial, por outro lado, a mesma herança teria como
243
HD, p. 137.
244
HD, p. 138.
245
Cf. HD, p. 138-9.
102
resultado a manutenção de uma relação de subordinação do mercado interno ao externo. Os
fatores constitutivos do desenvolvimento brasileiro se definiriam, assim, pela sua posição na
ordem internacional por força da preeminência do seu mercado externo, ou seja, pela “posição
dependente e subsidiária de uma economia satélite que se dispõe e organiza precipuamente
para servir objetivos e necessidades econômicas alheias.” 246
Mas se a relação entre os mercados interno e externo se caracterizava por um dualismo,
cabe analisar de que maneira isso se articulava com a produção e com a economia brasileira
em geral se pretendemos compreender como o autor não apenas analisa o desenvolvimento
brasileiro na história como também o conceito que tem de desenvolvimento – elementos que
não se dissociam em seu pensamento, como fica cada vez mais evidente na medida em que
avança nosso estudo.
246
HD, p 139.
103
14. Desenvolvimento desigual e combinado e dualismo
A partir da discussão apresentadas pelos intérpretes de Caio Prado Júnior no capítulo 4
de nosso trabalho, pode-se considerar que uma questão crucial que se coloca sobre o conceito
de desenvolvimento do autor diz respeito à definição dos setores da economia brasileira e suas
articulações (ou a falta delas) no desenvolvimento brasileiro ao longo de sua história. Como
vimos, ora ressaltando a colaboração entre diferentes setores, ora a posição entre um e outro,
Caio Prado Júnior parece transitar entre o pensamento dualista tão característico de sua
geração, e a sua superação que se processou e consolidou nos anos 1970. A partir da análise
das fontes que selecionamos para compreender seu conceito de desenvolvimento,
pretendemos verificar se nos anos 1960 como o autor se situa nesta tensão entre ambas as
maneiras de conceber a formação econômico-social brasileira.
Neste sentido, cabe notar que quando fala de dualismo, o autor se refere a diferentes
relações de oposição e contradição presentes na realidade. No capítulo anterior, foi possível
notar que Caio Prado considerava dualista a relação entre mercado interno e mercado externo.
Mas a contradição existente entre estas esferas da circulação e troca de produtos se resolve
com a subordinação do primeiro sob os impulsos e circunstâncias do segundo. Isto seria uma
característica da formação histórica brasileira que teria acompanhado toda sua trajetória,
desde a organização da produção no período colonial até o momento em que estava
escrevendo, ou seja, ao anos 1960. Este dualismo teria passado incólume por todas as
transformações que ocorreram na economia brasileira.
Esta dualidade no âmbito do mercado estaria relacionada, porém, a uma relação de
oposição entre dois tipos diferentes de exploração agrária que se constituíram no período
colonial: conjugando áreas imensas e numerosos trabalhadores, a exploração em larga escala
“opõe-se assim à pequena exploração parcelaria realizada diretamente por proprietários ou
arrendatários”. 247 Assim, a prioridade dada à exportação de gêneros primários produzidos em
larga escala teria como consequência “o papel secundário a que sempre se relegaram as
atividades destinadas à produção do sustento de base da população: a sua alimentação.” 248 O
modo como se processou a industrialização brasileira, com a negligência da produção voltada
247
HD, p. 59.
248
HD, p. 63.
104
ao atendimento das necessidades básicas da população atestariam, portanto, a permanência
desta oposição tanto no âmbito da produção quanto da circulação e distribuição de bens.
Em síntese, portanto – e aqui repetimos parte da citação feita por Marcos Antônio M. da
Rocha destacada no capítulo 4 –, haveria ainda “uma dualidade de setores ou sistemas
econômicos imbricados um no outro”, um tradicional voltado à exportação de gêneros
primários e outro, emergente deste e que tem por base a indústria, voltado ao mercado interno.
E o dualismo se justificaria uma vez que “ambos os setores se caracterizam à parte um do
outro e não se recobrem”, cada qual tendo uma “orientação comercial própria e exclusiva”.
Sua sobreposição seria meramente secundária, subsidiária e, muitas vezes, excepcional
apenas. Uma análise lastreada em perspectiva histórica colocaria “em nítido relevo a
característica da divisão da nossa economia em dois setores distintos que se orientam
respectivamente para o mercado externo e o interno”. 249
Em outra esfera, porém, seria possível considerar dual a sociedade brasileira colonial, a
saber, a sua divisão social, na qual se encontrariam
(...) de um lado os dirigentes da empresa mercantil aqui montada e destinada a
suprir com sua produção o comércio exterior, e de outro, os trabalhadores que
dariam a essa empresa o esforço físico necessário à realização de seus fins, e que
não passavam e não deviam passar disso: simples fornecedores de energia
produtiva, nada mais que instrumentos de trabalho.250
A abolição da escravidão em 1888 significaria, assim, “o início da integração da massa
trabalhadora no conjunto da sociedade brasileira”, o que permitiria “a amalgamação desta
num todo homogêneo, eliminando o dualismo, irredutível por outra forma, do sistema
implantado pela colonização”. 251
A abolição, porém, apesar de possibilitar tal integração, não teria eliminado acentuados
traços escravistas, que se mantiveram à margem do regime legal de trabalho livre. E aqui
retomamos a questão ressaltada por Carlos Nelson Coutinho com uma citação de A revolução
brasileira, a partir da qual conclui que significava a “recusa de uma visão dualista – para a
qual o lado ‘atrasado’ seria um empecilho, e não algo funcional, ao desenvolvimento do lado
‘moderno’”.
252
Trata-se da seguinte passagem, que repetimos aqui: “as sobrevivências pré-
capitalistas nas relações de trabalho da agropecuária brasileira longe de gerarem obstáculo e
contradições opostas ao desenvolvimento capitalista, tem pelo contrário contribuído para
249
HD, p. 131-3
250
RB, p. 84-5
251
RB, p. 84.
252
COUTINHO, Carlos Nelson, Uma via “não-classica” para o capitalismo, p. 121.
105
ele.”253 Esta afirmação se apoia em consideração feita em um parágrafo imediatamente
anterior, no qual desenvolve a questão com mais elementos:
Mas essas sobrevivências escravistas (que são frequentemente apontadas pelos
teóricos do feudalismo brasileiro como ‘restos semifeudais’) longe de constituírem
obstáculos ao progresso e desenvolvimento do capitalismo, lhe tem sido altamente
favoráveis, pois contribuem para a compressão da remuneração do trabalho,
ampliando com isso a parte da mais-valia, e favorecendo por conseguinte a
acumulação capitalista. O que sobra do escravismo representa assim um elemento
de que o capitalismo se prevalece, e em que frequentemente se apóia, uma vez que
o baixo custo da mão-de-obra torna possível em muitos casos a sobrevivência de
empreendimentos de outra forma deficitários. É assim errado, e da maior gravidade
para os efeitos da revolução brasileira, supor que tais remanescentes escravistas
poderão ser eliminados, e eliminados com isso algumas formas mais brutais de
exploração do trabalho, pelo simples progresso e maior difusão das relações
capitalistas de trabalho e produção. 254
Afinal, esses remanescentes anacrônicos oriundos da escravidão, além de não desfigurar
o caráter capitalista das relações de produção e o tipo de organização econômica na
agropecuária brasileira, acabam reforçando a exploração comercial e capitalista no campo,
“pois tendem a reduzir a remuneração do trabalhador e, em consequência, acrescer a maisvalia e a rentabilidade da empresa”.
255
Assim, pensando os desafios da revolução brasileira,
Caio Prado Júnior ressalta que seria no interior do próprio capitalismo e nas suas contradições
próprias – e não na ideia de que as contradições principais da economia brasileira se
encontram na persistência de um “semifeudalismo” – que estariam presentes os fatores
capazes de superar as reminiscências do colonialismo nas relações de trabalho e produção da
economia brasileira. 256
Atualmente, é atribuído a Francisco de Oliveira o justo reconhecimento pela
contribuição dada na superação do dualismo com seu ensaio Crítica à razão dualista,
publicado originalmente no segundo número dos cadernos Estudos Cebrap, em 1972. É
interessante notar que, o próprio autor agradece a contribuição de Caio Prado Jr., que teria
participado de seminários sobre o texto257 – certamente não antes de ter retornado do exílio no
Chile em 1970 e libertado da prisão em 1971. Ademais, certas semelhanças com algumas
formulações caiopradianas são notáveis, como se pode ver na seguinte passagem:
253
RB, p. 97.
254
RB, p. 97.
255
RB, p. 106. Esta passagem só faz reforçar nossa hipótese de ser mais provável que Rui Mauro Marini tenha se
referenciado em Caio Prado Júnior para formular sua tese da superexploração do trabalho nos países
dependentes, e não o inverso.
256
RB, p. 100-1.
257
Cf. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista, p. 28.
106
(...) do ponto de vista das relações internas à agricultura, o modelo [descrito
anteriormente] permite a diferenciação produtiva e de produtividade, viabilizada
pela manutenção de baixíssimos padrões do custo de reprodução da forma de
trabalho e portanto do nível de vida da massa trabalhadora rural. Esta é a natureza
da conciliação existente entre o crescimento industrial e o crescimento agrícola: se
é verdade que a criação do “novo mercado urbano-industrial” exigiu um tratamento
discriminatório e até confiscatório sobre a agricultura, de outro lado é também
verdade que isso foi compensado até certo ponto pelo fato de que esse crescimento
industrial permitiu às atividades agropecuárias manterem seu padrão “primitivo”,
baseado numa alta taxa de exploração da força de trabalho. (...) Assim, não é
simplesmente o fato de que, em termos de produtividade, os dois setores –
agricultura e industria – estejam distanciando-se, que autoriza a construção do
modelo dual; por detrás dessa aparente dualidade existe uma integração dialética.258
E não por acaso, mais adiante Francisco de Oliveira faz menção à teoria elaborada por
Marx e sistematizada por Leon Trotsky no conceito de desenvolvimento desigual e
combinado, indicando o referencial teórico utilizado em seu estudo:
A evidente desigualdade de que se reveste que, para usar a expressão famosa de
Trotsky, é não somente desigual mas combinada, é produto antes de uma base
capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão
industrial e a conversão da economia pós-anos 1930, que da existência de setores
“atrasado” e “moderno”. 259
Uma vez que há também, ainda que em graus diferentes e sem menção explícita, alguma
relação entre o conceito de desenvolvimento desigual e combinado e certas passagens da
formulação de Caio Prado Júnior, recoloca-se, assim, o debate sobre as relações do autor com
o trotskismo. Bernardo Ricupero apresenta o texto de Mario Pedrosa e Lívio Xavier, Esboço
de uma análise da situação econômica e social do Brasil, de 1930, no qual os autores negam
a existência de oposição entre imperialismo e burguesia nacional, bem como antagonismo
entre burguesia urbana e proprietários rurais.
260
Formulações estas que estão no centro da
crítica que Caio Prado faz, em A revolução brasileira, à caracterização de burguesia nacional
elaborada pelo PCB.
Paulo Henrique Martinez, por seu turno, indica que Caio Prado Júnior não apenas
mantinha contato e convivência política e intelectual com membros da Liga Comunista
Internacionalista (LCI), uma autoproclamada fração do PCB reunia trotskistas no Brasil,
como afirmou em correspondência ao jornalista Lívio Xavier, que havia publicado uma
resenha de Evolução Política do Brasil: “Conheço as opiniões, neste terreno [da economia
258
Ibidem, p. 45-7.
259
Ibidem, p, 59-60.
260
RICUPERO, Bernardo. A aventura brasileira do marxista Caio Prado Jr. In: PINHEIRO, Milton (org.). Caio
Prado Júnior: história e sociedade. Salvador: Quarteto, 2011, p. 83-4.
107
colonial], do agrupamento político a que v. pertence.” Ademais, no livro URSS, um Novo
Mundo, de 1934, Caio Prado Júnior, segundo Martinez, teria filiado abertamente sua
avaliação das diferenciações de classe no regime soviético às opiniões públicas de Leon
Trotsky. 261
Com isso, para o que nos interessa especificamente no presente trabalho, queremos
menos saber o tipo de vínculo que Caio Prado Júnior manteve ou mantinha com os trotskistas
brasileiros e com a orientação política de Trotsky no interior do marxismo, do que chamar a
atenção para a possibilidade de investigar mais profundamente os impactos do conceito de
desenvolvimento desigual e combinado em seu conceito de desenvolvimento. Certamente,
existe uma tensão no pensamento caiopradiano, uma vez que nem antecipa integralmente a
crítica ao pensamento dualista, nem se mantém formalmente inserido nos quadros de
interpretação dual da realidade brasileira. Se por um lado isso pode atestar ambiguidades, por
outro significa que certamente representou um exemplo único de originalidade no pensamento
econômico e social de sua geração.
261
MARTINEZ, Paulo Henrique, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p. 101-2 e
233. A correspondência de Caio Prado Júnior, bem como as resenhas de Lívio Xavier a Evolução política do
Brasil e URSS, um Novo Mundo, encontram-se nos anexos do livro de Martinez, (respectivamente, p. 277-80,
305-7, 309-12).
108
15. Continuidade e mudança: de colônia a nação
Como vimos no capítulo 13, para Caio Prado Júnior o processo de desenvolvimento
brasileiro deveria servir para equipará-lo ou ao menos aproximá-lo da mesma ordem de
grandeza dos países dos grandes centros modernos. Estes países e povos que já atingiram um
elevado nível de desenvolvimento de certa forma já romperam mais radicalmente suas
amarras com o passado, enquanto no Brasil as circunstâncias históricas se projetavam mais
vivamente no tempo presente em seu desdobramento.262 Assim, tratava-se de promover
transformações econômicas e sociais para “emparelhar-se aos padrões do mundo moderno”.263
Reiteradamente o autor explicita a ideia de que o desenvolvimento seria “condição precípua
para assegurar ao país e à generalidade de seu povo o conforto e o bem-estar material e moral
que a civilização e a cultura modernas são capazes de proporcionar.”264 Logo, o problema que
o desenvolvimento deveria solucionar consistiria em fazer com que os benefícios e o conforto
que o progresso material do mundo moderno viabiliza – dos quais se aproveitam
verdadeiramente somente insignificantes minorias no Brasil – fossem proporcionados ao
conjunto da população. Afinal, com a miséria física e moral da grande massa do povo não
seria possível construir uma grande nação moderna que oferecesse a todos segurança, bemestar e prosperidade em um futuro previsível. 265
Mas esta é uma questão que se coloca no terreno da ação dos indivíduos na história,
transformando-a consciente ou inconscientemente.
São os próprios indivíduos humanos que fazem a sua história. Mas se a fazem
visando cada um deles a seus objetivos próprios e particulares, ignoram no mais
das vezes, e não têm presente a resultante final de cada ato ou comportamento
individual, depois e quando, em perspectiva mais ampla, esse comportamento se
projeta coletivamente e se entrosa e compõe com o comportamento paralelo de
outros homens. E com isso configura ou contribui para configurar a ação coletiva e
o acontecimento ou fato social. 266
Para Caio Prado, ao mesmo tempo em que os indivíduos humanos são artífices de sua própria
história, tais decorrências escapam cada vez mais do alcance, do controle e da previsão destes
mesmos indivíduos na medida em que suas ações se integram em conjuntos progressivamente
262
Cf. HD, 18-9.
263
HD, p. 31.
264
HD, p. 15.
265
Cf. RB, p. 182.
266
RB, p. 134-5.
109
maiores de ações de outros indivíduos. Mas se os fatos sociais independem, assim, das
vontades dos indivíduos, por outro lado seria possível a previsão e o controle da sucessão de
fatos sociais na medida do conhecimento que se tenha do dinamismo próprio de tais fatos e do
intra-relacionamento entre eles.267 Talvez seja com base nesta compreensão que o autor
busque, segundo as interpretações analisadas no primeiro capítulo de nosso trabalho, uma
interpretação do Brasil em sua totalidade.
Quando esses conhecimentos relativos a fatos sociais, pelo seu vulto, referência a
fatos mais expressivos e complexos, e pela sua sistematização em amplos
conjuntos teóricos, adquirem propriamente foros de ciência (...), e essa ciência
assim elaborada se desenvolve suficientemente, tornam-se possíveis previsões e
controle de fatos sociais de larga envergadura e complexidade, como é o caso, ou
pode e deve ser o caso da teoria revolucionária. 268
É neste sentido que Caio Prado Júnior procura mobilizar o método dialético de
interpretação da realidade para investigar os processos históricos, que, segundo ele, se
desenrolam através de contradições “que se caracterizam pela eclosão, no interior de qualquer
situação, e em função dela mesmo e como seu contrário, de uma situação distinta que tende a
eliminá-la”. Assim, as forças que impelem o curso dos acontecimentos que fazem a trama da
história e, portanto, o dinamismo dos processos histórico-sociais situa-se “na superação
dessas contradições, isto é, pela eliminação dos contrários e conflitantes que nela ocorrem, e
sua síntese”. No caso do Brasil, sua evolução histórica indica uma progressiva transformação
que tende a conduzi-lo àquele objetivo de atender as necessidades da generalidade de seu
povo por meio da superação da sua condição de “colônia que vem do passado e se constitui do
complexo de situações, estruturas e instituições em que deu a colonização brasileira”. 269
Transformação e superação essas que, impelidas pelo jogo das contradições que se
configuram nas mesmas situações, estruturas e instituições , as vão levando a uma
nova e diferente feição que significa e significará cada vez mais a integração
nacional do Brasil. Isto é, a configuração de um país e sua população voltados
essencialmente para si mesmos, e organizados econômica, social e politicamente
em função de suas próprias necessidades, interesses e aspirações. 270
Essa linha evolutiva que caracteriza a história brasileira se desenvolvia desde o século
XIX, a partir da crise do sistema que se assentava sobre o exclusivismo do comércio das
colônias para as respectivas metrópoles. A nova ordem internacional que se consolida com a
transição do que Caio Prado Júnior chamava de “capitalismo comercial” para o “capitalismo
267
Cf. RB, p. 135.
268
RB, p. 135-6.
269
RB, p. 134.
270
RB, p. 134.
110
industrial”271, que assinalou a complementação do processo de mercantilização dos bens
econômicos em geral e da força de trabalho em particular, impactou diretamente no Brasil. A
desagregação do sistema colonial teria evoluído para a crise da própria formação colonial
brasileira.272
É na base das contradições geradas por esse sistema, e que se precipitam por efeito
da nova ordem econômica e política em que o país se integra, que resultará a sua
progressiva transformação em todos os seus aspectos, de colônia em nação livre e
autônoma. O que, no plano econômico que particularmente nos interessa aqui,
significa uma organização voltada essencialmente para o atendimento das
necessidades próprias da coletividade que a compõe. 273
Contudo, além de lento e incompleto, tal desenvolvimento histórico não é linear e
contínuo, possui intermitências, arrancos bruscos, interrupções mesmo recuos momentâneos.
Mas ainda que se mantenha em posição periférica como simples fornecedor de gêneros
primários ao mercado externo, essa função passa a ser exercida em circunstâncias distintas.
Em função do impulso proporcionado pelo intenso desenvolvimento capitalista dos centros do
sistema internacional, novas perspectivas teriam sido abertas para o Brasil, pois os ciclos
econômicos deste novo período terão caráter distinto ao daqueles verificados no passado
colonial. O considerável crescimento e modificação quantitativa que a nova ordem
internacional proporciona à função exportadora do país tendem a levar à sua gradual
transformação qualitativa. Paradoxalmente, porém, estas mesmas circunstâncias que
estimulam o crescimento econômico do país, contribuindo para sua transformação qualitativa,
invertem o sinal de sua intervenção. Ou seja, se antes serviam de impulso, agora aqueles
fatores passariam a obstáculo ao crescimento e desenvolvimento brasileiros. 274
Mas antes de prosseguir na análise desta contradição cabe indagar: quais seriam,
exatamente os elementos de mudança verificados então no Brasil?
Expandindo-se a demanda de produtos primários e gêneros alimentícios para abastecer
as economias industriais em pleno crescimento, não apenas se estimula a produção como
também são proporcionadas as condições para fazê-lo: o indispensável aparelhamento técnico,
comercial e financeiro para a organização da produção e do transporte das mercadorias, como
271
São questionáveis as definições conceituais de capitalismo feitas por Caio Prado Júnior, distinguindo um de
tipo “comercial” de outro de tipo “industrial”. Mas não vamos tratar aqui deste problema, pois demandaria
investigações que extrapolariam os limites do presente trabalho.
272
Cf. HD, p. 73-7.
273
HD, p. 77.
274
Cf. HD, p. 77-81.
111
as estradas de ferro, as instalações portuárias, a navegação marítima. As novas dimensões
adquiridas com tais modificações representam não somente um progresso quantitativo da
mesma função exportadora de mesquinhas perspectivas anteriores, como também
desencadeiam, por força das repercussões diretas e indiretas desse progresso, um processo de
desenvolvimento que se reflete no conjunto da vida econômica e social do país. A expansão
cafeeira e ferroviária, acompanhados da formação de capitais locais, seriam expressões de tais
mudanças. 275
Soma-se a isso as transformações advindas da abolição da escravidão e da imigração,
trazendo impulsos para a ampliação do consumo de bens econômicos e, assim, o crescimento
do mercado interno.276
Do ponto de vista econômico, a elevação do estatuto social do trabalhador
determinará a ascensão paralela dos padrões materiais de grande massa
demográfica, ou pelo menos perspectivas para essa ascensão. E ao mesmo tempo,
como consequência, impulsiona o giro comercial e financeiro. Tudo isso contribui,
como é facilmente compreensível, para a ativação da economia e do
desenvolvimento do mercado interno. 277
Mas o sentido econômico profundo que teve a abolição, bem como os efeitos que dela
decorreram, não se restringem à ampliação da demanda e seu estímulo à produção. O fim da
escravidão, na verdade, representou a derrubada do principal obstáculo anteposto ao definitivo
estabelecimento, à generalização e ao progresso das relações capitalistas de produção no
Brasil.
O fato é que, com substituição definitiva e integral do trabalho escravo pelo livre,
achou-se presente no Brasil o conjunto dos elementos estruturais componentes do
capitalismo. Esse sistema não representa, em última instância, mais que o termo
final do processo de mercantilização dos bens e das relações econômicas, o que se
completa precisamente quando este processo atinge e engloba a força de trabalho
transformada em simples mercadoria que se compra e se vende. É isso justamente
que se verifica no Brasil com a abolição, pois os demais elementos estruturais da
economia brasileira já eram de início de natureza essencialmente mercantil. 278
Com tal mudança, segundo Caio Prado Júnior, os mecanismos capitalistas já incluídos
potencialmente na estrutura eminentemente mercantil da produção cafeeira terão livre jogo.
275
Cf. HD, p. 83-91.
276
Cf. HD, p. 102
277
RB, p. 85.
278
RB, p. 95-6.
112
Não sendo mais imobilizados na aquisição de escravos, os capitais estariam liberados para a
acumulação e rápida circulação.279
É interessante notar como o autor estabelece uma relação de quase equivalência entre
natureza mercantil e natureza capitalista dos elementos estruturais da economia brasileira. O
desenvolvimento do capitalismo dependeria, assim, do estabelecimento de relações mercantis
nas instituições econômicas em seu conjunto e no fundamental, e não apenas nas relações
jurídicas de trabalho – fator essencial de distinção entre economia feudal e capitalista, por
exemplo. Assim, de tais circunstâncias deriva “o fato de o capitalismo encontrar no Brasil
franqueado o terreno, no que se refere às relações de produção, logo que se aboliu o trabalho
servil.”280 Pode-se dizer, portanto, que para Caio Prado Júnior o Brasil antes da abolição da
escravidão não era propriamente capitalista porque a força de trabalho ainda não havia sido
plenamente mercantilizada. Neste sentido, por um lado, a diferença entre a subsunção real e a
subsunção formal do trabalho ao capital é minimizada pelo autor, uma vez que os elementos
mercantis da economia colonial brasileira já incluíam em si mecanismos potencialmente
capitalistas. Por outro lado, porém, esta diferença é enfatizada na medida em que reconhece
na abolição da escravidão um elemento fundamental para que o desenvolvimento do
capitalismo se processasse.
Com isso, ao mesmo tempo em que a abolição representa grande mudança é também
fator que não impede a permanência e o reforçamento de características já presentes no
período anterior: transformação sem ruptura.
Tratava-se em suma, no caso do Brasil, de uma economia e sociedade já
estruturadas e inteiramente condicionadas para a realização de objetivos mercantis
idênticos àqueles que a nova ordem capitalista iria delas exigir. Daí a sua
predisposição para se integrarem naquela ordem sem atritos e sem necessidade de
rompimentos ou remanejamentos de instituições econômicas e sociais mais ou
menos inajustáveis à nova ordem, como ocorreu naqueles citados países da Ásia e
África. (...) Aqui não somente não houve resistência, mas ainda os impulsos e
estímulos partidos de ambas as esferas, a externa, que é o sistema, e a interna que
são as condições específicas do Brasil, se somam harmonicamente, ou antes, se
integram em conjunto para impelirem o crescimento da função exportadora, em
279
280
Cf. RB, p. 96.
RB, p. 96. “A abolição da escravidão, como vimos, trará o último complemento a essa consolidação das
relações capitalistas de produção que se difundem assim uniformemente por toda a economia brasileira,
conservando, embora em muitos casos e lugares, acentuados traços escravistas. Mas traços apenas, tivemos
ocasião de notá-lo, que não somente não desnaturam o tipo de relações econômicas, como ainda, longe de porem
obstáculo ao desenvolvimento capitalista, que tem como principal motor a acumulação de capital, pelo contrário,
favorece essa acumulação e, pois, aquele desenvolvimento.” RB, p. 115.
113
consequência as forças produtivas e a economia em geral do país assentes naquela
função. 281
Portanto, ainda que se verifique o desenvolvimento das forças produtivas e o
crescimento econômico, ao fim e ao cabo, no desenvolvimento histórico do Brasil prevalece a
continuidade em detrimento da mudança.
Efetivamente a história brasileira apresenta, no curso de seu desenvolvimento,
desde os primórdios até os nossos dias, acentuada continuidade. Não ocorre nela
nenhuma solução apreciável dessa continuidade, e o caráter e sentido desta
coletividade que constitui o Brasil tal como ele ainda se apresenta no essencial e
fundamental, se marcou (...) desde os primeiros passos da colonização. 282
Aqui retomamos aquela contradição a que nos referimos anteriormente, na qual os
mesmos elementos que estimulam a mudança qualitativa do país lhes servem de empecilho.
Isto porque a própria industria, que representa a abertura para um novo sistema econômico,
depende da função exportadora para lhe proporcionar os capitais necessários aos
investimentos. Ademais, fortemente constituída pelos empreendimentos do capital
estrangeiro, é com os recursos financeiros auferidos pela exportação de produtos primários
que são devidamente remuneradas a participação da empresas internacionais no processo de
industrialização brasileiro. Reforçam-se, assim, tanto sua dependência externa quanto sua
estrutura produtiva interna voltada ao fornecimento de gêneros primários. Por isso, na
conjuntura da economia brasileira nos anos 1960, de acordo com Caio Prado Júnior, se
insinuam contradições que se configuram principalmente na permanência de um sistema que,
embora anacrônico e obsoleto, persiste e impõe obstáculos ao desenvolvimento. Afinal, as
mesmas circunstâncias que impulsionam sua substituição por um novo sistema se apresentam
também como impedimento para esta mesma renovação. 283
Originalidade e ambiguidade são, muito provavelmente, as características mais
marcantes da interpretação de Caio Prado Júnior a respeito do desenvolvimento histórico
brasileiro. E foi justamente o sentido da colonização, como categoria de análise, que lhe
proporcionou a condição de autor ao mesmo tempo original e ambíguo. Afinal, se ela lhe
permitiu compreender a formação brasileira em sua totalidade ao inserir seu desenvolvimento
histórico nos quadros do capitalismo mundial e, com isso, identificar os fortes elementos
internos e externos de continuidade no tempo e no espaço, em certa medida ela também, por
281
HD, p. 93-4.
282
HD, p. 33-4.
283
Cf. HD, p. 141-2.
114
conseguinte, o levou a subestimar as mudanças pelas quais a formação econômico-social do
Brasil passou.
Como nos indica Rubem Murilo Leão Rego, Caio Prado Júnior identificou agudamente
a especificidade brasileira, que “constituiu justamente na ausência de processos de ruptura
com as formas econômicas e sociais básicas” e se traduziu na “eternização de elementos de
atraso e de traços nunca inteiramente superados”. Assim, esta “ideia de permanência dos
traços coloniais pode ter induzido, em Caio Prado, a uma certa subestimação da mudança no
movimento histórico da experiência brasileira.”284 Dois fatores teriam contribuído para isso:
A subestimação encontra-se no fato de não ter precisamente reconhecido as
consequências do engendramento, internamente à sociedade brasileira, do processo
endógeno de acumulação de capital que, assentado historicamente no dinamismo
do complexo agroexportador cafeeiro, instaurou um novo padrão à conformação do
capitalismo brasileiro. Por outro lado, também no fato de não ter inteiramente
superado a compreensão de que a força da ação imperialista do capitalismo
internacionalizado impunha uma absoluta impossibilidade de autodefinição dos
rumos de nosso desenvolvimento. Em ambos os aspectos, é como não se desse
conta de todos os contornos e implicações dos novos momentos da acumulação
capitalista no Brasil. 285
A estes fatores poderíamos acrescentar a ênfase dada à esfera da circulação. Se
neste nível é realmente a continuidade que mais se destaca, a análise pormenorizada e
de conjunto da formação econômico-social brasileira de meados do século XX, no qual
as relações de produção tem grande relevância, revelariam traços importantes de
mudança, ainda que tenham se processado gradual e lentamente, sem rupturas.
284
RÊGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil: Caio Prado Júnior – continuidades e mudanças no
desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2000, p. 223-4.
285
Ibidem, p. 224.
115
16. O desenvolvimento como tema
Conhecemos minimamente o encadeamento dos fatos que levaram Caio Prado Júnior a
escrever uma tese para o concurso de professor da USP em 1968. Pouco se sabe, porém,
porque escolheu o desenvolvimento como tema. Para compreender a questão, ainda que possa
contribuir para a construção de um quadro amplo, não consideramos suficiente analisar o
contexto geral do pensamento econômico nacional e internacional nos anos 1960 ou as
formulações dos desenvolvimentistas brasileiros, que visavam atualizar suas interpretações e
propostas para lidar com a nova conjuntura instaurada com a crise econômica de 1962 e o
golpe militar. Caio Prado era um intelectual que acompanhava os mais recentes debates
historiográficos, econômicos e filosóficos, era assinante de diversos jornais e revistas
científicas nacionais e internacionais. E como nos atesta a própria tese que escreveu, tinha
conhecimento sobre as teorias econômicas de seu tempo. Mas se isso indica que estava
inteirado das discussões dos anos 1960 sobre o desenvolvimento, não necessariamente explica
sua escolha como tema de tese. Neste sentido, para tentar compreender a questão
analisaremos um elemento mais pontual e circunscrito, mas nem por isso menos importante: a
Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo –
FCEA/USP.
Criada pelo Decreto-lei Estadual nº 15.60, de 26/01/1946, teve sua denominação
alterada em 1969 para Faculdade de Economia e Administração – FEA. Em sua primeira
década de funcionamento, os cursos de graduação em Economia nas recém-criada unidade da
USP acabou evidenciando uma forte influência humanista no seu ensino. Possivelmente, isto
se deu um função da origem de seus primeiros professores: a Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da USP (com forte presença de economistas franceses); Faculdade de Ciências
Econômicas de São Paulo; Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado; Escola Técnica
do Instituto Mackenzie; Escola Livre de Sociologia e Política. Os professores pioneiros do
período da implantação da Faculdade não eram economistas, mas contribuíram muito ao
pensamento econômico brasileiro, com especial menção aos franceses Paulo Hugon,
Françoise Perroux e à Alice Piffer Canabrava, licenciada em Geografia e História, primeira
catedrática da FCEA/USP. Além desse caráter humanista, o ensino na Faculdade de Ciências
Econômicas e Administrativas manteve igualmente um matiz especulativo e institucional de
116
complementação cultural típica dos cursos de Economia nas Faculdades de Direito, Ciências
Sociais e Engenharia. 286
Observando essa característica da formação dos economistas, alguns docentes
buscaram, com êxito, efetivar algumas mudanças curriculares com o objetivo de contemplar
paulatinamente disciplinas capazes de municiarem os alunos com o instrumental matemático e
estatístico necessário à construção de modelos de análise dos problemas micro e
macroeconômicos. Com isso, os alunos da FCEA passaram a ter uma postura cada vez mais
diferente daquela dos alunos de Ciências Sociais que priorizaram os debates em Economia
para poderem entender a realidade nacional sob uma ótica mais política. Além dessas
mudanças instituídas ainda pelos primeiros professores, novas transformações ocorreram no
ensino de economia quando passaram a fazer parte do quadro docente muitos ex-alunos
graduados pela instituição no início dos anos de 1960. Com a reestruturação didática,
administrativa e de conteúdo programático que ajudaram a promover, consolidou-se
definitivamente o deslocamento do eixo do ensino de Economia das Faculdades de Direito,
FFCL e Engenharia para os cursos específicos da FCEA, na qual se valorizava a Econometria
– um híbrido de matemática, de estatística e de teoria econômica – e disciplinas afins de
caráter obrigatório. A formulação da teoria econômica passou a se fundamentar em linguagem
matemática, realização de testes com dados empíricos e demais recursos voltados a cálculos
de probabilidade. 287
Iniciou-se, também, uma ebulição metodológica ligada a uma concepção de
economia que não mais se contentava em interpretar o mundo econômico, mas que
desejava transformá-lo e, para tanto, deveria dispor de complexo instrumental
analítico, especialmente matemático e estatístico. Então, a FCEA passou a se
reestruturar em torno da Teoria Econômica como área fundamental dos cursos de
economia, predominando a concepção de estudos teóricos voltados para a ação, ou
seja, para explicar, compreender e prever a atividade econômica e, principalmente,
agir no mundo real. 288
Nesta análise, percebe-se uma nítida alusão à décima primeira das teses de Marx sobre
Feuerbach, que citamos anteriormente. Contudo, como veremos mais adiante, Caio Prado
Júnior polemizou justamente com a maneira pela qual, no Brasil e na FCEA em particular, se
286
Cf. GARÓFALO, Gilson Lima; RIZZIERI, Juarez Alexandre Baldini. O Departamento de Economia da
FEA/USP e o pensamento econômico brasileiro. In: SZMRECSÁNYI, Tamás; COELHO, Francisco da Silva.
São Paulo: Atlas, 2007, p. 179-88.
287
288
Cf. Ibidem, p. 179-88.
PINHO, Diva Benevides. Economia política e a história das doutrinas econômicas. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 8, n. 22, set.-dez., 1994, p. 327.
117
formularam as teorias do desenvolvimento que deveriam orientar a prática da gestão
econômica, na qual o referido “mundo real” seria objeto de intervenção, mas não servia como
substrato para a formulação da própria teoria. Neste sentido, podemos dizer, a FCEA se
aproximaria mais da economia política clássica, que não se furtava a “agir no mundo real”,
que da crítica da economia política, que tinha como pressuposto não apenas a transformação
da realidade como horizonte para o pensamento, mas a concepção de que teoria e ação devem
se orientar pela práxis, sem o que a discussão sobre a realidade ou irrealidade do pensamento
seria puramente escolástica.
Contudo, isso não impediu a Faculdade de se tornar um centro de demanda de
economistas para trabalharem em assessorias governamentais. Pelo contrário, a nova
orientação metodológica serviu de estímulo para isso. Ao longo dos anos 1960, professores
novos e antigos passaram a formar equipes de trabalho que contribuíram na viabilização das
experiências de planejamento econômico nacional e regional e na orientação de políticas
econômicas nos níveis municipais, estaduais e federal. Exemplos disso são, no período
posterior a 1964, o PLADI – Plano de Desenvolvimento Integrado, do governo Adhemar de
Barros (1964-1966); o PAEG – Programa de Ação Econômica do Governo (1964-1966), do
Governo Castello Branco; o PED – Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968 a 1970),
do período presidencial de Costa e Silva; e o I PND – Primeiro Plano Nacional de
Desenvolvimento (1972 a 1974), do Governo Médici. A FCEA (depois nomeada FEA),
chegou aos anos 1970 com diversos docentes ocupando posições de destaque nas esferas
executivas governamentais federal, estaduais (não apenas de São Paulo) e da capital paulista,
manifestando-se a influência da nova orientação da Escola no pensamento econômico
brasileiro. Com as transformações ocorridas nos anos 1960, cada vez mais os egressos da
Faculdade que apresentavam formação técnica e profissional condizente com a nova
orientação passaram a ser requisitados por órgãos governamentais nas três esferas da
federação, empresas públicas e privadas, bem como outras instituições de ensino superior de
economia no país. 289
O representante mais característico deste fenômeno é Antônio Delfim Netto, primeiro
ex-aluno (formado em 1951) a ocupar uma cátedra da FEA/USP. Além de contribuir para as
alterações na estrutura curricular de economia da Faculdade, liderou o grupo que participou
289
Cf. Ibidem; GARÓFALO & RIZZIERI, O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento
econômico brasileiro, p. 179-88.
118
ativamente da formação da Associação Nacional de Programação Econômica e Social –
ANPES, que publicou seu primeiro estudo em 1965, Alguns aspectos da inflação brasileira,
escrito por Delfim Netto, Affonso Celso Pastore, Eduardo Pereira de Carvalho e Pedro
Cipollari, todos docentes da FCEA/USP. O trabalho contraria o argumento do pensamento
cepalino de deterioração dos preços relativos de troca, atribuindo ao déficit público e seu
respectivo financiamento monetário a origem do processo inflacionário, e não a causas
estruturais. Além da produção acadêmica e atuação docente, Delfim Netto assumiu a
Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, foi Ministro da Agricultura, da Fazenda e do
Planejamento nos governos militares, em baixados brasileiro na França e deputado federal por
várias legislaturas. Sua influência, contudo, não se restringe à sua intervenção individual nos
debates econômicos. Alguns alunos descontentes com as disciplinas prevalecentes na
estrutura curricular anterior tiveram aulas com Delfim Netto em um curso ministrado em
separado formaram um grupo que ficou conhecido como os Delfim’s boys. Muitos de seus
integrantes auxiliaram o professor na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo a partir
de 1966 e ocuparam cargos públicos importantes da esfera governamental. 290
Interessante notar, ademais, que entre os professores denunciados no relatório da
comissão montada para averiguar atividades “subversivas” na USP, em 1964, dos 44
apontados, apenas três eram da FCEA: Mário Wagner Vieira da Cunha, Paulo Israel Singer e
Lenina Pomeranz. A maioria dos indicados eram da FFCL e da Faculdade de Medicina. Entre
os professores aposentados compulsoriamente pelo decreto de 1969, Paulo Singer era
praticamente o único da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas.
291
Neste
sentido, a julgar pela projeção dos quadros formados na FCEA/USP nas instituições
governamentais no período ditatorial, pela orientação curricular que passava a ser
implementada e pela escassa presença de economistas progressistas e de esquerda, as forças
conservadoras exerciam hegemonia no departamento.
Foi nesse contexto de crescente afastamento das teorias econômicas do pensamento
humanístico no âmbito da FCEA e de forte hegemonia do conservadorismo, expresso na
colaboração com os planos e programas econômicos dos governos militares, que Caio Prado
Júnior foi escolhido – provavelmente sem unanimidade, porém – como paraninfo da turma de
formandos de 1967. Sua notoriedade no período atingiu tamanha repercussão que foi capaz de
290
Cf. GARÓFALO & RIZZIERI, O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento econômico
brasileiro, p. 179-88.
291
Cf. ADUSP, p. 45-59
119
romper a influência do anticomunismo entre os alunos da Faculdade. Seu discurso, datado de
7 de março de 1968, foi ouvido pelos jovens economistas da turma. Entre os formandos,
estavam Roberto Brás Matos Macedo, que viria a ser articulista de vários periódicos,
consultor internacional, secretário especial de política econômica do Ministério da Economia,
Fazenda e Planejamento na gestão de Marcílio Marques Moreira; Denisard Cneio de Oliveira
Alves, ligado à área de econometria, se tornaria secretário de Finanças da Prefeitura do
Município de São Paulo e diretor do Banco do Estado de São Paulo; Celso Luiz Martone, se
tornaria especialista em economia monetária, análise conjuntural e sistemas econômicos, e
vice diretor da FEARP/USP; e João Sayad, que seria ministro de Economia e Planejamento,
secretário da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo, diretor do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID) e secretário de Cultura do Governo do Estado de São Paulo. 292
Como se pode notar pelo tom de seu discurso, Caio Prado Júnior não estava alheio ao
momento vivido pela FCEA, que vinha formando economistas que atuariam em postos de
destaque na orientação da política econômica do Estado em diversos níveis:
Assim sendo, e por se tratar de economistas e de homens que se destinam a gerir os
órgãos propulsores da economia brasileira, penso que nada é mais indicado como
tema, ou pelo menos como ponto de partida desta nossa palestra, que aquilo que se
encontra, nos dias de hoje, presente no espírito de todos nós, e que tão direta e
indiretamente diz respeito à nossa sorte individual e de brasileiros. E que, além de
tudo é algo em que a responsabilidade de vocês, na profissão e atividade que
escolheram, se mostra diretamente envolvida. Refiro-me à questão do
“desenvolvimento”. 293
É, pois, visível que, de modo semelhante à crítica que fez aos tecnocratas “encerrados em seus
gabinetes ministeriais e Escolas privilegiadas” ao receber o Troféu Juca Pato, seu discurso de
paraninfo e sua tese para o concurso do Departamento de História significavam também um
confronto direto com a orientação curricular que passava a vigorar nos cursos de economia da
FCEA:
A economia política que ordinariamente se estuda e apreende entre nós, é em
grande parte, infelizmente, um simples decalque do que se elaborou em outros
lugares e na perspectivas de situações bem distintas daquelas em que nos
encontramos. Não é possível, e chega às vezes até grotesco, considerar e analisar o
nosso país à luz de noções e modelos que pressupõem e postulam um certo modo
292
Cf. GARÓFALO & RIZZIERI, O Departamento de Economia da FEA/USP e o pensamento econômico
brasileiro, p. 179-88.
293
Discurso de paraninfo da turma de 1967 dos alunos da FCEA, de 7 de março de 1968 (Código CPJ-CA012,
AIEB)
120
de ser e um comportamento coletivo que se encontram em países cujo passado e
sobretudo o presente se distinguem profundamente do Brasil. 294
Em seu discurso à turma de formandos de 1967 da FCEA/USP, Caio Prado Jr.
antecipou e sintetizou boa parte da tese central do texto com qual concorreria à cadeira de
História do Brasil no ano seguinte. Tendo em vista que “são graves e profundos os vícios da
economia brasileira”, cujas raízes são “profundas e longínquas” e remontam às “próprias
origens da formação histórica do Brasil”, a solução da questão do desenvolvimento brasileiro
exige “acomodar” os “conhecimentos adquiridos em fontes estranhas às coisas próprias do
Brasil” às questões “que são particulares do nosso país e das situações que nele se
encontram”. 295
Sendo Caio Prado um sujeito voltado à ação política, ocupar a cadeira de História da
Civilização Brasileira significaria contribuir para que o Departamento de História da USP
representasse na prática um foco de resistência ao crescente predomínio da econometria, do
quantitativismo e da linguagem matemática abstrata diante da questão do desenvolvimento
econômico. Neste sentido, ao defender no concurso a ideia de que “o desenvolvimento e
crescimento econômico constituem tema essencialmente histórico”, não devendo, portanto
“ser incluído em modelos analíticos de alto nível de abstração”, mas, pelo contrário, “ser
tratado na base da especificidade própria e das peculiaridades de cada país ou povo a ser
considerado”
296
, o autor buscava não apenas realizar um contraponto teórico com a corrente
da economia política que vinha ganhando espaço na FCEA. Havia uma dimensão prática e
política em sua tese, sintetizada nas últimas linhas do livro, segundo a qual o
“equacionamento do problema do desenvolvimento brasileiro (...) resulta e somente pode
resultar de uma apreciação do processo histórico que é onde a questão do desenvolvimento se
propõe”. Mas tal apreciação envolvia análises tanto da longa duração quanto do tempo
presente, uma vez que, segundo o autor, seria na base das circunstâncias da “atual conjuntura
econômica em que se encontra o país” que se faria possível “formular as premissas
necessárias para o equacionamento do problema”. 297
294
Ibidem.
295
Ibidem.
296
HD, p. 15-6
297
HD, p. 142.
121
17. Lições do “livro da vida”
Em seu discurso de agradecimento ao troféu Juca Pato, Caio Prado Júnior parabeniza o
princípio que orienta a homenagem concedida aos laureados pela premiação que então
recebia, discorrendo sobre as características que julgava essenciais aos intelectuais:
Refiro-me ao intelectual atuante, ao homem de pensamento que não se encerra em
torre de marfim, e daí contempla sobranceiro o mundo. E sim daquele que procura
colocar o seu pensamento a serviço da coletividade em que vive e da qual
efetivamente participa. E é justo o critério que norteia a concessão do prêmio Juca
Pato, pois é sobretudo de homens de pensamento, que sejam também homens de
ação, que o Brasil necessita. E necessita hoje mais que nunca, neste momento que
vivemos (...). 298
Caio Prado trata da relação entre pensamento e ação, entre teoria e prática, elemento
fundamental de sua obra e de sua própria trajetória. Este trecho de seu discurso – assim como
do último que proferiu na Assembleia Legislativa de São Paulo quando teve seu mandato de
deputado cassado e afirmou que “É por ação que os homens se definem”
299
– assemelha-se a
outros pronunciamentos que fez na condição de paraninfo em formaturas. No discurso que
enviou para ser lido na formatura da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política da UPE,
Caio Prado Júnior explicava que sua trajetória intelectual foi sempre marcada pela
preocupação em orientar-se pela realidade concreta tanto para a formulação de seu
pensamento quanto para a ação política:
A escolha de meu nome para paraninfo (...) é testemunho, para mim altamente
precioso que minha já longa carreira de escritor dedicado às causas de nosso Brasil
e de seu povo, encontrou ressonância na mocidade de meu país. E que o caminho
por mim escolhido desde meus primeiros passos na vida intelectual, merece a
aprovação de uma parcela altamente representativa da nossa nacionalidade. Qual
caminho foi esse, caminho no qual persisto e pretendo seguir até o último
momento? É centralmente e essencialmente o de buscar na realidade brasileira tal
como ela se apresenta, com toda naturalidade e sem os artifícios de esquemas
teóricos sobrepostos, toda a inspiração para o pensamento e ação. 300
298
Ibidem.
299
Discurso de Caio Prado Júnior na 139ª Sessão Ordinária, em 12 de janeiro de 1948. Anais da Assembléia
Legislativa – 1 Sessão da 1 Legislatura – 1947, v. IX, p. 760. In: KAREPOVS, Dainis (coord.). Caio Prado
Júnior: parlamentar paulista, p. 206.
300
Discurso de paraninfo da turma de 1967 do Curso de Sociologia e Política da UPE, de novembro de 1967
(CPJ-CA040, AIEB).
122
E não foi outro o sentido que deu aos últimos trechos de seu discurso de março de 1967 aos
formandos da FCEA, no qual Caio Prado Júnior aconselha os estudantes a seguirem este
caminho que orientou sua própria trajetória como intelectual e militante:
Em suma, o que proponho é que este diploma que estão recebendo e que lhes abre
as portas para a vida prática, não lhes sirva apenas para assegurar uma profissão,
prosperidade material e bem estar doméstico e privado. Uma vida restrita ao
círculo de tais ambições apenas, é para quem quer que tenha alguma elevação de
espírito, uma frustração que se irá acentuando a medida que avançam os anos, e por
maiores que sejam os sucessos alcançados. A ninguém se poderia desejar tão triste
sorte. Vocês aliás pertencem a uma geração de estudantes que já se destacaram na
vida política, e deram a medida de seu espírito público e consciência cívica. Estou
seguro que deixando de estudar nos livros, para estudarem no grande livro da vida,
vocês continuarão voltados para o ideal de um Brasil melhor, habitado por um
povo mais feliz. 301
Em grande medida, é por ter estudado no “grande livro da vida” que foi capaz de
formular teses de tanto impacto, repercussão e perenidade, tanto na historiografia como na
cultura política e no pensamento econômico brasileiro. Isso indica que soube relacionar,
talvez como nenhum outro intelectual de sua geração, a interpretação do mundo com base na
análise do desenvolvimento histórico e a sua necessária transformação com base na análise
das forças que atuam no devir histórico. O que nos remete a passagens de Karl Marx, muito
difundidas depois da publicação póstuma das Teses sobre Feuerbach, com as quais o autor
provavelmente teve contato: 302
A questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma
questão teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que o homem precisa
provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do seu pensamento. A
discussão sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento – isolado da práxis – é
301
Discurso de paraninfo para a formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967 (CPJ-CA012).
302
Lincoln Secco, Paulo Teixeira Iumatti e Paulo Henrique Martinez nos apresentam uma boa indicação das
leituras de Caio Prado Júnior, sobretudo nos anos 1930 e 1940, listando as obras da literatura marxista que
encomendava do exterior, os periódicos que assinava e uma descrição do ambiente literário e cultural marxista
do período. Em nenhuma destes autores, porém, há informações sobre o contato de Caio Prado Júnior com as
Teses. Segundo Jacob Gorender, elas vieram a público pela primeira vez como apêndice de Ludwig Feuerbach e
o fim da filosofia clássica alemã, de Friedrich Engels, em 1888. Edgard Carone nos informa que esta obra de
Engels teve sua primeira publicação no Brasil pela editora Unitas em 1932 – no mesmo ano em que, segundo
Hobsbawm, foi lançada, no idioma original, a primeira edição de A ideologia alemã. Cf. SECCO, Caio Prado
Júnior: o sentido da revolução, p. 34-5; IUMATTI, Caio Prado Jr.: uma trajetória intelectual, p. 81;
MARTINEZ, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p. 82; GORENDER, Jacob.
Introdução: o nascimento do materialismo histórico. In: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XX. CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil: das origens a 1964. Rio de
Janeiro: Dois Pontos, 1986, p. 189; HOBSBAWM, Eric J. A fortuna das edições de Marx e Engels. In:
HOBSBAWM, Eric J. (et. al.). História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 (v. 1, O marxismo no
tempo de Marx), p. 433-9.
123
puramente escolástica. (...) Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes
maneiras; do que se trata é de transformá-lo. 303
Esta característica de Caio Prado Júnior é objeto de análise e discussão nas
contribuições de autores que estudam o pensamento político de Caio Prado Júnior, como é o
caso de Raimundo Santos e Claudinei Magno Magre Mendes. Para este último, nos textos do
autor “história e política se entrelaçam de tal forma que tornam impossível ao pesquisador
compreender uma sem levar em conta a outra”. Mas Mendes não se limita a registrar a relação
de ambos os elementos e tenta estabelecer uma hierarquia entre eles:
Mais do que isso, esses dois aspectos encontram-se mesclados de uma maneira que,
à primeira vista, sua proposições políticas parecem derivar de sua interpretação da
história do Brasil. No entanto, a correlação não ocorre nesta ordem: sua
interpretação da história do Brasil constitui o resultado de seu modo particular de
compreender a história que, por seu turno, encontra-se condicionado por sua
posição política. Ou seja, ainda que se encontrem entrelaçados, é a posição do autor
diante das questões de sua época que explica sua interpretação, e não o contrário.304
Para este intérprete, portanto, Caio Prado “elaborou sua interpretação da história do
Brasil com a finalidade de fundamentar a proposta política pela qual sempre se bateu”,
fazendo com que tratasse seu programa político de formação de uma economia nacional,
voltada aos interesses internos, se fizesse “subordinando sua proposta à sua interpretação,
fazendo com que a constituição de uma economia nacional não apareça como proposta
política, mas, antes, como a tendência da história do Brasil”. Assim, a posição do autor na
historiografia brasileira “não é suficiente para apreender a dimensão política de Caio Prado
(...) pelo fato de sua crítica à historiografia ser explicada por sua posição política”, sendo esta,
portanto, “uma faceta que se encontra subordinada à sua posição política”. Em síntese: “o
historiador encontra-se subordinado ao político, se é que podemos fazer esta distinção”. 305
Interessante notar que Mendes permite um questionamento sobre a possibilidade de
distinguir o historiador do político, mas não faz o mesmo em relação à distinção entre
historiografia e política, que são apresentadas não apenas como elementos distintos, mas
principalmente relacionados um ao outro de maneira hierarquicamente subordinada. Ou seja,
ao invés de buscar a compreensão do pensamento caiopradiano em sua totalidade dialética, na
qual diferentes elementos constituem uma unidade em constante processo de negação e
303
MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, p. 99-103.
304
MENDES, Claudinei Magno Magre. Política e história em Caio Prado Júnior. São Luís: UEMA, 2008, p.
23.
305
Idem, p. 24, 30 e 37 (grifos nossos).
124
afirmação, de colaboração e conflito, prefere elevar a ideologia a uma condição suprema que
praticamente anula as dimensões científica, teórica e metodológica da obra do autor.
De nossa parte, consideramos que a relação de Caio Prado Júnior com a realidade
concreta não se limita nem se subordina a uma leitura ideológica do “livro da vida”, mas da
incorporação de um método eficaz na tarefa de extrair dele o material necessário para a
elaboração teórica capaz de orientar rigorosamente ação política. Portanto, entre uma
interpretação isenta do desenvolvimento histórico que subsidia sua ação política, por um lado,
e uma orientação político-ideológica que subordina a concepção teórico-metodológica que
orienta sua escrita da história, por outro, consideramos que o autor opta por um caminho
peculiar que não se enquadra em nenhum destes modelos. Nem a ciência subordina a política,
nem a política subordina a ciência: Caio Prado Júnior, sem deixar de ser um sujeito de seu
próprio tempo, deu um passo significativo tanto na tradução ou nacionalização do marxismo
no Brasil como no estreitamento dos laços entre a história que se pensa e história que se faz.
Neste sentido, se é verdade que a “amputação do espírito” e a “mutilação continuada e
sistemática das fontes vivas da inspiração” pelas quais Caio Prado Júnior passou ao longo de
sua trajetória funcionaram como um obstáculo para sua produção intelectual, é preciso
reconhecer que foram suas experiências de vida como “homem de ação” – muitas delas
dramáticas, amargas, duras e violentas – que lhe permitiram ter uma demonstração objetiva do
“livro da vida”, cujas linhas são escritas com uma tinta composta por grandes proporções de
suor e sangue.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caio Prado Júnior manteve sua produção intelectual por cinco décadas. Ao longo deste
período, pensamento e ação caminharam lado a lado. Já no Primeiro Congresso Brasileiro dos
Estudantes de Direito, realizado em Belo Horizonte em setembro de 1926, aos 19 anos,
demonstrou conhecimentos de economia ao defender em plenário a quebra do padrão
monetário e a fixação do câmbio, posição que foi adotada por unanimidade.306 Em fins de
1983, com 76 anos, apareceu em público ao lado de Maria Cecília Naclério Homem, Florestan
Fernandes e Carlito Maia para apoiar as manifestações no primeiro ato de lançamento da
campanha das “Diretas Já”, diante do Estádio do Pacaembu, em São Paulo.307
Neste intervalo preocupou-se sobretudo com os rumos do Brasil, colocando a serviço da
ação política consciente seus conhecimentos nos diversos campos do saber. Na diversidade de
questões que tratou, o desenvolvimento mereceu atenção particular, recebendo análises sob
diferentes aspectos: econômico, histórico, filosófico, político, sociológico. Como não era
afeito a categorizações definitivas e enrijecidas, buscava nos processos particulares que se
desenrolavam no tempo e no espaço o material necessário para compreender a realidade e
sistematizar o conhecimento. Seus conceitos, por isso, raramente são encontrados em
formulações sintéticas em suas obras, o que lhe valeu críticas e elogios. Estudar um aspecto
conceitual de seu pensamento, portanto, é tarefa que exige cuidado. Ainda mais quando se
trata de seu conceito de desenvolvimento, posto que, além da mediação entre a experiência
concretamente vivida e o pensamento processado com certo nível de abstração, envolve
também a íntima interação entre historiografia e economia política.
Assim, a noção que Caio Prado Júnior tem da práxis revolucionária, por um lado, exerce
influência decisiva de sua trajetória política e intelectual. Portanto, compreender os percursos
que percorreu entre 1964 e 1968 contribuiu decisivamente não para situar o autor no contexto
de seu tempo histórico, o que seria demasiado estático, mas para elucidar a dinâmica, o
processo, o devir das relações de concordância e divergência, de aproximação e afastamento,
de negação e afirmação que estabeleceu com seus contemporâneos. Desenvolvimento, então,
deixa de ser um conceito a ser analisado em sua dimensão de abstração do pensamento e
306
307
Cf. MARTINEZ, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935), p. 53.
Cf. SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, p. 126; KAREPOVS, Dainis (coord.). Caio
Prado Júnior: parlamentar paulista, p. 243.
126
passa a ganhar forma concreta na medida em que participa dos embates políticos e sociais que
definiam os rumos do mundo objetivamente. Caio Prado Júnior, pois, participou ativamente
da própria história do conceito de desenvolvimento.
Por outro lado, sua noção de totalidade lhe permitiu evitar a armadilha de abordar o
problema do desenvolvimento a partir de sua faceta puramente econômica ao inseri-lo no
processo histórico em sua complexidade. Mas não o fazendo mecanicamente, evitou tanto o
economicismo vulgar que exclui a ação humana da história quanto o idealismo voluntarista
que negligencia ou subestima as condições objetivas e subjetivas. O desenvolvimento
econômico seria, portanto, parte do desenvolvimento histórico e ambos se explicariam na
medida em que fossem paulatinamente compreendidos como um mesmo processo em sua
totalidade. Obviamente, como qualquer conhecimento produzido pela mente humana,
permanecem lacunas na representação da realidade como um todo. Contudo, ao buscar refletir
sobre as múltiplas relações entre variados processos interdependentes, mesmo que não tenha
conseguido comprovar algumas de suas teses ou se equivocado em outras, lançou-se ao
desafio de compreender a formação histórica do Brasil e, com isso, lançou um desafio aos
demais que tentaram e tentam prosseguir a mesma empreitada.
Por fim, não pretendemos aqui recapitular as hipóteses que levantamos e as ideias que
defendemos ao longo de nosso trabalho. Preferimos um breve comentário sobre a escolha do
período que analisamos (1964-1968), pois, a nosso ver, ela foi decisiva para os resultados
obtidos. Neste sentido, vale apenas ressaltar que nosso posto de observação tem ao menos
uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que sendo um momento crítico da história
brasileira, no qual se redefinem paradigmas tanto na esquerda brasileira quanto na
intelectualidade que pensava o desenvolvimento brasileiro, Caio Prado Júnior teve a
oportunidade de sistematizar o conjunto de teses que formulou ao longo de toda sua obra
precedente. Isto tornou possível apreender dimensões amplas e complexas de seu pensamento
a partir de um conjunto relativamente reduzido de fontes. A desvantagem decorre,
paradoxalmente, das próprias circunstâncias que nos trouxeram uma relativa vantagem. Ou
seja, como neste curto período Caio Prado elaborou uma síntese de sua interpretação da
formação e evolução histórica brasileira, não dispusemos do conjunto de elementos que lhe
permitiu formular, no período precedente, sua concepção de desenvolvimento. Assim,
ficamos sem condições de saber se há continuidades ou descontinuidades em seu pensamento
nesta questão em particular depois do conturbado e de intenso debate que se instaurou a partir
de 1964.
127
Um estudo detalhado de sua produção historiográfica dos anos 1930 e 1940, de suas
obras de economia e filosofia nos anos 1950, bem como de seus textos produzidos em forma
de artigo com vistas ao debate político, certamente contribuiriam para aprofundar nossos
conhecimentos sobre o conceito de desenvolvimento presente no conjunto de sua obra e,
assim, contribuir para compreender as tensões existentes entre historiografia e economia
política no pensamento de Caio Prado Júnior.
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133
ANEXOS
Discurso de paraninfo para a formatura da turma de 1967 dos alunos da Faculdade de
Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA/USP), em 7 de março de 1967
Muito lhes agradeço a honrosa indicação de meu nome para Paraninfo. Bem sei que assumo,
com esta incumbência, uma grande responsabilidade, pois deste nosso encontro, embora tão breve, não
é apenas um formal discurso de saudação que vocês tem o direito de esperar. E sim algo mais que
vocês possam levar daqui, e que lhes sirva de estímulo na vida profissional, e sobretudo na vida
prática e de cidadãos que vocês vão encetar.
Não sei se alcançarei esse objetivo, mas esforcei-me por dar o melhor de mim para lhes oferecer
pelo menos uma perspectiva. Assim sendo, e sobretudo por se tratar de economistas e de homens que
se destinam a gerir os órgãos propulsores da economia brasileira, penso que nada é mais indicado
como tema, ou pelo menos como ponto de partida desta nossa palestra, que aquilo que se encontra, nos
dias de hoje, presente no espírito de todos nós, e que tão direta e intimamente diz respeito à nossa sorte
individual e de brasileiros. E que, além de tudo, é algo em que a responsabilidade de vocês, na
profissão e atividade que escolheram, se mostra tão diretamente envolvida. Refiro-me à questão do
“desenvolvimento”.
Antes de entrarmos na matéria, não seria descabido precisar um pouco esse conceito de
“desenvolvimento”, que pode dar e efetivamente tem dado margem a não poucos mal entendidos. Que
se entende por “desenvolvimento”? Com frequência, o que se vê compreendido no conceito é tão
somente o crescimento quantitativo que se exprime nas estatísticas da renda nacional do país, seja
global ou per capita; ou nos dados relativos à produção, movimento comercial, giro financeiro etc.
Mas tudo isso, e o mais da mesma natureza, por importante e expressivo que seja, informa, por si
apenas, muito pouco relativamente à verdadeira situação do país e de seus habitantes; diz muito pouco
de seus reais padrões de vida e dos bem estar que usufruem. Por exemplo, o índice mais importante e
decisivo com que se costuma medir desenvolvimento, é, como se sabe, a renda per capita. Mas a renda
per capita exprime apenas uma média aritmética, e quase nada nos diz acerca da situação particular
dos indivíduos que entram nos cálculos, e mesmo, eventualmente, da massa da população. E é isto, me
parece, que verdadeiramente importa, e que o índice de renda per capita não revela. Um país de
grandes riquezas concentradas nas categorias da população de elevado nível financeiro, e onde a massa
da população é miserável, pode apresentar uma renda per capita relativamente elevada. Mas não seria
justo, parece-me, concluir daí que se trata de um país desenvolvido. Tanto mais pode ocorrer, como de
fato ocorre em muitos lugares, que parcelas importantes da renda computada nas estatísticas, se escoa
134
para o exterior e vai dar nas mãos, ou antes nos bolsos dos capitalistas ou empresas estrangeiras que
operam no país. É o caso, entre outros, e bem próximo de nós, da Venezuela, que embora seja um país
mais ou menos da nossa categoria, senão pior, e onde a massa da população tem padrões de vida tão
miseráveis como no Brasil, a Venezuela, graças à produção do petróleo cujos proventos favorecem
sobretudo os grandes trusts internacionais que o dominam o negócio, apresenta uma renda per capita
que se aproxima da de países já razoavelmente desenvolvidos.
Mas seja como for, índices puramente quantitativos, e sobretudo quando exprimem apenas
fluxos monetários cujos meandros as estatísticas não revelam, nem podem revelar, dizem muito pouco
acerca da realidade social de uma coletividade. E em todo caso, são de valor que podemos reputar
secundário e simplesmente subsidiário, quando se trata de indagar da maneira como promover o
progresso e bem estar geral de uma população.
Isto diz respeito, especialmente, a países como o Brasil, onde os extremos que se observam,
entre larga e ilusória abundância, de um lado, e de outro, uma grande, uma imensa maioria que sofre
privações agudas das mais elementares necessidades vitais; e onde, a par de índices os mais salientes,
e direi mesmo escandalosos de luxo e modernidade, se observa, e infelizmente na maior parte dos
aspectos de nosso país, um primitivismo de estarrecer; em países assim, a questão do desenvolvimento
toma um sentido bem diferente daquele que se encontra nos textos ordinários da literatura econômica
ortodoxa e nas análises financeiras de rotina. O problema assume outras dimensões e natureza
qualitativa diferente; e não pode ser equacionado unicamente em termos de forças e estímulos
presentes e já naturalmente atuantes. Muito mais que de simples impulsos de ordem financeira, do
ajustamento de desequilíbrios ocasionais, aquilo de que o Brasil necessita, são novos rumos que
signifiquem a reconstrução de nossa economia e sociedade sobre novas bases e em novos moldes que
não os atuais, e que efetivamente contribuam para assegurar à generalidade e conjunto da população
brasileira, pelo menos e para começar, condições simplesmente humanas de vida que ainda não
existem para uma grande maioria. É esta a condição indispensável e tarefa preliminar para fazer do
Brasil, num futuro previsível, um país moderno, de fato integrado nos padrões materiais e culturais do
mundo de nossos dias. Não é evidentemente possível construir, e nem mesmo iniciar a construção de
uma nação moderna e digna desse nome, sobre os fundamentos de uma população constituída, em
grande parte, de desnutridos, doentes e analfabetos que vegetam, mais que vivem, em níveis que a
Humanidade realmente civilizada já há muito não conhece mais.
Ora, a superação desse estado de coisas, que todos quantos verdadeiramente conhecem a
realidade brasileira não põem em dúvida, não é certamente possível com o concurso unicamente das
mesmas forças econômicas e impulsos que vêm atuando, e que, considerados de perto e atentamente,
se têm mostrado e continuam mostrando incapazes, na conjuntura atual da vida brasileira, de
efetivamente promoverem as transformações em profundidade que se fazem imperativas.
135
Destaquemos entre aquelas forças e impulsos, em primeiro e principal lugar, pela importância
no atual sistema econômico em que vivemos, destaquemos a chamada livre iniciativa privada e as
forças espontâneas do mercado. A análise atenta deste nosso mercado interno nos mostra como ele é
defeituoso na perspectiva do desenvolvimento. E da forma como ele se apresenta, por efeito de sua
constituição e estrutura, ele é incapaz de oferecer à livre iniciativa privada, os estímulos necessários a
uma produção e atividade econômica de vulto e em moldes modernos, de alto nível e com larga
projeção futura. A isto se opõe a própria composição do mercado interno do país, e a natureza da
demanda solvável que nele se apresenta. Demanda solvável esta, de uma parte, de uma pequena faixa
de consumidores efetivos e de poder aquisitivo ponderável; e constituída, de outra parte, da grande
massa da população que vive nos limites da subsistência biológica; e mesmo, a rigor, com muita
frequência, abaixo desses limites. E que é por isso, em termos de demanda efetiva de produtos de uma
economia industrial moderna, praticamente nula, ou pelo menos inexpressiva. Resulta dais, em regime
como o nosso, da livre iniciativa, em que o estímulo é unicamente o lucro comercial, resulta dais a
tendência à concentração das atividades produtivas de padrões mais elevados, no atendimento daquela
pequena faixa de consumidores de maior poder aquisitivo. Isto em detrimento do restante da
população que constitui a grande maioria. Em prejuízo também dos setores da produção e da atividade
comercial voltados a esta maioria, e que se verão relegados a padrões de nível muito baixo. A
economia, naquilo que tem de expressivo e qualificado, funcionará, como de fato ocorre entre nós,
para satisfazer a demanda de uma pequena parcela da população. O restante será marginal e de
expressão econômica mínima. Situação esta que tende a se consolidar cada vez mais e se perpetuar,
porque é em vantagem do primeiro setor, e com desprezo do outro, que naturalmente se aplicará de
preferência a livre iniciativa privada estimulada pelos atrativos de um, e desinteressada em face da
marginalidade e pobreza do outro.
Para ilustração dessa disparidade de situações extremas que encontramos na distribuição das
atividades produtivas brasileiras, confronte-se, por exemplo, num ramo importante como o de
produtos alimentícios, o alto nível financeiro e tecnológico da produção, entre outros, das conservas
alimentícias, com o primarismo e primitivismo, desleixo, e portanto ineficiência, da maior parte da
fabricação da farinha de mandioca que constitui o alimento básico, e muitas vezes quase único, de uma
grande parcela da população brasileira.
A livre iniciativa privada, orientada unicamente pelo estímulo do lucro comercial, como se dá, e
não pode ser de outra forma, porque é o lucro comercial, e somente ele que visa a iniciativa privada,
irá naturalmente e fatalmente aplicar-se, de preferência, lá onde se oferecem maiores e melhores
perspectivas de lucro. Tenderá por isso a desenvolver tão somente aqueles setores da economia que
atendem às necessidades de uma parcela relativamente pequena da população. Ora uma tal situação, se
em si e na perspectiva do país em conjunto, já é grandemente defeituosa, porque o deixa na sua maior
parte desatendido e desservido pelas principais forças produtivas e pelas atividades econômicas de
136
expressão apreciável, aquela situação que descrevemos e que corresponde rigorosamente aos fatos
reais, comporta ainda outra e muito séria consequência, e que vem a ser as limitadas perspectivas de
expansão e crescimento mesmo daquelas atividades de maior expressão tecnológica, financeira e
comercial. É que, por força da própria estrutura do mercado que analisamos, tais atividades se acham
restritas a uma faixa largamente minoritária, e por isso muito pequena, de consumidores de poder
aquisitivo apreciável. Circunstância esta que fecha, à indústria brasileira em geral, a perspectiva da
produção em massa, que é, como não se ignora, condição essencial de uma indústria moderna, de alto
nível tecnológico e baixos custos unitários. É por isso, entre outros efeitos negativos, que os produtos
industriais brasileiros são em regra caros e de preços muito superiores aos concorrentes do mercado
internacional. Lembro a este respeito, e tão somente para exemplificação, que entre outros, os bens de
consumo duráveis nacionais, como automóveis, aparelhos eletrodomésticos e demais, custam cerca do
dobro de seus congêneres de outras procedências.
Verifica-se por aí como são graves e profundos os vícios da economia brasileira. E é por isso
que não podemos esperar a solução deles do simples livre jogo das forças econômicas naturais do
mercado e da livre iniciativa privada, uma vez que, segundo vimos, é precisamente dessa liberdade
econômica que deriva a situação tão inconveniente em que nos encontramos. E é tanto mais assim que
as raízes de uma tal situação são profundas e longínquas, e já há muito se consolidaram. Ela resulta,
em última instância, das próprias origens da formação histórica do Brasil. De fato, o que a colonização
nos legou, e que até hoje não conseguimos superar de todo, é uma economia voltada essencialmente
para o exterior, e fundamentalmente organizada para fornecer produtos primários ao comércio
internacional. A economia brasileira se constituiu e evoluiu sempre com essa finalidade. Praticamente,
tudo quanto se realizou no passado e até muito recentemente, inclusive mesmo a nossa organização
socioeconômica, foi tudo condicionado, em última instância, por essa função exportadora que o Brasil
assumiu desde suas origens mais remotas. Mesmo este caso de desenvolvimento excepcional, quando
confrontado com o conjunto brasileiro, e que é o verificado em São Paulo e regiões próximas nestes
últimos três quartos de século, decorre em última análise, e essencialmente, do fato de São Paulo se ter
constituído em principal, e até mesmo, durante algum tempo, quase único fornecedor internacional de
um produto de grande expressão comercial, como o café. O nosso progresso e desenvolvimento foi
sempre condicionado, ao longo de toda a história, por conjunturas favoráveis do mercado exterior a
gêneros primários de nossa produção. Era natural, portanto, e até mesmo fatal, que a uma tal situação
se amoldassem a economia brasileira, e até mesmo o conjunto de nossa organização socioeconômica.
Assim sendo, quando novas circunstâncias, de data muito recente, reduziram relativamente as
perspectivas oferecidas pelo mercado exterior a nossos produtos, e a economia e produção brasileiras
se viram cada vez mais restritas ao mercado interno, manifestaram-se em toda sua gravidade os vícios
profundos de uma estrutura socioeconômica organizada essencialmente em função de uma finalidade
exportadora de produtos primários, e mal aparelhada por isso, e inadequada para funcionar na base do
137
mercado interno. O país, no correr de sua formação e evolução históricas, se constituíra sobretudo, e
fundamentalmente, de um lado, de uma minoria de dirigentes de verdadeira empresa comercial
destinada a fornecer produtos primários ao comércio internacional; e de outro lado, da grande massa
trabalhadora dedicada unicamente a dar o esforço físico necessário à produção daquelas mercadorias
exportáveis. Uma organização social e econômica de tal natureza era evidentemente inadequada para
funcionar e se desenvolver normalmente quando a função para a qual se organizara e aparelhara ia
perdendo sua importância e significação anteriores.
É precisamente numa situação destas que nos encontramos, a saber, em transição do nosso
passado colonial de simples produtores de gêneros primários exportáveis, para uma economia e
organização social voltadas para dentro do país e para atenderem às necessidades e aspirações próprias
de sua população. Para realizarmos e completarmos essa transição, a tarefa é, como logo se vê,
imensa, porque os obstáculos que se lhe antepõem mergulham num passado longínquo e tem nele
fortes e profundas raízes. Não podemos por isso contar unicamente, nem mesmo essencialmente com
as forças espontâneas de um mercado que por efeito de contingências tão sérias, não oferecem à livre
iniciativa privada os estímulos convenientes para conduzir o país na direção de tais objetivos. A tarefa
a realizar, e que consiste em nada menos que remodelar a vida econômica e mesmo social em bases
novas, esta tarefa é grande demais para ser levada a cabo unicamente pela concorrência e choque de
interesses privados e afirmações individualistas que são a lei no sistema e regime de liberdade
econômica e livre iniciativa privada em que vivemos. Esta é uma ilusão de muitos que embora de boa
fé, se informam unicamente no grande progresso realizado pelo capitalismo nos Estados Unidos e na
Europa ocidental no correr de século passado e primeira parte do atual. Ilusão que consiste em julgar
que poderemos, de hoje para o futuro, reproduzir a façanha. Mas a situação e as circunstâncias
históricas gerais do Brasil, tanto as econômicas como as sociais, são bem distintas das que
encontramos naqueles países quando eles iniciaram seu grande surto moderno de desenvolvimento.
Acabamos de vê-lo na breve síntese que fizemos, e em que procurei mostrar as origens brasileiras que
tão profundamente marcaram toda a nossa formação e evolução até os nossos dias. A saber, as de uma
colônia tropical fornecedora de produtos primários ao comércio internacional.
Mas não é somente nestas origens e características próprias que o Brasil se distingue daqueles
pioneiros e vanguarda do capitalismo. Precisamos lembrar também que a situação e posição relativa
que nosso país ocupa no sistema internacional de conjunto do capitalismo de hoje, onde nos
encontramos relegados para um lugar dependente e marginal que nos tolhe os movimentos e embarga
a liberdade de ação. Não seria possível desenvolver aqui e agora um assunto complexo e largamente
controvertido como este do nosso enquadramento dentro do sistema internacional do capitalismo, isto
é, a nossa participação nele e a situação de dependência em que ele nos coloca. Apontarei apenas uma
circunstância do maior relevo, para mostrar como dentro desse sistema e sofrendo-lhe as
contingências, o crescimento da economia brasileira se acha tolhido. E escolho precisamente, para
138
ilustrar essa situação desfavorável, o fato que de ordinário é mais destacado, pelos apologistas do
imperialismo, como justificação dele. Refiro-me à aplicação de capitais estrangeiros em
empreendimentos destinados a operarem aqui no Brasil. Alega-se que essa aplicação vem suprir a
insuficiência de capitais brasileiros. E não há dúvida que num primeiro momento, o capital e os
empreendimentos estrangeiros trazem estímulo à economia brasileira. Mas isto é apenas num primeiro
momento, porque a prazo mais longo – e é isto que realmente interessa a operação dos
empreendimentos em países da nossa categoria, tolhe o processo de capitalização e a formação de
capitais próprios e nacionais. Afim de verificá-lo, é suficiente lembrar o fato notório a quem quer que
conheça o mecanismo dos negócios capitalistas, seja ele economista profissional ou simples
observador e participante das atividades econômicas, o fato que a fonte geradora principal de capitais,
e quase única em países como o Brasil, país de baixos padrões financeiros, e onde por isso a poupança
individual e particular é relativamente mínima, a fonte geradora de capitais realmente importante se
encontra nas empresas e naquilo que em linguagem contábil se denomina “lucros não distribuídos”
que se reivertem no negócio. A parte substancial do capital brasileiro se constituiu e continua se
constituindo com os lucros auferidos nos negócios, e que são capitalizados e reivertidos. É essa a
história da maior parte, senão de todas as empresas brasileiras e homens de negócio, que aumentam
seus haveres e crescem financeiramente, isto é, formam e acumulam capital, graças naturalmente a
seus esforços e tino comercial, não há dúvida, mas basicamente porque tiveram em mãos bons
negócios que lhe propiciaram os lucros com que constituíram e forma aumentando seus capitais. O
capital se forma e acumula no giro do negócio, na própria atividade da empresa. Isto é da essência do
mecanismo capitalista.
Ora, sendo assim, como é, evidentemente, está claro que se ficam a disposição dos
empreendimentos estrangeiros, como de fato tem acontecido, porque é isto que eles procuram, se
ficam à disposição deles as melhores oportunidade e negócios, é em seu benefício e nas suas mãos que
se fará a maior e melhor parte da acumulação capitalista no Brasil. Dir-se-á, como de fato se costuma
alegar, que estes capitais, brasileiros em sua origem, mas que se concentram em mãos estrangeiras,
permanecem no Brasil. Mas nem sempre é assim, e a tendência mais pronunciada desses capitais é
retirarem-se do país em proporção apreciável. É aliás o que vem acontecendo ultimamente, como
revelam bem claramente os dados estatísticos relativos ao movimento externo de capitais. E é natural
que assim seja. O capital procura sempre as melhores aplicações. E estas aplicações, no que se refere
aos grandes trusts internacionais, não serão certamente, daqui para um futuro previsível, no Brasil,
com sua moeda instável, o estado precário de nossa balança de contas externas e os poucos atrativos
de nosso reduzido mercado interno. As perspectivas, por isso, na escalada que interessa os grandes
trusts internacionais, e em confronto com a situação em outros lugares, são muito limitadas. Tivemos
nos últimos 20 a 30 anos um grande surto industrial, graças ao processo de substituição de
importações. Mas esgotadas as possibilidades dessa substituição, o que é amplamente reconhecido, as
139
perspectivas de novos empreendimentos de vulto e interessantes para empresas internacionais, se
restringiram muito. Nada faz prever um progresso apreciável do mercado interno brasileiro, que é
extremamente reduzido, pelas razões que já vimos, e que sem as grandes reformas a que me referi, não
poderá crescer substancialmente. Assim sendo, não há que esperar um novo surto, em futuro
previsível, de oportunidades de negócio do tipo e categoria que interessam os grandes trusts
internacionais. Eles serão levados assim a transferirem, na medida do possível, para fora do país e para
aplicações financeiras mais interessantes, os lucros capitalizados que aqui auferem, prejudicando com
isto o processo brasileiro de acumulação capitalista.
Em suma, a infiltração de empreendimento internacionais na economia brasileira, e a sua
implantação nos melhores e mais lucrativos negócios, como vem acontecendo, canaliza para eles, isto
é, para o estrangeiro, o melhor da acumulação capitalista que se realiza no país. Esta situação, além
dos inconvenientes que apresenta do ponto de vista de nossa integridade nacional e segurança política,
representa sério embaraço oposto a um real e efetivo desenvolvimento, pois significa um
empobrecimento relativo do setor nacional em benefício do estrangeiro.
Este é aliás apenas um aspecto, embora de grande importância e significação, da situação
desfavorável do Brasil no conjunto do sistema internacional do capitalismo. Para a promoção de nosso
desenvolvimento, torna-se assim essencial desvencilharmos-nos desse sistema, livrar-nos dele afim de
assegurar ema existência nacional própria e autônoma, e capaz de mobilizar os recursos e atividades
do país, bem como estruturar a sua economia, em função das necessidades e aspirações próprias e do
conjunto da nossa população.
E para isto também se exige uma ativa e vigorosa política voltada para a remodelação de nossas
instituições econômicas e sociais. Não podemos relegar-nos, para a realização de objetivos tão amplos,
no livre jogo das forças econômicas, na liberdade dos negócios e na livre iniciativa privada. Trata-se
mais que tudo de um problema político, que politicamente há de ser equacionado e resolvido.
E é a este ponto de minha breve análise da questão do desenvolvimento brasileiro que eu
desejava chegar, porque nele se insere a parte essencial da tarefa que me propus da presente saudação,
e que é de oferecer a vocês formandos, uma perspectiva e sugerir um caminho. Nenhum caminho
haverá por certo, de maior relevo e fecundidade, que este de contribuir para a grande tarefa de
remodelação das instituições econômicas e sociais que, segundo vimos, o progresso de nosso país e de
seu povo está a exigir. Contribuição esta que será tanto da teoria como da prática, uma iluminando a
outra, e contribuindo para ela; tanto a teoria para a prática, como a prática para a teoria. Nas condições
do Brasil de hoje, mais talvez que em qualquer outra situação, não vejo como separar os dois planos de
atividade: o teórico e o prático.
A economia política que ordinariamente se estuda e apreende entre nós, é em grande parte,
infelizmente, um simples decalque do que se elaborou em outros lugares e na perspectiva de situações
140
bem distintas daquelas em que nos encontramos. Não é possível, e chega às vezes até grotesco,
considerar e analisar o nosso país à luz de noções e modelos que pressupõem e postulam um certo
modo de ser e um comportamento coletivo que se encontram em países cujo passado e sobretudo o
presente se distinguem profundamente do Brasil.
Não somos a Europa, e não somos os Estados Unidos, apesar de certos paralelos e coincidências
muito superficiais. E simples confrontos quantitativos, como se costuma fazer (renda nacional,
atividade comercial, etc.) são largamente insuficientes, porque aí a quantidade já se converteu em
qualidade. E são situações qualitativamente diversas que enfrentamos. Necessitamos assim, mais que
simplesmente aplicar conhecimentos adquiridos em fontes estranhas às coisas próprias do Brasil,
necessitamos acomodar estes conhecimentos, e sobretudo nosso pensamento, àquelas coisas que são
particulares do nosso país e das situações que nele se encontram.
As ciências humanas, como aliás, a rigor, qualquer ciência, não se constituem de formulações
absolutas, universais, eternas e transcendentes das contingências humanas de cada época e cada lugar.
E são, sim, apenas respostas contingentes a questões e perguntas propostas pelo homem em situações
concretas e específicas. E assim, antes de vocês responderem com o que aprenderam em livros e
tratados inspirados, e na maior parte das vezes, até mesmo redigidos em outros lugares, antes disso,
indaguem das questões que de fato se propõem mais agudamente no Brasil de hoje, e que direta ou
indiretamente condicionam tudo mais. Questões estas que tem suas raízes mais profundas na pobreza,
e quando muito, mediocridade da generalidade dos aspectos da vida brasileira, quando confrontados
com os padrões modernos.
Mas como descobrir essas questões e formulá-las explicitamente afim de as submeter à análise?
Aqui também, não é em livros e conhecimentos já elaborados que se encontrará a maior parte delas. E
sobretudo não se encontrarão as mais compreensivas, significativas e profundas. Estas questões se
acharão na própria vida prática, se vocês procurarem nela o contato direto com o nosso povo. A maior
parte da realidade brasileira, aquela que diz respeito às verdadeiras relações sociais e econômicas, bem
como ao comportamento coletivo do nosso povo, isto não se acha ainda, infelizmente m grande parte,
compendiada em textos escritos, porque aqueles que sofrem mais agudamente as contingências
daquela nossa realidade, não são inda suficientemente considerados, a não ser para servirem de
motivos literários e artísticos. E por isso os seus problemas, que são de fato os verdadeiros e mais
profundos problemas brasileiros, se escamoteiam, e o que aparece à tona é sobretudo uma pseudorealidade que diz respeito unicamente a aspectos e situações muito restritos e superficiais que não
alcançam o que está por debaixo e que efetivamente condiciona o conjunto da nossa existência e
personalidade nacionais.
Não quero com isto subestimar o vosso aprendizado universitário. Muito pelo contrário, ele foi
e é essencial e insubstituível para vossa formação teórica. Mas precisa ser bem interpretado e
141
adequadamente aproveitado. Deve ser sobretudo empregado como instrumento do pensamento, como
aparelhagem intelectual e propedêutica mental necessários à adequada condução da observação e
marcha da reflexão. Mas não mais que isto, e sobretudo não como coleção de fórmulas, receitas ou
modelos a serem mecanicamente e por decalque transferidos para os fatos e as situações que se
apresentam na realidade brasileira.
Esta realidade, que é o material sobre o qual incidirá a vossa reflexão de economistas e
administradores adestrados pela aprendizagem universitária, esta realidade vocês a captarão, e somente
assim lograrão fazê-lo, em contato direto e íntimo com a vida, os anseios, as aspirações e as
inquietudes que perpassam pelos diferentes setores e camadas da população brasileira, e
particularmente daquelas camadas que estão na sua base, que formam a grande maioria do país, e que
são por isso os maiores condicionadores do conjunto da nossa existência como nação.
Este contato será a prática de vocês, e lhes será proporcionada sobretudo pela ação política. Não
evidentemente esta política de bastidores, alienada e distante da grande massa do povo brasileiro, e
não ser para conseguir votos à causa de improvisadas promessas, que é o que usualmente se entende
por política entre nós. Política que é antes politicagem, sem objetivos programáticos, sem ideal em que
ideias e programas, quando existem são apenas pretexto para discursos hipócritas ou dissertações
pernósticas destinados a disfarçar miúdas ambições de pigmeus, ou pequeninas vaidades e interesses
particularistas; politicagem de cabos eleitorais que querem ser vereadores, de vereadores que querem
ser deputados, deputados que aspiram a senadores ou prefeitos, prefeitos governadores, governadores
a presidentes, e presidente a ditador. Não é esta, evidentemente, a política a que me refiro, e sim
aquela que objetiva, de um lado, conscientizar o nosso povo, dar forma ideológica a suas necessidades,
aspirações e inquietudes, e transmitir esta ideologia assim constituída, como ideal a ser atingido pela
luta política. Trata-se, de outro lado, de organizar o povo para esta luta, mobiliza-lo para a ação
dirigida no sentido da solução de seus problemas definidos e concretizados pela maneira [que] vimos.
Solução esta que afinal constitui a solução dos reais problemas brasileiros.
É esta a ação política que proponho a vocês, e que lhes permitirá entrar em verdadeiro contato e
comunhão com o país, conhecê-lo, interpreta-lo e ir elaborando na base desta prática e da experiência
assim adquirida, a legítima ciência econômica e social de que necessitamos para o encaminhamento de
um real progresso para o Brasil e para o bem estar e a felicidade do conjunto de seus habitantes.
Em suma, o que proponho é que este diploma que estão recebendo e que lhes abre as portas para
a vida prática, não lhes sirva apenas para assegurar uma profissão, prosperidade material e bem estar
doméstico e privado. Uma vida restrita ao círculo de tais ambições apenas, é para quem quer que tenha
alguma elevação de espírito, uma frustração que se irá acentuando a medida que avançam os anos, e
por maiores que sejam os sucessos alcançados. A ninguém se poderia desejar tão triste sorte. Vocês
aliás pertencem a uma geração de estudantes que já se destacaram na vida política, e deram a medida
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de seu espírito público e consciência cívica. Estou seguro que deixando de estudar nos livros, para
estudarem no grande livro da vida, vocês continuarão voltados para o ideal de um Brasil melhor,
habitado por um povo mais feliz.
Faço os meus melhores votos para que assim seja, e que a par de sucesso na carreira profissional
que escolheram, vocês prossigam servindo dedicadamente a dignamente o Brasil e seu povo, que são a
nossa pátria e a nossa gente.
Muito obrigado.
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Discurso de agradecimento na premiação do Troféu Juca Pato de Intelectual do ano de 1966,
em 28 de março de 1967
Meus amigos:
Muito agradeço a honra que me foi concedida com a
láurea de Intelectual do Ano de 1966.
Agradecimento este, bem entendido, e faço a restrição, no que me toca a mim pessoalmente, porque
bem sei que não é unicamente, nem mesmo principalmente à minha pessoa que se dirige a
homenagem. E sim ao princípio que por circunstâncias ocasionais eu neste momento represento.
Princípio este que se destaca no traço comum que os une os laureados em anos anteriores: Santiago
Dantas, Afonso Schmidt, Tristão de Athaíde, Cassiano Ricardo, tão divergentes entre si em opiniões,
posições filosóficas e obra realizada, mas igualados num característico comum que os une e que
constitui sem dúvida o princípio que a honrosa láurea do Intelectual do Ano tem por objetivo
distinguir. Refiro-me ao intelectual atuante, ao homem de pensamento que não se encerra em torre de
marfim, e daí contempla sobranceiro o mundo. E sim aquele que procura colocar a serviço da
coletividade em que vive e da qual efetivamente participa.
E é justo o critério que norteia a concessão do prêmio Juca Pato, pois é sobretudo de homens de
pensamento, que sejam também homens de ação, que o Brasil necessita.
E necessita hoje mais do que nunca, neste momento que vivemos, quando parecem coincidir um
máximo de necessidades e aspirações do povo brasileiro, a exigirem amplos horizontes e perspectivas,
com o projeto, bem marcado e abertamente proclamado pelas atuais forças dominantes no país, de
limitar aquelas perspectivas e encerrá-las na tutela de um estreito horizonte.
Realmente, não é outra, e não pode ter outro sentido, a fórmula político-filosófica que orienta a
presente situação brasileira. Pois não põe ela a sua grande e principal ênfase na segurança nacional,
erigidas em princípio diretor da política e administração pública? O que pode significar esta
“segurança nacional” elevada do simples nível de procedimentos policiais, para o plano da filosofia
política, senão a consagração do imobilismo econômico, social e político?
E isso se propõe precisamente quando, à vista de todos e tão claramente, se apresenta a necessidade, e
necessidade premente e inadiável, de reformas, e reformas profundas. Esta é a evidência e somente
não vê o pior dos cegos, aquele que não quer ver. Eu diria mesmo que, mais do que reformas apenas, é
de novos rumos que precisa o Brasil, novos rumos que façam dele, num futuro previsível, um país
moderno efetivamente integrado no nível material e cultural de nossos dias.
Na verdade, e infelizmente, estamos muito longe disso. Não somos apenas subdesenvolvidos”, ou se
preferirem, e como querem alguns economistas e sociólogos que procuram disfarçar com palavras a
realidade, não somos apenas um país “em desenvolvimento”. Não é só quantitativamente que nos
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distinguimos dos países e povos que se acham na vanguarda do mundo contemporâneo. A diferença é
também, e sobretudo, “qualitativa”. E tanto isso é verdade que, relativamente, e em termos
comparativos, não estamos avançando, mas antes recuando. Há cinqüenta anos ainda poderíamos
figurar, muito modestamente embora, no concerto das nações civilizadas, isto é, vivendo no nível da
cultura então atingida. Hoje é difícil afirmá-lo. Já não nos enquadramos mais nesse mundo da
cibernética, da automação, da libertação progressiva do homem de todo esforço físico e mesmo de boa
parte do mental. Temos uma fachada, não há dúvida, que apresenta certo brilhantismo. Mas é uma
tênue fachada apenas, que disfarça muito mal, para quem procura verdadeiramente enxergar, e não
tenta iludir-se, o que vai por detrás dela neste imenso país de desnutridos, doentes e analfabetos. E,
quando muito, semi-analfabetos que vegetam, mais que vivem, em padrões materiais e culturais que a
parcela da Humanidade realmente civilizada já há muito não conhece mais.
Todos aqueles que não ignoram o Brasil, o verdadeiro Brasil da grande, da imensa maioria, que não é
este dos principais centros urbanos, e direi mesmo, de alguns setores apenas destes grandes centros,
todos estes sabem que não exagero. E não preciso insistir em dados estatísticos e outros índices
bastante conhecidos, para situar o Brasil naquela parte da humanidade que tão longinquamente se
aparta do que constitui os verdadeiros padrões de civilização contemporânea. Não serão por certo
esses pobres arremedos de indústria moderna, das comunicações – correios, telégrafos e telefones que
não funcionam –, estas nossas metrópoles que são inundadas e se desmancham com a chuva de todos
os anos; e no terreno da cultura, estes espectros que são as Universidades e nosso pobre aparelhamento
de ensino e de pesquisa em geral, não é isso certamente que nos concederá foros de país no nível dos
grandes centros modernos ou deles se aproximando.
Para nos considerarmos da mesma ordem de grandeza, e tão somente “mais atrasados e menos
desenvolvidos”, mas não qualitativamente diferentes, para isso precisamos de muito mais e,
essencialmente, de uma sólida base sobre que assentar nossa nacionalidade, e que vem a ser uma
população liberta da miséria física e cultural, e capacitada, no seu conjunto, para usufruir alguma coisa
do conforto e bem-estar que a ciência moderna proporciona.
Como chegar a isso? Eis nosso grande e realmente único problema fundamental e essencial. Podemos
divergir com relação à maneira de resolvê-lo, e mesmo de o abordar. Mas num ponto concordarão
certamente todos aqueles que estejam de boa-fé e sejam capazes de superar interesses e vaidades
particularistas e imediatistas. E essa convergência de opiniões vem a ser, assim penso, que não é
conservando o “status quo”, a saber, uma sociedade impulsionada unicamente pelo interesse privado e
pelo lucro nos negócios, e estruturada na base da riqueza e da habilidade no manejo dos mesmos
negócios, não é conservando isso intacto que se transformará o Brasil.
A tarefa é grande demais para que uma linha de desenvolvimento traçada unicamente pelo choque de
interesses privados e afirmações individualistas logre superar o retardo em que ficamos relativamente
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aos níveis e padrões do mundo moderno. Essa é a ilusão de muitos que, embora de boa fé, se
informam unicamente no grande progresso realizado pela livre iniciativa privada na Europa Ocidental
e sobretudo nos Estados Unidos no correr do século passado e primeira parte do atual. Ilusão que
consiste em julgar que poderemos, de hoje para o futuro, reproduzir aquela façanha. Mas os tempos,
tanto como as situações, são outros. Os métodos também devem ser outros.
Quais são eles? Não é agora o momento para discutir um ponto como este, altamente polêmico, e onde
opiniões divergem largamente. Mas aquilo em que todos estarão de acordo, todos aqueles pelo menos
que desejam procurar e encontrar novas perspectivas para o Brasil, é que não é permissível
interromper e eliminar aquela discussão e reduzir as diretrizes da vida brasileira à luta contra a
corrupção, a subversão e a instabilidade da moeda; e pautá-la por reformas ditadas por tecnocratas, ou
que se julgam tais, encerrados em seus gabinetes ministeriais e Escolas privilegiadas.
A corrupção e a subversão são sintomas do mal-estar geral que vai pelo país. E sintomas se combatem
pelas causas profundas que os ocasionam. A corrupção, em especial, é da essência do nosso regime.
Quando, como se dá entre nós, a riqueza é elevada ao plano do mais alto e prezado valor social, e que
tudo justifica, como impedir que a aquisição dessa riqueza se faça por todos os meios e modos
possíveis, sejam eles quais forem, e inclusive pela corrupção? Numa sociedade como a nossa em que a
corrupção e a ausência de princípios éticos se acham institucionalizadas e entronizadas nas relações
privadas, porque elas são, podemos dizer, da essência do “negócio” que regula essas relações, como
impedir, pergunto, que elas contaminem também as relações públicas? Entre negócio e negociata não
há nenhuma separação absoluta; e sim, entre os extremos, um terreno indefinido e neutro onde se faz
muitas vezes extremamente difícil, e frequentemente impossível, distinguir entre lícito e ilícito.
No que se refere à subversão, em cujo combate se inspira outra das normas fundamentais da presente
situação política, há que preliminarmente introduzir clareza nos termos. Não é por certo subversão que
implica a derrubada do governo que se trata, porque de outra forma, como bem disse um dos próceres
da situação atual, o General Mourão, “subversivos” seriam todos os atuais detentores de poder e os
demais que os acompanharam e secundaram nos dias idos de 1964.
Não se trata pois de subversão, e sim do descontentamento e não-conformismo daqueles que aspiram
introduzir modificações na ordem atual. Mas esse descontentamento e não-conformismo que tem hoje
no Brasil, como todos sabem e sobretudo sentem muito bem, raízes profundas, não se eliminam com
simples medidas policiais, sob pena de se abafarem pelo terror todas as aspirações e inquietudes que
constituem o fermento natural e necessário de toda renovação e de todo progresso social e humano.
Sobra, como último elemento da atual filosofia política dominante em nosso país, aquilo que, na falta
de outra designação mais expressiva, eu chamaria de “tecnocracia economicista”. Todos que me
ouvem já sabem aquilo a que me refiro. Trata-se de resolver os problemas brasileiros por modelos
econômicos e outras fórmulas misteriosas somente acessíveis, no fundo e na forma, aos iniciados. Mas
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esquece-se aí que estão em jogo, no caso, fatos sociais, humanos, e que neste terreno que é o do
comportamento de seres racionais, e não de objetos físicos, a solução de problemas que se hão de
traduzir em ações conscientes implica a determinação de indivíduos livres, e não se consegue portanto
sem o consenso destes mesmos indivíduos.
Quanto ao setor mais “humanista” dessa política tecnocrática, ela se exprime muito bem na afirmação
do Sr. Presidente da República, quando ainda candidato e dirigindo-se em discurso às classes
produtoras do Rio de Janeiro: do que se trata é fazer que “os ricos sejam mais ricos, para que os pobres
sejam menos pobres”. Fórmula esta que lembra um outro pensamento muito difundido na geração que
chegava a seu ocaso em princípios do século, e que assim se expressava: “Que seriam dos pobres se
não fossem os ricos que lhes proporcionam empregos?”
A teoria em que se inspiram nossos
economistas ortodoxos de maior projeção, e que faz consistir o desenvolvimento, o progresso e as
soluções sociais no ritmo dos investimentos privados, traduz em termos técnicos aquele pensamento
de nossos avós.
É isso em suma que impera no Brasil oficial de hoje. E é contra tudo isso, que significa o imobilismo
do passado, que se há de acender a fagulha de um pensamento vivo e renovador capaz de abrir aquelas
perspectivas e horizontes a que eu me referia no início destas minhas palavras. Este papel dos homens
de pensamento, daqueles que tiveram o privilégio de encontrar na sua formação as circunstâncias
favoráveis necessárias para o manejo das ideias, para a apreensão dos sentimentos e da consciência
difusos na coletividade, a fim de os expressarem em pensamento sistematizado e em normas
adequadas de ação coletiva.
E é isso, estou seguro, é esse tipo de homem de pensamento e intelectual que se homenageia com o
Prêmio Juca Pato. E é por isso que tanto mais me sinto honrado e me confesso grato, por me
considerarem, com o prêmio que ora recebo, representativo desse tipo de intelectual.
Muito obrigado.
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RODRIGO CESAR DE ARAÚJO SANTOS O