Formação da associação quilombola do bairro da Poça1 Leon Gussonato 2 Ricardo Martins 3 Júlio César Suzuki4 Resumo: As associações quilombolas vem sendo formadas no Brasil principalmente a partir Constituição nacional de 1988. O Vale do Ribeira, ao sul do Estado de SP, é uma das áreas onde vem se formando inúmeras associações para defender os direitos dos povos quilombolas em relação à apropriação da terra como condição fundamental para reprodução do seu modo de vida A comunidade em foco neste trabalho, a do bairro da Poça, localizada entre os municípios de Eldorado e Jacupiranga, no Vale do Ribeira, tem suas peculiaridades específicas, relacionadas às definidoras das populações tradicionais, sendo que um dos elementos importantes de sua definição, além de todas as marcas culturais, é a de estar situada sobre um solo adequado ao cultivo da banana, o que contribuiu para a sua transformação em monocultura. Fundados, então, em trabalho de campo, no qual se realizaram entrevistas, tendo como sentido a recuperação de histórias de vida, como base para a recomposição da história da comunidade, objetivamos analisar a formação da Associação de Moradores da Comunidade da Poça, tendo como parâmetro o seu significado no reconhecimento das terras como remanescentes de quilombo e o enfrentamento de dificuldades postas para os seus associados. Palavras-chave: Associação, quilombola, identidade. Introdução O reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e a titulação de seu território foram estabelecidos pelo artigo 68 da Constituição Federal de 1988, promulgado pela Lei nº. 7.668/88. “Artigo 68 - Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecido à 1 Pesquisa realizado com apoio das Pró-Reitorias de Graduação e de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, junto ao projeto "Geografia da oralidade - Uma recuperação da história oral de populações tradicionais no estado de São Paulo" do grupo de pesquisa Agricultura e Urbanização do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo. 2 Graduação em Geografia – FFLCH/USP; e-mail: [email protected]. 3 Graduação em Geografia – FFLCH/USP; e-mail: [email protected]. 4 Professor do Departamento de Geografia/FFLCH/USP; [email protected]. 'Olhares sobre o processo investigativo' propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos.” (Constituição Federal do Brasil) O Vale do Ribeira é uma área com inúmeras comunidades remanescentes de quilombo, populações descendentes de escravos de origem africana, fugidos ou abandonados, as quais, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, começaram a requerer o direito à propriedade coletiva da terra. A forma mais comum de organização é por meio da formação de uma associação, que teoricamente defende os interesses da população quilombola, de forma democrática, sobretudo no que concerne ao direito coletivo da terra, o que contribui para a reconstrução da identidade, marcadamente fragilizada frente o contato com a sociedade urbano-industrial, com seus valores e práticas. Essas associações se proliferam num momento em que a economia solidária, como diria Paul Singer (2002), se fortalece como instrumento de combate às fortes contradições do capital. O pedido de reconhecimento da área, como remanescente de quilombo, junto ao Estado, deve ser feito, de forma geral, nos órgãos estaduais de regularização fundiária, sendo que, no caso de São Paulo, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) é o órgão responsável por tal processo. Assim, principalmente por meio de dados obtidos em campo por meio da observação e de entrevistas, e do próprio relatório do ITESP, pretende-se, aqui, como objetivo geral, analisar a formação da Associação de Moradores da Comunidade da Poça, tendo como parâmetro o seu significado no reconhecimento das terras como remanescentes de quilombo e o enfrentamento de dificuldades postas para os seus associados; e, como objetivos específicos: reconstruir brevemente a história da comunidade de Poça até a formação da Associação, destacando os problemas que acabaram levando à organização e união da comunidade; apresentar os passos da formação; explicar as regras da Associação, que acabam por se entrelaçarem com as regras da comunidade; destacar os principais objetivos dessa instituição; mostrar que hoje a mesma responde pela comunidade de Poça; e expor situações adversas enfrentadas hoje pela Associação dentro da própria comunidade, bem como sua maneira de reagir diante delas. A maior fonte de informações que auxiliou essa análise foi um banco de dados obtido pelo conjunto de entrevistas em trabalhos de campo, realizados, na comunidade 'Olhares sobre o processo investigativo' de Poça, nos anos de 2008 e 2009. Na ocasião, alunos do curso de geografia da Universidade de São Paulo dividiram-se em grupos e realizaram entrevistas com várias famílias. Por fim, houve entrevista coletiva com lideranças, que entre outros assuntos, puderam dar fundamentos para a compreensão do significado político, sobremaneira, da Associação, tendo em vista o seu papel na integração da comunidade e em suas lutas. Antecedentes da Associação: Breve Histórico do Bairro Poça Situado entre Jacupiranga e Eldorado (municípios do Vale do Ribeira, SP), tratase de um dos bairros de população negra com origem na atividade mineradora do século XVII e na rizicultora do século XIX, ambos com o uso do trabalho escravo africano. Formado por ex-escravos fugidos ou libertos (ITESP, 2006) que constroem um conjunto de regras de herança e parentesco, o bairro é fundado por um ancestral comum aos membros das famílias atuais. Figura 1 - Região do Vale do Ribeira na porção Sul do estado de São Paulo Fonte: Google Earth, acessado, em 26/05/09, por Leon Gussonato. 'Olhares sobre o processo investigativo' Inicialmente, vivia-se da pequena agricultura, da pesca e até da caça, como é comprovado pelo próprio nome do bairro, cuja estória conta um morador: “Então, os mais velhos contam, Dona Maria ali... Vou contar essa historia que tem fundamento. Antigamente, isso muito atrás, aqui era tudo mato, mato fechado mesmo que, tem pessoas que moram aqui ainda, o Zé Rosa, que contam, meu padrinho, seu pai, contam que passavam a cavalo. Mas o cavalo andava até o peito de água, era tudo brejão mesmo. E aí os mais velhos contavam pra Dona Maria que existia anta nessa serra aí, muito mesmo. E quando um compadre combinava com outro de ir caçar na serra ali, um falava pro outro “vamos lá na serra, para nós soltarmos o cachorro lá numa anta, para nós trazermos”. Aí falava, “a, compadre, num adianta porque vai solta o cachorro lá, o bicho vai cair na poça”. Só que essa poça era ali em baixo, que não existe mais hoje porque os terceiros acabaram com o rio, o maquinário, essas coisas, foi acabando com tudo. E existia um lago muito grande ali, bem espaçoso mesmo, e aí, quando caia bicho tinha muitas vezes que ia canoa, tudo, por dentro assim pra tentar matar. Isso é que tinha muito, e muitos anos. E aí falavam que não adiantava ir lá na serra porque o bicho ia correr do lado e passar e descer, ia cair lá na poça. Aí essa poça pego o nome e fico Poça até hoje...” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação dos moradores da comunidade da Poça). Com o passar do tempo, a lavoura da banana se expande na região, e também cresce o número de “terceiros”, ou seja, pessoas de fora da comunidade que compram terras a preços muito baixos por conta da fragilidade econômica destes camponeses em geral, e particularmente os quilombolas, que, muitas vezes, não eram considerados donos legais das áreas herdadas. Nos anos de 1940 e 1950, há a incorporação da região à produção de mercado, sendo que, em 1960, o processo é acelerado pela construção da rodovia BR-102. Esse contexto é complementado pela especulação fundiária, acentuando o problema da posse da terra. Em meados de 1970, preocupado com os treinamentos de grupos revolucionários guerrilheiros, o governo empenha-se em desenvolver a região. Considera o “campesinato” “atrasado” e promove incentivos para a entrada de empresas agropecuárias e fazendeiros, tendo como objetivo o aumento da produtividade agrícola. Esse processo se estende por vários anos, criando diversos conflitos dos moradores com os terceiros. Em Poça, apesar dos laços familiares, muitas terras são entregues a terceiros a preços muito baixos por parentes herdeiros, piorando a situação dos outros. Moradores contam que geralmente os que venderam terras eram os que 'Olhares sobre o processo investigativo' iriam embora do bairro tentar a vida em outros lugares, o que deixa transparecer o ressentimento pelos que ficaram em relação ao prejuízo deixado. No bairro, cresce a incerteza quanto à manutenção da terra, freqüentemente assediada pelos terceiros. Estes tentam intimidar e se aproveitar da situação atual dos moradores que não podem mais caçar nem desmatar nenhuma área para o plantio de qualquer cultura, pois, nas últimas décadas, a legislação ambiental se tornou muito punitiva, criando reservas de proteção ao meio ambiente sem se importar com as populações tradicionais lá residentes como diria o antropólogo Antonio Carlos Sant'Ana Diegues (1994), em várias de suas obras, mas, principalmente, em O mito moderno da Natureza Intocável. No caso da comunidade de Poça, a legislação ambiental restritiva à ampliação das áreas de cultivo se refere ao mínimo de reserva permanente que deve possuir cada propriedade, não se inserindo nos parâmetros postos para áreas de unidades de conservação. A expansão do cultivo da banana se deve, também, a um mercado certo para a produção realizada, sendo que a redução da área, já diminuta, levaria a uma produção insuficiente para a manutenção das famílias, conforme declara Nilzo Tavares da Costa, conhecido como Edinho pelos outros moradores, e presidente da Associação de Poça: “A, sim, olha o Gilmar já até realizou isso aqui, plantou uma horta, laranja, alguma coisa. Mas como a gente não tem espaço, a gente não consegue, porque o nosso já é pequeno, então se você reduz a sua área que você tem de banana pra plantar uma outra coisa, de repente você está diminuindo, e muito, a sua renda, ai você não consegue ficar...” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Nilzo Tavares da Costa, presidente da associação dos moradores da comunidade da Poça) Em relação à dimensão ambiental, às áreas de preservação permanente (margem de rios, 50 m ao redor das nascentes, locais com alta declividade entre outras que o código florestal menciona) não são vistas pelo líder da associação como algo ruim, mas sim como locais a serem conservados. Talvez isso se explique pelo fato de que o líder é formado em gestão ambiental, sabendo da necessidade de cuidar dos recursos naturais; ou simplesmente porque, a comunidade de Poça, como população tradicional, saiba da importância da natureza para sua vida e aja como agente de conservação, como demonstrado pela tese de doutorado de Simone Resende da Silva (2008). 'Olhares sobre o processo investigativo' Porém, os moradores de Poça observam que os terceiros utilizam indiscriminadamente essas áreas de proteção permanente, tendo em vista que, quando chega a fiscalização, eles têm condições de pagar a multa. O uso indiscriminado do cultivo da bananeira não é o anseio dos moradores de Poça, sendo que, ao serem questionados, alguns moradores disseram que gostariam de plantar outras roças em suas terras, até por ser esta uma necessidade. “Sim, tem que plantar... (...) Nós precisamos disso.” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação dos moradores da comunidade da Poça). A troca da roça pelo plantio da banana para a venda já indica como a comunidade foi se subordinando ao capital, e com isso enfrenta outros problemas relacionados. Pode-se citar os “atravessadores” que são pessoas que compram a banana na comunidade a baixos preços para vender nas cidades. Isso acontece porque os moradores de Poça não têm como transportar sua produção, e acabam se vendo obrigados a aceitar as condições de comercialização dos intermediários. Além de tudo, é preciso ressaltar que a concorrência que há ali sempre favorece os terceiros, já que esses, além de possuírem meios de transportar a produção, possuem também mais terras, além de máquinas que aumentam sua capacidade produtiva. Produtos da banana, como os “chips”, tipo de salgadinho frito, seriam alternativas para a comunidade, porém a vigilância não permite essa atividade considerando que o local não tem condições sanitárias para tal. Ao se apropriarem das terras, os terceiros acabaram regulando o uso de algo também muito importante para a comunidade de Poça, a água. Isso porque a nascente do rio que abastece o bairro está em terras de terceiros, bem como passa por elas o cano que leva a água até a comunidade. Isso trás grandes problemas, já que os terceiros não têm interesse em conservar esse recurso natural, poluindo com agrotóxicos, herbicidas ou fungicidas usados no bananal, o que já trouxe infecções aos moradores de Poça. Há ainda a situação desconfortável dos empregados do terceiro cortarem o cano para usar a água, prejudicando o abastecimento da comunidade, cujos moradores têm que pedir autorização para entrar nas terras e remendar as partes cortadas. A relação dos terceiros com a água é sintetizada pelo morador Zeca: 'Olhares sobre o processo investigativo' “Ele mora na cidade. Se quiser tomar água, ele trás de lá...” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Zeca, membro da associação dos moradores da comunidade da Poça) A aplicação dos venenos, geralmente feita por aviões, não gera problemas só para as águas, compromete também o solo. Outra situação característica de Poça é o fato de estar na divisa entre dois municípios (já citados, Jacupiranga e Eldorado). Esse fato poderia não significar nada demais, porém trás problemas aos moradores na medida em que as instituições dessas cidades se aproveitam dele para “empurrar” os problemas para o município vizinho. Segundo os moradores, isso também ajuda a dificultar que se consiga atendimento médico, assistência policial, escolas etc. Recentemente, voltando à questão da terra, a Cia. Vale do Rio Doce tem tentado o acesso as terras de Poça, interessada nas pedreiras da região. Isso faz com que alguns moradores tenham até medo de conversar com pessoas estranhas que cheguem à comunidade, com receio que esses estejam ganhando informações para tentar conseguir suas terras, como fizeram os terceiros. Em meio a essa conjuntura, os moradores da comunidade de Poça enfrentam problemas como os de qualquer bairro pobre e afastado, com o agravante já citado de estar em uma divisa municipal. O acesso ao transporte é limitado, já que há poucos ônibus que passam na comunidade, e com largos intervalos, fato que prejudica também o acesso a todos os outros serviços. As escolas, além de estarem longe, precisam de reformas; não há posto de saúde; e os auxílios do governo demoram a chegar. Todos os problemas demonstrados aqui, resultantes de processos históricos difíceis de se modificar, acabaram por demonstrar aos moradores de Poça que aquela união dos laços familiares não seria suficiente, trazendo a necessidade de institucionalização por meio da formação da Associação. Ela foi vista inicialmente como meio da comunidade se fazer mais visível ao governo em suas reivindicações. Expostas as mudanças históricas e os movimentos da própria comunidade, chega-se à formação da Associação, detalhada adiante. 'Olhares sobre o processo investigativo' Os passos para a formação da Associação A falta da terra, a degradação dos recursos naturais, as dificuldades financeiras, a falta de boas condições de saúde, transporte e educação; enfim, com todas as dificuldades citadas, os moradores de Poça sabiam da necessidade de ação. Então, perceberam que várias famílias tinham em comum pelo menos um dos sobrenomes, Costa, Pupo, Silva, Marinho, ou Rosa; e auxiliados por uma antropóloga fizeram um levantamento dos dados das famílias tradicionais da região, num processo chamado pelos atuais líderes da Associação de auto-reconhecimento5, que concluiu que eram descendentes de população remanescente de quilombo. Tiveram também apoio de duas freiras que auxiliavam pessoas de populações tradicionais e acabaram expulsas de Eldorado por causa disso. O próximo passo seria o reconhecimento, por parte do Estado, dessa identidade quilombola. Assim, como instrumento político de luta, veio a formação da Associação, como afirma Nilzo Tavares da Costa, o Edinho, presidente atual da instituição. “Nós, prá buscarmos força devemos ser unidos, então através da associação a gente conseguiu bater de frente com o governo, que você não consegue sozinho, um não consegue.” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Nilzo Tavares da Costa, presidente da associação dos moradores da comunidade da Poça) Enquanto aguardavam o reconhecimento pelo governo, era feito o trabalho de divulgação para as famílias do bairro, aumentando o número de sócios e fortalecendo o movimento e a consciência dos quilombolas. Foi importante para a consolidação da Associação a construção do barracão, atual sede, onde se realizam as assembléias, reuniões e atividades da comunidade. Foi construído com verbas de um prêmio da loteria recebido por uma moradora. A formação da associação, portanto, partiu da idéia de um grupo de moradores convencendo mais tarde a quase todos, mas teve ajudas externas como o contato que um dos moradores teve com o mundo acadêmico e também a colaboração de freiras da região, o que se faz coerente com a tese de mestrado de Lilianny Rodrigues Barretos 5 O resultado do trabalho se refere à reconstrução da árvore genealógica das famílias que compõem a comunidade, com imbricadas teias de relações. 'Olhares sobre o processo investigativo' dos Passos, na qual se ressalta que a formação das associações das comunidades tradicionais (indígenas no caso do seu estudo) são consciência formada de fora para dentro da comunidade. Assim, em 13 de maio de 2008, a comunidade de Poça foi reconhecida pelo Governo do estado de São de Paulo como remanescente de quilombo, o que deu ainda mais força para a Associação. Regras e atividades da Associação Para poder se tornar membro da Associação, é preciso ter nascido em Poça ou se casar com alguém que tenha nascido lá e ter no mínimo 16 anos de idade. Os associados devem pagar o equivalente a 1% do salário mínimo todo mês, ajudando na manutenção do barracão, pagamento de advogados, entre outras despesas necessárias à toda organização. Não é permitida a venda das terras, nem no caso de haver casamento com alguém de fora e depois divórcio, já que a propriedade das terras é coletiva, atribuída em nome da Associação. Além disso, existem os deveres de participar das reuniões, discutir todos os assuntos e ajudar aos outros da comunidade com o que for possível e necessário. Os associados participam eventualmente das festas, podendo usar o barracão como espaço de interação em geral, tanto que há uma sala de informática para introduzir principalmente a nova geração no mundo digital, além de muitos outro projetos que são discutidos lá dentro, muitas vezes com ajudas externas. Os diretores, por sua vez, têm a obrigação de convocar assembléias quando necessário, organizar a votação com todos os associados e depois levar a decisão à execução, seja dentro ou fora da comunidade, como, por exemplo, decidir se um morador que chega de fora deve ou não permanecer no bairro, ou se uma pessoa deve ou não ser aceita na Associação. E no caso das necessidades de serviços ou auxílios do governo, são também os diretores que devem levar para os órgãos públicos e advogados as requisições da comunidade. 'Olhares sobre o processo investigativo' Os diretores da Associação (presidente, vice, secretários) são escolhidos por votação direta, em assembléia, tendo mandatos de 2 anos, que podem ser renovados apenas uma vez. Assim também funcionará quando o governo regulamentar a titulação das terras do quilombo de Poça. A Associação deverá ter papel central na organização do uso coletivo das terras ainda nas mãos dos terceiros. Assunto a ser aprofundado a seguir, tratando dos principais objetivos da Associação. Antes, é importante notar como a rotina dos moradores deve passar pela Associação e as atividades dessa são também as atividades dos moradores. Nesse sentido, a Associação ajuda a ligar espaço, família e atividades, sendo fundamental na construção da identidade quilombola. Principais objetivos da Associação A associação é o instrumento de luta para que o quilombo seja titulado o mais rápido possível, ganhando assim todos os benefícios possíveis por ser comunidade quilombola, é ela também que representara os moradores em qualquer luta jurídica, como no conflito pelas terras e na luta contra os terceiros. Quando perguntado aos líderes qual o principal intuito da Associação, a resposta centrou-se no desejo de autonomia econômica na sua produção e venda, com melhorias no transporte, a possibilidade de adquirir um caminhão, algumas máquinas etc. Também pensam na construção de uma fábrica para banana chips dentro das normas sanitárias que possibilite a venda para o mercado. Para isso, a organização é fundamental na busca de investimentos mais uma vez se baseando na economia solidária e ajuda mútua até mesmo para lutar por financiamentos junto ao governo e a empresas privadas. Fala-se muito na devolução das terras, hoje de terceiros, pelo Governo Federal. Essas terras serão usadas para agricultura de forma coletiva e regulamentada pela Associação. Por um lado, a idéia é diversificar os produtos, diminuindo os gastos com alimentação em geral, e talvez até conseguindo novas formas de ganho. Além disso, 'Olhares sobre o processo investigativo' retomando o controle das nascentes, poderiam cuidar de todos os recursos naturais que se fazem a eles necessários. “É que nem eu falei, tem que proteger as nascentes, porque hoje não são protegidas pelos terceiros. Nós temo que fazer isso ai, proteger, e aí, plantar, cuidar bem e vender a produção juntos.” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação dos moradores da comunidade da Poça) Essa forma de produção coletiva com divisão dos ganhos é característica da economia solidária, teorizada por Paul Singer (2002), na qual se ressalta o papel que o governo e a universidade tem como agentes externos na manutenção das populações tradicionais e sua reprodução, e é isso que se está tentando implantar em Poça, onde a USP, pelo projeto "Geografia da oralidade", poderá participar como interlocutor na elaboração de projetos, visando a obtenção de recursos a fundo perdido em órgãos, como a Petrobrás, para a construção da fábrica de banana chips ou passa. Por outro lado, há uma preocupação com a proteção do ambiente e seus recursos naturais. Isso mostra que um esforço do Governo para reintegrar a população de Poça a seu território original poderia ser mais efetivo do que tentar aplicar rigorosamente leis ambientais na atual conjuntura. Além dos esforços para regularizar a terra e conseguir o domínio dos recursos naturais e a melhor inserção na economia, a Associação de Poça luta para conseguir outras melhorias. Imediatamente, é necessária a construção de um posto médico no bairro, já que os moradores têm muitas dificuldades de acesso aos centros urbanos próximos. Também precisariam de uma escola no bairro, pois a única que existia está abandonada. Mas ressalta-se a importância de ser passado como conteúdo a história dos negros, coisa que hoje não acontece nas escolas de bairros vizinhos. Além disso, a melhoria nos transportes, com mais pontos de ônibus e, é claro, mais ônibus também seria bem vinda, já que o ponto existente não tem sido utilizado, conforme fora mencionado. O primeiro passo parece estar sendo dado, já que, por meio da intervenção de pessoas do ITESP, o prefeito de Jacupiranga está sendo pressionado a registrar o 'Olhares sobre o processo investigativo' quilombo como pertencente ao município. Assim, fica mais claro quem deve arcar com os cuidados do bairro Poça. Situações Adversas de dentro da comunidade Nas entrevistas, percebemos que há uma grande dificuldade de integrar todos os moradores, pela dificuldade de difusão da informação e, às vezes, até pela tradição de não participar de entidades políticas. Por um lado, há várias famílias de pessoas frequentemente ocupadas no trabalho no bananal, com restrita participação nas reuniões da Associação, enquanto, por outro, os diretores, também, ocupados com assuntos da Associação, além da roça, vêem-se limitados em relação à difusão das informações àqueles que não fazem parte da Associação ou que não freqüentam suas atividades. No caso dos mais velhos, Nilzo Tavares da Costa ressalta que não estão acostumados com esse tipo de movimento e preferem não participar: “Então é por isso que hoje prá gente trazer eles, prá levar prá reunião, prá colocar uma pessoa mais velha dessa lá junto com a gente, eles falam 'não, num é meu estilo ir nisso, eu prefiro ficar na roça, eu prefiro fazer o serviço aqui porque eu sei que daqui vai sai alguma coisa'” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Nilzo Tavares da Costa, presidente da associação dos moradores da comunidade da Poça) Assim, frequentemente os “filhos” das famílias é que freqüentam a Associação e sabem do que está acontecendo. Outro conflito interno importantíssimo é o caso do Senhor Bento Pupo, negro, neto de escravos, nascido naquelas terras, estando na mesma rede de parentesco e se julgando quilombola, porém não quer participar da Associação por não concordar com a sua política. Além de não participar da associação por não concordar com a política adotada, possui uma extensão de terras dentro da área a ser titulada como quilombo, a plantação de banana maior que a dos demais quilombolas, casa de alvenaria em bom padrão e estado, maquinários e automóvel. Também há outros moradores que vivem em suas 'Olhares sobre o processo investigativo' terras, trabalhando como assalariados. Dentre os assalariados, alguns são sócios da Associação do quilombo. Nesse caso, fica a pergunta: Quando o quilombo for titulado, como vão ficar as terras de quem não é terceiro mas não quis entrar para a associação, como o Sr. Bento? Ele perderá suas terra? E os moradores que não têm terras e trabalham para o seu Bento? Isso gera uma tensão, porém a Associação procura agir com tranqüilidade, respeitando a opção do Sr. Bento, porém sem abrir mão de sua luta. Diz que não pretende tentar retirar-lhe nenhuma porção de terra. “Ele não quer participar de jeito nenhum, não quer fazer parte da Associação também, não que incluir... Deixa ele lá, ninguém mexe.” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação dos moradores da comunidade da Poça) Mesmo assim a situação é tensa, pois sobram dúvidas, já que existem pessoas que são da Associação, mas trabalham com Bento e não têm terras. Provavelmente morarão em algum espaço coletivo, trabalharão ali também, mas não se apropriarão de nenhum pedaço de terra de certa forma se estabelecendo de modo diferente de quem possui terras, sendo importante ressaltar que são pessoas com vínculos de parentesco, tanto com Bento Pupo, quanto com associados. Assim, percebeu-se que os inúmeros problemas pelos quais a comunidade passava e passa, a necessidade de união frente ao Estado e ao capital, e a possibilidade de recuperar terras por meio do reconhecimento e da recriação da identidade quilombola; levaram à formação da Associação. Também é com ela se dá a integração da comunidade, já que representa o coletivo nas reivindicações para agora e para o futuro. Referências DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocável. São Paulo: NUPAUB, 1994. 'Olhares sobre o processo investigativo' ITESP. Relatório Técnico-Científico Sobre a Comunidade de Quilombo da Poça, localizada nos Municípios de Jacupiranga e Eldorado/ São Paulo. São Paulo: ITESP, 2006. SILVA, Simone Rezende da. Negros na Mata Atlântica, territórios quilombolas e a conservação da natureza. São Paulo: FFLCH/USP, 2008. (Tese de doutorado em Geografia Humana). SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. 'Olhares sobre o processo investigativo'