“PARA NÃO FICAR SENTADO À BEIRA DO CAMINHO”: UMA ANÁLISE DO ÁLBUM CARLOS, ERASMO... (1971) Antônio Augusto Pereira da Silva - Universidade de Passo Fundo1 A década de 1970 consiste em uma época extremamente profícua para a música no país, caracterizando-se como um tempo de experimentações dentro da esfera musical e de intensas manifestações políticas e culturais. Embora tenha sido um dos momentos mais violentos da ditadura militar, o período abarca o surgimento de obras conceituadas do portfólio musical brasileiro, dentre eles Carlos, ERASMO... (1971), do cantor e compositor Erasmo Carlos. Influenciado pela cultura hippie2 e pelo soul, o disco consagrou uma transformação na perspectiva musical de Erasmo Carlos, reconhecido até então como intérprete da Jovem Guarda. Nesse sentido, este trabalho propõe a análise das letras e melodias que compõem o álbum, as quais evidenciam a produção, difusão e recepção no campo cultural brasileiro. Para tanto, apresenta metodologicamente a pauta no estudo do discurso divulgado pelas composições, assim como na obra do artista, seu ideário e intencionalidades. Ainda, faz uso da análise das repercussões do álbum no período de seu lançamento pela Philips3, subsidiando as interpretações da crítica musical para com o disco. Analisando o contexto histórico no qual se insere a obra, articulado com estudos sobre a “Música Popular Brasileira” do período – não enquadrada como uma determinada categorização na música nacional, mas vista como um conjunto amplo de gêneros e estilos que representam a música brasileira – referenciada na pluralidade musical que o disco apresenta, bem como as distintas abordagens temáticas passíveis da compreensão significativa pelo público amplo do país. A rotulação do estereótipo de Música Popular Brasileira – MPB4 –, tomado por seu caráter acadêmico, servia como um critério de adesão a ideias que marcavam a política de 1 [email protected] Adeptos da contra-cultura e descendestes dos beatniks, os hippies eram, inicialmente, jovens americanos que contestavam os valores tradicionais de sua sociedade. Eram adeptos do amor livre e da não violência, e adotavam um modo de vida comunitário. O termo hippie foi utilizado pela primeira vez em 6 de setembro de 1965, num artigo do jornalista Michael Smith, em um jornal de São Francisco. (SAGGIORATO, 2012, p. 21). 3 Selo musical, conhecido na época por seu catálogo de MPB, Samba e Bossa Nova (FROÉS, Marcelo. In: ERASMO CARLOS, 2005). 4 Apreciada principalmente pelas classes médias urbanas no país, a denominação do gênero musical de Música Popular Brasileira – MPB – da metade posterior da década de 1960, consistiu numa fusão de dois movimentos 2 determinado período, contra o qual se insurgia o movimento tropicalista5. Mas o que é a MPB e quando é adequado utilizar tal expressão? Em um caso como esse, as qualificações mais embaraçam a percepção social do campo musical do que as esclarecem, pois não resistem a uma avaliação meticulosa para considerações realizadas adequadamente (OLIVEIRA, Bernardo. In: MARTINS et al., 2008). Para a melhor compreensão da dificuldade acerca das inúmeras caracterizações que compõem a terminologia musical, exemplificamos a utilização de rótulos quando qualificamos alguma obra de determinado artista, nesse caso o álbum Carlos, ERASMO..., de Erasmo Carlos – nosso objeto de análise neste artigo – nomeando-o como pertencente ao gênero de Música Popular Brasileira. O disco banca essa discussão alterando a compreensão sintética sobre a “Música Popular Brasileira”, uma vez que, naquela altura, a sigla MPB – “engajada” politicamente e oriunda da segunda geração da Bossa Nova – era o oposto do que o disco apresentou. Ainda, o compositor Erasmo Carlos ultrapassa todas essas questões restritivas e sincretiza o disco com uma série de canções de diversos gêneros, oriundas de estilos musicais nacionais e estrangeiros, contendo alusões diretas à cultura do presente e, especificamente nesse disco, à cultura de massas, à contracultura e a mudanças de comportamento juvenil (Ibidem). A música em geral tem um papel fundamental na influência comportamental das posturas sociais e fenômenos sociológicos. Carvalho afirma que se a música, os cantos e as danças populares representassem uma mercadoria, o Brasil possivelmente representaria o maior exportador mundial, acentuado pela pluralidade de gêneros, estilos e reinvenções “abrasileiradas”. Entretanto, essa vasta riqueza cultural não se expressa apenas pelos ritmos variados, como o samba e o baião. Isso porque, além de melodia, harmonia e ritmo, a trajetória da música brasileira apresenta letras que se confundem com a história do próprio país que, por intermédio da indústria musical, torna-se acessível à população por meio da vendagem de discos, do rádio, da televisão e da internet (CARVALHO, 2008). Nesse sentido, musicais até então divergentes, a Bossa Nova e o engajamento folclórico dos Centros Populares de Cultura – CPC – e da União Nacional dos Estudantes – UNE – o primeiro defendendo a sofisticação musical e o segundo a fidelidade à música de raiz brasileira. Seus propósitos se misturaram e, com o golpe militar de 1964, os dois movimentos pretensamente se tornaram uma frente ampla cultural contra o regime militar, adotando a sigla MPB na sua bandeira de luta, com representativa conotação política (CRAVO ALBIN, 2002). 5 O movimento conhecido como Tropicália aconteceu entre 1967 e 1969, indo até meados de 1972, com uma mistura de manifestações tradicionais da cultura brasileira e uma inovação estética radical. O tropicalismo surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira. A Tropicália tinha relação com o movimento antropofágico, que buscava absorver a cultura de fora e mesclar com o popular, uma maneira de diversificar, variando a cultura popular e erudita, promovendo experimentações e inovações estéticas na música, criando um novo produto artístico. Apesar de “Carlos, ERASMO...” não ser caracterizado pelo gênero tropicalista, é inegável a influência que o mesmo exerceu no álbum, sendo que o Tropicalismo consiste como um dos responsáveis por “ensinar” a fazer música de qualidade sem se prender a conceitos puristas e aderir à música popular (CALADO, 1997). a Música Popular Brasileira, não encarada com um rótulo “além de sua relevância como manifestação estética tradutora de nossas múltiplas identidades culturais, apresenta-se como uma das mais poderosas formas de preservação da memória coletiva e como um espaço social privilegiado para as leituras e interpretações do Brasil” (CRAVO ALBIN, 2013). Seja com Eduardo das Neves satirizando "O Aumento das Passagens" (1909), ou Noel Rosa criticando o modo de vida burguês com “Onde Está a Honestidade?” (1933), o campo musical brasileiro sempre abordou uma linha de composições críticas em relação à contemporaneidade, como forma de expressar-se insatisfeito com determinada situação. A segunda metade da década de 1960, com os Festivais da Música Popular Brasileira6 – quando se destacaram artistas como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré – é considerada rica em expoentes do período da canção “engajada” e ligada a movimentos sociais. Derivado desse turbilhão de canções da década posterior, na primeira metade de 1970 – período de lançamento do álbum Carlos, ERASMO... – foram produzidos inúmeros discos emblemáticos na música brasileira, caracterizando a época como uma das mais simbólicas e profícuas da música no país. Erasmo Carlos, um artista muitas vezes apresentado somente por seu papel desempenhado na Jovem Guarda, apresenta um álbum de transformação e “atualização” musical, sincretizando múltiplos gêneros e estilos que, “para não ficar sentado à beira do caminho”, parte para um plano musical mais ousado. “É Preciso Dar Um Jeito Meu Amigo”: da Jovem Guarda a Carlos, ERASMO... Popularizado pelo nome artístico de Erasmo Carlos, Erasmo Esteves conta com discos cada vez mais cultuados e canções frequentemente resgatadas em regravações atuais. O cantor e compositor ajudou a intensificar alguns dos momentos mais popularescos da história da música brasileira em seu período jovem-guardista, sendo que ainda possui obra suficiente para não permanecer vinculado unicamente a este gênero. Erasmo estreou solo com o disco A Pescaria (1965), apresentando uma sonoridade mais ligada ao surf rock, sendo que as faixas do disco, à exceção da canção “Minha Fama De Mau", que teve acompanhamento dos Jet Black´s, foram gravadas com a banda Renato e 6 O rótulo/gênero MPB ficou marcado pela realização de inúmeros festivais que ocorreram entre os anos de 1965 e 1985 – transmitidos pela TV Excelsior, TV Record, TV Rio e Rede Globo – revelando inúmeros intérpretes, compositores e instrumentistas ao grande público, tal como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, entre outros (JUNIOR, 2008). seus Blue Caps. Posteriormente, em Você me Acende (1966), seu segundo disco, gravado com a banda The Fevers, Erasmo apresenta a canção “Gatinha Manhosa”, marcando as características pessoais de sua música enquanto artista jovem-guardista. Em 1967 o programa Jovem Guarda (1965-1968)7 continuava em alta, sendo exibido todas as tardes de domingo na TV Record de São Paulo. Nesse mesmo ano, Erasmo gravou dois discos: O Tremendão (1967), contendo o hit “Vem Quente que Eu Estou Fervendo”, e seu primeiro álbum homônimo Erasmo Carlos (1967), sendo esse, ainda, o primeiro disco que não conta com composições em parceria com Roberto Carlos, no entanto, o álbum apresenta uma versão do sucesso internacional “Mellow Yellow”, do cantor britânico Donovan, assinada por Roberto. Em seu quinto disco, igualmente denominado Erasmo Carlos (1968), o cantor se aproxima do soul music – gênero que cresceria em intensidade nos anos seguintes – e apresenta Tim Maia participando dos vocais da canção "Baby Baby" e compondo a faixa “Não Quero Nem Saber". No ano seguinte Erasmo lançou o compacto “Sentado À Beira Do Caminho" e posteriormente o disco Erasmo Carlos e os Tremendões (1970), com a canção "Coqueiro Verde", aproximando-se da filosofia samba-rock de Jorge Ben e o Trio Mocotó, sendo que o disco ainda encerrou a passagem do cantor pela gravadora RGE (FRÓES, Marcelo. In: ERASMO CARLOS, 2005). A convite da Phonogram, Erasmo Carlos estreou pela Philips e lançou o álbum Carlos, ERASMO... cercado de nomes conhecidos da cena musical, como Rogério Duprat, Manoel Barebein, Caetano Veloso, Jorge Ben, Lanny Gordin, Sérgio Dias, Arnolpho “Liminha” Filho, Ronaldo “Dinho” Poliseli, seu parceiro musical Roberto Carlos, entre outros. O disco apresenta uma transformação na perspectiva musical do cantor e compositor, tanto no campo temático e melódico quanto na própria estética – influenciada nitidamente pela cultura hippie – afastando-o da ingenuidade do período jovem-guardista8. Erasmo desempenha importante papel na história da música, do rock ao samba, do soul ao pop, que posteriormente a Carlos, 7 Amparado por gravadoras, campanhas publicitárias e influenciados pela “beatlemania”, o movimento jovemguardista repercutiu rapidamente em termos de vendagens e da popularização dos seus ídolos. O programa de auditório levava ao Teatro Record centenas de jovens atraídos pelo trio Roberto, Erasmo e Wanderléa, atingindo, no ápice da sua popularidade, três milhões de espectadores só em São Paulo. Mais do que um fenômeno televisivo, a Jovem Guarda impulsionou o lançamento de discos, roupas e diversos acessórios, e todo um comportamento jovem daquele período estabeleceu-se a partir do programa e de seus apresentadores (PUGIALLI, 2006). 8 Apesar do gênero musical cantado pelo movimento jovem-guardista ser o rock e as bandas tocarem com guitarra elétrica – instrumento mal visto pela sociedade brasileira – em uma alusão direta a música dos Beatles, e por consistir em um fenômeno midiático, a Jovem Guarda, de modo geral, era encarada com restrições por setores da crítica, que, juntamente com o público engajado da Bossa Nova, a considerava alienada (PUGIALLI, 2006). ERASMO..., gravou outros discos básicos em sua carreira, como Sonhos e Memórias (1972) e Banda dos Contentes (1976). “Para não ficar sentado à beira do caminho”: As estradas distintas da “Velha Jovem Guarda” Se para o filósofo alemão Arthur Schopenhauer: “vista pelos jovens, a vida é um futuro infinitamente longo, vista pelos velhos, um passado muito breve”, para os ídolos jovemguardistas o fim do programa Jovem Guarda, caracterizando o fim do movimento, acentuou caminhos distintos e inesperados aos artistas da agora “velha jovem guarda”. Enquanto alguns cantores mantiveram-se identificados com o rock – como Erasmo Carlos – a grande maioria enveredou para o gênero de música romântica9, com forte apelo popular. No início da década de 1970 se intensificou a diferença entre os principais membros da Jovem Guarda. Roberto partia para um público adulto abordando outro estilo musical, Wanderléia abordava um repertório diferente de seus discos anteriores, agregando músicas como "Back in Bahia", de Gilberto Gil em seus discos, e Erasmo, após o álbum Erasmo Carlos e os Tremendões encontrava-se sem gravadora, sem programa de televisão e consequentemente, sem hits radiofônicos. Nesse contexto, o músico recebeu um convite da Phonogram – atual Universal Music – para estrear pela Philips, com intenção de compor e gravar um novo álbum. Erasmo registrou então Carlos, ERASMO... (1971), um disco que serviria como uma afirmação de sua múltipla identidade musical, de suas pretensões futuras e de suas capacidades como artista (ALEXANDRE, 2009). Carlos Erasmo... destila influências estrangeiras absorvidas por Erasmo Carlos ao longo de sua carreira e transforma em algo próprio, o qual se identifica como “brasileiro” – análogo aos discos dos Mutantes e dos Novos Baianos. A maturação musical se intensifica na influência do soul music, valendo-se dos mais variados gêneros de que dispunha sem, no entanto, declarar-se tropicalista ou lançar manifesto. No entanto, não se pode deixar de referenciar que Erasmo Carlos simpatiza, respeita e faz uso de referências do movimento tropicalista na obra, sendo que chegou a declarar que “o Tropicalismo é a Jovem Guarda adulta e politizada, é a música brasileira universal. A Jovem Guarda havia cumprido o seu papel. Outras estradas se abriam e eu não ia ficar sentado à beira do caminho” (CARLOS, 9 Inúmeros foram os casos da migração do rock para música romântica, e o maior exemplo migratório caracteriza-se por seu personagem principal, Roberto Carlos, que reformulou seu repertório musical e se tornou um cantor e compositor basicamente romântico, algo que não modificou desde então (PUGIALLI, 2006). 2009, p. 197). As portas abertas pelo Tropicalismo com o emblemático trabalho do discomanifesto Tropicália ou Panis et Circensis (1968) – e os subsequentes discos de seus participantes – caracterizaram um aumento significativo na produção musical do país e elevaram imensamente o nível de produção dos discos nacionais. No entanto, nem o movimento tropicalista produziu o espírito sinóptico e satírico que Carlos, ERASMO... musicalmente sincretiza a partir da própria cultura brasileira. Para Oliveira, expoentes do tropicalismo como Gilberto Gil e Caetano Veloso ainda encontravamse “acorrentados” aos movimentos das vanguardas10 europeias, e a Tropicália, em sua síntese, ainda era intensamente erudita e incapaz de produzir um álbum livre da proposta a qual se enquadrava em torno do “problema Brasil”, fundamentada principalmente pela obra do artista Hélio Oiticica e da herança antropofágica de Oswald de Andrade e de outros modernistas, mas ainda nitidamente entusiasmada pelo cinema de Glauber Rocha (OLIVEIRA, Bernardo. In: MARTINS et al., 2008). Em vista de numerosos fatores para a constituição do disco, realmente torna-se plausível a afirmação de que Erasmo Carlos obtinha mesmo condições para concretizar Carlos, ERASMO... em 1972. O disco conta com contribuições de Rogério Duprat11 e a produção de Manoel Barebein12 e do próprio Erasmo, à exceção de “Ciça Cecília”, que foi produzida pelo jornalista e produtor musical Nelson Motta. Os inúmeros arranjos do disco ficaram por conta de Chiquinho de Moraes. Entre os músicos que gravaram o álbum estão Arnolpho “Liminha” Filho, Ronaldo “Dinho” Poliseli Leme e Sérgio Dias Baptista, músicos então vinculados aos Mutantes. No que diz respeito a influências, Carlos, ERASMO... aguça a percepção e deixa ao alcance do ouvinte o sistema de ideias que cercam a obra. Referenciando um disco pontual para a “atualização musical” da carreira artística de Erasmo Carlos, acompanhando o que acontecia no campo artístico musical do país – desde o aparecimento dos Mutantes, a misturas 10 O termo “movimento de vanguarda” aplica-se a qualquer movimento que proponha uma nova visão da arte. No caso brasileiro, propondo a reformulação de conceitos de música brasileira estratificados, sincretizando desde ritmos regionalistas a influências externas. No entanto, costuma-se associar "vanguarda" aos movimentos ocorridos no período pós-Impressionismo e anterior à pós-modernidade, classificando em vanguardas positivas e negativas, embora existam movimentos, como o expressionismo, que não cabem em tal divisão (ARGAN, 1992). 11 Rogério Duprat, além do trabalho estreito com os Mutantes, foi regente da maioria dos discos do movimento tropicalista, e seus arranjos aliaram erudição, ousadia e inventividade. Na década de 1970, o maestro iniciou a carreira de produtor musical, assinando trabalhos para Chico Buarque, Nara Leão, Jair Rodrigues, Gal Costa e Rita Lee entre outros (OLIVEIRA, 2010). 12 Manoel Barebein produziu grandes nomes da MPB, como Toquinho e Chico Buarque. Em 1967, foi contratado pela Philips, e veio a produzir Carlos, ERASMO... em 1971. Em 1968, produziu o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis, o mais emblemático trabalho coletivo da música popular brasileira – marco do experimentalismo musical no Brasil da época e no mundo todo (OLIVEIRA, 2010). sonoras propostas por Jorge Ben, passando por ápices de som e atitude de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa – destacando que a presença de três membros dos Mutantes na ficha técnica do disco, além de Lanny Gordin13 na guitarra, assinala esse esforço pretendido por Erasmo. Levando em contas as limitações que restringem um artista que assina com um selo de peso como a Philips, Carlos, ERASMO... rompe com a postura assumida pelas grandes gravadoras da época, extrapolando rotulações sem hesitar na utilização de referências estrangeiras, de modo que a década de 1970 acentuou a aproximação dos horizontes da música nacional com as produções realizadas fora do país. No campo musical “o mundo ainda era dividido em ‘lá fora’ e ‘aqui’, mas as distâncias começavam a diminuir.” (BAHIANA, 2006, p. 276). Para Martins “se os discos anteriores podem ser vistos como um ensaio, agora Erasmo apresenta um espetáculo”, e mostra a naturalidade com a que se relacionava com os múltiplos gêneros musicais que compõem o disco, do rock ao samba, do folk a psicodelia, do rock progressivo ao soul music. Abordando, ainda, diversas temáticas em suas composições, o trabalho proporciona a impressão de que cada faixa segue numa direção, mas que o resultado final da obra é um disco conceitual e coeso (MARTINS, Marcus. In: MARTINS et al., 2008). Nas diversas interpretações acerca de Carlos, ERASMO..., evidencia-se uma que impreterivelmente necessita de ênfase: a transformação na perspectiva musical do cantor e compositor Erasmo Carlos. Agregando uma gama de temas antes pouco, ou, simplesmente, não explorados pelo artista, constituindo-se entre as 13 faixas do disco, um grande choque de gêneros e estilos musicais, com acentuadas mudanças no caráter estético e musical. 13 Alexander “Lanny” Gordin é um instrumentista e compositor brasileiro que participou de inúmeras gravações nos discos de artistas do movimento tropicalista. Lanny Gordin foi responsável em grande parte pela sonoridade rockeira e psicodélica do movimento. Dentre os discos que Lanny Gordin gravou estão os álbuns Fatal - A Todo Vapor (1971) de Gal Costa, Carlos, ERASMO... (1971) de Erasmo Carlos, Expresso222 (1972) de Gilberto Gil e o disco homônimo de Jards Macalé (1972), além de ter acompanhado artistas como Elis Regina, Tom Zé e Jair Rodrigues (CRAVO ALBIN, 2002). Capa do Álbum Carlos, ERASMO... (1971) do cantor e compositor Erasmo Carlos Fonte:http://erasmocarlos.com.br/carlos_erasmo.html Principiando pela capa do disco – produzida pelo artista plástico Aldo Luiz14 e capturada pelo fotógrafo João Castrioto15 – que apresenta Erasmo nitidamente “mergulhado” no movimento hippie, a qual analisada iconograficamente em seu contexto histórico, carrega significações de uma nova perspectiva musical na carreira de Erasmo Carlos. Sobretudo se considerado o fato de que, a Jovem Guarda valia-se do aspecto de “bom moço”, a ruptura promovida pelo álbum em relação ao movimento e ao rótulo – até então associado a Erasmo – de ídolo jovem-guardista se torna evidente. Dissertar sobre Carlos, ERASMO... é uma tarefa complexa em razão de que o disco aborda temas distintos da atualidade de forma livre, tais como a revisitação dos conceitos de vida a dois; a relação do ser humano instintivo inserido no mundo moderno e civilizado; o inconformismo em relação ao comodismo da geração; a figura feminina colocada em evidência; a abordagem de temáticas apocalípticas; as alusões perceptíveis a temáticas acerca de drogas – influenciadas nitidamente pela atmosfera hippie da época. O que ainda pode ser acrescentado a essa discussão? Levando em conta o clima de repressão e violência dos “anos de chumbo” da ditadura, os caminhos traçados por Erasmo Carlos na tarefa de composição e escolha de repertório do 14 Em 1970 o artista plástico Aldo Luiz recebeu um convite para ir trabalhar na Phonogram, gravadora onde trabalhou com artistas como Elis Regina, Raul Seixas, Tim Maia, Chico Buarque, Jorge Ben, Erasmo Carlos, entre outros, e realizou diversas capas de álbuns clássicos do repertório brasileiro de música (FONSECA, Aldo Luiz de Paula. In: ARTE EDUCAÇÃO, 2005). 15 O fotógrafo João Castrioto eternizou seus trabalhos em inúmeras capas de discos de artistas conceituados da música brasileira (RIBEIRO, Josué. In: MUSICA POPULAR DO BRASIL, 2007). álbum Carlos, ERASMO... se revelam semelhantes ao campo artístico característico do período. Justificativa que pode explicar a pouca repercussão do disco na época, e de que ainda hoje não seja encarado como um dos álbuns mais expressivos do período, apresentando apenas mais do mesmo. Contudo, Carlos, ERASMO... deve ser analisado como uma obra conceitual, que simboliza a união dos experimentos de uma geração, a multiplicidade de gêneros musicais de origem brasileira e a destilação de influências externas. Tudo isso apresentado por um cantor e compositor marcado, até então, por seu papel desempenhado na Jovem Guarda, que sem dúvida alcança o reconhecimento merecido no portfólio de música brasileira – encarado como um dos discos mais representativos da parceria Erasmo e Roberto Carlos. “A violência corrompia a vida nacional”: música e repressão durante o período do regime militar A metade inicial da década de 1970, muito embora tenha sido um dos momentos mais rígidos da ditadura militar, engloba alguns dos grandes clássicos conceituais do repertório de música brasileira, como Construção (1971), de Chico Buarque, Fa-Tal - Gal a Todo Vapor (1971), de Gal Costa, Jardim Elétrico (1971), dos Mutantes, London, London (1971), de Caetano Veloso e Carlos, ERASMO... (1971), de Erasmo Carlos. O chamado “Milagre Brasileiro” e os “Anos de Chumbo” aconteceram simultaneamente, ainda que ambos tenham coexistido de certa forma negando-se mutuamente. Quem acredita que houve um, não aceita – ou prefere não admitir – a existência do outro. Nos estudos que abordam o período, ambos os eventos históricos são sempre referenciados, mas, se neles há mais sobre o “chumbo” que sobre o “milagre”, isso se deve a convicção de que a tortura e a coerção politica dominaram o período (GASPARI, 2002, p. 13). No contexto político-social, o embate entre a repressão exercida pelos militares e a resistência da esquerda, opondo-se ao governo, abrangia o campo de domínio público. As produções culturais passaram a uma tentativa de “engajamento político”, com o objetivo de manifestar-se contra o regime militar, dando uma perspectiva de homogeneidade cultural ao campo musical (QUEIROZ, 2004, p. 28). A violência corrompia a vida nacional e coagia o campo artístico e social a consentir com o regime militar ou, então sofrer as consequências que uma acusação de subversão poderia provocar. A tensão social vivenciada naquele momento pode ser observada nas palavras do governador do estado de São Paulo, Abréu Sodré: “Não há lugar para fracos ou covardes na presente situação: ou se está a favor da ordem que constrói ou pela desordem que destrói16”, referenciando atos de violência de opositores do governo no ano de 1969 (SODRÉ. apud: GASPARI, 2002, p. 64). O terror psicológico, após a instauração do Ato Inconstitucional Nº 5, em 13 de dezembro de 1968, assumia sua mais dura face, contra-atacando a enxurrada de contestação que tomava conta do país. Os espaços de sociabilidade e cultura tornaram-se densos e carregados, e iniciava-se no país a maior série de prisões, cassações políticas e atos de censura do período ditatorial (CALADO, 1966, p. 153). No entanto, a repressão social, e mesmo a tortura física17, contrapondo a livre expressão do pensamento – característica simbólica do campo artístico – carece de entendimento como agente de transformação na cena artística do período. Manifestando uma profunda modificação no cenário musical da época, dando origem a composições com temáticas carregadas de contestação, inserindo-se partidariamente no contexto político. No entanto, contrapondo a “pressão” do campo artístico para um possível engajamento político, existia a esfera artística apartidária. Sendo que tal campo, independente da forma que se declara, não pode se eximir disso, pois, como mediador cultural, o artista é compreendido como articulador de ideias a favor ou contra. Seja pela aversão ao terror psicológico e a tortura empregada pelo regime, ou pela livre alternativa de se declarar apartidário, observa-se que durante o período algumas das consideradas lideranças artísticas de massa optaram por declarar não possuir intencionalmente implicações políticas em seu trabalho, exemplificado no discurso do cantor e compositor Roberto Carlos18 – parceiro de inúmeras composições com Erasmo Carlos– em entrevista para a revista Veja de 1976: Veja: Você é Arena ou MDB? Roberto Carlos: Eu sou Vasco da Gama. Sou apolítico, bicho. Não entendo do assunto. Tenho minhas opiniões, mas as considero muito particulares. Nunca faria declarações políticas (CARLOS. In: VEJA,1998, p. 44). 16 Telegrama de Robert Corrigan, cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo, a Washington, em 25 de julho de 1969. DEEUA (GASPARI, 2002, p. 64). 17 A tortura, embora negada oficialmente pelos militares, acabava por tornar-se um instrumento de coerção em meio aos interrogatórios que ocorreram no período ditatorial. A tortura física era justificada pela funcionalidade e, como argumentava o bispo de Diamantina, d. Geraldo de Proença Sigaud, “confissões não se conseguem com bombons” (GASPARI, 2002, p. 20). 18 Roberto Carlos, inclusive em algumas composições em parceira com Erasmo, abordou temáticas fortes e contestatórias, se avaliadas no contexto histórico em que foram compostas, mas não fez uso dessas canções em seus discos. Nessa “particularidade” de opiniões, o campo intelectual artístico “engajado”, ou apolítico, quando visto como um mediador cultural/social abarca, através de sua produção – a arte –, a compreensão de mundo no qual se encontra imerso. Dentro do contexto político da ditadura, no entanto, suas concepções não poderiam mais ser ditas de forma explícita. Ainda, a extensão do cenário artístico, quando encarado como válvula de escape da sociedade, acaba sempre por influenciar e ser influenciado pela ambiência exercida pelo meio. Ao artista não cabia produzir a arte que a sociedade almejava, mas a arte que a mesma necessitava, e por esta perspectiva passaram diversos movimentos e manifestos no campo artístico ao longo da história, que acabaram por chocar a esfera social ou por não serem compreendidos conceitualmente19 em seu contexto original. O campo artístico, caracterizando-se por um forte veículo formador de opiniões e de seguimento de ideias, ao ser qualificado como incitador de subversão ao regime, acarretou em possíveis torturas físicas, prisões e exílio, exemplificados pelo caso de Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos presos em 1968 e exilados em Londres em 1969. O álbum Carlos, ERASMO..., embora aborde temáticas intensas e delicadas em meio ao crítico período do regime militar, não tem a finalidade de envolvimento explícito no que se refere a engajamento politico. Possuindo somente canções classificadas como “margens de manobra” no período ditatorial, as quais podem ser lidas como uma manifestação contra o regime militar, mas sem implicações politicas declaradas. “Descansar não adianta quando a gente se levanta quanta coisa aconteceu”: experimentos de uma geração e a pluralidade musical de Carlos, ERASMO... A canção “De Noite, na Cama” de Caetano Veloso, abre o disco. Iniciando com a guitarra, o berimbau e a cuíca e sendo cantada em coro20, a faixa apresenta uma atmosfera festiva ao início do disco, e faz menção a multiplicidade de influências presentes no álbum. Referencia-se ainda, a naturalidade da relação de Erasmo com o samba, algo impraticável de ser realizado nos tempos de Jovem Guarda. Em análise do campo musical, a harmonia apresenta de certa forma sofisticação se comparado com seus primeiros trabalhos produzidos 19 Nesta esfera referencia-se, por exemplo, as críticas ao movimento tropicalista, considerado por alguns uma corrente cultural sem engajamento político, o qual era quase um requisito obrigatório da época para se passar pelo crivo da crítica. Porém, os próprios tropicalistas não pretendiam se enquadrar na categoria, pois não pretendiam revolucionar o conteúdo tradicional, mas sim a estética, como forma de subverter os padrões vigentes (OLIVEIRA, 2010). 20 O coro de vozes presente nas canções do disco não especifica seus participantes ou sua origem na ficha técnica. na Jovem Guarda (SAGGIORATO, 2013)21. A letra da canção no trecho “Por hora não vou ter/Coragem de dizer/Mas há de ver a hora/Se você for embora” de certa maneira referencia a situação em que se encontrava Caetano na época, exilado em Londres desde 1969. A segunda canção, denominada “Masculino Feminino”, de Homero Coutinho Filho, apresenta harmonia e melodia bastante comuns na música folk, insinuando uma suave levada de valsa. No entanto, a canção torna-se interessante para a estrutura do álbum na intercalação de baladas introspectivas, canções com temáticas alegres e de músicas de maior peso sonoro (FILARDI, Thiago. In: MARTINS et al., 2008). O dueto de Erasmo Carlos e Maria Fossa – interpretando o gênero masculino e feminino – intercalam frases como “Já são seis horas, meu bem/Vire o relógio, meu amor” e “Me dê um cigarro, meu bem/Primeiro um beijo, meu amor”, abordando a temática sobre a “vida a dois”. Na sequência, deparam-nos com a faixa “É Preciso Dar Um Jeito Meu Amigo”, com arranjos densos e “swingados”, que se caracteriza por elementos do funk music, característico na música da década de 1970. Além disso, a letra da canção em trechos como “Eu cheguei de muito longe/E a viagem foi tão longa/E na minha caminhada/obstáculos na estrada, mas enfim aqui estou” e “Quem me trouxe até agora me deixou e foi embora como tantos por aí/É preciso dar um jeito, meu amigo/Descansar não adianta/Quando a gente se levanta quanta coisa aconteceu”, marca o inconformismo e a contestação situacional de Erasmo, ligado com a condição que o mesmo se encontrava com o fim da Jovem Guarda, referenciando como denomina a canção que “é preciso dar um jeito meu amigo”. A canção seguinte, "Dois Animais Na Selva Suja Da Rua", do compositor Taiguara Chalar da Silva caracteriza-se pela levada do piano, novamente no estilo funk, iniciando com um solo de guitarra repetido ao fim dos versos da canção. A letra dessa faixa aborda ainda o ser humano como um indivíduo instintivo, “Por isso somos iguais, nós somos dois animais/que se aninham/que se amigam”, voltado à condição primitiva, podendo ser encarado como um elemento do viés “libertário” que compõe a filosofia hippie, a qual tomava conta da época. Igualmente acentuando a intensa influência do movimento hippie do período na carreira de Erasmo e no disco, a música "Gente Aberta", de autoria de Erasmo e Roberto Carlos, conta com um arranjo cristalino, marcando a melodia em cima da percussão “swingada”. A canção cantada em coro disserta sobre o a temática do “amor” e faz uso da expressão “Gente certa é 21 Todas as canções que compõem a obra foram analisadas pelo Músico e Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo, Alexandre Saggiorato, que visam agregar ao artigo – além da metodologia de Análise do Discurso empregada nas letras – a análise musical dos distintos gêneros e estilos acerca do álbum, que evidenciam a multiplicidade musical do disco. gente aberta” para uma crítica ao preconceito culturalmente recursivo na história da humanidade, acentuado em trechos como “Eu não quero mais conversa/Com quem não tem amor” e “Gente certa é gente aberta/Se o amor me chamar/Eu vou”. Acrescentando o mesmo coro de “De Noite na Cama” para entoar a música, com breves intervenções de Erasmo, a canção “Agora Ninguém Chora Mais”, inicia com um solo de guitarra, e os sinos são um diferencial na instrumentação que constrói a peça, repaginando a versão original de Jorge Ben (1965). A letra da composição, em trechos como “Chorava todo mundo/Mas agora ninguém chora mais” e “Na hora da partida/Mas era uma beleza/Em vez de tristeza/Mas era uma beleza”, pode ser lida como a descrição de uma “despedida” – pretensamente uma alusão à antiga vinculação de Erasmo ao gênero jovem-guardista. Na composição do álbum, pode-se perceber também a mobilização de símbolos e elementos de matrizes religiosas. As canções “Sodoma e Gomorra”, de Roberto e Erasmo Carlos e “Não te quero Santa”, de Vitor Martins, Saulo Nunes e Sergio Fayne, apresentam a utilização de símbolos/referências como “novo testamento”, “santa”, “padroeiro” ou os termos como “procissão”, “arrependimento” e “pecado”. A faixa “Sodoma e Gomorra” discute a temática do pecado e do arrependimento numa perspectiva cristã – igualmente vislumbrada na autoria de outras composições do autor com temas apocalípticos – em trechos da canção, como “Séculos passaram, ninguém se arrependeu/Foi Sodoma, foi Gomorra/Alguém me socorra” e “Grandes cogumelos formaram-se então/Fogo, enxofre e morte/Ergueram-se do chão” aborda uma crítica às guerras e a devastação proporcionada pelo homem na terra (CARLOS, 2009, p.130). A melodia utiliza-se de um arranjo simples com destaque para a flauta doce e a orquestração sobre os dedilhados e a voz de Erasmo. Na letra da canção “Não te quero Santa”, a mesma pode ser lida num contexto acerca da temática feminista – além da temática religiosa – quando se referenciam trechos da letra como “Não te quero presa a imagem da procissão”, “Não te quero submissa as promessas e as missas” e “Não te quero santa”, extrapolando uma única temática e evidenciando a multiplicidade de interpretações acerca das canções que compõem o álbum. Propondo uma harmonia e ritmo funk dos anos 1970 – emblemático na cultura negra – , a faixa “Mundo Deserto” de Roberto e Erasmo Carlos, disserta sobre a “vida sofrida” em um “mundo deserto de almas negras”. No entanto, ao longo da canção, a mesma apresenta o trecho “Tenho fé que o meu país/Ainda vai dar amor pro mundo/Um amor tão profundo, tão grande/Que vai reviver quem morreu”, que pelo contexto histórico de composição, pode ser lida como uma crítica às perseguições, torturas e mortes, no período do regime militar. A canção “Ciça, Cecilia”, de Erasmo e Roberto Carlos, consiste na única faixa que não conta com produção de Manuel Barebeine Erasmo. Assinada por Nelson Motta e com arranjo de sopros de Arthur Verocai, foi produzida para ser tema da novela da Rede Globo “A Próxima Atração” (1970) – escrita por Walther Negrão e dirigida por Régis Cardoso. Destacam-se, ainda, as distintas menções ao longo da canção, em trechos como “Seu ídolo, seu mestre, seu santo padroeiro/Só pode, só pode ser o Velho Guerreiro/Seu sonho é ser um dia dica do Pasquim/Só ouve Caetano, Teixeirinha e Tim” que, com aspectos da soul music e, com um toque de “brasilidade” semelhante à Tim Maia, proporcionam uma balada com “swing” e arranjos semelhantes às músicas de artistas da Motown Records22. Posteriormente, apresentando uma levada de percussão e guitarra limpa, a faixa “Em Busca Das Canções Perdidas N° 2”, de Fábio e Paulo Amaral evidencia influências de outros gêneros musicais. Incluindo a utilização de metais e coro, a composição, que conta com um arranjo orquestral, evidencia uma nova tendência utilizada no período por bandas inglesas de rock progressivo e igualmente do psicodelismo, que de encontro com a letra da canção, aborda uma temática embasada na filosofia hippie, em trechos como “Lá onde as cores têm som/Lá onde as flores caminham” e “Lá onde as dores não entram/E a tristeza não vai/ Onde a beleza se esconde/Ah, me responde onde é”. De Paulo Sergio Valle e Marcos Valle, a canção “26 Anos de Vida Normal” – gravada por Marcos Valle em seu disco Garra (1971) – se caracteriza, em sua primeira estrofe, como um rock, que em seguida parte para o samba, proporcionando um contraste de timbres e arranjos, acentuando a multiplicidade de gêneros do disco. A letra da canção contesta o período histórico político e o comodismo da “geração”, parafraseando o pintor Hélio Oiticica, autor da frase “Seja marginal, seja herói”, e apresenta trechos como “Hoje meu nome li no edital "Morreu em vida lendo jornal!"/Civilização do ocidente atenção, vou voltar a vida a margem da cruz/Quero o meu nome ler no edital 26 anos foi marginal.” Nos tempos do regime militar, o conceito de “marginal” empregava-se a qualquer individuo passível de acusação subversiva ao governo, diferentemente do conceito de “marginal” atual. A repressão politica conduziu poetas e escritores a procurarem caminhos 22 Gravadora americana de discos, fundada em 12 de janeiro de 1959 na cidade de Detroit, estado americano de Michigan. Na década de 1960 sucedeu a criação daquilo que se tornou conhecido como “O Som da Motown”, um estilo de soul bem característico, com o uso de pandeiros, baterias e instrumentos do rhythm and blues, além de um estilo de “canto e resposta” originário da música gospel. O "som da Motown" é igualmente marcado pelo uso de orquestração e instrumentos de sopro e harmonias bem arranjadas (STAMBOROSKI, 2009). alternativos para a poesia e para a literatura, sendo que na década de 1970 acentua-se o movimento denominado Poesia Marginal23. Finalizando o disco e acompanhada pela Caribe Steel Band, “Maria Joana”, de autoria de Roberto e Erasmo Carlos, pode ser encarada como uma “margem de manobra” nos tempos de regime militar, apresentando em sua letra trechos como “E penso da minha janela/eu estou bem mais alto que ela/Eu quero Maria Joana” e “Eu sei/Que na vida tudo passa/O amor/Vem como nuvem de fumaça”, sendo que, mesmo assim, não a censuraram. Em sua composição traz um arranjo semelhante a algumas músicas dos Mutantes, com elementos de linguagem musicais análogas ao psicodelismo. Os arranjos orquestrais de Rogério Duprat são, em alguns momentos “cromáticos”, uma técnica que faz com que o tom da peça se desfaça pelo menos naquele instante, fazendo com que naquele breve compasso a música e, consequentemente, o ouvinte, acabe perdendo a referência central, interligando a melodia com a letra da composição que fala sobre a ode a maconha, substância que de certa forma possibilita “perder o chão”, “flutuar”, “viajar”. O relançamento do disco em vinil e a relevância do álbum para a carreira do cantor e compositor Erasmo Carlos Com o crescente aumento das vendas de discos de vinil, que só em 2009 aumentaram cerca de 35% em relação a 2008 – totalizando mais de 2 milhões e meio de unidades – a Polysom, única fábrica de LPs do Brasil, reabriu suas portas em 2010 (LIMEIRA, 2010). Em entrevista para a revista Rolling Stone de 2011, Erasmo é questionado sobre o retorno do culto aos discos de vinil e ao álbum Carlos, ERASMO...: Rolling Stone: Como você vê o culto a discos como o hoje badalado Carlos, Erasmo (1971)? Erasmo: Cara, esse era um tempo de muita loucura. Se você me perguntar o que aconteceu durante a gravação do disco, sinceramente não lembro. Em retrospecto penso, que, apesar de tudo, de toda a maluquice envolvida, deu tudo certo. Eu estava meio perdido depois do fim da Jovem Guarda. Carlos, ERASMO... ajudou a achar novos 23 Movimento cultural fundado por poetas que queriam se expressar livremente na época do regime militar. Os poetas mais marcantes desse período foram Ana Cristina César, Paulo Leminski, Ricardo Carvalho Duarte, Francisco Alvim e Antônio Carlos de Brito. Caracterizando-se por uma prática poética artesanal, as poesias eram distribuídas em livretos artesanais mimeografados e grampeados. É importante enfatizar que não foi um movimento poético de características padronizadas, mas um momento de libertação dos termos e de expressão livre. A poesia foi levada para as ruas, praças e bares como alternativa de publicação, longe dos olhos da censura (MATTOSO, 1981). caminhos para o que eu fazia, serviu para diversificar minha música (CARLOS. In: ROLLING STONE, 2011). Transformando a perspectiva musical do cantor e compositor Erasmo Carlos, tanto no campo temático e melódico quanto em sua própria estética, o disco rompe com o rótulo associado ao cantor de estar unicamente ligado ao movimento jovem-guardista. Apresentando canções com temáticas ousadas que, com a multiplicidade de gêneros, estilos e arranjos agregados com as inúmeras participações no disco, o cantor assina um disco denominado Carlos, ERASMO... quando o nome Carlos nem ao menos faz parte de seu nome de batismo, pretensamente entendido como uma referência à exposição das inúmeras personas que um artista assume ao longo de sua carreira (MARTINS, Marcus. In: MARTINS et al., 2008). No entanto, no ano de lançamento de Carlos, ERASMO..., Erasmo Carlos improvavelmente poderia imaginar que o disco seria tão cultuado, servindo de norteador na sonoridade do cantor, como referencia atualmente: Considero o Carlos, ERASMO... minha estreia na música adulta depois do prazeroso BÊ-A-BÁ da Jovem Guarda. Vários rumos musicais, incontáveis tendências melódicas e novos amigos músicos seriam um processo natural para minha evolução. O repertório foi intuitivo e os sons foram surgindo dependendo do clima que cada canção sugerisse. Esse disco consolidou minha maturidade e me projetou para um mundo real onde o sonho acordado ainda existia (CARLOS. In: ROLLING STONE, 2011). O álbum Carlos, ERASMO... representa uma transformação musical e se constitui em um importante veículo para a compreensão da própria cultura brasileira em sua composição, articulação e rearticulação constante, sobretudo ao apelar a elementos passíveis de compreensão significativa pelo público amplo do país, tais como temáticas religiosas, a figura feminina colocada em evidência, o inconformismo ao contexto político, entre outros. Mais de quatro décadas posteriores ao seu lançamento no ano de 2013 o álbum ganha um novo relançamento pela Polysom, repaginando Carlos, ERASMO... em vinil 180 gramas – de alta fidelidade sonora – evidenciando a relevância do álbum para o período e para a atualidade, que marca a transformação no trabalho do cantor e compositor Erasmo Carlos, submerso na cena musical do período e servindo de guia para o que viria a acontecer na carreira do cantor posteriormente ao álbum na década de 1970, sendo o único disco do cantor até o momento relançado nesta mídia. Referências ALEXANDRE, Ricardo. Discoteca Básica Bizz#181: Erasmo Carlos - Carlos, Erasmo (1971), CollectorsRoom,07 de out. de 2009.Disponível em: <http://www.collectorsroom.com.br/2009/10/discoteca-basica-bizz181-erasmo-carlos.html>. Acesso em: 15 jun. 2013. ARGAN, Giulio Carlo; Arte moderna; São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992. BAHIANA, Ana Maria. Almanaque Anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. CALADO, Carlos. 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