DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ:
A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM MACHADO
SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
Thiago Sant’Anna1
Resumo
Nesse artigo é apresentada uma reflexão sobre o ensino jurídico no Brasil com
base nas ideias levantadas no livro “Ensino Jurídico e Mudança Social”, de
Antônio Alberto Machado. Ressaltam-se os desdobramentos que o autor chamou de crise estrutural vivenciada pelo profissional do Direito, assim como os
sinais por ele levantados para a construção de um modelo de ensino jurídico
voltado para a mudança social.
Palavras-chave: ensino jurídico, ideologia, crise dos paradigmas, indústria
cultural.
DIALOGUE BETWEEN THE MASTER AND THE STUDENTTEACHER: THE BLADE OF THE WORDS OF A MACHADO
ABOUT LAW SCHOOL IN BRAZIL
Abstract
This article presents a reflection about the law school teaching in Brazil, based
on the ideas shown in the book: “Ensino Jurídico e Mudança Social” by Antonio
Alberto Machado. It is given emphasis to situations, named by the author as
the structural crisis lived by lawyers besides other indicators to construction
1
Thiago Sant’Anna é mestre em História pela Universidade de Brasília, foi professor de Sociologia Geral e Jurídica no curso de Direito do Centro Universitário UniAnhanguera e, atualmente, é professor da Universidade Federal de Goiás/ Campus
Cidade de Goiás.
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
63
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
of a model of law teaching that considers the social change.
Key-words: law school teaching, ideology, crisis of paradigms, cultural industry
Introdução
Se eu não acreditasse que uma transformação social relevante se iniciasse
com uma mudança nos sistemas educacionais, decisivamente, o livro, “Ensino Jurídico e Mudança Social”, do autor Antônio Alberto Machado, não me
flertaria. Mas, ao reconhecer o meu lugar de fala, como professor de História
e Sociologia em cursos de graduação em Direito, justifico, a partir da minha
paixão pela sala de aula e pelas minhas expectativas quanto às contribuições
ao curso de Direito que pretendo possibilitar aos alunos que encontro todos
os semestres, a vontade em compartilhar as reflexões profícuas que esse livro
me trouxe sobre a situação do ensino jurídico no Brasil. Objetivo, desse modo,
apresentar idéias do autor da referida obra mediante o meu particular ponto
de vista, ao falar sobre ensino jurídico na simples condição de professor de
disciplinas de ciências sociais dos períodos iniciais da graduação em Direito.
Esclareço que, longe de ocupar o lugar de autoridade do autor referido na questão, pretendo discorrer sobre as ideias daquele autor a partir da minha leitura
e problematizar a questão do ensino jurídico, atualmente.
Não há como negar que a atualidade representa um momento significativo
para que nós escutemos vozes novas sobre o ensino jurídico brasileiro, de modo
a nos permitir avaliar de forma crítica as condições do modelo pedagógico dominante, que forma os nossos juristas2. Em grande parte do Brasil, sobretudo
na região do Centro-Oeste, onde ainda impera o modelo Dogmático/Positivista
do ensino jurídico no final dos anos 1990 e início do século XXI. Dessa forma,
apresentaremos as idéias desenvolvidas por Machado na sua referida obra.
2
Da mesma forma que o autor, foi utilizado o termo “jurista” na acepção que identifica “todo aquele que trabalha com as questões jurídicas, quer profissional, quer como
cientista ou estudioso”. MACHADO, Op. cit., p. 15.
64
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
Em meio a uma crise paradigmática (FREITAS, 1995) que abala as ciências humanas, desestabiliza as “verdades” e que denuncia as redes de poder
escondidas atrás da enunciação de uma verdade, fica sob suspeita pensar que o
ensino produtor das “verdades jurídicas”, o Direito, pudesse passar ileso nesta
condição de ruptura ao sustentar um modelo Dogmático/Positivista em pleno
século XXI. Aproximo, então, das palavras de Michel Foucault, o qual diz que
“A verdade” está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e
apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT,
2001, p. 14). Em que medida, a persistência das “verdades” do modelo dogmático/positivista no ensino jurídico atual traduz uma situação de “efeito de
poder” e sinaliza uma crise neste ensino?
Sem possibilidades de alcançar a resposta de forma imediata, mas na
tentativa de apresentar caminhos para contornar uma crise estrutural vivida
pelo profissional do Direito – crise de identidade, crise da perda do seu papel
político frente à incapacidade de intervenção social, crise de legitimidade dos
operadores jurídicos, crise advinda da descaracterização dos paradigmas científicos da ciência do Direito –, o autor, Antônio Alberto Machado, advoga em
defesa de uma investigação crítica e dialética acerca do ensino jurídico. Tal
investigação, segundo o mestre, se daria atrelada a um processo de inscrição
do sujeito no campo do conhecimento e a uma metodologia interdisciplinar,
onde o Direito pudesse dialogar com as outras disciplinas como a Sociologia,
a Política, a Economia, a História, etc.
No intuito de animar tal perspectiva, Machado divide o seu livro em três
partes, sendo a primeira voltada para uma reflexão sobre o fenômeno do Direito
enquanto um produto ideológico, situado em uma determinada sociedade no
tempo e no espaço; a segunda, relacionada à situação do ensino jurídico no
Brasil e os desdobramentos da crise que o circunda; por último, a terceira que
sugere rumos para uma transformação do ensino jurídico no Brasil, a partir de
uma proposta curricular inovadora. Repartição esta seguida também por mim
neste texto.
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
65
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
O Direito como Instância Ideológica e a Crise no Ensino Jurídico
Frente à realidade na qual se encontra o ensino jurídico no Brasil, identificada pelo autor, como caracterizado pela mercantilização do ensino superior,
pela despolitização do ensino jurídico, pelo seu perfil quase que exclusivamente
tecnicista e pela cultura3 jurídica liberal, burguesa, individualista, formalista e
burocrática, reproduzida na nossa sociedade, cabe-me indagar até que ponto
nós, professores de cursos de graduação em Direito, somos capazes de fazer do
ensino jurídico um instrumento de mudança social e não apenas de manutenção
do status quo e reiteração/reforço desta cultura jurídica? Para refletirmos sobre
isso, Antônio Alberto Machado lança seu primeiro argumento, dizendo que não
podemos deixar de reconhecer que o Direito é uma instância ideológica4, ou
seja, é dotado de uma dimensão valorativa que expressa sempre “o desejo, as
ambições, os propósitos, as preocupações e , enfim, os interesses de quantos se
envolverem com o fenômeno jurídico, quer para instituí-lo, quer para estudá-lo,
quer para aplicá-lo, quer ainda para a ele se submeter” (MACHADO, 2005,
p. 39).
Dessa forma, faço a interpretação de que o Direito se manifesta-se como
um campo ideológico, pois, está atrelado às relações de poder que privilegiam
uma classe hegemônica, cujos interesses, desejos, ambições e valores ficam
ocultos diante da construção de um discurso de neutralidade. Isto é, a defesa de
que a nossa ciência jurídica impõe uma forma de conhecimento neutra, objetiva
e livre de influências valorativas, não visa mais do que garantir e salvaguardar
3
Entendemos “cultura” como uma rede de significações, ou seja, como um conjunto de formas
de compreensão de um objeto, no caso o “Direito”. Trata-se, portanto, do conhecimento e dos
significados do Direito na nossa sociedade em determinado contexto. Neste caso, o Direito é
percebido como efeito do modelo liberal, burguês e individualista de organização da nossa
sociedade.
4
Gostaria de esclarecer que, apesar dos questionamentos levantados ao conceito de “Ideologia”
na atualidade apresentados por intelectuais vinculados às correntes pós-modernas mediante o
avanço da noção de “Representação Social”, optei por manter o conceito da maneira utilizada
por Antônio Alberto Machado. Sobre o conceito de “Representação Social” ver: JODELET,
Denise (org). As Representações Sociais. (Trad. Lílian Ulup). Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.
66
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
desejos, ambições, propósitos, interesses .
Ao seguirmos por tal argumentação, no primeiro capítulo, o autor Antônio
Alberto Machado constrói uma compreensão do Direito como um dos mecanismos repressivos de dominação na sociedade capitalista, cujos elementos
essenciais são a normatividade e o poder exercido pelo Estado. E para obter
eficácia no funcionamento de tal discurso ideológico, a engenhosa oração da
legalidade (“a lei acima de tudo”), constrói a idéia de um aparente consenso
representante da “vontade geral” do povo.
Posso dizer, portanto, que compreender o Direito como um fenômeno
ideológico é imprescindível para não somente decifrar os seus efeitos na sociedade como a atribuição de um caráter legal, legítimo e universal ao projeto
da classe dominante, mas também, fortalecer a construção de um pensamento
jurídico crítico capaz de desestabilizar a situação e mudar a maneira como se
dá e como se percebe o ensino jurídico pelos professores e pelos estudantes.
Digo “desestabilizar” porque isso implica reconhecer, como o autor, que
5
[...] todo discurso que se venha a fazer sobre o direito e sobre o seu
método, por mais que se almeje fazê-lo de modo objetivo, com as
conhecidas pretensões de verdade científica, sempre será um discurso
ideológico, ou seja, um discurso que ao mesmo tempo em que visa
descrever o fenômeno jurídico busca também produzir convencimento, ou até mesmo motivar as pessoas num ou noutro sentido em
relação a esse fenômeno (MACHADO, 2005, p. 50).
Ao tentar superar tal perspectiva no ensino jurídico, Antônio Machado
questiona os modelos baseados na teoria de Kelsen, segundo o qual “acabou
desprezando, no âmbito da ciência jurídica, qualquer concepção que viesse a
encarar o fenômeno jurídico como “realização da justiça”, ou dos ideais do
direito natural” (MACHADO, 2005, p. 55). Ao privilegiar um método lógico5
Esta concepção de que as ciências constroem o discurso da neutralidade como forma de mascarar as relações de poder que a subsidiam, vai ao encontro das reflexões do filósofo Michel
Foucault. Sobre o assunto ver: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de
Janeiro: NAU Editora, 2003. Ver também: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16ª.
Edição. (Trad. Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2001.
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
67
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
formal hipotético, o normativismo de Kelsen bem como o de outros positivistas
inspirados no seu pensamento, “sempre acabaram por negar o valor reflexivo
do discurso jurídico e o seu compromisso com a realização de valores no plano
concreto e histórico” (MACHADO, 2005, p. 55).
Portanto, são estes modelos, para mim, que na pretensão de convencer pela
“verdade científica”, ocultam sua dimensão ideológica bem como as relações de
poder que atravessam, presidem e informam tais noções e práticas jurídicas ao
reproduzir os interesses econômicos das elites. Ou seja, apoiando-me na leitura
de Machado, o ensino jurídico não é menos que um verdadeiro “aparelho ideológico”, ao difundir valores, objetivos e aspirações das elites econômicas, sociais
e políticas (ALTHUSSER, 1985). Assim, segundo o mestre, para recuperar a
dimensão axiológica e social do Direito, cabe-nos fazer uma revisão de seus
paradigmas bem como promover uma reforma no ensino jurídico no Brasil6.
Em seguida, Machado faz uma leitura da condição do ensino jurídico no
Brasil para melhor fundamentar sua hipótese de que este vivencia, no momento,
uma crise. Ao considerar que a proposta contemporânea das universidades no
Brasil pauta-se pela realização do tripé ensino-pesquisa-extensão, objetivando
fomentar o desenvolvimento e a democracia, tal instituição apresenta-se em crise
devido ao descaso das autoridades para com o ensino público e ao privilégio
concedido para com o ensino privado.
Tal crise, segundo o autor, Antônio Alberto Machado, manifesta-se tanto no
plano interno das instituições com a burocratização, o carreirismo, a erudição
elitista, o corporativismo, o oportunismo, a mediocridade, etc quanto no âmbito
externo com o descompasso entre os objetivos da universidade e os anseios
da sociedade, o precário financiamento por parte do Estado, a deficiência na
autonomia real, a elaboração de projetos que não atendem as necessidades
primordiais da sociedade, os obstáculos para o acesso da maioria da população,
6
O autor, felizmente, não deixa de apontar grupos e linhas de pesquisa que têm dedicado mais
atenção a elaboração de uma nova forma de ensino e prática jurídica como as correntes críticas
do “Direito achado na rua” (UnB), coordenado pelo professor José Geraldo de Souza Júnior;
a “Nova Escola Jurídica Brasileira”, de Roberto Lyra Filho; o “Direito Insurgente” (Rio de Janeiro), o “Uso Alternativo do Direito” (Rio Grande do Sul) e o “Núcleo de Estudos de Direito
Alternativo” (NEDA) da Unesp (Franca).
68
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
etc (MACHADO, 2005, p. 78).
Fora isso, o visível enfraquecimento das universidades públicas em contraposição ao crescimento desordenado das universidades privadas, que acrescento,
em exceção àquelas que gozam de respeito e tradição, acabou por efetivar, com
respaldo da OMC e do Consenso de Washington, a transformação da educação
em uma mercadoria cara e pouco acessível. Tal situação desdobrou-se em um
ensino superior de caráter utilitarista, voltado para o aprendizado de um saber
técnico/mecânico, para o distanciamento das questões sociais, bem como para
a despolitização e alienação da maioria dos estudantes e profissionais.
Doravante, Machado avança no seu argumento ao constatar que esta realidade da educação superior brasileira serve de lugar comum para produção
de um tipo de ensino jurídico que atenda às necessidades do capitalismo, da
ideologia do Estado e das elites políticas e econômicas. Ou seja, mantém o
sistema ao cumprir a mesma função quando da formação dos primeiros cursos
jurídicos no Brasil do século XIX: formar a elite jurídica e política do Estado.
No entanto, Antônio Alberto Machado esclarece que apesar destas continuidades, houve uma mudança visível na formação do jurista do século XIX
para o jurista dos séculos XX e XXI. Enquanto que no Brasil Imperial, o
ensino superior jurídico era pautado pelas diretrizes científicas, crítica, humanística e interdisciplinar, uma vez que o currículo destas era apresentado com
mais disciplinas filosóficas e menos disciplinas dogmáticas, a realidade atual
caracteriza-se pela desqualificação acelerada mediante o modelo normativo e
tecnicista, ao servir mais para formação de operadores técnicos do Direito do
que para formação de pensadores do Direito.
A propósito, reconheço a importância de se formar “operadores jurídicos”
para aplicação do Direito, pois, a natureza dos conflitos jurídicos demanda decisões, vontades e exercício de poder. Do contrário, não poderíamos resolver
os conflitos jurídicos apenas a partir do exercício do saber, do ilimitado debate
de ideias, levando-nos a uma multiplicidade de opiniões e teses que mais
apontariam rumos, questões e problemas do que respostas. No entanto, o fato
de privilegiar um currículo voltado para a operação técnica em detrimento do
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
69
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
exercício do saber, do ilimitado debate de ideias, das reflexões e críticas, produz
efeitos à formação dos nossos juristas, o que não posso deixar de partilhar com
Machado quando afirma que, atualmente, é visível que a política de massificação
do ensino jurídico consumou essa tendência de privilegiar matérias e disciplinas
tecnológicas nas grades curriculares das faculdades de direito, em detrimento
daquelas que apresentam um conteúdo mais humanístico e reflexivo. Tais
opções curriculares podem ser entendidas até mesmo como parte da estratégia
de despolitização do jurista e atrofia do seu senso crítico, como ingredientes
necessários para garantir a inteira subserviência dos profissionais do direito aos
reclamos de mercado (MACHADO, 2005, p. 112).
Tal realidade é percebida pelo autor, Antônio Alberto Machado, a partir
da predominância do modelo normativo e tecnicista do ensino jurídico onde
há o predomínio das aulas-conferências ou também chamadas aulas expositivas nas quais o professor ocupa sempre o “lugar de fala”, com a ausência de
problematizações, críticas e reflexões mediante a participação dos estudantes,
a adoção de uma literatura jurídica formada por manuais e compêndios reproduzindo um saber massificado e tecnicista e a inexistência de uma formação
pedagógica e didática, voltada para alunos interessados na carreira de docente.
Tais encaminhamentos alimentam um ensino despolitizado, alienado, enfim,
conhecido pela historiografia sobre a história do ensino jurídico como legalista,
liberal e burguês7.
De tal forma, não deixa de ser ideológico o discurso de que vivenciamos
uma democratização do ensino superior no Brasil e, principalmente, do ensino do Direito, com a proliferação em massa de cursos jurídicos. Tal situação
reproduz e esconde, apenas, um modelo em crise.
A “Indústria Cultural” e a Fabricação do Senso Comum Jurídico”
7
Sobre o assunto ver: WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Revista e
atualizada. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Ver também: WOLKMER, Antônio Carlos.
Fundamentos de História do Direito. 3ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey: 2006.
70
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
Para Antônio Alberto Machado, vivenciamos no campo do ensino jurídico brasileiro, o que Marcuse, Adorno e Horkheimer, pensadores da Escola de
Frankfurt, traduziu como “indústria cultural”. Trata-se do processo de reorganização e transformação das produções artística e cultural em mercadorias a
serem consumidas no mercado, dentro dos quadros do sistema capitalista. Ou
seja, o acesso a estes bens passa a ser feito pelo capital. Tal processo, segundo
o professor Machado, pode ser identificado na prática do ensino jurídico no
Brasil como sendo uma “Indústria Cultural do Direito”, viabilizada por meio
de aspectos como: a privatização do ensino jurídico no Brasil marcada por um
alto grau de mercantilização deste, sendo criadas escolas de Direito em qualquer bloco de concreto; a massificação das obras de Direito, tanto impressas
quanto veiculadas em CD-ROM, caracterizadas por resumos sobre a dogmática
jurídica; os eventos culturais jurídicos supostamente científicos, mas de cunho
empresarial; a proliferação dos “cursinhos jurídicos” que são outro aspecto
da mercantilização do ensino jurídico, oferecendo desde preparatórios para
concursos até cursos de especialização.
Como “autênticos negócios empresariais” (MACHADO, 2005, p. 117),
os “cursinhos” chegam a utilizar estratégias de marketing próprias do cenário
mercadológico empresarial, ao utilizar da velha mensagem do discurso competente, isto é, “o discurso que conduz ao ingresso no mercado de trabalho”.
Tudo isso, para Machado, contribui para reforçar o modelo normativo e a
cultura tecnicista e despolitizada que marca o ensino jurídico no Brasil. Ou
seja, percebo isso como a forma despolitizada e tecnicista pela qual o direito
é percebido por docentes e discentes. Deparamo-nos, portanto, com a dupla
face da Indústria Cultural do Direito, assinalada por Antônio Alberto Machado:
Essa indústria cultural do direito, se, por um lado, exibe a impressão
de que se verificou um saudável aumento da produção científica na
área do conhecimento jurídico, pela oferta de todo tipo de obra e pela
suposta democratização da cultura, com o aumento das possibilidades
de acesso a livros, cursos e eventos culturais; por outro, representa
também uma espécie de massificação da cultura jurídica, com a
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
71
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
conseqüente queda da qualidade da produção científica nessa área
e com o impressionante aumento dos produtos repetitivos e superficiais, que atendem muito mais às exigências do mercado do que,
propriamente, às necessidades culturais dos bacharéis e profissionais
do direito (MACHADO, 2005, p. 119).
No decorrer do seu trabalho, Machado levanta também outros elementos
profundos na crise do ensino jurídico, marcada pelo esgotamento dos próprios
paradigmas científicos da ciência do Direito. Dessa forma, por trás da crise
do ensino jurídico existe, entretanto, uma crise epistemológica da Ciência do
Direito no qual o normativismo como objeto, o raciocínio lógico-formal como
metodologia, o liberalismo como sustentáculo ideológico e a mentalidade positivista como base do saber jurídico não respondem mais satisfatoriamente a
realidade atual. Ou seja, segundo o autor, Antônio Alberto Machado, a Ciência
do Direito, inscrita atualmente na chamada Crise dos Paradigmas, não consegue
mais proporcionar diretrizes e rumos novos para o trabalho científico, não fornece mais respostas adequadas aos problemas científicos da contemporaneidade,
desdobrando-se em um conjunto de equívocos que exigem nada menos que a
busca por novos paradigmas (MACHADO, 2005, p. 122).
Esta crise tem como matriz o esgotamento do ainda presente paradigma
normativista kelseniano, sustentado pelo mito da neutralidade e da pureza
científica. Segundo Antônio Alberto Machado, ao ter seu mérito em emprestar
à Ciência do Direito uma metodologia e uma reflexão filosófica, Hans Kelsen
acabou por reduzir o Direito à norma, desdobrando-se em uma situação de
positivismo lógico que se mostra questionável nos dias de hoje.
Tais opções, por parte dos atuais “operadores do Direito” e pelos seus
subsídios buscados na teoria positivista jurídica de Hans Kelsen, fabricaram,
nas palavras de Machado, o chamado “senso comum” do jurista que acabou
por reforçar a necessidade de uma reprodução mecânica da legalidade em detrimento da reflexão e da crítica (MACHADO, 2005, p. 134-135). Esse “senso
comum jurídico” tem como principal impacto a neutralização do comportamento
político do bacharel e do jurista, subserviente a um pensamento acrítico ante
72
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
as ideologias que produzem o saber jurídico e também não-histórico ao tomar
a norma como algo ideal.
Assim, os reflexos desta crise epistemológica são visíveis na crise do
ensino jurídico mediante o predomínio da leitura e ensino acríticos e não reflexivos dos códigos, desvinculados de suas condições sociais e econômicas,
reproduzindo, no plano jurídico, uma lógica de controle e dominação social,
mantenedora do status quo atual.
Uma Alternativa: o Ensino Jurídico Voltado para Mudança Social
No entanto, Antônio Alberto Machado não é um autor que apresenta apenas as falências do sistema, mas se mostra também um pesquisador engajado,
politicamente, ao propor rumos para produzir um ensino jurídico comprometido
com a mudança social. Tais sinais estão voltados, para ele, na emergência dos
chamados “novos direitos”, preocupados sobretudo com as relações interdisciplinares e com as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais que
esses direitos encerram. Daí, não há como deixar de relacionar o Direito com
o problema da globalização, da cidadania, dos Direitos Humanos, do acesso à
justiça, do Meio Ambiente, da dignidade humana, das relações de trabalho, da
bioética, do urbanismo, da questão agrária, da democracia, do papel do Estado,
etc. São estes rumos que nos permitem tomar o Direito como “instrumento de
liberdade contra todas as formas de opressão” (MACHADO, 2005, p. 195)
e não como mantenedor do status quo, pois, sabe-se que os vínculos entre o
Direito, a ética e a política são indispensáveis para a realização da democracia.
O Direito deve, portanto, servir como ferramenta transformadora das relações sociais incompatíveis com a realidade atual (MACHADO, 2005, p. 199).
Tais mudanças, para Antônio Alberto Machado, passam pela transformação das
práticas do advogado em direção a uma prática profissional atuante na defesa
do interesse público, e pelo alcance da condição quarto poder pelo Ministério
Público (e não somente três poderes – executivo, legislativo e judiciário),
capaz de atuar na sociedade civil em proveito desta e pela configuração da
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
73
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
Magistratura como poder independente, apto a rejeitar os interesses de poder
que muitas vezes perpassa as suas decisões.
Além disso, o autor chama a atenção para a veiculação no campo do Direito dos chamados interesses difusos ou direito difusos como sendo aqueles
cuja titularidade pertence a uma “série indeterminada de sujeitos”, a satisfação
destes significa a satisfação de todos e a “lesão que atinge um indivíduo atinge,
ao mesmo tempo, toda a coletividade” (MACHADO, 2005, p. 227). Ou seja,
segundo Celso Fiorillo, são interesses e direitos que não pertencem a ninguém,
são indivisíveis ao serem utilizados por todos e cuja realização serve para a
manutenção da qualidade de vida e dignidade de todos8. Tal perspectiva significa
também reconhecer a dimensão política de todas essas áreas que englobam o
Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente, Direito Penal,
Direito dos Idosos e dos Portadores de Necessidades Especiais.
Enfim, todos esses campos jurídicos são áreas que nos exigem atuações
politicamente conscientes, voltadas para a satisfação dos interesses da sociedade civil e para a desestabilização das relações de poder. Possibilidades estas
ampliadas, sobretudo a partir da Constituição de 1988 que
[...] confere aos aplicadores do direito meios e legitimidade para
zelar pelo efetivo respeito aos Poderes Públicos, aos serviços de
relevância pública e aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias à sua garantia; ao mesmo
tempo, assegura, como função institucional, a promoção da ação
popular e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos
(MACHADO, 2005, p. 241).
Tais inovações no campo do Direito não podem desassociar-se das mudanças correspondentes no campo do ensino jurídico. Isto implica, para o
mestre, mudanças nestas “empresas” de produção e fabricação de advogados
8
Exemplo de Direito Difuso ocorre com o Direito Ambiental como sendo de titularidade indeterminada, de uso comum de todos e sadio à qualidade de vida. Para mais informações ver:
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental. 6 ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 2005.
74
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
e advogadas como romper com a formação tecnicista e despolitizada, fruto
do predomínio da dogmática que nos tornam frágeis diante das hegemonias.
Implica, também, alimentar nossa função social na defesa da justiça social
com a adoção de tarefas imprescindíveis para os juristas como: criticar permanentemente os valores predominantes no seu contexto social em que atua,
realizar uma contínua adaptação da técnica aos valores da sociedade e assumir
compromissos com o meio social em que atua (MACHADO, 2005, p. 259).
Assim, Machado descreve o que seriam pontos de uma nova proposta pedagógica para um curso de Direito, seguindo as diretrizes do art. 2º, § 1º, e art. 4º
da Resolução nº 9/2004 do CNE/MEC: formação humanística e enciclopédica,
formação interdisciplinar, capacidade de compreensão e operação criativa do
direito, formação axiológica voltada para o desenvolvimento do senso ético
profissional, aptidão para equacionar problemas e conflitos, capacidade para
situar-se no mundo globalizado, capacidade para conciliar o exercício da vida
profissional com o exercício da cidadania (MACHADO, 2005, p. 277). Tais
indicações procuram realizar a inserção de disciplinas novas que normalmente
se encontravam fora da grade tradicional, diminuir a carga horária de disciplinas
correspondentes ao grupo do direito privado e aumentar a das disciplinas de
eixo fundamental bem como a das disciplinas dos “novos direitos” (difusos,
coletivos, sociais, individuais indisponíveis, etc) (MACHADO, 2005, p. 278).
Com certeza, Machado reconhece que tais propostas de mudanças não
são fáceis de serem implementadas, pois dependem de mudanças no conteúdo
programático das disciplinas e no perfil do corpo docente, no envolvimento dos
alunos e alunas e de um acompanhamento pedagógico voltado para a implementação dos objetivos. Ele ainda reconhece que o modelo atual voltado para
o privilégio das universidades particulares em detrimento das públicas é um
grande obstáculo à mudança porque tais propostas são mais difíceis de serem
efetivadas no âmbito das primeiras (MACHADO, 2005, p. 285). E o resultado
deste modelo pedagógico acaba por alimentar a construção de uma cultura
jurídica formalista, centrada no estudo das normas, descritiva, despolitizada e
reforçadoras das relações de poder predominantes.
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
75
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
Dessa forma, a mudança na prática jurídica vigente no Brasil implica uma
mudança na mentalidade jurídica que se inicia no processo educacional, com a
substituição do paradigma de ensino jurídico tradicional para um novo paradigma voltado para a justiça, para a democracia e para o comprometimento com
a sociedade civil. Estas seriam, possivelmente, algumas estratégias voltadas
para a construção de um modelo de ensino jurídico voltado para a libertação
e emancipação dos sujeitos. Acreditamos que a sua viabilidade implica escutar vozes novas sobre a educação jurídica no Brasil, dentre as quais, Antônio
Alberto Machado está incluído. Tais vozes também passam por aquelas que
anunciam novas perspectivas no Direito, por aquelas vindas de outras áreas do
conhecimento, bem como por aquelas para quem o ensino jurídico é destinado.
Ao redirecionarmos nosso olhar para a experiência do ensino jurídico, em
destaque às idéias de Machado, espero que tais reflexões possam problematizar
e nortear práticas de ensino e aprendizagem mobilizadas em uma graduação em
Direito. As reflexões de Antônio Alberto Machado possibilitam-nos denunciar
que o arsenal de conhecimentos acionados em uma graduação em Direito estão
assentados em “economia política” de verdade que serve, segundo Foucault,
a “uma constante incitação econômica e política”, é “objeto, de várias formas,
de uma imensa difusão e de um imenso consumo”, “circula nos aparelhos de
educação ou de informação” e é “produzida e transmitida sob controle, não
exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos”. 9 As verdades precisam ser, portanto, relativizadas, pois são histórica e
culturalmente situadas. Dessa forma, não há como desvencilhá-las de interesses
de poder. Algumas perguntas são, assim, indispensáveis para aqueles/as que se
dedicam a refletir sobre o ensino jurídico no Brasil: a quem interessa a continuidade deste sistema no ensino jurídico? Quem se beneficia dele? Isso porque
se trata de reconhecer que existem visões de mundo, valores e ideologias que
preenchem os conhecimentos jurídicos mobilizados, ensinados e aprendidos
nas faculdades de Direito do Brasil. Mercantilizado, o ensino jurídico passou
9
FOUCAULT, MICHEL. Verdade e Poder. In FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 16.
ed.. (trad. Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 13.
76
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Thiago Sant’Anna
a ser despolitizado, identificado com uma cultura jurídica liberal, burguesa,
individualista, formalista e burocrática, além de se desdobrar em um saber
técnico/mecânico, distante das questões sociais. Engolido pela “Indústria Cultural do Direito”, o ensino jurídico busca, enfim, esconder suas limitações e sua
crise, às vezes imperceptível para professores/as e alunos/as. Assim, retomar a
condição de “aprendizes”, explorar outras literaturas – como nos possibilitou
o livro e a lâmina das palavras do “mestre”, Antônio Alberto Machado – pode
ser um caminho profícuo para que professores/as e alunos/as afiem suas críticas
e façam do ensino jurídico um poderoso instrumento de transformação social.
Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. 2. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1985.
ARRUDA JR, E. L. de. Ensino jurídico e sociedade. São Paulo: Acadêmica,1989.
BASTOS, A. W. O ensino jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2000.
COELHO, T. O que é indústria cultural. 5. ed. São Paulo: brasiliense, 1981
(Coleção Primeiros Passos).
FARIA, J. E. (org.). A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Fabris,
1987.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 16. ed. (trad. Roberto Machado).
Rio de Janeiro: Graal, 2001.
FOUCAULT, MI. Verdade e poder. In: ________. Microfísica do poder. 16.
ed. (trad. Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 1-14.
FREITAS, J. V. de. Algumas considerações sobre a crise paradigmática nos
quadros da sociedade contemporânea. In: Silva, Z. L. de. (org.). Cultura
histórica em debate. São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
77
DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM
MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
LYRA FILHO, R. O que é direito? 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
LYRA FILHO, R. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília: Obreira,
1981.
MACHADO, A. A. Ensino jurídico e mudança social. Franca: Unesp,
2005.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 1982.
SOUSA JÚNIOR, J. G. (org). O direito achado na rua. Brasília: Editora da
UnB, 1988.
WOLKMER, A. C. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo:
Acadêmica, 1991.
78
Revista Anhangüera v.9 n.1 jan./dez. p.61-76
2008
Download

DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR