Formação da associação quilombola do bairro da Poça1
Leon Gussonato 2
Ricardo Martins 3
Júlio César Suzuki4
Resumo:
As associações quilombolas vem sendo formadas no Brasil principalmente a
partir Constituição nacional de 1988.
O Vale do Ribeira, ao sul do Estado de SP, é uma das áreas onde vem se
formando inúmeras associações para defender os direitos dos povos quilombolas em
relação à apropriação da terra como condição fundamental para reprodução do seu
modo de vida
A comunidade em foco neste trabalho, a do bairro da Poça, localizada entre os
municípios de Eldorado e Jacupiranga, no Vale do Ribeira, tem suas peculiaridades
específicas, relacionadas às definidoras das populações tradicionais, sendo que um dos
elementos importantes de sua definição, além de todas as marcas culturais, é a de estar
situada sobre um solo adequado ao cultivo da banana, o que contribuiu para a sua
transformação em monocultura.
Fundados, então, em trabalho de campo, no qual se realizaram entrevistas, tendo
como sentido a recuperação de histórias de vida, como base para a recomposição da
história da comunidade, objetivamos analisar a formação da Associação de Moradores
da Comunidade da Poça, tendo como parâmetro o seu significado no reconhecimento
das terras como remanescentes de quilombo e o enfrentamento de dificuldades postas
para os seus associados.
Palavras-chave: Associação, quilombola, identidade.
Introdução
O reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos e a titulação
de seu território foram estabelecidos pelo artigo 68 da Constituição Federal de 1988,
promulgado pela Lei nº. 7.668/88.
“Artigo 68 - Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecido à
1
Pesquisa realizado com apoio das Pró-Reitorias de Graduação e de Cultura e Extensão da
Universidade de São Paulo, junto ao projeto "Geografia da oralidade - Uma recuperação da história oral
de populações tradicionais no estado de São Paulo" do grupo de pesquisa Agricultura e Urbanização do
Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo.
2
Graduação em Geografia – FFLCH/USP; e-mail: [email protected].
3
Graduação em Geografia – FFLCH/USP; e-mail: [email protected].
4
Professor do Departamento de Geografia/FFLCH/USP; [email protected].
'Olhares sobre o processo investigativo'
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos
respectivos.” (Constituição Federal do Brasil)
O Vale do Ribeira é uma área com inúmeras comunidades remanescentes de
quilombo, populações descendentes de escravos de origem africana, fugidos ou
abandonados, as quais, após a promulgação da Constituição Federal de 1988,
começaram a requerer o direito à propriedade coletiva da terra.
A forma mais comum de organização é por meio da formação de uma
associação, que teoricamente defende os interesses da população quilombola, de forma
democrática, sobretudo no que concerne ao direito coletivo da terra, o que contribui
para a reconstrução da identidade, marcadamente fragilizada frente o contato com a
sociedade urbano-industrial, com seus valores e práticas.
Essas associações se proliferam num momento em que a economia solidária,
como diria Paul Singer (2002), se fortalece como instrumento de combate às fortes
contradições do capital.
O pedido de reconhecimento da área, como remanescente de quilombo, junto ao
Estado, deve ser feito, de forma geral, nos órgãos estaduais de regularização fundiária,
sendo que, no caso de São Paulo, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP)
é o órgão responsável por tal processo.
Assim, principalmente por meio de dados obtidos em campo por meio da
observação e de entrevistas, e do próprio relatório do ITESP, pretende-se, aqui, como
objetivo geral, analisar a formação da Associação de Moradores da Comunidade da
Poça, tendo como parâmetro o seu significado no reconhecimento das terras como
remanescentes de quilombo e o enfrentamento de dificuldades postas para os seus
associados; e, como objetivos específicos: reconstruir brevemente a história da
comunidade de Poça até a formação da Associação, destacando os problemas que
acabaram levando à organização e união da comunidade; apresentar os passos da
formação; explicar as regras da Associação, que acabam por se entrelaçarem com as
regras da comunidade; destacar os principais objetivos dessa instituição; mostrar que
hoje a mesma responde pela comunidade de Poça; e expor situações adversas
enfrentadas hoje pela Associação dentro da própria comunidade, bem como sua maneira
de reagir diante delas.
A maior fonte de informações que auxiliou essa análise foi um banco de dados
obtido pelo conjunto de entrevistas em trabalhos de campo, realizados, na comunidade
'Olhares sobre o processo investigativo'
de Poça, nos anos de 2008 e 2009. Na ocasião, alunos do curso de geografia da
Universidade de São Paulo dividiram-se em grupos e realizaram entrevistas com várias
famílias. Por fim, houve entrevista coletiva com lideranças, que entre outros assuntos,
puderam dar fundamentos para a compreensão do significado político, sobremaneira, da
Associação, tendo em vista o seu papel na integração da comunidade e em suas lutas.
Antecedentes da Associação: Breve Histórico do Bairro Poça
Situado entre Jacupiranga e Eldorado (municípios do Vale do Ribeira, SP), tratase de um dos bairros de população negra com origem na atividade mineradora do século
XVII e na rizicultora do século XIX, ambos com o uso do trabalho escravo africano.
Formado por ex-escravos fugidos ou libertos (ITESP, 2006) que constroem um conjunto
de regras de herança e parentesco, o bairro é fundado por um ancestral comum aos
membros das famílias atuais.
Figura 1 - Região do Vale do Ribeira na porção Sul do estado de São Paulo
Fonte: Google Earth, acessado, em 26/05/09, por Leon Gussonato.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Inicialmente, vivia-se da pequena agricultura, da pesca e até da caça, como é
comprovado pelo próprio nome do bairro, cuja estória conta um morador:
“Então, os mais velhos contam, Dona Maria ali... Vou contar essa
historia que tem fundamento. Antigamente, isso muito atrás, aqui era
tudo mato, mato fechado mesmo que, tem pessoas que moram aqui
ainda, o Zé Rosa, que contam, meu padrinho, seu pai, contam que
passavam a cavalo. Mas o cavalo andava até o peito de água, era tudo
brejão mesmo. E aí os mais velhos contavam pra Dona Maria que
existia anta nessa serra aí, muito mesmo. E quando um compadre
combinava com outro de ir caçar na serra ali, um falava pro outro
“vamos lá na serra, para nós soltarmos o cachorro lá numa anta, para
nós trazermos”. Aí falava, “a, compadre, num adianta porque vai solta
o cachorro lá, o bicho vai cair na poça”. Só que essa poça era ali em
baixo, que não existe mais hoje porque os terceiros acabaram com o
rio, o maquinário, essas coisas, foi acabando com tudo. E existia um
lago muito grande ali, bem espaçoso mesmo, e aí, quando caia bicho
tinha muitas vezes que ia canoa, tudo, por dentro assim pra tentar
matar. Isso é que tinha muito, e muitos anos. E aí falavam que não
adiantava ir lá na serra porque o bicho ia correr do lado e passar e
descer, ia cair lá na poça. Aí essa poça pego o nome e fico Poça até
hoje...” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da
Oralidade, em 22/03/2009, por Gilmar dos Santos Marinho, secretário
da associação dos moradores da comunidade da Poça).
Com o passar do tempo, a lavoura da banana se expande na região, e também
cresce o número de “terceiros”, ou seja, pessoas de fora da comunidade que compram
terras a preços muito baixos por conta da fragilidade econômica destes camponeses em
geral, e particularmente os quilombolas, que, muitas vezes, não eram considerados
donos legais das áreas herdadas. Nos anos de 1940 e 1950, há a incorporação da região
à produção de mercado, sendo que, em 1960, o processo é acelerado pela construção da
rodovia BR-102. Esse contexto é complementado pela especulação fundiária,
acentuando o problema da posse da terra.
Em meados de 1970, preocupado com os treinamentos de grupos
revolucionários guerrilheiros, o governo empenha-se em desenvolver a região.
Considera o “campesinato” “atrasado” e promove incentivos para a entrada de empresas
agropecuárias e fazendeiros, tendo como objetivo o aumento da produtividade agrícola.
Esse processo se estende por vários anos, criando diversos conflitos dos
moradores com os terceiros. Em Poça, apesar dos laços familiares, muitas terras são
entregues a terceiros a preços muito baixos por parentes herdeiros, piorando a situação
dos outros. Moradores contam que geralmente os que venderam terras eram os que
'Olhares sobre o processo investigativo'
iriam embora do bairro tentar a vida em outros lugares, o que deixa transparecer o
ressentimento pelos que ficaram em relação ao prejuízo deixado.
No bairro, cresce a incerteza quanto à manutenção da terra, freqüentemente
assediada pelos terceiros. Estes tentam intimidar e se aproveitar da situação atual dos
moradores que não podem mais caçar nem desmatar nenhuma área para o plantio de
qualquer cultura, pois, nas últimas décadas, a legislação ambiental se tornou muito
punitiva, criando reservas de proteção ao meio ambiente sem se importar com as
populações tradicionais lá residentes como diria o antropólogo Antonio Carlos Sant'Ana
Diegues (1994), em várias de suas obras, mas, principalmente, em O mito moderno da
Natureza Intocável. No caso da comunidade de Poça, a legislação ambiental restritiva à
ampliação das áreas de cultivo se refere ao mínimo de reserva permanente que deve
possuir cada propriedade, não se inserindo nos parâmetros postos para áreas de unidades
de conservação.
A expansão do cultivo da banana se deve, também, a um mercado certo para a
produção realizada, sendo que a redução da área, já diminuta, levaria a uma produção
insuficiente para a manutenção das famílias, conforme declara Nilzo Tavares da Costa,
conhecido como Edinho pelos outros moradores, e presidente da Associação de Poça:
“A, sim, olha o Gilmar já até realizou isso aqui, plantou uma horta,
laranja, alguma coisa. Mas como a gente não tem espaço, a gente não
consegue, porque o nosso já é pequeno, então se você reduz a sua área
que você tem de banana pra plantar uma outra coisa, de repente você
está diminuindo, e muito, a sua renda, ai você não consegue ficar...”
(Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em
22/03/2009, por Nilzo Tavares da Costa, presidente da associação dos
moradores da comunidade da Poça)
Em relação à dimensão ambiental, às áreas de preservação permanente (margem
de rios, 50 m ao redor das nascentes, locais com alta declividade entre outras que o
código florestal menciona) não são vistas pelo líder da associação como algo ruim, mas
sim como locais a serem conservados. Talvez isso se explique pelo fato de que o líder é
formado em gestão ambiental, sabendo da necessidade de cuidar dos recursos naturais;
ou simplesmente porque, a comunidade de Poça, como população tradicional, saiba da
importância da natureza para sua vida e aja como agente de conservação, como
demonstrado pela tese de doutorado de Simone Resende da Silva (2008).
'Olhares sobre o processo investigativo'
Porém, os moradores de Poça observam que os terceiros utilizam
indiscriminadamente essas áreas de proteção permanente, tendo em vista que, quando
chega a fiscalização, eles têm condições de pagar a multa.
O uso indiscriminado do cultivo da bananeira não é o anseio dos moradores de
Poça, sendo que, ao serem questionados, alguns moradores disseram que gostariam de
plantar outras roças em suas terras, até por ser esta uma necessidade.
“Sim, tem que plantar... (...) Nós precisamos disso.” (Entrevista
coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009,
por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação dos
moradores da comunidade da Poça).
A troca da roça pelo plantio da banana para a venda já indica como a
comunidade foi se subordinando ao capital, e com isso enfrenta outros problemas
relacionados. Pode-se citar os “atravessadores” que são pessoas que compram a banana
na comunidade a baixos preços para vender nas cidades. Isso acontece porque os
moradores de Poça não têm como transportar sua produção, e acabam se vendo
obrigados a aceitar as condições de comercialização dos intermediários. Além de tudo, é
preciso ressaltar que a concorrência que há ali sempre favorece os terceiros, já que
esses, além de possuírem meios de transportar a produção, possuem também mais
terras, além de máquinas que aumentam sua capacidade produtiva.
Produtos da banana, como os “chips”, tipo de salgadinho frito, seriam
alternativas para a comunidade, porém a vigilância não permite essa atividade
considerando que o local não tem condições sanitárias para tal.
Ao se apropriarem das terras, os terceiros acabaram regulando o uso de algo
também muito importante para a comunidade de Poça, a água. Isso porque a nascente
do rio que abastece o bairro está em terras de terceiros, bem como passa por elas o cano
que leva a água até a comunidade. Isso trás grandes problemas, já que os terceiros não
têm interesse em conservar esse recurso natural, poluindo com agrotóxicos, herbicidas
ou fungicidas usados no bananal, o que já trouxe infecções aos moradores de Poça. Há
ainda a situação desconfortável dos empregados do terceiro cortarem o cano para usar a
água, prejudicando o abastecimento da comunidade, cujos moradores têm que pedir
autorização para entrar nas terras e remendar as partes cortadas. A relação dos terceiros
com a água é sintetizada pelo morador Zeca:
'Olhares sobre o processo investigativo'
“Ele mora na cidade. Se quiser tomar água, ele trás de lá...”
(Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em
22/03/2009, por Zeca, membro da associação dos moradores da
comunidade da Poça)
A aplicação dos venenos, geralmente feita por aviões, não gera problemas só
para as águas, compromete também o solo.
Outra situação característica de Poça é o fato de estar na divisa entre dois
municípios (já citados, Jacupiranga e Eldorado). Esse fato poderia não significar nada
demais, porém trás problemas aos moradores na medida em que as instituições dessas
cidades se aproveitam dele para “empurrar” os problemas para o município vizinho.
Segundo os moradores, isso também ajuda a dificultar que se consiga atendimento
médico, assistência policial, escolas etc.
Recentemente, voltando à questão da terra, a Cia. Vale do Rio Doce tem tentado
o acesso as terras de Poça, interessada nas pedreiras da região. Isso faz com que alguns
moradores tenham até medo de conversar com pessoas estranhas que cheguem à
comunidade, com receio que esses estejam ganhando informações para tentar conseguir
suas terras, como fizeram os terceiros.
Em meio a essa conjuntura, os moradores da comunidade de Poça enfrentam
problemas como os de qualquer bairro pobre e afastado, com o agravante já citado de
estar em uma divisa municipal. O acesso ao transporte é limitado, já que há poucos
ônibus que passam na comunidade, e com largos intervalos, fato que prejudica também
o acesso a todos os outros serviços. As escolas, além de estarem longe, precisam de
reformas; não há posto de saúde; e os auxílios do governo demoram a chegar.
Todos os problemas demonstrados aqui, resultantes de processos históricos
difíceis de se modificar, acabaram por demonstrar aos moradores de Poça que aquela
união dos laços familiares não seria suficiente, trazendo a necessidade de
institucionalização por meio da formação da Associação. Ela foi vista inicialmente
como meio da comunidade se fazer mais visível ao governo em suas reivindicações.
Expostas as mudanças históricas e os movimentos da própria comunidade,
chega-se à formação da Associação, detalhada adiante.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Os passos para a formação da Associação
A falta da terra, a degradação dos recursos naturais, as dificuldades financeiras,
a falta de boas condições de saúde, transporte e educação; enfim, com todas as
dificuldades citadas, os moradores de Poça sabiam da necessidade de ação. Então,
perceberam que várias famílias tinham em comum pelo menos um dos sobrenomes,
Costa, Pupo, Silva, Marinho, ou Rosa; e auxiliados por uma antropóloga fizeram um
levantamento dos dados das famílias tradicionais da região, num processo chamado
pelos atuais líderes da Associação de auto-reconhecimento5, que concluiu que eram
descendentes de população remanescente de quilombo. Tiveram também apoio de duas
freiras que auxiliavam pessoas de populações tradicionais e acabaram expulsas de
Eldorado por causa disso. O próximo passo seria o reconhecimento, por parte do
Estado, dessa identidade quilombola. Assim, como instrumento político de luta, veio a
formação da Associação, como afirma Nilzo Tavares da Costa, o Edinho, presidente
atual da instituição.
“Nós, prá buscarmos força devemos ser unidos, então através da
associação a gente conseguiu bater de frente com o governo, que você
não consegue sozinho, um não consegue.” (Entrevista coletiva
concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009, por
Nilzo Tavares da Costa, presidente da associação dos moradores da
comunidade da Poça)
Enquanto aguardavam o reconhecimento pelo governo, era feito o trabalho de
divulgação para as famílias do bairro, aumentando o número de sócios e fortalecendo o
movimento e a consciência dos quilombolas.
Foi importante para a consolidação da Associação a construção do barracão,
atual sede, onde se realizam as assembléias, reuniões e atividades da comunidade. Foi
construído com verbas de um prêmio da loteria recebido por uma moradora.
A formação da associação, portanto, partiu da idéia de um grupo de moradores
convencendo mais tarde a quase todos, mas teve ajudas externas como o contato que um
dos moradores teve com o mundo acadêmico e também a colaboração de freiras da
região, o que se faz coerente com a tese de mestrado de Lilianny Rodrigues Barretos
5
O resultado do trabalho se refere à reconstrução da árvore genealógica das famílias que
compõem a comunidade, com imbricadas teias de relações.
'Olhares sobre o processo investigativo'
dos Passos, na qual se ressalta que a formação das associações das comunidades
tradicionais (indígenas no caso do seu estudo) são consciência formada de fora para
dentro da comunidade.
Assim, em 13 de maio de 2008, a comunidade de Poça foi reconhecida pelo
Governo do estado de São de Paulo como remanescente de quilombo, o que deu ainda
mais força para a Associação.
Regras e atividades da Associação
Para poder se tornar membro da Associação, é preciso ter nascido em Poça ou
se casar com alguém que tenha nascido lá e ter no mínimo 16 anos de idade. Os
associados devem pagar o equivalente a 1% do salário mínimo todo mês, ajudando na
manutenção do barracão, pagamento de advogados, entre outras despesas necessárias à
toda organização. Não é permitida a venda das terras, nem no caso de haver casamento
com alguém de fora e depois divórcio, já que a propriedade das terras é coletiva,
atribuída em nome da Associação.
Além disso, existem os deveres de participar das reuniões, discutir todos os
assuntos e ajudar aos outros da comunidade com o que for possível e necessário.
Os associados participam eventualmente das festas, podendo usar o barracão
como espaço de interação em geral, tanto que há uma sala de informática para introduzir
principalmente a nova geração no mundo digital, além de muitos outro projetos que são
discutidos lá dentro, muitas vezes com ajudas externas.
Os diretores, por sua vez, têm a obrigação de convocar assembléias quando
necessário, organizar a votação com todos os associados e depois levar a decisão à
execução, seja dentro ou fora da comunidade, como, por exemplo, decidir se um
morador que chega de fora deve ou não permanecer no bairro, ou se uma pessoa deve
ou não ser aceita na Associação. E no caso das necessidades de serviços ou auxílios do
governo, são também os diretores que devem levar para os órgãos públicos e advogados
as requisições da comunidade.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Os diretores da Associação (presidente, vice, secretários) são escolhidos por
votação direta, em assembléia, tendo mandatos de 2 anos, que podem ser renovados
apenas uma vez.
Assim também funcionará quando o governo regulamentar a titulação das terras
do quilombo de Poça. A Associação deverá ter papel central na organização do uso
coletivo das terras ainda nas mãos dos terceiros. Assunto a ser aprofundado a seguir,
tratando dos principais objetivos da Associação.
Antes, é importante notar como a rotina dos moradores deve passar pela
Associação e as atividades dessa são também as atividades dos moradores. Nesse
sentido, a Associação ajuda a ligar espaço, família e atividades, sendo fundamental na
construção da identidade quilombola.
Principais objetivos da Associação
A associação é o instrumento de luta para que o quilombo seja titulado o mais
rápido possível, ganhando assim todos os benefícios possíveis por ser comunidade
quilombola, é ela também que representara os moradores em qualquer luta jurídica,
como no conflito pelas terras e na luta contra os terceiros.
Quando perguntado aos líderes qual o principal intuito da Associação, a resposta
centrou-se no desejo de autonomia econômica na sua produção e venda, com melhorias
no transporte, a possibilidade de adquirir um caminhão, algumas máquinas etc.
Também pensam na construção de uma fábrica para banana chips dentro das
normas sanitárias que possibilite a venda para o mercado. Para isso, a organização é
fundamental na busca de investimentos mais uma vez se baseando na economia
solidária e ajuda mútua até mesmo para lutar por financiamentos junto ao governo e a
empresas privadas.
Fala-se muito na devolução das terras, hoje de terceiros, pelo Governo Federal.
Essas terras serão usadas para agricultura de forma coletiva e regulamentada pela
Associação. Por um lado, a idéia é diversificar os produtos, diminuindo os gastos com
alimentação em geral, e talvez até conseguindo novas formas de ganho. Além disso,
'Olhares sobre o processo investigativo'
retomando o controle das nascentes, poderiam cuidar de todos os recursos naturais que
se fazem a eles necessários.
“É que nem eu falei, tem que proteger as nascentes, porque hoje não
são protegidas pelos terceiros. Nós temo que fazer isso ai, proteger, e
aí, plantar, cuidar bem e vender a produção juntos.” (Entrevista
coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em 22/03/2009,
por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação dos
moradores da comunidade da Poça)
Essa forma de produção coletiva com divisão dos ganhos é característica da
economia solidária, teorizada por Paul Singer (2002), na qual se ressalta o papel que o
governo e a universidade tem como agentes externos na manutenção das populações
tradicionais e sua reprodução, e é isso que se está tentando implantar em Poça, onde a
USP, pelo projeto "Geografia da oralidade", poderá participar como interlocutor na
elaboração de projetos, visando a obtenção de recursos a fundo perdido em órgãos,
como a Petrobrás, para a construção da fábrica de banana chips ou passa.
Por outro lado, há uma preocupação com a proteção do ambiente e seus recursos
naturais. Isso mostra que um esforço do Governo para reintegrar a população de Poça a
seu território original poderia ser mais efetivo do que tentar aplicar rigorosamente leis
ambientais na atual conjuntura.
Além dos esforços para regularizar a terra e conseguir o domínio dos recursos
naturais e a melhor inserção na economia, a Associação de Poça luta para conseguir
outras melhorias. Imediatamente, é necessária a construção de um posto médico no
bairro, já que os moradores têm muitas dificuldades de acesso aos centros urbanos
próximos. Também precisariam de uma escola no bairro, pois a única que existia está
abandonada. Mas ressalta-se a importância de ser passado como conteúdo a história dos
negros, coisa que hoje não acontece nas escolas de bairros vizinhos. Além disso, a
melhoria nos transportes, com mais pontos de ônibus e, é claro, mais ônibus também
seria bem vinda, já que o ponto existente não tem sido utilizado, conforme fora
mencionado.
O primeiro passo parece estar sendo dado, já que, por meio da intervenção de
pessoas do ITESP, o prefeito de Jacupiranga está sendo pressionado a registrar o
'Olhares sobre o processo investigativo'
quilombo como pertencente ao município. Assim, fica mais claro quem deve arcar com
os cuidados do bairro Poça.
Situações Adversas de dentro da comunidade
Nas entrevistas, percebemos que há uma grande dificuldade de integrar todos os
moradores, pela dificuldade de difusão da informação e, às vezes, até pela tradição de
não participar de entidades políticas. Por um lado, há várias famílias de pessoas
frequentemente ocupadas no trabalho no bananal, com restrita participação nas reuniões
da Associação, enquanto, por outro, os diretores, também, ocupados com assuntos da
Associação, além da roça, vêem-se limitados em relação à difusão das informações
àqueles que não fazem parte da Associação ou que não freqüentam suas atividades. No
caso dos mais velhos, Nilzo Tavares da Costa ressalta que não estão acostumados com
esse tipo de movimento e preferem não participar:
“Então é por isso que hoje prá gente trazer eles, prá levar prá reunião,
prá colocar uma pessoa mais velha dessa lá junto com a gente, eles
falam 'não, num é meu estilo ir nisso, eu prefiro ficar na roça, eu
prefiro fazer o serviço aqui porque eu sei que daqui vai sai alguma
coisa'” (Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da
Oralidade, em 22/03/2009, por Nilzo Tavares da Costa, presidente da
associação dos moradores da comunidade da Poça)
Assim, frequentemente os “filhos” das famílias é que freqüentam a Associação e
sabem do que está acontecendo.
Outro conflito interno importantíssimo é o caso do Senhor Bento Pupo, negro,
neto de escravos, nascido naquelas terras, estando na mesma rede de parentesco e se
julgando quilombola, porém não quer participar da Associação por não concordar com a
sua política.
Além de não participar da associação por não concordar com a política adotada,
possui uma extensão de terras dentro da área a ser titulada como quilombo, a plantação
de banana maior que a dos demais quilombolas, casa de alvenaria em bom padrão e
estado, maquinários e automóvel. Também há outros moradores que vivem em suas
'Olhares sobre o processo investigativo'
terras, trabalhando como assalariados. Dentre os assalariados, alguns são sócios da
Associação do quilombo.
Nesse caso, fica a pergunta:
Quando o quilombo for titulado, como vão ficar as terras de quem não é terceiro
mas não quis entrar para a associação, como o Sr. Bento? Ele perderá suas terra? E os
moradores que não têm terras e trabalham para o seu Bento?
Isso gera uma tensão, porém a Associação procura agir com tranqüilidade,
respeitando a opção do Sr. Bento, porém sem abrir mão de sua luta. Diz que não
pretende tentar retirar-lhe nenhuma porção de terra.
“Ele não quer participar de jeito nenhum, não quer fazer parte da
Associação também, não que incluir... Deixa ele lá, ninguém mexe.”
(Entrevista coletiva concedida ao Grupo Geografia da Oralidade, em
22/03/2009, por Gilmar dos Santos Marinho, secretário da associação
dos moradores da comunidade da Poça)
Mesmo assim a situação é tensa, pois sobram dúvidas, já que existem pessoas
que são da Associação, mas trabalham com Bento e não têm terras. Provavelmente
morarão em algum espaço coletivo, trabalharão ali também, mas não se apropriarão de
nenhum pedaço de terra de certa forma se estabelecendo de modo diferente de quem
possui terras, sendo importante ressaltar que são pessoas com vínculos de parentesco,
tanto com Bento Pupo, quanto com associados.
Assim, percebeu-se que os inúmeros problemas pelos quais a comunidade
passava e passa, a necessidade de união frente ao Estado e ao capital, e a possibilidade
de recuperar terras por meio do reconhecimento e da recriação da identidade
quilombola; levaram à formação da Associação. Também é com ela se dá a integração
da comunidade, já que representa o coletivo nas reivindicações para agora e para o
futuro.
Referências
DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da natureza intocável. São
Paulo: NUPAUB, 1994.
'Olhares sobre o processo investigativo'
ITESP. Relatório Técnico-Científico Sobre a Comunidade de Quilombo da Poça,
localizada nos Municípios de Jacupiranga e Eldorado/ São Paulo. São Paulo: ITESP,
2006.
SILVA, Simone Rezende da. Negros na Mata Atlântica, territórios quilombolas e a
conservação da natureza. São Paulo: FFLCH/USP, 2008. (Tese de doutorado em
Geografia Humana).
SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2002.
'Olhares sobre o processo investigativo'
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Formação da associação quilombola do bairro da Poça