2
Integração reticente: a política comercial brasileira entre
1950 e 1990
Nesta parte do trabalho será traçado um esboço da política comercial
brasileira entre a década de 1950 e o início da Rodada Uruguai, em 1986.
Primeiramente, serão expostos argumentos teóricos do grupo que se convencionou
chamar “desenvolvimentista”, cujo núcleo analítico pode ser encontrado nos
trabalhos de Raúl Prebisch, Celso Furtado e da Comissão Econômica para
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América
Latina
(Cepal).
Em
grande
medida,
foram
economistas
“desenvolvimentistas” que forneceram insumos teóricos tanto para o modelo de
desenvolvimento por substituição de importações prevalecente no Brasil até finais
dos anos 1980, como também para a diplomacia econômica brasileira que,
principalmente a partir dos anos 1970, passou a advogar pela reforma da ordem
econômica internacional (LIMA, 1994; CERVO; BUENO, 2002). Para sustentar
esse argumento, a apresentação do grupo dos “desenvolvimentistas” será seguida
de uma descrição da formulação da política comercial brasileira no período
anterior à Rodada Uruguai, durante três importantes momentos de consolidação
desse pensamento econômico no Estado brasileiro.
Na parte seguinte do capítulo serão apresentadas algumas características do
regime internacional de comércio estabelecido com a assinatura do Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio (GATT), em 1947. O núcleo desse regime era formado
por teorias liberais, que foram incorporadas à política brasileira apenas ao final
dos anos 1980. O ponto importante dessa parte do trabalho é que o Brasil, embora
parte contratante do GATT, não adotou na sua formulação política os princípios
estabelecidos pelo regime. Conforme a linha analítica que utilizo na dissertação,
pode-se argumentar que não houve a convergência para tais princípios porque
prevalecia nas instâncias decisórias de política comercial do período – Ministério
das Relações Exteriores (MRE), Comissão de Política Aduaneira (CPA) e Câmara
de
Comércio
Exterior
do
Banco
do
Brasil
(Cacex)
-
concepções
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
23
desenvolvimentistas propagadas no âmbito da Cepal, que estiveram fortemente
incorporadas nas instituições brasileiras durante um grande espaço de tempo.6
Como é amplamente conhecido, teóricos liberais e desenvolvimentistas
têm prescrições políticas distintas acerca da relação entre Estado e
desenvolvimento. Em ambas correntes existe um compromisso normativo com o
crescimento econômico, ou seja, tanto liberais como desenvolvimentistas
consideram desejável o aumento da produtividade. Entretanto, existe uma
divergência central referente à conveniência da intervenção do Estado para levar a
um novo padrão de crescimento. A esse respeito, o segundo grupo critica
veementemente a eficiência de mecanismos de mercado na alocação de recursos
em nível interno e externo. Por isso, os desenvolvimentistas geralmente sugerem
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uma agenda política que inclui o planejamento estatal na distribuição de recursos
(BIELSCHOWSKY, 2000, p. 11). No âmbito comercial, medidas baseadas nesse
conceito incluem a regulação do câmbio e a implementação de controle das
exportações e importações, além do fornecimento de incentivos creditícios e
fiscais a empresas consideradas prioritárias ao desenvolvimento do país.
Durante os governos Sarney (1985-1990) e Collor (1990-1992), foram
adotadas políticas comerciais bastante distintas das implementadas no Brasil
desde os anos 1950. O ponto que busco investigar na dissertação diz respeito à
medida em que essa reorientação da política comercial – no regime de
importações e nas negociações comerciais - pode ser explicada pela difusão de
uma nova visão econômica entre os decisores políticos. Devo enfatizar que os
ideários desenvolvimentista ou liberal aqui apresentados não foram incorporados
à política comercial brasileira exatamente como prescreveu a teoria. Como
ressaltado por John Campbell (2001), idéias econômicas como o neoliberalismo
não foram incorporadas de maneira uníssona em todos os países, nem em todas as
instituições dentro de um mesmo país, embora tenham tido impactos
significativos na reorientação política operada em grande parte do mundo entre os
anos 1980 e 1990.
6
Podemos dizer que tais categorias – desenvolvimentistas e liberais - são tipos ideais que
reúnem uma série de concepções sobre desenvolvimento econômico, distribuição de renda,
processo inflacionário, desequilíbrios no balanço de pagamentos, entre outros temas. Nesse
sentido, as concepções e argumentos não serão encontrados, na atuação política, com a coerência
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
24
É com essa orientação que pretendo apresentar argumentos econômicos
utilizados na formulação da política brasileira durante um largo período que
precedeu o governo Sarney, para que possa discorrer nos próximos capítulos sobre
como esse modelo perdeu lugar e cedeu espaço para “novas” (outras) idéias
econômicas em instituições do Estado brasileiro.
2.1.
Conceitos desenvolvimentistas sobre o papel
internacional na promoção do desenvolvimento
do
comércio
É sempre desleal enquadrar autores diversos, que se esforçaram para
contribuir para o desenvolvimento nacional, em categorias que os resuma a
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algumas proposições em comum. No entanto, para o exercício deste trabalho
serão buscadas as concepções principais desse grupo de economistas que se
convencionou rotular de “desenvolvimentistas”. Esse esforço de categorização foi
brilhantemente realizado por Ricardo Bielschowsky (2000), na sua tese de
doutorado onde, entre outras coisas, faz um estudo dos principais argumentos
teóricos utilizados por esse grupo de estudiosos.7
De maneira geral, por desenvolvimento se entende um processo de
acumulação de capital e de incorporação de progresso técnico através do qual a
renda por habitante ou, mais precisamente, os padrões de vida da população
melhoram de forma sustentada. Para o pensamento econômico produzido na
Cepal durante os anos 1950, o desenvolvimento seria alcançado pela
industrialização, mas, mais do que isso, desenvolvimento era o processo mediante
o qual o país realizava sua revolução capitalista, e isso passava pelo
fortalecimento da burguesia industrial para que pudesse promover o objetivo da
industrialização (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 55).
lógica que apresentam seu desenvolvimento teórico, e tampouco haverá tomadores de decisão que
os incorporem exatamente da forma como estão expostos em tais teorias.
7
Kathryn Sikkink (1991) ressalva que o “desenvolvimentismo” foi um conjunto de
políticas voltadas à industrialização que foram informadas por certas idéias sobre o crescimento
econômico. Mesmo reconhecendo a distinção, utilizarei o termo “desenvolvimentismo” para
referir-me ao conjunto de teorias do subdesenvolvimento cujas prescrições políticas orientaram as
políticas apontadas por Sikkink.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
25
2.1.1.
Deterioração dos termos de troca
Segundo Bielschowsky, o primeiro e mais importante argumento
desenvolvimentista refere-se à deterioração nos termos de troca. Essa teoria foi
formulada por Raúl Prebisch, em estudo onde afirma que o preço dos produtos
exportados por países em desenvolvimento tem uma tendência histórica a
depreciar-se com relação aos produtos industrializados exportados por países do
centro (PREBISCH, 1998).8 A constatação de que o preço dos produtos primários
tende a deteriorar-se com relação a produtos industrializados foi baseada em
amplo levantamento feito pelo autor acerca dos padrões do comércio internacional
em determinado período. Partindo dessa afirmação, Prebisch sugeriu algumas
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causas que poderiam explicar o resultado encontrado. A mais importante delas
seria que a produção manufatureira no Centro tem um crescimento de
produtividade mais acelerado do que a de bens primários da Periferia devido à
incorporação constante de novas técnicas de produção naqueles países. Em sua
obra, Prebisch sustentou que a organização sindical nos países industrializados
impedia que o aumento da produtividade ocasionasse uma queda de preço
correspondente nas suas exportações, haja vista que existiam pressões políticas
para a manutenção de altos salários e altas margens de lucros. Dessa forma,
segundo o argumento da deterioração dos termos de troca, produtos
industrializados confeccionados pelo Centro do sistema capitalista tendem a sofrer
reduções comparativamente menores em seus preços de exportação do que os
produtos exportados pela Periferia.
Esse ponto contrasta com a teoria liberal do comércio internacional de
Hecksher-Ohlin pois, segundo Prebisch, não existe tendência à equalização dos
fatores de produção, ou seja, o fator de produção capital não se dirige para a
periferia porque o excedente oriundo da elevação na produtividade fica retido nos
países do centro, devido à atuação sindical (CARDOSO, F. H., 1980, p. 23). Haja
8
Em 1949, um ano após a criação da Cepal, o economista argentino Raúl Prebisch foi
convocado para preparar um estudo sobre a situação econômica da América Latina, que seria
apresentado naquele ano em conferência em Havana. O estudo de Prebisch ficou conhecido como
um dos textos mais representativos do pensamento estruturalista daquela instituição (SIKKINK,
1991, p. 58). O texto em questão foi escrito em 1949 como introdução al "Estudio económico de
America Latina", 1948 (E/CN.12/89) e publicado posteriormente em Cepal, "Boletín económico
de América Latina", vol. VII, N.1, Santiago de Chile, 1962.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
26
vista que as exportações primárias tendem a ter o preço reduzido, o padrão de
divisão internacional do trabalho gera uma menor capacidade de acumulação nos
países subdesenvolvidos, o que requer, portanto, políticas específicas para
promover a acumulação e fomentar o desenvolvimento.9
Celso Furtado argumenta que a dificuldade de acumulação de capital é um
problema para o desenvolvimento tecnológico nos países periféricos, porque
baixos níveis de poupança, se deixados ao livre-mercado, não levam ao
investimento, e a falta de investimento leva à carência de desenvolvimento
técnico. Isso dá origem a um círculo vicioso, onde o parco desenvolvimento
tecnológico leva a baixos níveis de poupança; e baixos níveis de poupança e
investimento levam à carência de progresso técnico. A intervenção governamental
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para direcionar recursos para áreas prioritárias (superação de gargalos) seria uma
maneira de atenuar o problema (FURTADO, 1983, p. 97).10
2.1.2.
Economia dual e o processo de industrialização
Outro argumento, presente especialmente nas obras de Furtado, diz respeito
à dualidade das economias subdesenvolvidas. Basicamente, essa concepção
sugere que em países subdesenvolvidos existe um pequeno setor agrícola
altamente produtivo, cuja produção se destina à exportação. Geralmente, devido à
estrutura social das economias latino-americanas, o setor exportador concentra-se
nas mãos de uma elite econômica, que utiliza os lucros para importar produtos
industrializados do centro. A tese da dualidade econômica postula que coexiste
com esse setor uma grande maioria da economia, que é voltada para a subsistência
9
Paul Samuelson (1983), importante economista da corrente liberal, de maneira semelhante
aos teóricos Hecksher e Ohlin, havia sustentado a hipótese amplamente aceita de que o comércio
internacional, se realizado livre de restrições, tende a promover o desenvolvimento homogêneo
dos países, porque os fatores de produção tendem a fluir dos locais onde são abundantes para
locais onde haja escassez desse fator.
10
Embora o argumento de intervenção governamental nos níveis de poupança tenha origem
em prescrições keynesianas de política, não é demais ressaltar que o argumento
desenvolvimentista difere sensivelmente da teoria de Keynes. Um dos problemas trabalhados por
este autor diz respeito à forma de utilização de poupança ociosa, especialmente durante períodos
de crise, onde expectativas negativas inibem o investimento e, portanto, o crescimento econômico.
Os desenvolvimentistas, por sua vez, tentam superar o problema de escassez de poupança e
investimentos na periferia. Ambos questionam a proposição liberal que sustenta que poupança é
igual a investimento (mesmo sem ação governamental), mas os desenvolvimentistas preocupam-se
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
27
e produz a níveis técnicos muito baixos. A obra clássica de Furtado, Formação
Econômica do Brasil, descreve os diferentes ciclos econômicos brasileiros, que
variaram naquilo que o país produzia para exportar – cana-de-açúcar, ouro, café –
embora tenham mantido uma grande parte da população no setor de subsistência
(FURTADO, 2003). Em consonância com a idéia de economias duais, Furtado
considera que a superação dessa estrutura poderia ocorrer com o estímulo do
Estado, tanto por meio da concessão de benefícios fiscais (ajudaria a criar oferta)
como pela criação da demanda a outros setores da economia (por exemplo, com a
formação de mercados cativos por meio de restrições à importação), para que o
progresso técnico do núcleo avançado se disseminasse para o restante da
economia. Essa prescrição política para os países superarem a dualidade é parte da
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teoria da demanda derivada (ou tese da demanda induzida), que sugere que o
crescimento econômico e desenvolvimento técnico em países subdesenvolvidos
podem ser originados por pressões do lado da demanda, que pode ser estimulada
pelo Estado.
Pode-se considerar que o papel do comércio exterior na superação do
dualismo econômico, na visão de Furtado, ocorre de duas maneiras importantes
quando há intervenção estatal. A primeira é pelo direcionamento de excedentes
das exportações agrícolas para atividades industriais que diversifiquem a
produção nacional e atenuem os laços de dependência da Periferia com relação ao
centro; e a segunda é pelo controle das importações, já que o Estado pode conter a
tendência da elite exportadora em gastar sua renda com produtos importados
supérfluos, enquanto permite a compra de bens necessários à instalação de nova
capacidade industrial. Essas duas prescrições políticas se assentam tanto na idéia
de que a poupança nos países em desenvolvimento é escassa, como na concepção
de que o excedente é geralmente utilizado de forma pouco produtiva para a nação,
sendo gasto em bens de baixa prioridade para uma pequena elite (FURTADO,
1983, p. 159).11 Ambas as idéias foram importantes para a defesa do modelo de
desenvolvimento com base na substituição de importações.
com a condição específica da periferia do sistema, de falta de poupança, e não de excesso
(CAMPBELL, 2001).
11
Furtado critica o pressuposto da racionalidade defendido pelas teorias econômicas
liberais, segundo o qual os agentes econômicos tendem a maximizar a renda e, dessa forma,
acabam por aumentar a produtividade geral da economia. Para Furtado, a racionalidade econômica
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
28
Dessa maneira, a industrialização da periferia é vista como um processo
problemático e difícil, já que o funcionamento do livre-mercado não logra
disseminar o progresso técnico dos setores exportadores de bens primários para o
restante da economia. Além disso, devido à deterioração dos termos de troca, os
recursos obtidos com a exportação são insuficientes para esses países importarem
bens de capital necessários ao processo de industrialização, o que faz com que o
desenvolvimento seja acompanhado por desequilíbrios estruturais no balanço de
pagamentos (porque as importações ficam mais caras do que as exportações).
Assim, os desequilíbrios são resultantes, em suma, dos seguintes fatores:
deterioração dos termos de troca diante da necessidade de importação de bens de
capital para a industrialização; dos padrões de consumo das elites, que importam
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do centro produtos supérfluos; e da tendência à redução na demanda mundial por
produtos primários, haja vista que progresso do centro muitas vezes substitui
produtos naturais por sintéticos e reduz a quantidade de insumo necessário à
produção.
2.1.3.
Desequilíbrios estruturais no balanço de pagamentos e o processo
inflacionário
A tese da tendência à deterioração dos termos de troca deu origem a um
argumento muito difundido a respeito das contas nacionais dos países em vias de
desenvolvimento. Segundo a visão estruturalista, defendida pelo próprio Prebisch,
o processo de desenvolvimento periférico leva, necessariamente, a desequilíbrios
no balanço de pagamentos, já que as importações tendem a ficar mais caras que as
exportações. Essa tese foi bastante combatida por teóricos liberais, que sustentam
que desequilíbrios no balanço de pagamentos resultam, entre outras coisas, do
processo inflacionário gerado pelo excesso de gasto governamental. Segundo esta
corrente, quando um país tem inflação superior à média mundial, os preços dos
produtos nacionais (tanto exportáveis como não exportáveis) tendem a ficar mais
caros em relação aos produtos importados. Dessa forma, há um aumento na
que maximiza renda é uma característica do modelo capitalista de produção, que não se propagou
em todos os países nem em todos os setores dentro dos países. Em economias subdesenvolvidas,
por exemplo, geralmente há uma grande parcela da população cujos valores são voltados a outras
satisfações que não a maximização da renda.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
29
demanda por bens importados e uma redução na receita de exportação; como
conseqüência, tende a ocorrer um déficit na balança comercial. Dessa maneira,
liberais sugerem que uma forma de reduzir déficits na balança comercial é através
de planos de estabilização que reduzam os déficits fiscais e amenizem a inflação.
Redução dos déficits fiscais, por sua vez, implica redução de gastos
governamentais em subsídios, programas de apoio à produção, entre outros.
A discussão acerca na natureza do processo inflacionário teve grande
repercussão no debate sobre a crise da economia brasileira no final da década de
1980. Economistas responsáveis pelo programa de estabilização implementado no
plano Real – Pérsio Arida e André Lara Resende – juntamente com outros
estudiosos da inflação, como Francisco Lopes e Edmar Bacha, engajaram-se na
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discussão das causas desse fenômeno. Em certa medida, o conceito de inflação
inercial defendido por esse grupo de economistas surgiu a partir do
desenvolvimento teórico de autores que defendiam causas estruturais para a
inflação e criticavam o tratamento monetarista ortodoxo para o problema. O
argumento liberal, de maneira ampla, sustenta que a inflação tem causas
monetárias e ocorre quando a oferta de moeda está acima da capacidade de
demanda da economia. Dessa forma, medidas de redução do consumo (inclusive
do governo), como ajuste fiscal e política monetária rígida, podem lidar com o
problema e, como conseqüência, corrigir déficits no balanço de pagamentos
(BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 21). Por sua vez, Prebisch e outros estudiosos da
Cepal, como Osvaldo Sunkel, defendiam que a expansão da moeda é uma resposta
das autoridades econômicas a aumentos de preços de origem estrutural; portanto,
considerá-la causa da inflação seria ignorar os processos estruturais que estão na
origem da elevação de preços e que estimulam a expansão monetária
(BIELSCHOWSKY, 2000, p. 21).
Bielschowsky sustenta que não há nos escritos de Prebisch referência a uma
ligação causal inversa à dos economistas ortodoxos no que se refere à inflação e
desequilíbrio no balanço de pagamentos. Ou seja, Prebisch não chegou a afirmar
que a inflação é conseqüência do desequilíbrio estrutural no balanço de
pagamentos, e não a causa de tais desequilíbrios. No entanto, outros economistas
da Cepal posteriores a Prebisch se basearam na relação entre a tendência à
deterioração dos termos de troca e o persistente desequilíbrio no balanço de
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
30
pagamentos para defenderem que o desequilíbrio externo é uma das principais
causas do processo inflacionário (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 22). Dessa forma,
a concepção estruturalista da inflação sustenta, como idéia básica, que o
crescimento econômico dos países subdesenvolvidos corresponde a um processo
que naturalmente se traduz em desequilíbrios na estrutura produtiva. Conforme
essa visão, as exportações de bens primários não se expandem em velocidade
suficiente porque sua demanda internacional cresce lentamente. Além disso, há
uma rigidez na oferta de alimentos e de serviços de infra-estrutura causada por
condições político-sociais do sistema produtivo, onde existem formas ‘précapitalistas’ de propriedade de terra. Essas desproporções convergem para a
inflação, situação na qual as forças do crescimento são obstruídas pelas
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deficiências estruturais do sistema (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 22).12
Esse ponto da contenda foi muito importante não só para a reforma da
economia doméstica durante o governo Collor, mas também para a política
comercial brasileira durante a Rodada Uruguai. Nessa rodada, o Grupo de
Negociações sobre Artigos do GATT (NG7) discutiu durante largo período de
tempo a reforma do artigo XVIII(B), que permite a países em desenvolvimento a
imposição de restrições às importações devido a desequilíbrios estruturais
originados de seu processo de desenvolvimento. Nesse grupo negociador, as
propostas polarizaram-se. De um lado, EUA e Canadá sustentavam a tese de que
os desequilíbrios no balanço de pagamentos eram aprofundados por restrições ao
comércio, por reduzirem a produtividade total da economia; de outro, alguns
países em desenvolvimento defendiam que a condição especial dos PEDs levava a
desequilíbrios estruturais no balanço de pagamentos e, portanto, a imposição de
restrições à importação seria essencial para sua correção. Alguns países do centro,
nesse grupo negociador, insistiam para que planos de estabilização fossem
implementados como maneira de solucionar os desequilíbrios. O Brasil defendeu
o argumento estruturalista no GATT até 1991, quando deixou de recorrer ao
Artigo XVIII(B).
12
Os estruturalistas não defendem que a inflação seja benéfica ao desenvolvimento. Nesse
sentido, concordam com os economistas ortodoxos que esse fenômeno traz danos à economia. No
entanto, sustentam que ela é resultado inevitável do desenvolvimento periférico (devido à
tendência à deterioração dos termos de troca e desequilíbrios no balanço de pagamentos) e que
políticas de estabilização são inócuas porque obstruem o desenvolvimento sem atacar as causas
estruturais da inflação.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
31
Em suma, o objetivo dessa seção não é fazer uma descrição exaustiva dos
teóricos desenvolvimentistas, mas apenas dar corpo à idéia de que a política
econômica de substituição de importações praticada pelo Brasil durante largo
período de tempo e a diplomacia comercial brasileira entre os anos 1950 e 1980
foram informadas por um conjunto singular de teorias acerca do desenvolvimento
periférico, do lugar da América Latina no mundo, e do papel do comércio
internacional da promoção do desenvolvimento econômico. Apenas para ilustrar a
forma como o pensamento desenvolvimentista esteve presente no pensamento
diplomático dos anos 1970, vale a pena citar um excerto do diplomata e ministro
Oswaldo Castro Lobo, em artigo de 1971 na Revista Brasileira de Estudos
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Políticos, no mesmo ano em que o Sistema Geral de Preferências (SGP) foi
incorporado ao GATT. O autor inicia seu texto com a afirmação de que “A
melhor maneira de se ter uma visão panorâmica da dinâmica do comércio
internacional é a partir do modelo delineado por Raúl Prebisch.” (LOBO, 1971,
p. 57).
Dessa maneira, pode-se sugerir a hipótese de que a mudança da política
comercial do Brasil ao final da década de 1980 e início dos anos 1990 ocorreu
quando as concepções desenvolvimentistas perderam espaço nas instâncias
decisórias da política comercial no Ministério da Fazenda e no Itamaraty durante
esse período.
2.2.
Política comercial brasileira anterior
institucionalização do desenvolvimentismo
à
Rodada
Uruguai:
É vasta a literatura que estuda a forma como se instaurou no Brasil um
regime de importações protecionista, contrário às regras incorporadas ao GATT.
Entre estudiosos do tema, há muitos que consideram que a consolidação desse
regime se deu quando concepções desenvolvimentistas passaram ocupar
instituições do Estado brasileiro em um período autoritário, em que havia grande
autonomia do Poder Executivo na definição da política nacional (SIKKINK,
1991; SOLA, 1998).
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
32
Na seção anterior, busquei apresentar os principais argumentos teóricos que
ganharam espaço na política comercial durante o período que Bielschowsky
chama de “ciclo ideológico do desenvolvimentismo”. Na presente parte do
trabalho apresentarei algumas decisões da política comercial brasileira com o
intuito de defender dois argumentos. Primeiro, que a política comercial até a
Rodada Uruguai foi informada por um conjunto específico de pressupostos sobre
o processo de desenvolvimento e a participação do comércio internacional na
alteração de estruturas econômicas; e segundo, que durante esse período foram
construídas instituições de política comercial com grande autonomia decisória
perante outras burocracias do governo, que seriam importantes para a
implementação da reforma durante os governos Sarney e Collor.
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Como anteriormente ressaltado, esse argumento é sustentado por um grande
número de autores. Kathryn Sikkink (1991) possui um estudo particularmente
interessante sobre a maneira como se instalou o “Estado desenvolvimentista” no
Brasil e na Argentina entre 1955 e 1964, onde o mote político incorporado em
diversas instituições estatais consistia no desenvolvimento por meio da
industrialização induzida pelo Estado.
Pode-se dizer que a implantação dessas prescrições à política comercial
brasileira deu-se em três momentos distintos. Primeiramente, foi uma resposta à
crise gerada pelas duas grandes guerras, quando houve uma retração das
exportações brasileiras para seus principais mercados. Como resposta, o Brasil
buscou uma série de medidas com vistas a produzir aquilo que anteriormente
importava, para satisfazer a demanda doméstica. Nesse momento ainda não havia
uma idéia clara de que restrições às importações poderiam servir ao
desenvolvimento nacional. As medidas foram tomadas simplesmente com o
intuito de garantir o pagamento das importações, não com o objetivo de modificar
a estrutura econômica, como posteriormente seria argumentado acerca do modelo
de desenvolvimento de substituição de importações. O segundo momento deu-se
durante a década de 1950 e coincidiu com a implantação do Plano de Metas. Esse
foi o auge da concepção desenvolvimentista no Estado brasileiro, quando se
criaram instituições de política comercial com grande autonomia decisória, como
o Conselho de Política Aduaneira (CPA) e a Câmara de Comércio Exterior do
Banco do Brasil (Cacex). Por fim, o terceiro período deu-se como resposta aos
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
33
choques de petróleo de 1973 e 1979, quando o Brasil, em vez de contrair a
demanda doméstica para reduzir a procura de importações (como sugeriam
liberais), impôs uma série de barreiras não tarifárias às importações para corrigir
os déficits causados pelo aumento do petróleo.
Pode-se dizer que as concepções desenvolvimentistas ganharam espaço na
política comercial brasileira em períodos de crise do setor externo, quando o
governo adotou medidas restritivas às importações para sanar o desequilíbrio no
balanço de pagamentos. No entanto, não se pode fazer uma relação causal entre
crise do setor externo e adoção de medidas protecionistas. Isso porque no início da
década de 1980 a solução para a escassez de divisas foi tratada com a extinção de
regimes especiais de importação13, pois novas teorias econômicas prescreviam
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que o aumento da produtividade da economia viria com a extinção de canais de
relação entre o Estado e o empresariado (que facilitava a concessão de favores a
empresas pouco produtivas, agravando o déficit fiscal) e com o aumento da
competição externa (para incentivar a modernização industrial).
2.2.1.
Primeiro período (1930-1945): a ausência de um modelo
Inicialmente, a política de substituição de importações foi uma resposta do
governo brasileiro a sucessivos choques externos pelos quais passou a economia
entre 1914 e 1945, durante quase 30 anos em que países do centro estiveram em
guerra ou depressão econômica. Para se ter uma idéia, a crise prolongada dos anos
trinta acarretou uma diminuição de cerca de 50% na capacidade de importar da
maioria dos países da América Latina. Com o colapso da economia européia e a
queda vertiginosa no preço das commodities internacionais, o Brasil e outros
países da America Latina viram-se compelidos a adotar medidas que consistiam
basicamente em controle das importações, elevação da taxa de câmbio e compra
de excedentes ou financiamento de estoques, para que a receita das exportações
fosse suficiente para pagar as importações (TAVARES, 1983).
Embora
políticas
de
substituição
de
importações
tenham
sido
implementadas desde 1930, a formulação teórica para esse processo só foi
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
34
cuidadosamente desenvolvida em 1964, por Maria da Conceição Tavares. Por
isso, embora durante esse período tenham sido implementadas políticas
condizentes com as prescrições desenvolvimentistas, ainda não foram informadas
por teorias do subdesenvolvimento, que lhes são posteriores. As medidas visavam
apenas a garantir o pagamento das importações. Tavares argumenta que, devido à
redução da produção nos países do Centro, o preço dos produtos importados no
Brasil também se elevou substancialmente durante os anos de crise, incentivando
a instalação de indústrias nacionais para a produção de bens que antes eram
importados, levando a uma modificação estrutural não planejada na economia
brasileira.
O ponto teórico importante colocado por Tavares é que a substituição de
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importações, embora inicialmente fosse apenas uma medida de ajuste a restrições
externas, constituiu-se como “um novo modelo de desenvolvimento”, porque
gerou mudanças nas variáveis dinâmicas da economia. Dessa forma, houve uma
perda relativa da participação do setor externo (exportação de bens primários) na
formação da renda nacional e um aumento da participação da atividade interna,
com o conseqüente aumento de seu dinamismo (TAVARES, 1983, p. 34). Assim,
o planejamento estatal do modelo substitutivo, que deveria iniciar-se com bens
finais não duráveis e posteriormente incorporar outras categorias, foi visto como
uma forma de superar o dualismo econômico característico das economias
subdesenvolvidas (FURTADO, 1983, p. 97).
Bielschowsky (2000, p. 25) argumenta que, embora o modelo substitutivo
houvesse sido formulado por Tavares, ele foi baseado em três idéias básicas dos
primeiros textos da Cepal: a idéia de que a tendência ao desequilíbrio externo é
inerente ao desenvolvimento periférico; a concepção de que a industrialização na
América Latina consiste na substituição de importações gerada por déficits
externos; e a interpretação de que o processo substitutivo modifica a composição
das importações, mas não reduz seu volume. Desse conjunto de concepções
teóricas, decantam-se algumas prescrições políticas que podem ser consideradas
centrais à concepção desenvolvimentista.14
13
glossário.
Para uma definição de regimes especiais de importação e sua aplicação no Brasil, ver
14
Mais uma vez, cabe ressaltar que a prescrição de política econômica do modelo de
substituição de importações difere sensivelmente do protecionismo praticado nos países
desenvolvidos. Enquanto o protecionismo no centro busca favorecer indústrias específicas, já
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
35
2.2.2.
Segundo período (1950-1964): consolidação institucional
Sikkink apresenta duas medidas de política comercial que foram
importantes para a implantação do desenvolvimentismo no Brasil na década de
1950. A primeira foi a Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito
do Banco do Brasil (Sumoc), de 1955, que visava atrair capital estrangeiro para o
país; e a segunda foi a reforma tarifária de 1957,15 que substituiu as alíquotas
estabelecidas em 1937 por valores mais elevados, embora flexíveis (SIKKINK,
1991, p. 142).
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A Instrução 113 da Sumoc determinou que a Cacex poderia conceder taxa
de câmbio favorável para a remessa de rendimentos e amortizações das inversões
diretas do exterior, e também para a importação de determinados equipamentos.16
Com essa política, o governo poderia oferecer benefícios adicionais a
investimentos externos aplicados em setores considerados prioritários para a
economia brasileira. Como vimos anteriormente, essa medida tentava solucionar o
problema crônico, apresentado por teóricos do subdesenvolvimento, da escassez
de capital na periferia do sistema. Tal medida foi extensamente utilizada durante o
Plano de Metas, haja vista que, na ausência de receitas de exportação disponíveis,
as compras externas tinham entrada facilitada para que não obstruíssem o plano de
desenvolvimento (LESSA, 1975, p. 32).
A reforma tarifária, por sua vez, manteve taxas de câmbio múltiplas apenas
para certos produtos de luxo e criou o Conselho de Política Aduaneira (CPA) para
gerenciar as alíquotas.17 O CPA, composto por representantes da classe
trabalhadora, do empresariado e do governo, tinha o poder de classificar os bens
estabelecidas, a ISI visa à implantação de novas indústrias com um efeito multiplicador sobre a
economia capaz superar a estrutura dual de produção (CARDOSO, E.; HELWEGE, 2000, p. 158).
15
Lei n. 3.244, de 14 de agosto de 1957.
16
Para uma definição de controle cambial e da forma como foi implementada no Brasil, ver
glossário.
17
Taxas múltiplas de câmbio eram adotadas para que o governo pudesse definir prioridades
de importação. Gêneros “de menor necessidade” eram importados sob câmbio desfavorável, como
forma de coibir sua compra. Como anteriormente ressaltado, alguns teóricos do
subdesenvolvimento consideravam que o padrão de consumo das elites, que importavam bens
supérfluos de países do centro, contribuía para a escassez de capital na periferia. Portanto, o
controle estatal das importações fazia-se necessário. Para definição do caso brasileiro, ver
glossário.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
36
de acordo com as categorias de importação e modificar as tarifas dentro de um
espectro determinado para algumas subcategorias de produtos.18 Segundo Sikkink,
o objetivo da reforma tarifária era tanto facilitar a entrada de bens de capital e
insumos necessários para o processo de industrialização como proteger as novas
indústrias que se formavam. Para tanto, garantia uma redução tarifária de 50%
para bens de capital não produzidos domesticamente. A reforma de 1957 definiu a
estrutura institucional da política comercial e os níveis básicos de alíquotas que,
com exceção de alguns produtos, seriam adotadas pelo Brasil até a reforma de
1988 (KUME, 1990, p. 4). Carlos Lessa argumenta que o CPA constituiu “o mais
preciso e bem ajustado instrumento de política econômica existente no Brasil”
(LESSA, apud SIKKINK, p. 143).
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Duas características eram muito importantes para as instituições comerciais
criadas pela reforma de 1957. Em primeiro lugar, o CPA e a Cacex desfrutavam
de grande autonomia decisória perante outras instâncias do governo. Epsteyn
(2008, p. 250) afirma que a Cacex centralizou muitas das prerrogativas de
formulação de política comercial, que antes da reforma de 1957 estavam
espalhadas entre diferentes agências estatais. O autor inclusive descreve o
processo de formulação da política comercial vigente até o final da década de
1980 como o “modelo Cacex”. Uma segunda característica importante das
instituições criadas nesse momento era a forte relação entre o Estado e o
empresariado na formulação política. Segundo Epsteyn, a Confederação Nacional
da Indústria (CNI) foi quem preparou o documento que serviu de ponto de partida
para a reforma de 1957, o que conferiu ao setor privado uma forte participação na
definição da política comercial (2008, p. 252)
A participação do Ministério das Relações Exteriores na política comercial
brasileira, por sua vez, foi definida em 1966, quando se criou o Conselho
Nacional de Comércio Exterior (Concex) pela lei n. 5.025. De acordo com a
decisão, cabia ao Concex, entre outras funções, traçar as diretrizes gerais de
comércio exterior, opinar sobre a participação do Brasil em acordos comerciais e
18
Em 12 de agosto de 1979, o Conselho de Política Aduaneira foi substituído pela
Comissão de Política Aduaneira.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
37
formular diretrizes para a política de financiamento às exportações. Sua criação
foi uma medida importante para a consolidação do sistema brasileiro de promoção
comercial. Eram responsáveis pela execução das determinações do Concex
seguintes órgãos: a Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex) e o
Conselho de Política Aduaneira (CPA), que executavam o que lhe cabiam no
plano doméstico; e o Ministério das Relações Exteriores (MRE), encarregado da
implementação das determinações do Concex no âmbito externo.19 Embora o
Concex fosse o órgão colegiado hierarquicamente superior na definição da
política comercial, a ação das instâncias inferiores de decisão – Cacex, CPA e
MRE – se dava com bastante autonomia (EPSTEYN, 2008, p. 252; FLECHA DE
LIMA, 1996). No que se refere às negociações comerciais, como era o caso das
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rodadas de negociação no GATT, uma parte importante do processo decisório se
desenrolava na Missão Brasileira em Genebra, encarregada da condução das
negociações (CALDAS, 1998).
A criação do Concex e do sistema de promoção comercial do MRE foram
condizentes com o objetivo de melhorar o balanço de pagamentos brasileiro, que
entre 1961 e 1963 havia acumulado déficit médio de US$ 113 bilhões. No
entanto, manteve-se o modelo de desenvolvimento substitutivo de importações. A
tentativa de elevar as exportações visava à correção das reservas de moeda
estrangeira, mas de forma alguma levou à implantação de um modelo de
desenvolvimento “orientado pelas exportações”, como havia sido adotado nos
tigres asiáticos (OLIVEIRA; ALLAIN, 1992, p. 8).
2.2.3.
Terceiro período (1973-1979): choques do petróleo e aprofundamento
do modelo
O primeiro choque do petróleo, em novembro de 1973, quadruplicou o
preço do produto. Na época, o Brasil importava cerca de 80% do seu consumo e,
dessa forma, a conta total de importações do país aumentou de US$ 6,2 bilhões
19
A lei n. 5025 foi alterada por legislação posterior, mas a estrutura do Concex permaneceu
praticamente a mesma, assim como as atribuições da Cacex e MRE. O Concex era composto pelos
seguintes membros: Ministro da Indústria e Comércio (presidente), Ministro das Relações
Exteriores, Ministro do Planejamento, Ministro da Fazenda, Ministro da Agricultura, Presidente do
Banco Central, Presidente da Comissão de Marinha Mercante, Diretor da Cacex, Presidente do
Conselho de Política Aduaneira.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
38
em 1973, para US$ 12,6 bilhões em 1974. O saldo da balança comercial passou de
um leve superávit em 1973 para um déficit de US$ 4,7 bilhões em 1974, e a conta
corrente, de um déficit de US$ 1,7 bilhão para US$ 7,1 bilhões (BAER, 1996, p.
112).
Após o choque externo, o governo respondeu às restrições com a adoção de
uma série de medidas de proteção à indústria. Principalmente a partir de meados
de 1974, foram implementadas barreiras não tarifárias às importações que
consistiam em: a) imposição temporária de sobretaxas de 100 pontos percentuais
sobre produtos supérfluos20 (posteriormente as sobretaxas foram estendidas a
insumos básicos e bens de capital, para estimular a substituição de importações
dessa nova categoria de produtos); b) publicação de lista de produtos com guia de
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importação suspensa; e c) exigência de depósito prévio equivalente ao valor das
importações (após 1 ano, o valor era restituído pelo governo sem juros nem
correção monetária)21 (KUME, 1990, p. 3).
A resposta do Brasil à crise no balanço de pagamentos utilizou-se de
instituições de política comercial criadas durante o “ciclo ideológico do
desenvolvimentismo” para implementar medidas que visavam dificultar a
importação. No entanto, para que as restrições não obstruíssem a compra de bens
de capital necessários ao desenvolvimento industrial, foram criados diversos
regimes especiais. Kume afirma que a criação de regimes que permitiam a
importação com a isenção de alíquotas fez com que proliferassem pedidos de
isenção de impostos. Como resultado, no período de 1975-79 cerca de 67% das
importações (inclusive petróleo) receberam isenção ou redução de tributos
(KUME, 1990, p. 3).22 Algumas medidas mais liberalizantes na política aduaneira
que haviam sido tomadas entre 1964 e 1967 foram revertidas após o choque do
petróleo. Para se ter uma idéia, a tarifa nominal média para bens manufaturados
elevou-se de 57%, em 1973, para 99%, em 1980.
20
Decreto-Lei n. 1334, de 25/06/1974 e Decreto-Lei n. 1364, de 18/11/1974. Para maiores
detalhes sobre depósito prévio, ver glossário.
21
Inicialmente, o prazo de depósito prévio foi fixado em 6 meses, sendo posteriormente
prorrogado para um ano. Resolução n. 331 do Banco Central do Brasil, de 16/07/1975.
22
Vale ressaltar que esse indicador de Kume tem um viés embutido. Grande parte das
alíquotas de importação colocava preços proibitivos para a comercialização. Nesse caso, serviam
como “inibidores” do comércio. Conseqüentemente, quase a totalidade das trocas seriam
realizadas sob alíquotas menores do que a padrão.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
39
A política comercial do período Geisel (1974 - 1979) inseriu-se em um bojo
maior de políticas econômicas com o objetivo de promover o desenvolvimento
nacional. O lançamento do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II
PND), em 1975, é um marco nesse aspecto. Diante da crise do petróleo, o governo
decidiu lançar um plano que consistia em grandiosos programas de investimentos,
cujas metas eram: a) substituição das importações de produtos industriais básicos
(como aço, alumínio, cobre, fertilizantes, produtos petroquímicos) e de bens de
capital, e b) rápida expansão da infra-estrutura econômica (energia hidráulica e
nuclear, produção de álcool, transportes e comunicações) (BAER, 1996, p. 110).
Muitos economistas consideram o II PND como um dos programas responsáveis
pelo aumento da crise da dívida externa brasileira na década de 1980, haja vista
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que seu custo elevou-se substancialmente com o aumento dos juros nos EUA no
início dos anos 1980. A dívida externa líquida do Brasil (dívida bruta menos as
reservas) subiu de US$ 6,2 bilhões em 1973 para US$ 31,6 bilhões em 1978, o
que representa um aumento anual de 38,7%; em março de 1979, dois terços da
receita com exportações era gasto com o serviço da dívida (juros mais
amortizações) (BAER, 1996, p. 112).
O ajuste ao choque com suporte de financiamento externo e sem reduzir o
crescimento da economia foi uma opção do governo baseada nas concepções
desenvolvimentistas acerca da origem dos déficits no balanço de pagamentos. Nas
palavras de Mário Henrique Simonsen, ministro da Fazenda entre 1974 e 1979,
“Mesmo que toda a dívida externa brasileira tivesse sido causada pelo crescimento
econômico ocorrido desde a primeira crise do petróleo, um cálculo elementar
mostra que a estagnação teria sido a opção mais ineficiente. Em 1973, um ano de
grande euforia, o produto real do Brasil atingiu somente 62% do produto real
alcançado em 1981, que foi um ano de recessão. No final do ano passado (1981), a
dívida externa não chegou nem a 25% do PIB, o que significa que, se fôssemos
obrigados a pagar toda dívida externa em um ano, ainda estaríamos em uma
situação melhor do que se tivéssemos estagnado de 1973 em diante. E nosso
sacrifício duraria somente um ano e não uma geração inteira” (SIMONSEN, 1982,
pp. 5-6).
Críticas posteriores ao II PND e à forma como o governo Geisel respondeu
aos desequilíbrios no balanço de pagamentos foram importantes para que se
consolidasse um pensamento favorável à reforma da política comercial brasileira
no final dos anos 1980. Muitas dessas críticas, que ganharam espaço institucional
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
40
no CPA, que conduziu a reforma tarifária de 1988, eram convergentes com
princípios expressos no regime multilateral de comércio. Até antes da Rodada
Uruguai, a participação do Brasil nesse regime havia sido pautada pela defesa da
clivagem Norte-Sul e pela recusa em fazer ofertas que desmantelassem seu
sistema de proteção à indústria doméstica.
Além disso, até o final da década de 1980, a forma mais recorrente de o
Brasil superar crises no balanço de pagamentos foi através da imposição de
restrições às importações. Havia também um grande número de políticas que
objetivavam direcionar os recursos da economia para setores que ajudassem a
diversificar a estrutura produtiva. Ao longo da década de 1980, período em que a
economia estagnou, muitos foram os que imputaram o desequilíbrio econômico às
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políticas perseguidas durante o modelo substitutivo de importações, quando o
ajuste doméstico foi postergado por tempo demasiadamente longo, elevando o
custo da dívida externa e acentuando a drenagem de recursos externos tão
combatida pela Cepal.
A próxima seção desse capítulo apresentará brevemente os princípios
liberais expressos no GATT, assim como as exceções a tais princípios
incorporadas ao regime de comércio, com o intuito de mostrar que, durante a
Rodada Uruguai de negociações, o Brasil incorporou uma série desses conceitos
em sua política comercial, desmantelando o sistema de proteção que havia sido
construído com base nos conceitos desenvolvimentistas.
2.3.
O regime liberal de comércio
O regime multilateral de comércio vigente à época da Rodada Uruguai
(1986-1994) nasceu em outubro de 1947, com a assinatura do Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio (GATT). Inicialmente, o GATT era um dos acordos que
comporia a Organização Internacional do Comércio (OIC), instituição criada em
março de 1948 pela assinatura da Carta de Havana. A OIC era constituída por uma
série de regras com o objetivo de regular as políticas nacionais relacionadas ao
comércio internacional, e incluía áreas como barreiras tarifárias e não-tarifárias,
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
41
reconstrução econômica e desenvolvimento, comércio de commodities, entre
outras. Entretanto, o Congresso norte-americano não aprovou a Carta de Havana,
e não sendo ratificada a criação da OIC, o acordo que passou a regular as relações
comerciais foi o GATT (FINLAYSON; ZACHER, 1981).
O GATT tem sido tratado por diversos autores como um regime
internacional. O conceito clássico de regimes, apresentado por Krasner, o define
como um conjunto de princípios, normas, regras e padrões de procedimento para o
qual as expectativas dos atores convergem (KRASNER, 1982). Nesse trabalho,
adotarei essa categoria analítica para tratar o GATT por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, a literatura sobre regimes o tem considerado como uma
variável interveniente na explicação dos resultados em política externa. Assim, a
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assinatura de um acordo pelo Brasil (GATT) não determina sua ação conforme os
princípios estabelecidos nesse instrumento, embora favoreça tal forma de
comportamento. Isso permite argumentar que o Brasil, por um longo período de
tempo, foi parte contratante do GATT, mas não incorporou seus princípios na
formulação da política comercial, como de fato ocorreu até o final da década de
1980. Dessa forma, a adequação brasileira ao regime multilateral de comércio
deu-se de maneira gradual, razão pela qual os países em desenvolvimento são
acusados de terem atuado como “caronas” nas primeiras rodadas de negociação,
haja vista que foram favorecidos por reduções tarifárias sem terem feito ofertas
significativas.23 Uma segunda razão para o uso da teoria de regimes é que os
conceitos de que tratam são, em grande medida, semelhantes àqueles utilizados
neste trabalho, tornando possível e interessante a investigação da forma como
determinados princípios, normas, crenças causais que compõem o regime
comércio passaram a reger a formulação da política comercial em arenas
decisórias do Ministério da Fazenda e Ministério das Relações Exteriores.
Desde a sua criação, os princípios do GATT passaram por mudanças
substantivas. Nessa parte do trabalho serão brevemente apresentadas algumas
normas norteadoras do GATT, assim como exceções que foram inicialmente
23
Esse debate tem que ser ponderado, porque grande parte dos produtos que sofreram
reduções tarifárias nas primeiras rodadas não era do interesse do Brasil (ABREU; FRITSCH,
1987).
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
42
incorporadas ao regime ou que passaram a constituí-lo ao longo das sucessivas
rodadas de negociação. De especial importância são os princípios que passaram a
compor o sistema multilateral de comércio devido à atuação do Brasil e de outros
países em desenvolvimento, principalmente durante a Rodada Tóquio de
negociações (1973-1979).
2.3.1.
Princípios centrais: não-discriminação e liberalização progressiva
Um dos elementos fulcrais do GATT consiste na aplicação do princípio da
não-discriminação. O compromisso básico do acordo com esse fundamento está
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expresso no tratamento incondicional de nação mais favorecida entre os
participantes, conforme definido em seu Artigo I:1:
“Qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma Parte
Contratante em relação a um produto originário de ou destinado a qualquer outro
país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produtor similar, originário
do território de cada uma das outras Partes Contratantes ou ao mesmo destinado”.
A cláusula de nação favorecida refere-se a preferências que um país concede
a outro, que deverão automaticamente ser estendidas às demais partes
contratantes, sem discriminação.
O princípio da não discriminação está presente também na concepção de
que produtos importados devem receber tratamento semelhante aos nacionais. O
Artigo III:4 do GATT estabelece que
“Os produtos de território de uma Parte Contratante que entrem no território de
outra Parte Contratante não usufruirão tratamento menos favorável que o
concedido a produtos similares de origem nacional, no que diz respeito às leis,
regulamento e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra,
transporte, distribuição e utilização no mercado interno”.
A não discriminação deve, inclusive, reger a adoção de medidas restritivas
ao comércio caso o país esteja com dificuldades no balanço de pagamentos. Nesse
caso, poderão ser adotadas restrições à importação, desde que sejam aplicadas
igualmente a todos os países.
A norma da liberalização é um segundo princípio fundamental do GATT,
embora o regime não obrigue os participantes a reduzirem suas barreiras às
importações. A forma de negociação multilateral prevista no acordo, baseada na
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
43
cláusula da nação mais favorecida, deixou espaço para que países pudessem obter
acesso para suas exportações nas rodadas de negociação sem oferecer, como
contrapartida, a abertura de seus mercados. Isso ocorre porque qualquer benefício
oferecido a uma parte contratante deve ser automaticamente estendido aos demais
países.24
Além da não discriminação e liberalização progressiva, o regime de
comércio comporta dois outros princípios, menos importantes para o propósito da
dissertação, mas que também têm sido constantemente lembrados nas negociações
comerciais: a norma da reciprocidade e a concepção de que a proteção deverá ser
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feita apenas por meio de tarifas.
2.3.2.
Integração reticente:
derrogações
a
participação
brasileira
em
busca
de
Apesar da importância dos princípios expressos no GATT, o regime de
comércio comporta exceções; algumas que foram aceitas desde o início pelos
Estados contratantes, outras que passaram a fazer parte do regime ao longo de
sucessivas rodadas de negociação. Cabe observar, pelo propósito da dissertação, a
forma com a diplomacia comercial brasileira lidou com tais princípios, os
argumentos que utilizou em sua defesa ou em sua crítica, e como sua participação
modificou-se entre a Rodada Tóquio, que terminou em 1979, e a Rodada Uruguai,
iniciada em 1986.
Especialmente durante a década de 1970, houve a proliferação de uma série
de exceções ao regime, devido à atuação de países desenvolvidos e também de
países em desenvolvimento. Ruggie (1982) argumenta que tais exceções faziam
parte do compromisso assumido no pós-Segunda Guerra, quando a liberalização
24
A Rodada Kennedy (1964-1967), foi um marco na liberalização, tendo alcançado
redução tarifária média próxima a 39%, afetando produtos que contabilizavam cerca de 75% do
valor do comércio mundial à época (ABREU; FRITSCH, 1987, p. 100). A Rodada Kennedy
também inovou na maneira como as reduções eram negociadas. Em vez de ofertas por produto, os
países poderiam oferecer reduções lineares (por exemplo, uma redução média de 30% sobre todas
suas linhas tarifárias), aumentando o número de produtos sujeitos à liberalização. No entanto,
conforme ressalta estudo da UNCTAD (1968), o corte tarifário médio em produtos de interesse
dos países em desenvolvimento foi da ordem de 20%, enquanto àqueles que interessavam aos
países desenvolvidos foi entre 35% e 40%. Além disso, foram realizadas maiores concessões a
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
44
comercial foi atrelada à adoção de políticas domésticas de pleno emprego. No
entanto, há autores (LIMA, 1986) que sustentam que tais “retrocessos” na
liberalização durante os anos 1970 foram resultado de dois movimentos: de um
lado, a inclusão ao regime dos países “recentemente” industrializados (NICs)25,
haja vista que apresentaram demandas de tratamento especial e diferenciado; e, de
outro, a resposta dos países desenvolvidos, em especial dos EUA, à emergência
desses novos exportadores, por meio da introdução de acordos aplicáveis apenas
aos signatários (como os códigos sobre barreiras não tarifárias). No entanto, devo
fazer a ressalva que tais “retrocessos” só ocorreram com a adesão de NICs ao
sistema de comércio porque alguns desses países defendiam uma agenda
específica no regime comercial, contrária à reciprocidade completa. No caso
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brasileiro, essa agenda era informada por teóricos da Cepal e do Instituto Superior
de Estudos Brasileiros (Iseb) com forte influência sobre as instituições de política
comercial. Caso tais países advogassem a liberalização comercial como forma de
alavancar o desenvolvimento, o regime liberal teria se aprofundado, como ocorreu
ao final da Rodada Uruguai. Por isso é importante estudar as concepções teóricas
que perpassaram a formulação da política comercial brasileira no período.
Uma das exceções inicialmente adotadas no GATT diz respeito à
possibilidade dos membros integrarem áreas de livre comércio ou esquemas
preferenciais por meio da adoção de tarifas de importação que não se estendem a
todos Estados partes do acordo. A condição para a criação de tais regimes é que as
tarifas adotadas pelo bloco não fossem, em geral, superiores às aplicadas
anteriormente à criação do arranjo.26 Ao longo da década de 1970, foram
difundidas algumas práticas comerciais particularmente relevantes ao Brasil com
base nessa exceção do GATT à cláusula da nação mais favorecida.
Uma segunda derrogação importante ao Acordo Geral, incorporada ao
regime na década de 1970, refere-se ao Sistema Geral de Preferências (SGP). Sob
o SGP, permitiu-se que alguns produtos originários de países em desenvolvimento
acessassem mercados dos países desenvolvidos isentos do pagamento de tarifas,
produtos processados do que a semi-processados ou primários, que compunham a maior parte da
pauta exportadora do Brasil à época.
25
“Recentemente” refere-se à década de 1970. O termo em inglês é Newly Industrialized
Countries (NICs).
26
Artigo XXIV:5 do GATT 1947.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
45
ou a tarifas inferiores às aplicadas sob o princípio da nação mais favorecida. Sua
adoção deu-se, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), durante a 2ª
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD),
em Nova Déli, em 1968. A idéia já havia sido apresentada e defendida por Raúl
Prebisch, primeiro secretário-geral da UNCTAD, na primeira conferência, em
1964. Após sua adoção no âmbito da ONU, as partes contratantes do GATT
concordaram, em 1971,em conceder uma exceção de dez anos ao princípio da
nação mais favorecida (mais especificamente, ao Artigo I do GATT) para a
implementação do SGP, permitindo que membros acordassem bilateralmente
esquemas preferenciais (LIMA, 1986, p. 155). Posteriormente, em 1979, as partes
contratantes adotaram a “Cláusula de Habilitação” que criou uma exceção
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permanente à cláusula da nação mais favorecida, permitindo que determinados
países conferissem acesso preferencial sob o SGP.27
A adoção do SGP foi resultado da diplomacia comercial de países em
desenvolvimento (PEDs) que, à medida que passaram a integrar o regime de
comércio, começaram a demandar tratamento especial e diferenciado, sob o
argumento de que o processo de desenvolvimento periférico requeria exceções à
reciprocidade nas negociações comerciais. Nesse sentido, outra grande conquista
dos PEDs foi a inclusão, em 1965, da Parte IV (Comércio e Desenvolvimento) do
GATT, que contemplava o Princípio da Reciprocidade Relativa (Artigo
XXXVI:8). Por esse princípio foi reconhecido aos países em desenvolvimento o
direito de se beneficiarem de concessões tarifárias sem que fizessem ofertas
correspondentes.
Vale ressaltar que a diplomacia econômica do Brasil durante esse período
advogou intensamente a incorporação do tratamento especial e diferenciado ao
regime do GATT. O argumento defendido enquadrava-se na idéia de que o
comércio, se realizado livremente, não tende à equalização dos fatores de
produção. Pelo contrário, existe a tendência à concentração de riqueza no Centro,
já que o preço dos produtos da Periferia se deteriora com o passar do tempo,
conforme defendido pelo pensamento desenvolvimentista. Nesse sentido, os PEDs
necessitam de tratamento diferenciado, pois o processo de desenvolvimento se
27
Decisão 26S/203 do GATT. Para mais informações sobre o SGP,
http://www.unctad.org/Templates/Page.asp?intItemID=2309&lang=1. Acesso em 20/11/2008.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
46
traduz em desequilíbrios no balanço de pagamentos, o que também requer, em
alguns momentos, a imposição de restrições às importações. Esse argumento, em
grande medida desenvolvido por Prebisch, foi por ele mesmo levado ao âmbito
multilateral quando lutou pela adoção do SGP na UNCTAD.
O argumento da Cepal de que o comércio internacional tem efeitos
distintos para países do Centro e da Periferia forneceu também substrato teórico
para a concepção política de uma divisão Norte – Sul do mundo. Tendo em vista
que a divisão internacional do trabalho levava ao aprofundamento das
desigualdades entre os dois grupos de países, era justificável a articulação política
do Sul para a apresentação de demandas aos países do Norte. Dessa forma, além
da clivagem Leste – Oeste haveria uma divisão que agregava o Terceiro Mundo
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em torno de demandas comuns, que passaram a ser vocalizadas em órgãos
multilaterais. Cruz (1989, p. 74) sustenta que a Política Externa Independente do
Brasil, entre os anos 1963-1964,
“põe ênfase na transformação das estruturas econômicas internacionais,
assimilando as construções teóricas da Cepal e conferindo realidade à ‘frente
única´ que, no governo JQ [Jânio Quadros], não havia mais sido do que uma
palavra de ordem”.
Esse autor argumenta ainda que o governo Goulart (1961-1964) havia
transcorrido sob o signo das ‘reformas’, que posteriormente foram transpostas
para o discurso diplomático, que se voltou para a crítica das assimetrias do
comércio internacional. Da mesma maneira, Lima (2008, p. 63), afirma que
“ainda que heterogêneos em seus respectivos regimes políticos e na ordem
econômica interna, [os países da Periferia] se assemelhavam no que dizia
respeito a sua inserção internacional”.
De fato, a partir de 1971 a doutrina sustentada pelo Brasil nos foros
multilaterais passou a ser a da “segurança econômica coletiva”, que deslocava
para o confronto material entre os países do Norte e do Sul as possibilidades da
paz internacional. Após o primeiro choque do petróleo, a diplomacia brasileira fez
à comunidade internacional uma proposta de “Acordo Geral” entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento com o intuito de mudar as regras injustas do
GATT e tornar operativo o conceito de segurança econômica coletiva. A proposta
foi apresentada pelo chanceler Azeredo da Silveira pela primeira vez em 1975, na
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
47
VII Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU, e posteriormente foi
sustentada no GATT e na UNCTAD. Como não teve sucesso, a iniciativa perdeu
força no ano seguinte (CERVO; BUENO, 2002, p. 403). No âmbito do GATT, no
final de 1976 o Itamaraty propôs uma reforma do sistema de comércio, por meio
do que viria a ser chamado de “Framework Group” (FARIAS, 2007, p. 90). O
mesmo Azeredo da Silveira havia ocupado o posto de “chairman” do G-77 na fase
final da II UNCTAD, ocorrida em Nova Déli, em 1968 (LIMA, 1986, p. 162).
Nessa ocasião, o Brasil retirou algumas restrições que havia colocado à ata da I
UNCTAD, como forma de “corrigir” o ímpeto americanista da política externa
brasileira que havia sido adotado nos primeiros anos que se seguiram ao golpe
militar de 1964.
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A influência do pensamento da Cepal na diplomacia econômica brasileira
também foi importante para a defesa dos acordos de estabilização de preço dos
produtos de base, durante as décadas de 1950 e 1960. Tais acordos eram
fundamentados na tese de Prebisch de deterioração dos termos de troca, segundo a
qual o preço dos produtos primários tende a reduzir-se em comparação com os
produtos industrializados. Dessa forma, seria necessária a adoção de acordos com
vistas a diminuir a oscilação do preço das commodities. Conforme exposto pelo
embaixador Luis Lindenberg Sette (1996, p. 250),
“quando começou a ser disseminada, a tese [de deterioração dos termos de troca] já
fazia parte do repertório conceitual dos economistas que surgiam no Brasil e em
muitos países da América Latina. Logo espalhou-se, por via das Nações Unidas,
entre as diplomacias e governos do mundo em desenvolvimento”.
Em grande medida, o pensamento da Cepal se refletiu em outros âmbitos da
diplomacia econômica do Brasil nos anos 1970. No GATT, a concepção de que o
comércio internacional tem efeitos distintos para o Norte e para o Sul foi
incorporada nos dispositivos que permitem aos membros a imposição de
restrições à importação com vistas a evitar desequilíbrios no balanço de
pagamentos.28 O Brasil utilizou esse instrumento principalmente a partir de
meados de 1974, após o primeiro choque do petróleo, quando foram impostas
restrições diversas às importações para que não houvesse desequilíbrio em suas
28
Artigo XII e XVIII(B) do GATT. O segundo artigo se aplica apenas aos países em
desenvolvimento, que têm desequilíbrios nas contas externas devido à “instabilidade nos termos de
seu intercâmbio”.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
48
contas externas (KUME, 1990, p. 3). Tais restrições também foram adotadas pelos
países desenvolvidos. Grande parte da literatura considera que as barreiras foram
levantadas como forma de salvaguardar o balanço de pagamentos dos déficits
causados pelo choque de petróleo de 1973-74, da mesma forma como ocorreu no
Brasil (FINLAYSON; ZACHER, 1981, p. 284). O que muda com relação aos
países em desenvolvimento é que estes justificavam a imposição de restrições
com base no argumento de que desequilíbrios no balanço de pagamentos são um
resultado natural do processo de desenvolvimento, e não um reflexo momentâneo
do choque externo. O reconhecimento da diferença entre o processo de
desenvolvimento da Periferia e do Centro está expresso no GATT. O acordo
contém dois artigos que permitem restrições devido a problemas de balanço de
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pagamentos. O artigo XII possibilita a introdução de restrições em casos de
redução significativa de reservas e aplica-se sobretudo a países desenvolvidos,
enquanto o artigo XVIII(B) aplica-se para países em desenvolvimento, nos quais
desequilíbrios externos ocorrem devido à “instabilidade nos termos de seu
intercâmbio”. Durante a Rodada Uruguai, EUA e Canadá pressionaram
fortemente para a revisão desse dispositivo de diferenciação entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento.
Não quero estender-me muito sobre o assunto, mas é importante dizer que a
disseminação das idéias da Cepal para a corporação diplomática do Brasil
resultou, em grande parte, da atuação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(Iseb) junto a instituições do Estado (LIMA, 1994, p. 35; BRESSER-PEREIRA,
2004, p. 49). O Iseb era formado por um grupo de intelectuais que, nos anos 1950,
desenvolveu uma visão coerente acerca do processo de industrialização e
desenvolvimento do Brasil. O grupo, liderado por Hélio Jaguaribe, dedicou-se
durante alguns anos (entre 1953 e 1956) à publicação da revista Cadernos do
Nosso Tempo. O Iseb passou a integrar o aparelho de Estado durante a gestão do
presidente Café Filho (1954-1955), em 1955, e permaneceu no governo
Kubitschek como “o principal centro do pensamento nacionalista e
desenvolvimentista brasileiro” (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 50). Para a prática
diplomática, um passo importante do grupo foi a publicação da obra O
nacionalismo na atualidade brasileira, de Hélio Jaguaribe, em 1958. Nesse livro,
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
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Jaguaribe defende a tese de que os investimentos estrangeiros estavam se
dirigindo para a indústria e dando impulso ao processo de industrialização do
Brasil.29 Nas palavras de Bresser-Pereira,
“a perspectiva política do Iseb, centrada na idéia de revolução nacional, e a
perspectiva econômica da Cepal, fundada na crítica da economia neoclássica,
somavam forças, forneciam uma base sólida, no início da década de 50, para que
um poderoso e inovador grupo de intelectuais pensasse o Brasil e a América
Latina” (2004, p. 52).
Logo após sua fundação, o instituto conduziu um curso regular, com
duração de um ano, com o objetivo de formar elites, no qual era disseminada a
visão de que a industrialização brasileira havia sido impulsionada com a
Revolução de 1930, sob a égide da industrialização substitutiva de importações.
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A atuação do Iseb junto ao MRE ocorreu, segundo Cheibub (1985, p. 124),
em um período de fortalecimento institucional do Itamaraty. Dessa maneira,
houve a consolidação do pensamento da Cepal entre importantes membros da
corporação diplomática, exatamente no período em que o Itamaraty se afirmava
como burocracia autônoma do Estado brasileiro, responsável pela condução dos
assuntos externos. Esse movimento foi importante para a manutenção da política
comercial brasileira prevalecente até a Rodada Uruguai.
Apenas para ilustrar a forma como foram difundidas práticas comerciais que
escapavam à cláusula da nação mais favorecida entre as décadas de 1960 e 1970,
em 1955 cerca de 90% do comércio realizado entre os membros do GATT ocorria
sob níveis tarifários que eram aplicados a todos os membros; com a difusão de
regimes preferenciais, esse número reduziu-se para 77% em 1970, e 65% em 1980
(FINLAYSON; ZACHER, 1981, p. 281). Os números apontados por Finlayson e
Zacher devem ser ponderados com a indicação da forma como o regime
multilateral incorporou um crescente número de países ao longo dos anos. Em
1960, no início da Rodada Dillon, 26 países eram parte do GATT. Em 1970,
durante a Rodada Tóquio, esse número saltou para 102; e em 1986, na Rodada
Uruguai, o regime passou a incorporar 123 países. Interessante é o fato que o
29
Essa obra revelou divergências dentro do Iseb, pois alguns membros não aceitavam a
idéia de que o capital estrangeiro pudesse levar à industrialização. A ala mais à esquerda da
instituição defendia que o processo de industrialização era eminentemente nacional.
Integração reticente: a política comercial brasileira entre 1950 e 1990
50
durante a Rodada Tóquio os países em desenvolvimento defenderam,
principalmente por meio do G-77, a adoção de uma série de benefícios e exceções
ao regime.
Alguns anos depois, durante a Rodada Uruguai, essa participação dos PEDs
modificou-se sensivelmente. O aumento numérico dos países em desenvolvimento
foi acompanhado pela adoção de reformas liberais nesses mesmos países e pelo
enfraquecimento da coalizão terceiro-mundista nos foros de negociação, de
maneira muito distinta da forma como haviam atuado durante períodos anteriores.
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2.4.
Conclusão
Para sintetizar o argumento trazido até aqui, a participação brasileira e de
outros países em desenvolvimento no regime de comércio começou a dar-se de
maneira mais ativa durante a Rodada Tóquio de negociações, quando demandas
por uma nova ordem econômica internacional foram transplantadas às
negociações comerciais multilaterais. Nesse momento, sua atuação foi informada
pelas concepções da Cepal sobre o desenvolvimento, que forneceram insumos
teóricos tanto para a diplomacia econômica do Brasil quanto para a consolidação
do seu regime de importações.
Em grande medida, a participação do Brasil até a Rodada Uruguai foi
favorecida pela sinergia resultante do grande consenso sobre o desenvolvimento
econômico, cuja aplicação à política econômica era facilitada por instituições
relativamente autônomas do Estado brasileiro, como a Cacex, a CPA e o
Ministério das Relações Exteriores. Além disso, o sucesso desse modelo, que
logrou diversificar o parque produtivo brasileiro e atingiu níveis de crescimento
superiores a 10% no seu período áureo, favoreceu sua permanência até meados da
década de 1980.
O consenso dá sinais de enfraquecimento quando o Brasil começa a passar
por crises no balanço de pagamentos e do setor externo no final da década de 1970
e início dos anos 1980. Em alguns momentos, chegaram a transparecer
divergências domésticas sobre utilidade de programas para a promoção do
desenvolvimento, como foi o desentendimento entre o chanceler Azeredo da
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Silveira e o ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen, em 1979, acerca do
comprometimento do Brasil com a retirada de subsídios às exportações (LIMA,
1986, p. 210). No entanto, nesse período o dissenso não foi forte o suficiente para
alterar o modelo de desenvolvimento incutido durante um grande espaço de tempo
na política comercial do Brasil.
Nos próximos capítulos será analisada a desestruturação do modelo de
política comercial baseado nas idéias desenvolvimentistas, que teve início quando
as instituições de política comercial foram ocupadas por grupos com novas idéias
acerca do desenvolvimento econômico. Durante a década de 1980, após anos
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seguidos de crise do setor externo, começaram a surgir críticos ao modelo de
desenvolvimento perseguido até então. A atuação desses grupos na burocracia
brasileira ajuda a compreender as reformas econômicas implementadas pelo Brasil
durante o período.
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a política comercial brasileira entre 1950 e 1990