O que nos move é o que nos falta? O que nos move é o que nos falta! Rosaura Soligo1↓ CASAL NAMORANDO À NOITE NO PARQUE Este é um texto despretensioso cujo propósito é concordar com o poeta Manoel de Barros quando, com suas palavras escovadas e desacostumadas, declara que ‘tem mais presença em mim o que me falta’ e também com o poeta e sociólogo Boaventura Sousa Santos, quando, com suas ideias escovadas e desacostumadas, anuncia que a possibilidade é o movimento do mundo. É um texto de várias vozes também, pois penso que alguma companhia conhecida é prudente quando empunhamos a bandeira da falta e não (exatamente) do que se tem. Dizem que é inadequado e deselegante citar muita gente, mais ainda em um texto curto. Mas seria desleal com os que vieram antes de mim não incluí-los – pelo menos alguns – nesta conversa que é apenas uma variação sobre velhos temas. Bem, começarei então pelas faltas... Ângela Rodrigues e Manuela Esteves (1993) arrumam um pouco as ideias a respeito e dizem o seguinte: A palavra necessidade é uma palavra polissêmica, marcada pela ambigüidade. Na linguagem corrente, usamo-la para designar fenômenos diferentes, como um desejo, uma vontade, uma aspiração, um precisar de alguma coisa ou uma exigência. Por um lado, remete-nos para a idéia do que tem de ser, daquilo que é imprescindível ou inevitável. Por outro lado, a palavra surge com um registro mais subjetivo (...) e neste caso, a necessidade não tem existência senão no sujeito que a sente. 1 Professora alfabetizadora, formadora de professores, com formação em Psicologia e mestrado em Educação, é hoje coordenadora de Projetos de Instituto Abaporu de Educação e Cultura e participante do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, na Unicamp. ↓ → Todas as fotografias que compõem este texto (exceto a intitulada SENHORINHA LENDO) são de autoria de Leonardo Soares. Algumas delas podem ser vistas em tamanho e cores originais no blog http://chiarosscuro.blogspot.com/. Em qualquer caso, a necessidade é sempre o que nos põem em marcha rumo às possibilidades que suspeitamos ou das quais estamos plenamente convictos. A esse estado de incompletude, quando envolve questões de natureza filosófica, alguns autores chamam ‘carência de plenitude’. Diz o escritor Vargas Llosa que a vontade de criar nasce da insatisfação diante da vida e é mesmo verdade. Li isso em um texto de Rosa Montero, em que, comentando a necessidade de serem lidos, da qual todos os escritores padecem, ela inclusive, se pergunta de onde viria ‘essa necessidade absoluta que transforma todos os escritores em eternos indigentes do olhar alheio’... Na verdade somos todos indigentes do olhar alheio, escritores ou não! HOMEM NU NO CENTRO DA CIDADE MULHER BARBEIA HOMEM Essa dependência grandiosa do olhar do outro (ao menos do outro que nos importa), é tratada de modo recorrente por Calligaris em sua coluna semanal na Folha de São Paulo e em sua página no twitter. Ele está sempre a nos lembrar que, em uma sociedade como a que vivemos, a invisibilidade é mais intolerável que o ridículo, a chacota, e até mesmo a prisão. Porque a dialética das relações humanas é fundada no SE: ‘sou filho SE meus pais me amam, sou pai SE meus filhos gostam de mim, sou psicanalista SE pacientes e colegas me reconhecem, sou colunista SE você agüentou ler até aqui. O espelho que nos define não é o de Narciso, é o da bruxa da Branca de Neve, um espelho que interrogamos, ansiosos.2 No espelho, não enxergamos nosso reflexo, mas uma conjectura: o que vêem os outros quando olham para nós?’.3 A admiração do outro – mais até do que o reconhecimento ou o cuidado conosco – é o paliativo para a nossa eterna incerteza sobre quem somos nós, afinal, no espelho. Demasiado humanos, nos alimentamos disso. Mas nos alimentamos também da esperança de que temos o poder de produzir o nosso destino, ainda que parcialmente. Boaventura de Sousa Santos4 fundamenta essa nossa esperança de autoria da própria história, essa nossa vocação de sujeitos atores, de artífices, com suas sociologias... Assim ele diz: A possibilidade é o movimento do mundo. Os momentos dessa possibilidade são a carência (manifestação de algo que falta), a tendência (processo e sentido) e a latência (o que está na frente desse processo). A carência é o domínio do Não, a 2 http://contardocalligaris.blogspot.com/2007/03/fama-e-narcisismo.html http://twitter.com/ccalligaris 4 In Para uma sociologia das emergências e para uma sociologia das ausências http://www.scribd.com/doc/36629705/BOAVENTURA-Sociologia-Ausencia-cia 3 tendência é o domínio do Ainda-Não e a latência é domínio do Nada e do Tudo, dado que esta latência tanto pode redundar em frustração como em esperança. (...) A ampliação do presente implica a contracção do futuro, na medida em que o Ainda-Não, longe de ser um futuro vazio e infinito, é um futuro concreto, sempre incerto e sempre em perigo. Como diz Bloch, junto de cada esperança está um caixão à espera (1995: 311). Cuidar do futuro é imperativo porque é impossível blindar a esperança contra a frustração, o advento contra o niilismo, a redenção contra o desastre, em suma, porque é impossível a esperança sem a eventualidade do caixão. É contra a morte que vivemos. Contra a nossa própria, a do nosso desejo, da nossa vitalidade, das nossas crenças, dos nossos planos, da nossa esperança. Essa militância contra a morte é uma forma obstinada de invenção da vida por cada um de nós, é um movimento estético em favor da construção pessoal de uma obra singular – o nosso destino. Em minha dissertação de mestrado, composta de cartas aos educadores, cito MarieChristine Josso (2006), que nos lembra que a invenção de si pressupõe uma conquista progressiva e jamais terminada de autonomia para agir, para pensar, para escolher os caminhos na vida; que é uma posição existencial manifesta nas miudezas do cotidiano e não somente em situações ou contextos específicos; que se desdobra em todas as dimensões da nossa existência, desde as roupas que escolhemos usar até os pratos que inventamos, passando pela organização da nossa rotina, pela escolha das leituras, dos filmes que assistimos e daí por diante. O desejo de inventar e reinventar a nós mesmos e à realidade nos impulsiona a ações instituintes, nos anima a produzir micro-revoluções e conseqüentemente a criar inéditos viáveis. Esse tipo de militância implica assumir o lugar de sujeito que produz a própria história e participa da produção coletiva da história5. PAU DE SEBO EM FESTA POPULAR 5 GARIMPEIROS TRABALHANDO SOLIGO, Rosaura. Quem forma quem?- Instituição dos sujeitos Campinas, SP: [s.n.], 2007. Dissertação (Mestrado)Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Mas há outras necessidades humanas substantivas além da admiração do outro e da invenção de si – e além daquelas mais básicas, que nem é o caso de tratar aqui... HOMEM ORANDO TRABALHO NO CAMPO SAMBA DA VELA SHOW OCUPAÇÃO DE PRÉDIO POR CIDADÃOS SEM TETO PELADINHA DE MADRUGADA Defendi em minha dissertação do mestrado que nossa formação ao longo da vida é constituída de todas as experiências capazes de que produzir aprendizagem: o convívio com familiares e/ou pessoas significativas desde a infância, a escolaridade / a vida acadêmica, o estudo, as leituras, o acesso às mídias, a pesquisa, a produção escrita, as amizades, as viagens, as situações-problema vividas, a reflexão pessoal e compartilhada, a interlocução com pessoas tomadas como referência, a discussão das idéias, a psicoterapia, a militância em grupos ou movimentos, a participação nas instituições, a atuação profissional, o contato com a espiritualidade, a possibilidade de fruir das artes, das manifestações culturais, da literatura e de todo tipo de conhecimento... Hoje eu acrescentaria algo mais: nossa formação depende das respostas possíveis para as nossas necessidades e da nossa capacidade de construir possíveis inéditos até então. SENHORINHA LENDO6 Para encerrar temporariamente essa conversa breve, ainda no rastro de Rosa Montero, um algo mais sobre a leitura, a escrita e outras coisinhas. Ela lembra ‘que a escritora Graciela Cabal disse um dia que um leitor tem uma vida muito mais longa do que as outras pessoas, porque não morre antes de acabar o livro que está lendo’. E conclui que Graciela tem razão: ‘você não só escreve mas também lê contra a morte’. No final das contas, não podemos morrer antes de terminar de ler, nem de escrever e nem de viver tudo o que desejamos. SENHORINHA INDO ÀS COMPRAS Ora... ‘O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro’. Mia Couto é quem d-escreve lindamente esta profecia auto-realizadora, que eu também assino (e realizo diariamente). DIA DE CHUVA DEPOIS DE LONGA ESTIAGEM No ir-e-vir da vida, o que nos move é o devir. 6 Imagem publicada no blog da Biblioteca de Leituras e Olhares – http://becre-andreresende.blogspot.com/ – e na página do facebook da Biblioteca – http://www.facebook.com/profile.php?id=100000512607770&v=info Biblioteca Muitas leituras, muitas escutas e experiências de todo tipo contribuíram para este brevíssimo registro sobre as faltas que nos impulsionam, tema da palestra que farei no V FALA outra ESCOLA (2010). Não teria como enumerá-las. Então vou apenas compartilhar alguns livros da prateleira e alguns links da grande rede, nas referências que seguem: Josso, M. C. Prefácio. Tempos, narrativas e ficções – a invenção de si. In: Souza. E. C; Abraão, M. H. M. B. Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006. Mia Couto. Terra sonâmbula. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. Montero, Rosa. A louca da casa. São Paulo, Ediouro, 2005. Rodrigues, Ângela e Esteves, Manuela. A análise de necessidades na formação de professores. Porto: Porto Editora, 1993 (Coleção Ciências da Educação). Soligo, Rosaura Angélica. Quem forma quem?- Instituição dos sujeitos Campinas, SP: [s.n.], 2007. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. http://chiarosscuro.blogspot.com/ http://contardocalligaris.blogspot.com/2007/03/fama-e-narcisismo.html http://www.scribd.com/doc/36629705/BOAVENTURA-Sociologia-Ausencia-cia http://twitter.com/ccalligaris