29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Nº 29 | Ano 2 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 O mistério da maternidade: o caso Umbundu ECO DE ANGOLA Pag. 4-6 ARTES Pag. 23-25 Wyza Seu chão, matéria e alma: voa nas asas do kilapanga ECO DEANGOLA Pag. 7 18 de Abril. Dia Internacional LETRAS Pag. 12-13 dos Monumentos e Sítios Manuel Rui põe na zunga Kitandeiras & Aviões LETRAS Pag. 14 Sabina e os Manuscritos do Kuito, de Arnaldo Santos DIÁLOGO INTERCULTURAL P. 27-29 Maria Eugénia Neto em São Tomé 2 | ARTE POÉTICA 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Cultura Poema de Manoel de Barros Manoel por Manoel Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. (Digitado e conferido por mim mesmo em 12 de outubro de 2012 no livro Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 187) Manoel de Barros é considerado um dos maiores poetas brasileiros vivos da actualidade, com mais de 15 livros publicados desde 1937. Viveu grande parte da vida literária editando obras artesanais, de escassa circulação, caracterizado pelos rótulos de 'poeta do Pantanal', 'alternativo' e 'de fala torta'. Nasceu em Cuiabá (MT), em 1916. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Actualmente mora em Campo Grande (MS). Advogado e fazendeiro, foi reconhecido tardiamente como poeta, na década de 80, por críticos e personalidades como António Houaiss, Millôr Fernandes e Ênio Silveira e virou uma 'coqueluche' da nova literatura brasileira. Hoje é editado em grandes tiragens e tem se destacado como um dos escritores contemporâneos mais premiados, com distinções como Jabuti, Nestlé e Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Os títulos da sua trajetória antecipam a inclinação pelo improviso, elegendo os pássaros e o rumor do solo como seus protagonistas. Entre eles, destacam-se: Gramática Expositiva do Chão, Arranjos para Assobio, Livro de Précoisas, Livro das Ignorãças e Livro sobre Nada. O seu universo não é nada urbano: anhuma, pacus, graxas, nervos, beija-flor de rodas vermelhas, gravanhas. O que resulta, a princípio, no efeito de estranheza para quem vive em grandes cidades. Ele é porta-voz de um mundo que não é habitual aos moradores das metrópoles. Um local ancestral, onde os seres miúdos e os animais silvestres reinam e compõem um particular bestiário. O cenário do qual parte a sua voz é o da floresta, do mato embrenhado, das extensões dos rios. Tudo se mistura num processo de troca e sinestesia. Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras Um jornal quinzenal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento. Nº 29 / Ano II / de 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 E-mail: [email protected] / Telefone e Fax: 222 01 82 84 CONSELHO EDITORIAL Director e Editor-chefe | José Luís Mendonça Editor de Letras | Isaquiel Cori Editor de Artes | Coimbra Adolfo (Matadi Makola) Marketing e Rel. Públicas | Filomena Ribeiro Fotografia | Paulino Damião (Cinquenta) e Arquivo do Jornal de Angola Arte e Paginação | Tomás Cruz COLABORAM NESTE NÚMERO: Angola: Akiz Neto, A. Fragoso Trindade, Analtino Santos, Arjago, Boaventura Cardoso, Décio Bettencourt Mateus, Emanuel Caboco, Lopito Feijóo K.S., Pepetela São Tomé: Conceição Lima Brasil: Manoel de Barros Portugal: João Serra AGULHA Revista de cultura, São Paulo, Brasil Correio da UNESCO, Paris, França AFRICULTURES, Portal e revista de referência das culturas africanas, Les Pilles, França MODO DE USAR & CO, revista de poesia sonora e visual, em vídeo, e também escrita. FONTES DE INFORMAÇÃO: NORMAS EDITORIAIS O Jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serão comunicados aos autores. 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Que o digam os japoneses que, no século XX construíram, sem reservas de petróleo assinaladas no pequeno arquipélago, a segunda maior potência mundial (hoje a terceira). Esta frase “o livro é mais importante que a gasolina” foi uma coisa que me saiu do subconsciente, enquanto, no passado dia 23 de Março, Dia Mundial do Livro, conversava com o Mário Vaz no programa da TPA ‘Bom dia, Angola’. Estava eu a enumerar as causas do presumível falta de gosto pela leitura do Povo Angolano, particularmente dos adolescentes, jovens e, em geral, da camada estudantil, que é suposta ter necessariamente de ler para se cultivar e tínhamos chegado ao inevitável tema do encarecimento do livro em Angola. São os direitos alfandegários dos livros que nos chegam de fora, são os preços das matérias-primas importadas (papel, tintas, consumíveis industriais das gráficas, etc.) no que toca ao livro produzido localmente. Aí ocorreu-me num ápice afirmar, em termos comparativos com a gasolina que, se esta é subvencionada pelo Estado, também o livro o poderia ser, visto que o livro é mais importante que a gasolina. Na verdade, num país como Angola, a procurar sair da longa crise pós-independência e partir para o desenvolvimento sustentável, situação ideal que, em África, nenhum país ainda alcançou (e depois, não me venham dizer que a culpa é apenas dos dirigentes), o principal investimento tem de passar pelo Homem, isto é a CRIANÇA de hoje que é o futuro da Nação. E este investimento significa pôr as crianças (cidadãos dos zero aos 18 anos de idade) a ler, a marrar (os nossos jovens dizem “amarrar”) os livros, até deles ganharem o fascínio, o feitiço que eles nos trazem quando os tratamos como uma droga incontornável. Só assim, teremos as mentes brilhantes que, em diversos domínios, produzirão o combustível do desenvolvimento, que não é gasolina, o petróleo que vendemos ao barril, mas, sim, o combustível chamado massa cinzenta, o know-how dos fabricantes e construtores. E quero, desde já, desfazer um tremendo equívoco que grassa na cabeça de muita gente (até de confrades meus) de que “vamos cultivar o gosto pela leitura, para formar futuros escritores”. Nada disso. Vamos pôr as crianças a ler, para formar futuros engenheiros, médicos, arquitectos, políticos e outros técnicos de grande qualidade. Os escritores, se vierem, virão por vocação natural, nenhum escritor se faz a martelo, como as portas das casas. As outras causas da ilusória falta de gosto pela leitura (digo presumível e ilusória, porque essa tendência é uma falácia, os povos gostam de ler) devese ao nulo tratamento do objecto livro como produto comercial que é. O livro, em Angola não é submetido às leis próprias do mercado, se não se faz a sua oferta, tal como se faz para as cuecas de marca ou a cerveja e os refrigerantes, claro que não há procura do mesmo. Já a terceira causa, a mais grave, é a que se verifica no sistema de ensino da língua portuguesa que, no nosso país, ignora o dever sagrado do professor dessa língua criar uma biblioteca manual de turma, em que cinco ou seis livros circulam de mão em mão durante o ano lectivo na sala de aula. Posto isto, e porque o livro é mais importante que a gasolina, vejo com preocupação e desespero o nosso futuro enquanto escritores. É que se se faz uma tiragem de mil exemplares de um livro como ‘Quitandeiras e Aviões’, de Manuel Rui, um dos mais cotados escritores nacionais, está-se a proclamar a morte da Literatura angolana. Eu, se fosse editor, punha no mercado, pelo menos 10 mil exemplares e agregava ao lançamento uma campanha de marketing e de vendas que abrangesse o país inteiro, as escolas e universidades, a rua (o livro vende-se até na zunga), convidaria os expatriados que gostam de ler para os lançamentos, e a comunicação social (com publicidade) e iríamos ver se vendia ou não vendia. Iríamos ver se o povo lia ou não lia. 2 3 Sumário ARTE POÉTICA Poema de Manoel de Barros | Manoel por Manoel ECO DE ANGOLA O livro é mais importante que a gasolina |José Luís Mendonça O mistério da maternidade: o caso Umbundu |Arjago 18 de Abril. Dia Internacional dos Monumentos e Sítios |Emanuel Caboco LETRAS Leonel Cosme, perfil biográfico. A literatura angolana deve-lhe muito |João Serra Viriato da Cruz: Metáforas e retalhos da vida de um poeta por ocasião do seu 85º aniversário |A. Fragoso Trindade Manuel Rui, o maior griô da banda, põe na zunga Kitandeiras & Aviões | José Luís Mendonça Sabina e os Manuscritos do Kuito |Pepetela ‘Jisabhu’, a transmissão da tradição oral| J.A.S. Lopito Feijóo K O culminar do processo eleitoral na UEA: Carmo Neto reconduzido a SecretárioGeral |Isaquiel Cori Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. Publicações científicas à disposição do público |Isaquiel Cori ARTES Magias de Ricardo Paula. Do chão do céu ao azul da alma |José Luís Mendonça Hildebrando de Melo: “Porque é que os africanos permitem ser tratados desta forma?” |Matadi Makola Ndaka, Wiza e Sinedima em “Caminhos do Som”. O afro-jazz e o natural apagão do português |Makola Makola Seu chão, matéria e alma: Wyza voa nas asas do kilapanga| Analtino Santos GRAFITOS NA ALMA Potencial da palavra: um percurso plástico | Akiz Neto DIÁLOGO INTERCULTURAL Maria Eugenia Neto em São Tomé | Conceição Lima Ainda a propósito da Morte de Chinua Achebe |Décio Bettencourt Mateus Nota a propósito do artigo “Revisitando o processo dos cinquenta” Anúncios da CPLP BARRA DO KWANZA Quinito e Dipanda, no Roque Santeiro |Boaventura Cardoso NAVEGAÇÕES Nos 15 anos de capoeira de Cabuenha: “Chamar a dikanza de reco-reco é uma ofensa muito grave.” Concurso de Língua Portuguesa 4 | ECO DE ANGOLA 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Cultura O MISTÉRIO DA MATERNIDADE O caso Umbundu Arjago A pesar de ser o primeiro passo de todo o ciclo de vida da pessoa humana, o nascimento actual tornou-se um acto aparentemente vulgar, o que nem sempre foi assim por se tratar de uma instituição entre os Ovimbundu, população centro-regional de Angola, pois gira sobre ele todo um conjunto de expectativas religiosas, sociais, económicas, culturais, etc. Particulariza-se o caso dos avós, que existem sempre, como também toda a comunidade partilha da mesma satisfação pois, no final de cada parto, geralmente diz-se que “nasceu para todos”. O certo é que dentre todos, os avós sentem a maior satisfação por acreditarem que é no neto onde reside o ser continuador, mais fiel que o filho, o que é perceptível no dito popular umbundu dos mais-velhos: “Eyê okandikwatela vombweti” (será ele o meu guia). Em umbundu, particularmente, mais que instituição, a maternidade muito implícita aos conceitos de terra, água, fogo e respectivas componentes, é acima de tudo uma iniciação, como é entre os demais povos de origem etnolinguística Bantu, por marcar e condicionar a existência da pessoa humana cujo universo ritualístico do seu ciclo de vida caracterizou-se, em tempos idos, por seguintes fases: ucitiwo (nascimento), eywiso (baptismo), efeko e ekwenje (puberdades feminina e masculina), uvala (matrimónio) e olofa (mortes). A terra é o que é a maternidade, portanto, a humanidade. É nela onde se encontra Cyanja Ngombede, a deusa traduzida em imagem de uma “serpente invisível” que habita entre as ravinas das nascentes de ribeirinhas que, criando ela toda a existência gerou nela Nyaweji que teve Namuntu e Samuntu, irmãos gémeos que, do casamento deles por incesto veio a humanidade nasceu o filho unigénito Muntu (Munu em umbundu) o pai de omanu (Vantu ou Bantu no resto de Angola). É na terra onde se sepulta o cordão umbilical (po hopa wange) e os ancestrais, na qualidade de guardiães das comunidades. É nela onde está a água que com o fogo dá a vida. Sendo de passagem inclusiva, todas as fases ocasionam o rompimento com o estado anterior mas com relativa permanência no estado intermédio, tratando-se de ekwenje e efeko caracterizados por algum isolamento quase absoluto. O estado intermédio em causa pode ser considerado como o de trânsito por dar lugar ao novo estado de ser e de estar, proporcionando à pessoa humana uma transformação ontológica pois, na cosmologia umbundu, as forças alteradas quer vitais, quer físicas operam uma mutação radical no status social do ego. A maternidade umbundu torna-se um fenómeno atípico interpretado nas componentes socioculturais com incidência religiosa e, começada com a gestação, é tida como uma combinação de factores extraordinariamente satisfatórios, resultantes de um mistério interactivo entre a força vitalprosperidade e a benevolência activa dos espíritos ancestrais, razão porque frequentemente ouve-se dizer: «Kacitile osinsu. Kalimile, ciyevo cavakwavo (Só não tem filhos quem é estéril. Só é escravo, quem não lavrou)». Portanto, o estabelecimento da relação entre o bem-estar e a maternidade é característico da sóciocultura sedentária umbundu, comunidades heterogéneas Bantu, por cruzarem nelas quase todos os grupos etnolinguísticos de Angola, dada a região estratégica que ocupam, caracterizada pela mais rica rede hidrográfica, originárias da região intermédia entre o planalto e o litoral centro de Angola, limitada pela faixa sul do rio Kwanza e a nascente dos rios Kupololo e Kunene, explicada pela etnonímia mbundu, o que em português significa nevoeiro, em que umbundu quer dizer relativo ao nevoeiro, de onde veio o antropónimo Ocimbundu sendo singular de Ovimbundu, designa aquele que descendeu da zona altas do nevoeiro ou que reivindica os valores do respectivo complexo sociocultural. Daí a relação psicointercultural do universo cósmico da maternidade interpretada na trilogia terra, água e fogo pois, a fertilidade materna é comparável à prosperidade enquanto dádiva ancestral, razão suficiente para tornar misteriosa a maternidade. A partir do momento que se considera gestante, uma Ocimbnundu é tida como portadora de forças extranaturais de credibilidade comunitária, por ser capaz de revelações misteriosas ou dar soluções mágico-religiosas e curativas características da autoridade ancestral. É capaz de curar entorses ou fracturas de índole ortopédica, o que em umbundu se conhece por “okuteka onengo”, bastando as práticas de massagens secas para milagrosamente o paciente declarar-se recuperado. Pela mesma razão de ser possuída por poderes mágico-religiosos ancestrais, não lhe é permitida fazer parte de cerimónias organizadas pelas autoridades comunitárias como o espiritismo designado por “okusingila”, o “ocinganji”, a “kaviyula” ou simples recepção dos finalistas da “evamba”, relativo ao ekwenje, o que se conhece por “okusengula”. Pelas razões acima ditas, no percurso da gestação, o marido abstém-se das relações extra-conjugais, sob pena de causar desaires, influenciar a ira dos maus espíritos, intempéries ou imprevisibilidades. Um envolvimento extra-conjugal não acautelado pode servir de fonte de impurezas contagiosas capazes de perigar a gestante através do calor designado por “olondalu”, o que em português quer dizer fogo ou chamas, de uma parceira ocasional perigando a vida do recém-nascido, como também a do filho, se pernoitar com os pais. Assim, nas relações mulher/marido e genro/sogras, ironicamente é frequente ouvir-se o seguinte: «Húka ndi nenenle olondalu ou huko nenenle onlondalu (que não me traga contágios ou que não lhe contagie)». Depreende-se que a gestação umbundu ocasiona um espaço de interpretações de índole filosófica cujo universo ideológico reveste-se de um pacote fundamental dos binómios proibido/permitido e sagrado/profano. Assistida em casa, por parteiras locais, sendo as mães na linha uterina, no acto do parto a parturiente é colocada sentada sobre um balaio ou comodamente sobre um pano, em frente da parteira que, com os seus pés entre as partes superiores das pernas da parturiente, pressiona a expul- Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 são do bebé. Abstraída tecnicamente a placenta, conhecida em umbundu por “ohopa”, é enterrada no “ocumbo” um tipo de arimbo, horta em volta da casa. Feito o banho, ao pulso direito do recém-nascido, prende-se uma fita necessariamente vermelha na qual se suspende um minúsculo embrulho de amuletos entre partículas de carvão, porção insignificante de cinza e resíduos de animais e aves totémicos cujo conjunto é designado por “ohaka” sendo instrumento protector do recém-nascido contra os olhares profanadores o que acautelando os factos perniciosos a eles devidos. Assim, com este porte, acredita-se na potencialização do bebé, tornando-o invulnerável das acções de gente invejosa, nomeadamente as bruxas e os feiticeiros, deixando-os impedidos das intenções malignas. Em uma semana de sete dias depois do parto, período determinante para a realização da iniciação através do baptismo, da nomeação e da saída do bebé para fora da casa, cuja cerimónia se designada por “po citeta”, a parturiente é declarada maculada, por isso torna-se inápta em coabitar com o seu marido em todos os aspectos incluindo os serviços domésticos. Neste caso concretos, tratando-se de recém-casados, geralmente, auxiliam-se por uma irmã menor dela. Para se considerar imaculada ao sétimo dia realiza-se a “ohôvya” que vindo do verbo okuhovya, sair para fora, é uma cerimónia multifacética por libertar a mãe das impurezas, dar o direito ao pai em dar o nome ao bebé inserindo-o através da libertação da reclusão e do acesso do bebé em relação à parentela e aos demais membros da comunidade. Em tempos idos, enquanto cerimónia que traduz a incorporação do novo membro à comunidade consanguínea, a “ohôvya” acontecia no nonagésimo dia depois do nascimento. Independentemente das razões sócio-económicas, que pesam por se enquadrar na componente urbana, actualmente é de interpretação dúbia por carecer clareza nas fronteiras entre o parto da mãe que passa a ter a vida normal, a liberdade que ganha o bebé com o acesso ao exterior da casa e os participantes não se preocupam com a inserção através do nome. A cerimónia em si iniciada ao alvorecer, fazendo-se coincidir com o nascimento do sol totalmente avermelhado, momento próprio para realizações mágico-religiosas, é antecedida por longo período social em danças ao ritmo de batucadas, partilha de comida diversificada e bebida entre convidados e todos os indivíduos de confiança familiar desde o início da noite. Caracterizada pelas oferendas em espécie e valores pecuniários a favor do recém-nascido, o ritual do sacrifício público de animais de grande porte é indispensável. Tudo começa quando, levado o bebé pela avó mais-velha na linhagem materna assim acompanhada pelos progenitores e demais convidados, fazendo-se coincidir com o momento do alvorecer do sol, em fila indiana deslocam-se até junto da “eyála”, designação do depósito de resíduos sólidos de origem doméstica, geralmente localizado por detrás da casa. O recém-nascido é ali lançado e mantido em cerca de meia hora, entre preces, súplicas aos ancestrais e juramentos proferidos pela avó materna. Em júbilo pai divulgação o nome até então mantido em segredo. Sendo pri- ECO DE ANGOLA | 5 mogénito, o nome ora divulgado tem força que altera os nomes dos pais. Por exemplo, sendo o ego chamado Nganji, a partir desta divulgação ao pai se chama Sanganji e a mãe para a ser conhecida por Nanganji independentemente dos seus anteriores nomes. Desde então o bebé é de acesso livre e o período que se observa é de responsabilidade conjunta, assumida por todos os membros da parentela, quer patrilinear, quer matrilinear, deixando para a progenitora a observação da “okunyamisa”, período longo de amamentação, que em situação normal, pode terminar aos dois anos de idade, cuja interrupção, acto designado por “okusumulã», abre a oportunidade para o livre exercício da vida conjugal dos pais pois a amamentação é, com frequência, tida como mecanismo de planeamento familiar. No caso do parto de “olonjamba”, designação genérica dada aos gémeos, cujo cerimonial se conhece em umbundu por “ocipito colonjamba” é um acontecimento extraordinário considerado como tendo resultado de uma interacção com os ancestrais. Envolvido em mistérios é um conjunto de rituais de expressa ambivalência característicos de um universo hermético difícil de interpretar, pois se de um lado é motivo de júbilo, sendo um parto comum, por outro lado, justifica a profunda tristeza por carregar todo um conjunto de dificuldades sociais, perigos, desgraças e mistérios. A montagem do cenário deste tipo de partos começa com o anúncio do Sonjamba, às mães da sua esposa, tão logo que se apercebe do parto para os devidos preparativos. A maternidade umbundu torna-se um fenómeno atípico interpretado nas componentes socioculturais com incidência religiosa No final do acto, as parteiras insultam ritualmente os pais e os recém-nascidos fazendo uso de toda e qualquer obscenidade em obediência à tradição sem que tal perturbe a moral pública. A maculada Nonjamba é acompanhada, por membros da “Olohayanganja”, as avós uterinas e patrilineares, até ao ribeiro mais próximo, a fim de tomar o banho ritual determinante para a sua aparição pública. É preparado um guisado de “ondamba”, um tipo de barro escuro extraído das fontes de riachos, “omasi” designação que se dá ao azeite de palma aplicável para fins terapêuticos e cosméticos, uma porção de “eve lyanyahã”, areia extraída no centro de cruzamentos, adicionada à porção de terra da “eyala” com um pouco de açúcar e cinza. De regresso ao domicílio a Nonjamba apenas de fralda (ulambo) e um pano atado na cintura com uma “eponda” (cinturão longo de tecido escuro) que lhe passa entre as pernas, senta-se sobre o pano estendido no chão virada ao Sonjamba e entre eles estende-se o “ongalo” (balaio) com o guisado. Nesta posição o Sonjamba recebe de sua mãe mais velhas uma cabaça de bebida alcoólica equivalente a um litro, para proceder a distribuição ao brinde em demonstração do verdadeiro apreço familiar. Em todas as circunstâncias, três critérios fundamentam a atribuição de nomes aos bebés: memorização de parentes falecidos a título de homenagem desde que tenham influenciado a vida familiar; opção pelos nomes invulgares que, a título de protecção, afugentam os maus espíritos; nomes que descrevem situações que marcam o contexto da realização do parto. Na nomeação de gémeos consta alguma ambivalência por opção de nomes de animais predefinidos nomeadamente o elefante (Njamba), o hipopótamo (Ngeve) e o leão (Hosi) por fazerem parte da filosofia umbundu. Quando os gémeos são do sexo masculino ao primeiro dáse o nome de Njamba e o segundo de Hosi. Sendo ambos do sexo feminino a primeira toma o nome de Njamba e a outra de Ngeve. Há casos em que Ngeve também é atribuído ao rapaz, mas a atribuição de Hosi às meninas não acontece. Caso sejam de ambos os sexos, ao rapaz chama-se Hosi e à rapariga é atribuído o nome de Ngeve. Sendo primogénitos basta os prefixos “Sa ou So” de “ise” o que significa pai, e “Na” de “ina” que quer dizer mãe para dar novos nomes aos progenitores. O pai de passa a chamar-se “Sonjam- 6 | ECO DE ANGOLA ba” e a mãe, de “Nonjamba” ou “Nanjamba”. A onomástica de gémeos simboliza força do leão, a grandeza e o equilíbrio do elefante e o hipopótamo é considerado a fonte da vida pelo que comparando com a Sonjamba sendo poderosa, protectora e geradora da vida, os gémeos revestem-se de mistério, assim são tidos como inseparáveis protectores da pessoa humana. Independentemente dos factores de índole religiosa, económica, social ou cultural, a opção tradicional do sétimo dia para a cerimónia de “eywiso” prende-se com o sarar do umbigo por isso este dia inaugurado com a recepção dos convidados é designado por “eteke lyohopa”. Para tal “elonga lyotuma liyéla”, um prato novo, preferencialmente de cor branca, alojando o composto de óleo de palma e takula o que simboliza a abundância, a paz e a tranquilidade, é colocado num balaio localizado junto da porta de acesso ao recém-nascido para que, ao chegarem os visitantes e convidados se untem na testa com o indicador depositando as oferendas preparadas para efeitos, antes do acesso ao bebé. No que respeita aos gémeos a cerimónia exige um “unyõgi”, pequena cabaça de menos de cinco litros de bebida fermentada, geralmente “ocisangwa” ou “ocimbombo” e um “ongoalo”, espécie de balaio de, mais ou menos um metro quadrado, que simboliza a abundância. Havendo um primogénito, envolve-se a figura de “onima”, estímulo pecuniário de valor relativo a seu favor. Um “usese” (uma enxota balas), “ombya yotuma” (uma panela de barro) com alguns quilogramas de feijão, omasí» (litro de azeite de palma) “ocanji yo nyãñe” (uma galinha branca bem nutrida) e bebidas fermentadas locais nomeadamente ocimbombo, ocisangwa e quando possível o hidromel, é tudo o que é necessário para se considerarem criadas as condições para o evento. As “Olohayanganja”, chefiadas pela “Cindakata” casta de mulheres detentoras de poderes mágico-religiosos com exercícios relativos aos gémeos, aparecem em cena participando em toda a jornada desde ao início dos preparativos do cerimonial ainda ao longo do pôr-do-sol, para repelirem os maus-olhados. É a Cindakata responsável da terapia “funerária” da ohopa que antes, da ribeira mais próxima, extrai a ondamba para barrar a panela de barro onde é depositado visando a sua rigorosa conservação, aconselhada para melhor a protecção dos gémeos, por causa dos maus-olhados, pelo que os umbigos podem ser roubados para fins perniciosos. Na expectativa da máxima certeza do quão é segura esta operação, a respectiva panela é levada por ela própria, que acompanhada pela mãe mais-velha da Nomjamba, enterram-na secretamente ao longo da ribeira. A escolha do local obedece o carácter sagrado que a água representa na cosmologia umbundu. Daí em diante o estado de saúde dos gémeos servirá de termómetro na medição do comportamento conjugal dos pais. O gozo de boa saúde traduz a honestidade e confiança conjugais, significando que a Nonjamba “walava ondalu”, dito em umbundu querendo dizer que “foi excelente guardiã do fogo” pois, o contrário explica traições e adultérios. Com o balaio vazio pendurado sobre a cabeça do Sonjamba ao casal é untado o guisado, cuja terapêutica é de responsabilidade 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Assistida em casa, por parteiras locais, sendo as mães na linha uterina, no acto do parto a parturiente é colocada sentada sobre um balaio ou comodamente sobre um pano das Olohayangaja. A mãe mais-velha da Nonjamba recebe os gémeos até então sob cuidado das Olohayanganja e um por um entrega à progenitora, colocando-os lado a lado. Ritualmente duas Olohayanganja, apoderamse de uma das pernas dos cônjuges untados e, em marcha lenta, seguidos pelo préstito de parentes amigos e convidados, arrastamlhes para fora de casa ao encontro da eyala pronunciando obscenidades aos pais e aos respectivos bebés. Postos no local, depois de untadas as mãos com o guisado, a mãe maisvelha da Nonjamba recebe-os e entrega-os ao Sonjamba que enquanto continua com os bebés no colo sua esposa é amarrada pela cintura na qual é preso um embrulho de amuletos e uma varra entregue ao Sonjamba que entrega osgémeos à Nonjamba. Livre dos bebés pendura o embrulho sobre o ombro. A Nonjamba recebe dele o balaio e coloca sobre a cabeça enquanto a sua mãe maisvelha puxa-lhe pela corda pendente na cintura à medida que a mãe mais-nova açoitalhe com o usese. Os assistentes participam do cenário com gritarias de obscenidades e tudo quando mais for insultuoso expirandolhes jocosamente a água. Em marcha indiana perseguem o Sonjamba alvo impávido das maledicências dos presentes. Na mesma cadência o préstito marcha pelo bairro afora a fim de fazer apresentação dos gémeos à comunidade periférica. Depois do contacto directo com a comunidade em geral, o préstito vem de volta à eyala e a mãe mais-velha uterina aloja incomodamente os bebés no balaio estendido no chão, provocando-lhes alguns gemidos e grito, que a presto os participantes insultam-lhes em uníssono no mesmo grau que sofrem de insultos os seus progenitores. A invulgaridade deste tipo de partos pode representar para uma dada família inúmeras dificuldades razão porque no decurso do cerimonial é frequente ouvir dizer o seguinte: “Vakwenle va cilyalya levando, ove olinga hamú hamú. Tala, si nda cakale cakãi vavali calinga cove likawove” (Os outros comem com calma, você precipita-se na gulodice. Veja, não acha que o que seria para duas mulheres está tudo consigo)? Recolhidos do balaio onde incomodamente se alojaram para aturarem a zaragata ritual, são devolvidos à Nonjamba ora desamarrada que, encabeçando a fila indiana com o balaio sobre a cabeça, os recém-nascidos nas mãos e o marido atrás com a varra Cultura pendurada sobre o ombro, todos os participantes seguem-lhes de regresso à casa. Postos em casa os bebés são expostos aos participantes e os instrumentos utilizados em todo o cerimonial, são poisados em locais seguros enquanto, jubilosos os progenitores prestam um juramento público diante dos seus gémeos, em que manifestam o espírito conjunto de sacrificarem-se por eles na miséria ou nas doenças. A fase seguinte das cerimónias consubstanciada no momento de comes, bebes e danças, começa ao som do batuque com o fim do juramento. Insultando, no fim da refeição festiva, a Cindakata recebe novamente os bebés e antes de os deitar no mesmo balaio e lançar-lhes sobre a cama dos pais deixa os habituais conselhos, com destaque ao Sonjamba. Eis alguns exemplos: antes que os gémeos completem o primeiro ano de idade, a Nonjamba não participa em fúnerais; na eventual imprescindibilidade, antes do cadáver sair do interior da casa, a avó mais-velha uterina encarrega-se deles. Depois do funeral são obrigados a mamarem um de cada vez, enquanto a avó aconselha-os, por necessidades de lhes justificar a imperiosidade da participação da mãe ao funeral pelo que suplica-lhes compreensão. Em agradecimentos da participação activa da Cindakata e a sua casta, o Sonjamba doa-lhes parte das oferendas arrecadadas em toda a jornada. Doravante os pais dos gémeos são autorizados pela comunidade e parentes a praticarem obscenidades livremente, onde, como e com quem quiserem. Depreende-se que na maternidade umbundu o nascimento de gémeos torna-se um fenómeno por se revestir de mistérios, pelo que o seu cerimonial nem sempre oferece facilidades de interpretação, por isso a maternidade traduz a força vital comunitária, da existência à continuidade. Não há matrimónio sem que haja maternidade porque esta interliga a existência entre as comunidades vivas e os ancestrais, porque com frequência se pode ouvir este dito: “Kacitile osinsu, kalimile cyevo cakwavo (miserável é quem não é progenitor, escravo é quem não tem lavra”)” Bibliografia recomendada ALTUNA, P. R. R. A. (1993). “Cultura tradicional Banto”. 2ª Ed. Secretariado Arquidiocesano de Pastoral. Luanda. ALVES, Pe. A. c. s. Sp. (1951). “Dicionário etimológico bundu – português”. Vol. I. Lisboa. ARJAGO (Armindo Jaime Gomes). (1999). “Epata Lúsoma. Apontamentos Etno-históricos Ovimbundu”. Núcleo Nacional de Recolhas e Pesquisas (NNARP). Edição do autor. ARJAGO (Armindo Jaime Gomes). (2002). “Os Sobas. Apontamentos Etno-históricos sobre os Ovimbundu de Benguela”. Benguela CHILDS, G. M. (1949). “Kinship and character of the Ovimbundu – being a description”. London. Dawson of Pall Mall. GUENNEC, G. c. s. sp., VALENTE, J. F. c. s. sp., (1972). “Dicionário português – umbundu”. IICA. Luanda. MALUMBU, M. (2005). “Os Ovimbundu de Angola: Tradição – economia e cultura organizativa”. Edizioni Vivere In. Roma. Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 ECO DE ANGOLA | 7 18 de Abril Dia Internacional dos Monumentos e Sítios papel da educação na salvaguarda e valorização do património em todo o mundo. As Jornadas à escala nacional Emanuel Caboco Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios, mais conhecido pelo acrónimo ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) – Organização Não Governamental Internacional, criada em 1964 – preocupado com a degradação que, em todo o mundo, os mnonumentos e sítios estavam a sofrer, entendeu proclamar as Jornadas Internacionais dos Monumentos e Sítios no dia 18 de Abril, desde 1982. Embora seja reconhecido que as acções em torno da conservação, preservação e valorização dos monumentos e sítios devam merecer uma atenção constante e permanente, neste dia, em todos os cantos do planeta, realizam-se actividades especiais, com o fim de se proclamar a necessidade e, díriamos mesmo, a obrigatoriedade de se preservar para as gerações presentes e futuras, um legado que é testemunho eloquente da presença e da acção humana ao longo dos tempos. O O tema do ano 2013 São, anualmente, proclamados lemas ou temas que devem articular o conjunto de acções e actividades em torno do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios. Este ano, as comemorações da efeméride, foram e continuam a ser realizadas sob o signo da Educação Patrimonial. O ICOMOS propôs o tema “Património + Educação = Identidade”, justamente com o objectivo de promover a efectiva ligação entre as realidades locais, regionais, nacionais e internacionais e o Tem se registado no nosso país, algumas iniciativas institucionais e privadas com o objectivo de se alargar a discussão sobre a importância da Educação Patrimonial no processo educacional / pedagógico, como propulsora de novas tendências e práticas preservacionistas do Património Cultural. Uma dessas iniciativas foi, efectivamente, a realização, recentemente, pelo Ministério da Cultura, de uma conferência internacional sobre a Educação Patrimonial. Ao ter sido escolhido este tema, reforça, cá entre nós, a chamada de atenção para o facto de que, de um modo em geral, a deficiente preservação e valorização do Património Cultural no nosso país, se dá também, pelo desconhecimento que a maior parte da população possui relativamente à essa questão que, infelizmente, ainda, não é tratado no círculo escolar. Contudo, no nosso País, as comemorações da efeméride, têm tido, nos últimos anos, maior incidência na elaboração de legislação, nas acções de identificação, inventario e classificação dos monumentos e sítios que são considerados de valor histórico, cultural ou paisagístico. Outras acções de promoção e sensibilização também têm espaço, desdobrando-se na identificação o património com placas de classificação, palestras, exposições temáticas, etc, etc... Apesar de todo o esforço envolvido na protecção e valorização do património, é bom dizer-se, que ainda estamos muito longe daquilo que é, efectivamente, necessário fazer para que se possa garantir a sua subsistência. Pois, os desafios que hoje se colocam, não sómente ao Estado mas tamém às comunidades, são cada vez mais intensos, sobretudo porque estamos cada vez mais, confrontados com tendências radicais, como a destruição, descaracterização e vandalismo que afectam sistemática e cruelmente o património. A efeméride tem, portanto, a mesma importância e significado que têm as outras, como são o “Dia Mundial da Saúde”, o “Dia Mundial do Turismo”, o “Dia Mundial do Ambiente”, etc.…. Os indicadores nacionais Actualmente, figuram na Lista do Património, mais de duas centenas de bens tombados (classficados) em todo o país, destacando-se vários monumentos (de arquitectura militar, civil, e religiosa) zonas e sítios históricos, mitológicos, paisagísticos, culturais, estações arqueológicas e de arte rupestre, etc. Uma outra lista refere-se ao Património Inventariado (entenda-se em vias de classificação) com uma cifra com mais de dois mil bens. Os tratamentos de levantamento, identificação, inventario e classificação prosseguem, tendo tomado um maior incremento com o lançamento, pelo Ministério da Cultura, com o concurso do UNESCO e dos Governos Provinciais, da “Campanha Nacional de Levantamento do Património Arquitectónico, Histórico, Cultural e Natural” em toda extensão do território angolano. É importante, no entanto, que, a par dessas acções, sejam desencadeados esforços conjugados no sentido de, junto dos distintos segmentos da sociedade civil e das autoridades do país, se difundir a importância do património e as vantagens sob os pontos de vista político, económico e social da sua conservação, preservação e valorização. 8 | LETRAS 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Leonel Cosme, perfil biográfico Cultura A literatura angolana deve-lhe muito João Serra L eonel Cosme, natural de Guimarães (Portugal, 1934), jornalista, escritor, poeta e investigador literário, viveu durante três dezenas e meia de anos em Angola, tendo sido fundador e organizador, conjuntamente com Garibaldino de Andrade, a partir de 1960, das Edições Imbondeiro de Sá da Bandeira (hoje, Lubango). O programa editorial, sua justificação e objectivo, era de comprometimento com a promoção da nova literatura que então ia sendo feita em Angola por criadores literários sem possibilidades de dar à es- tampa as obras que produziam, que quase geral iam parar à gaveta por falta de meios editoriais no país, salvo no caso de autores comprometidos com o regime colonial, cujos livros eram impressos em Lisboa. No entanto, um crescente manancial de títulos, em muitos casos com subjacente cariz político e de defesa dos valores nacionalistas por uma geração de jovens já nessa altura envolvidos com uma atitude contestatária relativamente ao colonialismo, depressa começou a ser alvo de represálias por parte do regime de António Oliveira Salazar e das autoridades da província. Pela Imbondeiro foram editados autores não apenas de Angola, mas também da Metrópole do império,do Brasil e das restantes colónias, em edições próprias, mas pelas suas várias antologias de prosa e poesia passaram nomes que viriam a ter grande notoriedade literária, como António Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto, Luandino Vieira, António Cardoso, Mário António de Oliveira, Costa Andrade Ndunduma, Aires de Almeida Santos, Alexandre Dáskalos, Arnaldo Santos, Domingos Van-Dúnem, Ernesto Lara Filho, Alda Lara, Henrique Abranches, Henrique Guerra ou Mário Pinto de Andrade, alguns dos quais cumpriam nessa altura penas de cadeia em prisões políticas coloniais. Por isso é que as Edições Imbondeiro, com livros de baixo custo gráfico para chegarem às livrarias e aos potenciais compradores a preços acessíveis, constituíram um marco particularmente importante na edição da literatura angolana na década de 60, revelaram uma diversidade espantosa de novos autores e publicaram as suas obras independentemente de serem, ou não, afectos ao regime. A 1.ª Canção do Mar e Duas Histórias de Pequenos Burgueses, de Luandino Vieira, foram ali publicadas. Entre outras actividades cultu- rais e cívicas, como a formação de jornalistas de rádio e frequente participação activa em eventos literários, sociais e regionais na Província da Huíla, Leonel Cosme trabalhava em Sá da Bandeira na área da comunicação social. Após 30 anos em Angola, regressou a Portugal e prosseguiu, no Porto e em Lisboa, a actividade jornalística que já desenvolvia em Angola na Imprensa e na Rádio. Em 1990, retirou-se do jornalismo profissional para se dedicar exclusivamente à actividade literária, com colaboração em jornais e revistas da especialidade, continuando a escrever obras de ficção e ensaio histórico-literário. Tem participado em congressos, seminários e colóquios promovidos por institutos universitários de Portugal, do Brasil e de Itália. Em trabalho de investigação, deslocou-se duas vezes ao Brasil, com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian. É colaborador da Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. Leonel Cosme “A Lusofonia começou com as Edições Imbondeiro” Entrevista de João Serra Fotos de Arquivo Jornal Cultura: As Edições Imbondeiro, do ponto de vista político e literário, foram uma verdadeira pedrada no charco da estagnação editorial no início da segunda metade do século passado. Que critérios de selecção de originais e autores presidiram ao lançamento desse movimento cultural? Leonel Cosme: Objectivamente, preencher o vazio editorial existente após a extinção da revista CULTURA da Sociedade Cultural de ANGOLA; subjectivamente, dar voz aos silenciados escritores e poetas consagrados e aos novos que só aguardavam uma oportunidade para dizerem, como Agostinho Neto, “Nós somos”. Cultura: Estava-se em Sá da Bandeira (hoje Lubango), num período particularmente policiado pelas autoridades portuguesas e seus mecanismos repressivos contra a liberdade de expressão, devido ao início de movimentos de libertação nacional e de guerrilhas nas colónias. Foi difícil escapar a esses espartilhos? LC: A nossa estratégia era, mediante um ecletismo temático, que implicava confundir alhos com bugalhos (arriscando sermos criticados, ainda hoje ), ainda durou cinco anos, até a PIDE/DGS dizer: “Basta”. Cultura: Que autores deram o pontapé de partida nesse movimento editorial e qual o flu- xo de obras publicadas pela Imbondeiro até ao final do projecto? LC: A partida deu-se com a adesão à ideia lançada pelo Garibaldino de um grupo de jovens escritores cujas profissões os fixaram no Lubango. Num capítulo do meu livro Agostinho Neto e o seu Tempo conto a longa história da IMBONDEIRO. Mas foi rapidamente uma adesão mais vasta dos leitores que levou as suas publicações a todos os territórios de língua portuguesa (incluindo o Brasil). As tiragens chegaram a atingir 2.000 exemplares. Cultura: Você e o Garibaldino de Andrade foram incomodados várias vezes pela Pide/DGS. Foi isso que determinou o fim das actividades de edição de livros, em geral de autores que também se situavam à margem da ideologia fascista das autoridades coloniais? LC: O Garibaldino escapou à acção directa da PIDE/DGS porque, sendo professor, nunca se envolveu em actividades políticas, o que não foi o meu caso, publicamente comprometido com a participação na campanha eleitoral de Humberto Delgado. Cultura: Qual era o âmbito da distribuição dos livros? LC: Assinaturas, principalmente, e vendas nas livrarias. Cultura: As edições também estiveram acessíveis a poetas e escritores de outros (futuros) países de língua oficial portuguesa. Nesse sentido, as Edições Imbondeiro eram muito solicitadas? LC: A “Lusofonia” começou com a IMBONDEIRO. Mercê de referências abonatórias feitas por críticos reputados como Manuel Ferreira, Eugénio Ferreira, Carlos Ervedosa e Antero de Abreu – e de todos os jornais - as nossas publicações atraíram autores de várias origens. Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 Cultura:O que faltou para voos mais altos? LC: Faltou tempo para acolher todos quantos desejariam participar na empolgante aventura. Cultura: Para além de obras individuais de autores, a Imbondeiro também organizou e publicou antologias. A distribuição e divulgação dessas publicações ultrapassaram as fronteiras de Angola. LC: As antologias, de contistas e poetas – CONTOS D’ÁFRICA e MÁKUA – foram tão longe quanto a “Colecção Imbondeiro”, não obstante a PIDE/DGS ainda ter apreendido alguns exemplares que restaram nas nossas instalações, onde apreenderam todos os documentos existentes, incluindo originais à espera de publicação. Cultura: Você próprio editou vários livros de sua autoria sob esta chancela. Haveria outras alternativas de publicação, dentro ou no exterior de Angola? LC: Na altura não precisava de mais. Cultura: À margem da actividade editorial eram promovidas outras iniciativas culturais? LETRAS | 9 LC: Colaborámos, pessoal ou institucionalmente, com todos os organismos culturais existentes no Lubango – Departamento Cultural do Município, delegação da Sociedade Cultural de Angola, Cine-Clube da Huila, Teatro Experimental, Circulo de Cultura Musical, etc. – além dos jornais e rádios locais. Cultura: Olhando à distância, como avalia hoje a importância das Edições Imbondeiro? Ajudaram a despertar consciências e foram estímulo para um crescente surgimento de mais obras e autores? LC: Responderei com o juízo de Eugénio Ferreira, expresso no seu livro Espiral Literária, editado pela SCA em 1989: Centrados em quatro frentes, a Associação dos Naturais e a Sociedade Cultural de Angola, em Luanda, Edições Imbondeiro, no Lubango, e a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa e Coimbra, a juventude angolana cumpriu corajosamente o seu dever cívico e histórico. Citação REGRESSO DE ANGOLA À ÁFRICA “Até à independência, vivi durante 25 anos numa Angola que pensei pudesse vir a ter uma matriz fundadora da nacionalidade realizada numa espécie de sincretismo cultural, em que a língua portuguesa desempenharia um papel de intermediário neutral entre as diversas culturas nacionais em presença e de ponte com o mundo exterior, nomeadamente com os países onde se falava a língua portuguesa. Em 1960, quando a editora IMBONDEIRO surgiu em Sá da Bandeira, e depois até à sua extinção, em 1965,devidoàintervençãoda PIDE, ainda não estava institucionalizada a Lusofonia, mas era com a convicção de que a à língua portuguesa estava reservado um importante papel no futuro que Garibaldino e eu próprio aceitamos meter ombros a uma iniciativa que, sem capitais nem apoios institucionais, nos absorveu totalmente durante cinco anos, afectando sobremaneira as nossas vidas pessoais. Essa convicção, e a de que a futura cultura angolana se deveria desenvolver em clima de verdadeiro eclectismo, foi expressa de muitas maneiras: bastará ler os “propósitos” com que inaugurámos as várias colecções. A eclosão da luta de libertação nacional e o até certo ponto compreensível, mas excludente, es- pírito nacionalista que se desenvolveu a partir daí tornaria a IMBONDEIRO “inadequada aos olhos do sector mais “ortodoxo” desse nacionalismo, que não dissociava a literatura da acção política. Ora, tendo embora convicções políticas definidas, tanto eu como o Garibaldino, coincidimos na orientação que convinha a uma editora “lusófona” que não se propunha investir contra moinhos de vento. E mesmo assim, viu-se o final. Os outros cinco anos da minha vivência em Angola já independente, entre 1982 e 1987, levou-me a refazer o pensamento anterior a 1975: abjurando o modelo sincrético, Angola regressa à África. E como, seguindo o sábio princípio de que “a quantidade determina a qualidade”, não será mais de luso-tropicalismos, croulidades ou outros quejandos que temos de falar agora, mas de africanidade, isto é, do direito de um povo se reencontrar a partir das origens.” (Leonel Cosme, excerto de palestra em conferência literária) 10 | Letras 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Viriato da Cruz Cultura Metáforas e retalhos da vida de um poeta por ocasião do seu 85º aniversário E ntre os poucos seres humanos que, pelos seus feitos, conseguem da lei da morte se libertar, estão alguns poetas. Apenas alguns. Não pela sensibilidade própria da arte, mas pela forma como a encaram e pela leveza com que a produzem. Entre esses poucos seres, no caso de Angola, está Viriato Francisco Clemente da Cruz, o conhecidíssimo poeta Viriato da Cruz, que, se estivesse entre nós, apagaria 85 velas no dia 25 de Março. O mês da poesia. A. Fragoso Trindade Natural do Porto amboim, província do Cuanza-sul, Viriato da Cruz era filho de ana Cruz e de abel Cruz, dois mestiços, e tinha três irmãs. O seu pai era um indivíduo abastado, possuidor de propriedades agrícolas e criador de gado. esse facto fez com que se lhe recusasse o pedido de bolsa, depois ter concluído o sétimo ano do liceu – episódio que o marcaria para toda a vida. Com a separação dos pais, Viriato passou a viver com a avó - a velha que, segundo Mário Pinto de Andrade, seria a responsável pela carga de angolanidade que o poeta carregava nas veias. Um ser incomum. Amigo dos seus amigos. Tão amigo que, como que prevendo o seu futuro, selava as suas amizades com pacto sagrado. Umas vezes cumprido, outras não. Tal aconteceu, quando mais novo, com o amigo Tomas Jorge, filho do poeta das noites tropicais, e mais tarde, aquando da sua estadia no hospital Maria Pia, por ter contraído tuberculose, com Mário de Andrade, mais ou menos em 1944. Tão atencioso com os seus, ao ponto de receber o jovem Serrano em sua humilde casa e pô-lo sentado à sanita para conversar, para ouvir as suas inquietações, enquanto a família dormia. Aquela terrível doença levou-o à cidade do Lubango, lá os ares são outros, muita fruta e leite fresco. Para se distrair, trabalhou na secretaria do Liceu Diogo Cão, a Mandume do nosso tempo. Seria essa terrível doença, que se aproveitando das suas debilidades física e espiritual, a responsável pelo seu prematuro desenlace do teatro da vida. Tão cedo que ele desapareceu! Apenas com 45 anos! Somente o florir das acácias! Foi um intelectual do mais alto calibre. A princípio preocupado com as coisas da terra, talvez estrategicamente como trampolim, Um ser incomum. Amigo dos seus amigos. Tão amigo que, como que prevendo o seu futuro, selava as suas amizades com pacto sagrado. Umas vezes cumprido, outras não e, depois, assumidamente engajado na luta pela independência. Foi o criador e guia intelectual do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola ao lado de António Jacinto, aquele, o pequeno mas resoluto. Movimento que pretendia descobrir Angola. Para materializar o seu projecto, escreveu as primeiras e as mais belas peças de poesia genuinamente angolana. Somente onze poe- mas chegaram ao nosso conhecimento. Poucos, sim, mas sem igual, que lhe rendeu o titulo de o primeiro poeta verdadeiramente angolano. Os textos de Viriato resumem cabalmente as pretensões do movimento que criou. Aí, vão apenas quatro: o poema Sá da Bandeira é uma apologia às numerosas belezas que encerram o nossa linda Angola. Terra que tanto amou! O poema Makézù é um discurso contra a colonização, os novos hábitos, assimilação cultural e tudo de nefasto à angolanidade. Numa palavra: anti - assimilacionista. O texto Serão de menino representa a assunção de uma posição vincadamente africana. Talvez tivesse dito: - chega de fábulas de Jean de la Fontaine. O nosso fabulário é melhor! Em Só Santo, Viriato, dramaticamente, critica os emergentes sociais de Raça, os novos ricos, que usavam o dinheiro é a influência para prostituir as Bessanganas e apadrinhar muleques, que, em muitos casos, eram gerados por eles. Diz à boca miúda que o pai do poeta também tinha musseques e mais musseques, que era amante de Bessanganas de verdade e que também foi visto a descer a calçada com bengala na mão e cachimbo apagado. Em Mamá negra – Canto de esperança o poeta diz: eu conheço o drama da minha gente. Eu sinto a vossa dor, meus irmãos! O que diria um amigo dos velhos tempos. Estava atento ao movimento da terra. E, para não cansar, vou terminar com o famosíssimo, o bem afamado Namoro. Aparentemente o poema é apenas uma balada sentimental, em que o predicador procurar, por todos os meios a seu alcance, conquistar uma linda moça - de certeza. Com este poema, Viriato atinge o auge dos seus desígnios. Assume radicalmente uma postura oposta a que Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 fora formatado nos tempos do liceu. Demonstra um profundo conhecimento de Angola ao fazer referências à sua fauna e flora. Conhecia as estações do ano. Eram apenas duas: a das chuvas e a do cacimbo. O sol começa a brilhar mais em Novembro, dando calor ao sumo das mangas e ajudando as acácias a florirem. Conhecia a finura do algodão que se produzia em Angola por angolanos. Sabia que o jambo era o mesmo que moreno, por isso o comparou com o corpo dele. As rosas são universais, pertencem à humanidade. Não mais a pêra ou a uva, ele conhecia o maboque, que era tão rijo e tão doce, e laranjas, atenção: laranjas do Loje, ali no Kimuala, grandes, redondas e gostosas! Os dentes, de uma beleza sem fim, eram marfim. Era necessário abandonar aquele mundo de ilusões. Temos os nossos deuses e avô Xica era uma das seus representantes cá, na Terra. Então o reencontro consigo mesmo fez mudar o rumo dos acontecimentos. Distante das valsas, nos bailes dos sábados infalíveis, ao som da rumba e entre o aplauso dos convivas, Benjamim atingiu o seu desideratum. Era necessário cumprir com certos princípios culturais, pois a moça poderia ser tida por leviana, dizia Óscar Ribas. Depois deste tempo de pura magia, resolveu sulcar outros mares, impelido, talvez pela idade e por outras causas. Tinha crescido. Já tinha 27 anos. Era um homem feito. Fundou, com dois amigos, o Jacinto e o Mário António, o poeta precoce, que leu Jubiabá e acreditou que era António Balduíno, o Partido Comunista Angolano, por influência dos mais velhos da Liga, da qual LETRAS | 11 foi um fiel frequentador, mas, debalde, não teve pernas para andar, morreu à nascença. O mundo é assim. Dizia um mais velho barbudo: - É selecção natural. Mais uma chuva, apenas uma. Novos amigos, outras conversas e saia à luz, em 1956, o mais apurado documento, que sintetizava as aspirações de um povo cansado de sofrer. Nesse tempo, o africano escorria como um saco de sal. Cinco longos séculos de escravidão. Esse documento é o tal Manifesto, que dizia que era necessário criar um Amplo Movimento Popular de Libertação de Angola, do qual, depois de ter resistido a pressão do parto, Viriato foi o seu primeiro secretário. Esse magnífico documento foi levado, há pouco tempo, à Espanha por um amigo, o JL, para um breve debate, e o resultado foi extraordinário: os académicos levantaram serias dúvidas sobre a autoria do texto e do período da sua elaboração. A exposição e a clareza das ideias são geniais. Era muito avançado! Deixou de escrever poesia, não se sabe do livro de filosofia bantu que pretendia escrever, e dos seus desenhos, ninguém não se fala, e foi. Foi para Europa, embarcado no Paquete Uige, em 1957, alegadamente porque os problemas de saúde se tinham agravado. Participou em congressos, conferências, fazendo de porta-voz dos seus patrícios. Em fim, voltou a África. Veio a confusão! Procurou refúgio entre os seus, pelas bandas do norte. Não resultou. Rumou para a distante e imensa China. Não mais voltou. Partiu para a eternidade. Era 13 de Julho de 1973. «E pela sua obra valerosa, conseguiu da lei da morte se libertar.» 12 | LETRAS 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Cultura Manuel Rui, o maior griô da banda, põe na zunga Kitandeiras & Aviões S José Luís Mendonça Foto: Paulino Damião “50” empre o disse em surdina, mas agora revelo-o à boca cheia: o Manuel Rui é o maior griô da banda. Conta descontando falas na boca do povo. No mês de Abril, colocou na zunga Kitandeiras e Aviões numa única bacia cheia de novas palavras antigas. E o que parece escrito é masé falado no papel, as palavras montam o filme, a rua vem a rodar na câmara dos nossos olhos, se projecta no próprio real, mas no fundo é ficção, é imaginário, é invenção da nua verdade. M. Rui nos oferece a sua mais recente bacia de palavras: KITANDEIRAS E AVIÕES. Kitandeiras essas que são do M. Rui e aviões tais que não pertencem ao M. Rui. As kitandeiras até nem são do M. Rui, as kitandeiras são o M. Rui, ele ainda. Estão dentro do espírito dele, de tal modo que ele as xinguila na sua prosa, mas este xinguilamento não é de agora, já o vi em anos recuados, por exemplo, no conto Mana Parabólica e nas crónicas da Maninha. Nestas seis estórias: Cem Metros, O terreno, O Preço é́bom, pai!, O Vietcamba, Sábado e Os pés e os Sapatos vemos como, para tecer essa arte de bem escrever, o autor convive com esses personagens, para poder captar-lhes as nuances, reforçar-lhes as identidades, ou criticar-lhes o comportamento burguês. III. Realismo feiticista Dentro de uma perspectiva utilitarista e hedonista que é o prazer de ler e viver a narrativa, como no cinema, a minha condição de poeta impera e realizo uma abordagem com sentido artístico, uma possível fuga aos critérios da teoria geral da literatura. Nestes seis contos de Kitandeiras e Aviões, de M. Rui, tratase ainda da invenção (feiticista) do real (vejam que eu, longe dos meandros da teoria da Literatura, não falo da clássica recriação literária, mas da invenção do próprio real, coisa que só os feiticeiros da palavra conseguem). Todo este exercício provém do propósito de dar continuidade a uma literatura africana autóctone, na linha dos mestres que nos antecederam, como Chinua Achebe, Amadou Kourouma, António de Assis Júnior, Agostinho Neto, Luandino Vieira, Óscar Ribas e outros. Manuel Rui recorre a um realismo mágico de cariz natural inserido na normal factualidade da narrativa. Aqui deparamos com um Manuel Rui embarcando genialmente, qual griô pós-tradicional, na narração de estórias inverosímeis ao nosso entendimento materialista do mundo, mas capazes de fascinar as nossas almas sedentas de sonho e imaginação. De referir a fluidez e o paroxismo do estilo de lava quente e de água do mar de Kitandeiras e Aviões, que ora arde em sarcasmos mordazes, ora se evapora em doce maresia com descrições do ambiente e cenas de volúpia e de solidariedade humana. Manuel Rui, no dizer de Marta de Oliveira, “opta por uma estrutura narrativa simples e atraente, escrevendo no registo da oralidade quotidiana. (…) Um dos elementos que contri- Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 buem para emprestar ao estilo de Ma¬nuel Rui a sua modernidade e intemporalidade é, sem dúvida, a sua re¬lação com a língua falada, tanto no vocabulário como na sintaxe.” A este processo, a autora em referência chama de “coloquialismo” que permite “um melhor enquadramento da realidade descrita no cenário da rua e do quotidiano”. Este elemento chamado coloquialismo, uma invenção do português angolanizado (linguagem popular) traz uma intencionalidade subjacente que é a de consolidar uma literatura angolana autóctone. Temos aqui, portanto, nesta técnica narrativa do realismo feiticista os seus fundamentos tele-axiológicos, na identidade cultural da narrativa e no seu discurso. E constatamos, por isso, que a prosa destes missossos axiluandas é, como sempre, escrita com tal paixão que as palavras se arrumam como quem arruma frutas nas bacias sobre o passeio. Cheira-se-lhes o aroma, vê-se-lhes a cor, apalpa-se essas frutas no pregão das quitandeiras que se transfigura do lídimo pregão para o andamento cadenciado e itinerante do discurso narrativo. Luanda é Hollywood, madeira sagrada onde o povo (quitandeiras, zungueiro(a)s e kinguilas) se purifica crucificado a um destino “normalizado” pelo acontecer do Estado-Nação. “Segunda-feira não era dia de bom negócio, chegavam mais tarde e contavam, umas para as outras, coisas do fim-de-semana. Ainda as que haviam feito sábado e manhãde domingo narravam do negócio nesse tempo e, por isso, confirmava-se que a polícia também relaxava um pouquinho, às vezes, avisadas por telefonema ou candengagem, jáescon- didas em quintais, viam o carro da polícia passar rápido e os agentes, como dizia Dina, “com cara de segunda-feira,” e Zulmira interferia, qual cara de segunda-feira, as mulheres deles não prestam, sódão no fim-de- semana, se fossem como eu, todos os dias, eles não tinham força para correr,” e Nana dava um acrescento,“por isso éque vocêanda devagar de cansada da cama e foi agarrada, ai meu Deus! Ah! Ah! Ah! Ah! Tenho de ir àtelevisão representar nas Conversas no Quintal ou lá que é!” (Cem Metros) Kitandeiras & Aviões é o mesmo Manuel Rui (MR) da gozação de sempre, com o sol a lhe brilhar nos olhos cortantes e a reluzir nos pelos da barba hochimínica, em permanente vigília popular. MR escreve asfalbetizada prosa entre a avenida engarrafada e o passeio esburocratizado. “... as quitandeiras avaliaram a situação, os engarrafamentos tinham aumentado porque os chineses haviam colocado uns marcos sinalizadores, listados na vertical a vermelho e branco que eram deslocados quando os trabalhadores precisavam de atravessar qualquer dos lados da avenida, isso ia dificultar o trabalho da polícia,...” (Cem Metros) Os dedos do poeta continuam a debitar no papel uma farra literária com mufete de palavras a convidar o leitor para a esteira onde o próprio MR está sentado de LETRAS | 13 sandálias nos pés e boné na cabeça. Com ele vem sempre a candengagem, esses piôs que fazem a alegria da nação, na sua palavra de sonhar ser grande. Emociona o jeito com que M. Rui termina as suas estórias, como aquela do Quem me dera ser onda, sempre no seu jeito poético, de nos manter colados à narrativa, a imaginar a marcha atrás até ao infinito das palavras. O resto do povo enche o quintal, lhe chama “Pai, poeta “. Este “povo (que) se acrescentou na gozação”. O mufete tem condimento de jindungo caombo: guerra de polícias contra a zunga, nota saliente desta Luanda que desfila assaltos a bancos, sábado mágico, som altissonante das farras, geradores, banquete de festas, esquemas, fofocas, vietcambas e chineses do internacionalismo proletário, as mulheres mães deste mundo e o mar, o eterno mar que enche a alma de evasões. Falas de uma cidade camponesa, onde Cem Metros é heroína zungueira que amarra o polícia jovem pelas artérias do coração. “O polícia levantou-se e, de novo, consultou o relógio. Ela insistiu: “Porquê?” “Porque gosto de ti.” “Ai meu Deus! Nunca pensei que um polícia me gostasse.Atéque estou atrapalhada.” “Atrapalhada mais porquê?” “Porque também gosto de ti! ah! Ah! Ah!” Ligou o celular, “tia Sara, de mim? Pois. Campeão de atletismo na policia, tia. Estáaqui e afinal éum candidato para, sóum minuto, tia,” e virou-se para o polícia: “Épara casar na igreja?” Ele estava cabisbaixo a olhar para o relógio. “E as alianças, como é? Ah! Ah! Ah! Ah!” Ele abriu uma ausência nos braços sem levantar a cabeça. “É, tia, para casar na igreja, desculpe, madrinha, xau. Porque éque você está a chorar? Vejam só! Agora é que as minhas colegas vão me chamar pior que mentirosa mas maluca. Um polícia a chorar? Valha-me Nossa Senhora do Cabo!” (Cem Metros) E aqui apetece ao leitor imaginar outro conto, dar continuidade à estória inventada pelo escritor. Depois de casados, como iriam conviver o polícia e a kitandeira chamada Cem Metros? Futungo de Belas, 17 de Abril de 2013 14 | LETRAS 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Cultura Sabina e os Manuscritos do Kuito Pepetela E ste último romance de Arnaldo Santos, Sabina e os Manuscritos do Kuito, vai certamente confundir à primeira vista alguns leitores, por aparentemente fugir à temática e forma que tem usado até agora. Embora, se quisermos prestar atenção ao seu percurso de escritor, não haverá de facto razão para admirações. Neste livro, Arnaldo Santos trata assuntos sérios, tão sérios como a morte ou como o que fica para lá dela, e isso é assunto sério mesmo. E trata com delicadeza, embora os mais distraídos vejam apenas ironia, ligeireza. Porque ele usa a ligeireza como um disfarce, espécie de manto protector, uma segunda linguagem que precisa ser decifrada. E que o assunto é sério demais já vamos ver, pois se trata do nosso passado recente. Em 1992 houve as primeiras eleições em Angola, e, como todos sabem, apesar de tantas interferências, umas bem intencionadas mas impotentes e outras absolutamente malévolas mas eficazes pela muita experiência de manipulação adquirida em outras partes do mundo, o resultado das eleições foi repudiado por um dos partidos com secretos apoiantes poderosos e a guerra civil retomou e se tornou mais mortífera do que nunca. Não se puderam contar os mortos, nunca se terá uma estatística segura, mas foram muitos, demais. E uma das províncias que mais sofreu foi o Bié, exactamente de onde saiu o senhor da guerra que queria repor a verdade das eleições, como dizia, e se fala no livro. Foi no Bié que se assistiu ao cerco dos nove meses, o terrível bombardeamento da sua capital, transformada num monte de escombros e horror num nunca mais acabar de tempo atrás de tempo. Nove meses. A população do Kuito, cercada, apenas com o apoio das forças armadas ainda em processo de formação, sedeadas no Kunje e em poucos bairros da cidade, sofreu não só os bombardeamentos e os tiros dos snippers (ou fagulhadores, como aqui se apresenta), como a mais tremenda fome, obrigada a comer tudo o que mexia, até não haver mais nada vivo, nem cão nem gato nem rato nem barata, a fazer sopa de folhas de mamoeiro, até todos os mamoeiros desaparecerem, a inventar raízes onde já nem as raízes se escondiam, a arriscar todos os dias a vida para procurar um pouco de água. Pior de tudo, talvez (e digo talvez porque é impossível adivinhar o que é pior em tanto sofrimento e desespero) enterrar os familiares mortos nos quintais e depois nas ruas e em qualquer sítio onde se podia enterrar alguém, mesmo precariamente. E conviver com os seus mortos, sepultados no meio dos bombardeamentos, às pressas, apenas para os esconderem dos olhos dos viventes. Famílias inteiras liquidadas, um a um, até o último ficar insepulto, por não encontrar coveiro. Não é fácil imaginar isto, nunca o foi, e durante meses seguimos a tragédia pela voz de um herói da Rádio Nacional, que é muito justamente referido no livro. Também, como Arnaldo Santos diz no romance, “o morticínio do Kuito, a que os defensores dos direitos humanos tinham assistido de camarote sem mexer uma palha…” Sim, o mundo assistiu, uma ou outra figura pública lamentou mais ou menos hipocritamente, depois olhou para o lado, pois os sitiados pertenciam à maioria que devia perder se não as eleições e a razão, pelo menos a guerra, para que as suas teorias vingativas e ambições se realizassem. Azar, as previsões falharam, antes e depois. E sempre. Ficaram os chamados danos colaterais, milhares e milhares de crianças desventradas, a pesar nas consciências. Terminada a guerra, em 2002, dez anos depois de começar a chacina do Kuito, procedeuse à remoção dos cadáveres sepultados em todo o lado para lhes dar um enterro condigno. É à volta desse trabalho de remoção e sepultura que este livro vai tecendo a sua teia de mistérios e explicações. É criada uma comissão para organizar a tarefa. É verdade, temos a mania de criar comissões quando queremos atirar os problemas para baixo do tapete e depois esquecemos os seus resultados ou sugestões. No entanto, naquelas circunstâncias, dada a delicadeza do assunto, havia que juntar diferentes cabeças, experiências e sensibilidades, pois se tratava com os corpos dos falecidos mas também com as dores dos sobreviventes. E, ao serem confrontados com o início dos trabalhos, factos estranhos começam a acontecer, melhor dizendo, continuaram a acontecer, pois desde 1992 nunca pararam de existir coisas e comportamentos para lá do entendimento humano. Obviamente, não os vou aqui desvendar, porque seria tirar ao leitor o prazer da descoberta. Direi apenas que Arnaldo Santos cria um ambiente de sombras onde os vivos se distinguem com alguma dificuldade dos não-viven- tes, ou talvez sejam as vontades ignoradas dos não-viventes que conduzem a acção, com vozes que se levantam da poeira para vituperar uns e outros, para dar conselhos que nós, os viventes, não seguimos, pois somos demasiado humanos para os entender. O jogo das personagens ambíguas permite ir revisitar todo o horror que a população sofreu só porque fez determinado partido ganhar as eleições na cidade-símbolo. “Sabina e os Manuscritos do Kuíto” trata portanto de explicar o que se passou na cidade durante os nove meses de cerco, a partir dos olhos das vítimas, sobretudo das mulheres, sem se deter muito nos gestos de verdadeiro heroísmo consumado todos os dias nos mais pequenos gestos de viver, sem grandes descrições guerreiras, porque esse não era o objectivo, sem grandes elucubrações políticas, apenas o essencial para a compreensão do passado tão próximo e que se começa a esfumar das memórias. O livro aí está para que esse esquecimento nunca aconteça. Como não podia deixar de ser, há sempre alguém que se aproveita das falhas dos sistemas ou das distracções dos outros nas mais inusitadas situações. Também aconteceu no processo de remoção das ossadas. Por exemplo, trabalhadores que desaparecem do trabalho mas cujos nomes não desaparecem das folhas de salários. O financeiro fica obviamente com os pagamentos não efectuados. Um detalhe apenas mas para dizer que mesmo em operações complicadas e extremamente delicadas, por mexer muito com a subjectividade e a memória dolorosa das pessoas, há sempre uns vivaços à espreita de ocasião. De notar que, se bem que os personagens principais pareçam ser os homens, dois dos quais são até antigos militares, um engenheiro e outro escritor, de facto o que faz mover a acção aparece normalmente por via das mulheres, ou de figuras femininas, sejam existentes ou não, o que deixa de ser importante, pois o Kuíto mostrou que nunca mais ninguém poderá viver ou pensar ou sentir da mesma maneira. E por isso de repente estamos a ansiar por uma Sabina de sombras e todos os mistérios, uma Sabina-Mãe Terra. Suponho ter sido essa a intenção do autor, mas nem ouso perguntar por ela, aquela razão que nunca se desvenda, porque está para além da vontade do escritor, estonteado pela vertigem da criação. Repito, ninguém que conheceu, mesmo indirectamente, aqueles mambos poderá viver ou pensar ou sentir da mesma maneira depois do cerco do Kuito. Há quem afirme que muita sorte tiveram os que ficaram cacimbados para sempre, porque fugiram assim do pesadelo em que sepultaram as almas, deixando livres os espíritos dos mortos inocentes. Eles, no entanto, estarão sempre nas páginas da História de Angola, a História dos povos, sejam vitoriosos ou não. Que cada leitor tire as suas ilações e encontre uma lição de vida. Pois este livro de Arnaldo Santos apresenta, felizmente, muitas leituras possíveis. Assim é a literatura. Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 LETRAS | 15 ‘Jisabhu’, a transmissão da tradição oral J.A.S. Lopito Feijóo K. D entre os vários títulos que urge reeditar entre nós faz algum tempo, destacamos JISABHU. Obra literária da autoria de Rosário Marcelino também autor de IBUNDOS VERMELHOS, um modesto mas significativo caderno de poemas por si mesmo editado em Luanda, no qual a interpenetração ideomática do quimbundo para a língua portuguesa constitui de facto o dado mais saliente. Publicou igualmente por via da U.E.A a obra intitulada LOUCURA e QUIMBANDICES sobre a qual oportunamente debruçaremo-nos. Mas é sobre JISABHU que neste espaço, ainda que em reduzidos parágrafos, vimos dar-vos conta. Trata-se de um conjunto de contos oriundos da tradição oral que podemos ler em quimbundo e em português, numa edição bilingue, metódica e sobriamente burilados pela pena deste que, dentre outros propos-se, pela via da recolha de narrativas e não só, perpetuar atraves da escrita as seculares tradições reunindo na medida do possivel a sabedoria do nosso variado povo, de muitas nações e uma só, parafraseando o velho poeta António Jacinto também prefaciador do volume em questão. Cerca de cinco narradores que pela via da tradição oral e ao longo de sucessivas gerações (certamente) tomaram contacto com esta parcela da sabedoria popular, contribuiram para que estas pouco mais que uma dúzia de histórias constituissem uma realidade graficamente apurada a que o autor simbolicamente intitulou JISABHU, termo da língua nacional quimbundo que significa conjunto de contos, fábulas ou provérbios cujo fim aparentemente recreativo visa fundamentalmente a formação e consolidação do intelecto dos mais novos tendo em conta a moralização das sociedades africanas. Desde os idos da segunda metade do século (antepassado), um denso laque de precursores estão para Rosário Marcelino. Dentre outros podemos citar os nomes de Héli Chatelain, Oscar Ribas e Carlos Esterman. Mais recentemente está também Raúl David o autor da Contos Tradicionais da Nossa Terra. Héli Chatelain, com base no seu trabalho também de recolha, havia feito um estudo comparado da literatura tradicional oral angolana com a do resto da África, chegando a concluir no âmbito dos chamados JISABHU que, com frequência, os contos são a explicação de um provérbio, podendo também constituir o provérbio a síntese de uma história. No livro de Rosário Marcelino, tal facto podemos constatar no final das histórias: Ovos de Jacaré e A Desgraça Procura o Seu Dono: “Lágrimas de Jacaré se vão com a água…” Assim, a mundividência deste conjunto de textos, requer – supomos! – um sistema muito caracteristico de auto-interpretação tendo em conta a multiplicadade dos conceitos no domínio das sociedades tradicionais, partindo sempre da riqueza espiritual e do valor didático da palavra. Conforme nos diz o missionário Raúl Altuna, nas sociedades tradicionais a civilização é essencialmente oral e a oralidade é completada por ritos e símbolos ineficazes sem a palavra. Por isso mesmo é que não raras vezes ouvimos dizer que nas sociedades tradicionais a morte de um velho significa o desaparecimento de uma biblioteca. O autor Rosário sabe, e com certeza muito bem, da valía e importância do seu trabalho pois nada impede que se conserve o passado de que se sustenta o presente. Finalmente, resta-nos acrescentar que julgamos ser, esta colectânea de contos tradicionais (conforme o sub-título do livro) um trabalho cujo mérito, na realidade “dispensa o elogio fácil”, aconselhamos aos nossos leitores uma profícua e subterrânea leitura enquanto ansiosamente esperamos pela reedição da obra e pelos próximos trabalhos que com certeza advirão da pena do autor. O culminar do processo eleitoral na UEA Carmo Neto reconduzido a Secretário-Geral Isaquiel Cori Carmo Neto foi reconduzido a mais um mandato de três anos à frente da União dos Escritores Angolanos, na sequência do pleito eleitoral realizado no dia 20 de Abril, em Luanda. Os membros da associação de escritores votaram ao longo de todo o dia, no culminar de um processo marcado pela tranquilidade. A Lista A venceu a eleição com 56 votos. A Lista B, liderada por António Gonçalves, obteve um total de 24 votos. Foram registados 3 votos em branco e um nulo. “Procuramos cumprir com tudo o que está estatuído e regulado para procedimentos desta natureza”, disse a escritora Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral, ao ler a acta do processo eleitoral e do escrutínio dos votos. A Comissão Eleitoral foi igualmente integrada pelos escritores António Panguila, Nok Nogueira, Kanguimbo Ananaz e António Pompílio. O dia 29 de Abril é o da tomada de posse da nova direcção, cujo presidente da mesa da Assembleia-Geral é o escritor Adriano B. de Vasconcelos. Carmo Neto disse ao jornal Cultura que depois de eleito o Secretário-Geral “deixou de haver listas na UEA”. Deu a conhecer que é prioridade no seu novo mandato o reforço da capacidade interna de realização e produção de programas culturais, a procura de espaços no exterior do país para promoção das obras dos membros e a descoberta de novos talentos através de concursos literários e da publicação de originais recomendados pela mesa de leitura da instituição. Com o apoio do Governo provincial do Bengo será levado a cabo um concurso de promoção da leitura. Referiu que já foram encetados contactos preliminares para acções conjuntas com a Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto e a Universidade Independente e que existe a promessa da CPLP para publicação, em Portugal, de obras de autores pouco conhecidos naquele país. Entre as acções para a divulgação dos livros de autores nacionais no estrangeiro está prevista a participação de delegações da UEA na Feira Internacional do Livro de Frankfurt, Alemanha, e em outras em França, Japão e EUA. A UEA, fundada a 10 de Dezembro de 1975, congrega actualmente um total de 122 escritores. O incentivo à escrita, à promoção da literatura, do livro e da leitura são as suas principais actividades. v o e 16 | LETRAS 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto Cultura Publicações científicas à disposição do público Isaquiel Cori A Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto lançou, recentemente, nas suas instalações, em Luanda, o número 4, volume II, da “Mulemba”, revista semestral angolana de ciências sociais. O número tem como temática central “Múltiplos olhares sobre o Estado e a Sociedade numa era global” e ajunta, na secção “Intervenções”, as conferências apresentadas no segundo colóquio da FCS, com o mesmo tema, realizado em Outubro de 2012. A revista, cujo editor é o antropólogo e docente Virgílio Coelho, existe desde 2011 e reúne textos resultantes de pesquisas científicas e reflexões nos domínios da antropologia, ciência política, comunicação social, geo-demografia, gestão e administração pública, história, psicologia social e sociologia. De edição esmerada, a “Mulemba”, através dos números já publicados, oferece aos leitores uma boa amostra da produção intelectual da FCS e reafirma a sua condição de centro gerador de saber. Ao contrário do que se poderia pensar, os textos contidos na “Mulemba” não se encerram no hermetismo académico e corporativista, não se refugiam numa qualquer torre de marfim e muito menos se dedicam à inglória empreitada de descobrir o sexo dos anjos. A leitura da revista está perfeitamente ao alcance do mais comum dos mortais, seja pela escrita cuidada e acessível ou pelos temas abordados, em sintonia com o nosso tempo, a nossa sociedade e o nosso mundo. Artigos como “A nova geografia eleitoral [em Angola]: o caso das eleições de 2008”, do cientista político Alberto Cafussa, “O Mali: destruição de um Estado africano na era global”, do antropólogo Arlindo Barbeitos ou “As ciências sociais e humanas interpeladas para o desenvolvimento endógeno do continente [africano]”, do historiador Boubacar Keita, além de todos os outros, enriquecem imediata e necessariamente o conhecimento da nossa actual realidade política, social e histórica. A “Mulemba”, efectivamente, apesar de considerada especializada, tem tudo para alargar a sua circulação além do cicuito universitário. O espectro das ciências sociais, alás, é tão amplo que abarca praticamente todas as áreas de interesse da sociedade. O projecto editorial da FCS vai mais longe. Prova disso foi o lançamento, em parceria com a editora portuguesa Pedago, dos livros “O Antigo e o Moderno: A produção do Saber na África Contemporânea”, de Paulin J. Hountondji, “A Invenção de África: Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento”, de V. Y. Mudimbe, e ”Sociologia das Brazzavilles Negras”, de Georges Balandier. Os mencionados autores são consagrados africanistas com reputação firmada nos meios académicos do continente e não só. Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 LETRAS | 17 Parceria editorial A Edições Mulemba da FCS celebrou recentemente, com a editora portuguesa Pedago, um protocolo de cooperação com vista à publicação de conteúdos do interesse de ambas as editoras. A Pedago é uma editora académica que se tem especializado na tradução e publicação, em Portugal, de um vasto conjunto de autores no campo das ciências sociais. “Esta parceria com a Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto constitui uma oportunidade de alargarmos o nosso catálogo com a inclusão de inúmeros autores africanos e africanistas que não se encontram publicados em língua portuguesa. Os seus trabalhos têm a particularidade de apresentar uma visão endógena do continente africano, dos seus paí- ses e das suas problemáticas, ou seja, uma visão construída a partir de dentro”, disse ao jornal Cultura Pedro Manuel Patacho, editor, tradutor e responsável da Pedago. “Acredito que a publicação desses trabalhos e a sua ampla divulgação em Portugal, tanto nas livrarias como nas universidades e junto da comunidade científica e académica em geral, constituirá uma grande originalidade, projectando esse pensamento africano endógeno para o exterior, em língua portuguesa, como há muito vem sendo feito nas academias francófonas e anglo-saxónicas”, referiu. Quanto ao facto das editoras francesas e anglo-saxónicas há muito publicarem autores africanos com uma importante presença nas academias desses países, ao contrário do que aconteceu em Portugal, Pedro Patacho afirmou: “Essa é uma boa pergunta! Mas não tenho nenhuma resposta para ela. Talvez ela devesse ser dirigida aos professores e investigadores portugueses que há várias décadas se têm preocupado com as questões africanas, que têm as suas ligações a África, ao meio editorial e a vários centros de estudos africanos, em várias universidades portuguesas”. Acrescentou: “Eu apenas posso partilhar com os vossos leitores a minha surpresa ao verificar que, com algumas raras e pontuais excepções, as editoras académicas portuguesas têm simplesmente ignorado o trabalho dos grandes pensadores africanos cujos contributos para pensar África para além do africanismo foram notáveis e geradores de uma nova ordem para as ciências sociais em África. Observar o importante trabalho editorial que fizeram grandes editoras francesas como a Présence Africaine, a Karthala, a L´Harmattan, a Puf, entre outras, é simplesmente revelador do atraso português nesta matéria e do brutal silenciamento de certas abordagens e autores”. O editor deu a conhecer que a Edições Pedago e a Edições Mulemba criaram várias colecções conjuntas - Colecção Reler África; Colecção Biblioteca de Ciências Sociais e Humanas; Colecção Oficina de Ciências Sociais e Humanas; Colecção Estudos Angolanos; Colecção Horizontes das Ciências Sociais e Humanas; e a Colecção Incubadora das Ciências Sociais e Humanas. “Toda a coordenação científica destas colecções de livros é realizada em Angola, por professores da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. Quer dizer, são os colegas angolanos que definem e recomendam as obras a serem publicadas. Esse trabalho de selecção prévia dá origem aos nossos planos editoriais conjuntos para o exercício de cada ano académico, onde também estão integradas revistas científicas”. Uma vez consensualizado um plano editorial anual o trabalho prossegue em Portugal onde a Pedago faz todo o o trabalho editorial e gráfico, com o acompanhamento dos coordenadores científicos das colecções. Quando prontas, as publicações são distribuídas nas livrarias em Portugal e promovidas junto da academia em Portugal e noutros países de expressão portuguesa. A outra parte é encaminhada para Angola onde é promovida pela Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto. “Os custos da parceria são partilhados. O objectivo da Edições Pedago e da Edições Mulemba é claro: queremos ser no futuro breve uma referência mundial no domínio da publicação de autores africanos e africanistas em língua portuguesa”, sublinhou Pedro Patacho, que anunciou, para a segunda quinzena de Julho, a publicação de livros de Jean-Marc Ela, Axell Kabou e Teophile Obenga. 18 | ARTES 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Cultura Magias de Ricardo Paula Do chão do céu ao azul da alma E José Luís Mendonça u vou comprar uma tela com uma paisagem bucólica de Ricardo Paula para pendurar na minha sala de estar. Das quatro expostas no hall do Instituto Camões, no conjunto da mostra “Magias ou o Azul do Chão do Céu”, fico indeciso entre Cascata e Paisagem IV. Em breve serei muito rico e hei-de comprar esta última. É uma tela dupla para uma só intimidade com a água (o rio) e a terra inóspita. Será Kalandula? O pincel de Ricardo Paula é extraordinariamente diacrónico em relação à paleta de cores. Parece um chão que se esfregou em Deus todo-poderoso e lhe desmatou as cores solenes em pedaços de fios infinitos. Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 E hei-de levar também as amendoeiras (a rosa e a prata) para apaziguar as almas dos que me visitam e dos que me vivem. Ricardo Paula expressa em traços imperfeitos e inconclusivos toda a magia e a inocência que há na alma das crianças a sonhar o dia. Porque elas é que sabem e sonham/ que o sonho comanda a vida... Com essa mesma técnica de falsa imprecisão texturizada, as tintas de Ricardo Paula modelaram a figura carismática e decisiva, o olhar promissor e futurista do Presidente da República, José Eduardo dos Santos. Ricardo Paula convoca as mulheres brancas para uma solidão corpórea que deixa ARTES | 19 antever, nos rostos ocultos, paixões secretas e aspirações voluptuosas, a pele dessas mulheres, todas elas pintadas de trás, põe em relevo a curva coloquial das bundas, fogo e vinho que acende a alma do visitante. Nas mulheres negras vê-se o rosto de um Continente: a perene ruralidade, a colagem à madeira virgem e ao sonho, à simplicidade, à incontinente procriação. Entra-nos pelos olhos a força da cascata, da montanha e da pedra negra. A arte de tourear é nobre sem a morte do animal. Por isso, Ricardo Paula des(desenha) o touro. Tourada de cores mentais. Tematicamente dividida em PAISAGEM (4 quadros); BOTÃNICA (3); INFÂNCIA (10); MULHER (17 quadros); HOMEM (4), a exposição das 38 telas privilegia a figura feminina, seminua, o nú tantalizante, o nú vivo e carnal, como aquele poema de Pablo Neruda: “Plena mulher, maçã carnal, lua quente, / espesso aroma de algas, lodo e luz pisados, / que obscura claridade se abre entre tuas colunas? / que antiga noite o homem toca com seus sentidos?” As crianças vêm a seguir, como se o mundo fosse um brinquedo gigante, onde elas sabem brincar com milhões de amigos imaginários que talvez não são deste mundo cruel. 20 | ARTES 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Hildebrando de Melo: Cultura “Porque é que os africanos permitem ser tratados desta forma?” R Matadi Makola ebento da geração africana melhor posicionada na estética da recepção, Hildebrando de Melo é do grupo e rumo da novidade de artistas plásticos proeminentes das novas estéticas africanas e que de forma isolada atravessam em igualdade criadora os temporais supostamente descontrolados do pós-modernismo, atento à elevada fruição artística, à disciplina, ao rigor e à carga fenomenológica das forças ambivalentes do momento de choque entre passado, presente e futuro africano. Sempre aberto ao desafio de ultrapassar as sequelas históricas que ainda beliscam a explosão artística africana, este jovem do Huambo entrega-se à luta mais uma vez ao representar o país e o continente numa residência artística a ter lugar de 14 de Maio a 24 de Junho em Manchester, Inglaterra. E foi em volta desta sua participação que o artista plástico desembrulhou as questões colocadas nesta entrevista: Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 ARTES | 21 M.M - O que aspira e que tese sustenta no seu trabalho? H.M - Julgo que a mesma tese de sempre: a vida. De onde nasce a vida? São sempre as mesmas questões pelas quais nos debatemos. A existência de Deus. Os desastres naturais. A fome. São, entre muitos, estes os motins que sustentam a minha obra. E claro, espero alcançar o mundo, entrar na grande indústria e mercado da arte contemporânea mundial. Por algum sítio tem de se começar, primeiro Luanda e depois atingir outras metrópoles no mundo inteiro. Matadi Makola - Há sinais de outros artistas africanos? Hildebrando de Melo - Que eu tenha conhecimento não. Julgo ser eu o primeiro africano. M.M - O que representa para si esta presença na residência artística em Manchester? H.M - É uma nova experiência, visto que não tenho memória de uma situação similar no meu curriculum. Nunca estive em nenhuma residência artística, vai ser a primeira experiência, e é também o reconhecimento de um trabalho que tenho vindo a desenvolver que é reconhecido. Fico muito contente por isso, também por serem instituições do estrangeiro a olharem e a valorizarem a minha obra. Deixa-me um pouco esperançado por serem sinais de que pelo menos estamos a fazer alguma coisa e a contribuir para o mundo no domínio da estética pelo diálogo inter-cultural. M.M - Qual é o objectivo? H.M - O objectivo é ver e analisar o desempenho artístico de quem está na residência, mudando um artista para outro ambiente: como será? Qual é o seu aproveitamento? São perguntas que nos assaltam, mas julgo que as respostas só vêm a posterior. No meu caso, eu vivo num meio urbano africano, nomeadamente Luanda, como será estar em Manchester num meio mais calmo? Será que produzirei mais, ou menos? Ou será que a minha obra só se alimenta da urbe de Luanda e da minha cultura? São estas questões que são boas de fazer e cujas respostas só virão com a experiência, e é isso que vou aproveitar fazer: testar. M.M - Como está a concepção pictural do projecto “Vírus”? H.M - Para ser aceite na residência artística é preciso esboçar um projecto ou uma antevisão do que vai ser o trabalho que farás. Então eu escolhi este tema, por também ter chegado a altura que a minha pintura começa a ficar com esta dinâmica, mais viral. Daí ter escolhido este título. A minha pintura está a passar por uma fase peculiar, ficou mais amorfa como um vírus que se encolheu, tem mais linhas rectas nos fundos. Tem e ficou com outra dimensão ainda mais universalista. Usando termos científicos, é como um vírus que esta hospedado e vai se integrando e desintegrando. M.M - Participação artística africana na cena mundial: época, mentalidade e o artista plástico. H.M - Eu julgo que nos é negado um pouco a existência e afirmação. Não é um comentário racista mas é o que é, e é um pouco o que também tenho vivenciado pelo mundo fora. Nós negros ainda somos relegados para segundo plano. Salvo raras excepções, tudo vai parar ao gueto, em denominações específicas como: Centro de Arte Contemporânea Africana ou Museu de Arte Contemporânea Africana e Universidade de Estudos Africanos. Agora eu questiono: existe alguma de Estdos Europeus? E porquê? Porque é que os africanos permitem ser tratados desta forma? Enquanto não nos respeitarmos a nós próprios não poderemos esperar respeito das outras pessoas, não é?! Falta filósofos no continente, escritores e também pintores bons. Posso afirmar porque somos muito poucos em comparação com os restantes continentes. M.M - Realidade africana e (re)criação artística: semelhanças e discrepâncias? H.M - A realidade é triste. Já todos nós sabemos. Basta ouvir o noticiário em relação a África, nunca coisas boas e só coisas más. Mas acho que o mundo também está assim. Os africanos nunca deixaram de criar porque a criação está consubstanciada com a vida. Mas a grande questão acho que tem a ver com o que já falei, o espaço dessa criação aonde é que é situada e quem a consome? Ou por outra, não é a mesma reciclada e mandada de outra forma, já com os rótulos e etiquetas europeias? M.M - UNAP: que palavras possíveis? H.M - Revolução de mentes, talvez. Um trabalho sério e a coisa vai. 22 | ARTES 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Ndaka, Wiza e Sinedima em “Caminhos do Som” O afro-jazz e o natural apagão do português Matadi Makola A final a noite de jazz trazia no seu útero um efusivo clarão de nós, e tudo veio ao de cima quando fomos confortavelmente embalados pelo umbundu de Ndaka e kikongo de Wiza, isto já no âmago da mesma. Uma noite de jazz dominada pelas línguas nacionais, este pormenor brilhante que fez a noite reluzir mais ainda e nos dar a sensação de estarmos num estado vivo e lúcido da aurora de nós. A língua, por um lado, tem sido um dos pontos mais vulneráveis das acepções estéticas da nova geração. Tocar em línguas nacionais estéticas recepcionadas maioritariamente em inglês é, admissivelmente, “uma dor de cabeça” de uma mão cheia de cantores que prefere arriscar estereótipos e complexos que só a extrapolada interpretação sociológica do conceito africano lhes concede defesa, sem esquecer o estado inanimado a que ficam sujeitos. Mas nada disso estava prescrito na noite de 19 de Abril, a do natural apagão do português, a do afrobeat se unir com magnitude às línguas africanas, sendo que foi este o objectivo de seu introdutor, o nigeriano Fela Kuti. Quem acorreu ao CEFOJOR para assistir ao primeiro ao vivo do programa radiofónico “Caminhos do Som” da emissora FM Estéreo com certeza guardou com satisfação aquelas cerca de três horas de música oferecidas em alusão ao Dia Internacional do Jazz, celebrado a 30 de Abril, e conduzidas com carisma pelo jornalista Moisés Luís. Para nos deixar adentro da noite, isto quando o relógio já marcava a hora 20, o guitarrista Zé Mweleputo aqueceu-nos com uma exibição electrizante, deixando também que se marcasse com distinção a presença da banda Smooth Wave, composta pelos músicos Clóvis (guitarra); Bigão (baixo); Vado (bactéria); Osvaldo (Piano) e que contou com a meritória presença do saxofonista Gyiora. Foi precisamente às 21h quando Ndaka subiu ao palco, trazendo na mão a sua inseparável cabaça. No primeiro gole do seu líquido ainda por desvendar, Ndanka tomou as rédeas do palco, mas foi com o segundo gole que a sua voz tomou cadências mais elevadas, no decurso do sincrético “Ovakiaile”, tema em que o cantor nos propõe uma união de gerações. Ndaka traz “Ombembwa” no terceiro gole, a sua segunda proposta musical, um afro-jazz de ritmo acelerado com influências rock e no fundo a hipnotizante melodia do saxofone de Gyiora, que matou qualquer hipótese da noite ser igual a todas e mostrou a integração “rebelde” deste resultado triunfal entre o umbundu e o jazz, que só findou com mais um gole. Depois de mais três goles, inicia com voz tocante o badalado “Ndjolela” e recebe dos presentes o descuidado de ninguém saber falar umbundu. Mas este “absurdo” não acanhou a elevação de Ndanka em mais uma actuação de jazz tracejada com brilhantismo de sabor a sul de Angola. O músico findou a sua participação com “Orele”, a sua quarta proposta musical. Antecedido pelo músico Gari Sinedima, Wiza deixou a noite repleta de carga nordestina. “Kileli” foi a primeira de seis propostas musicais executadas num kikongo orgânico, com travessias “enérgicas” de jazz e kilapanga que, findadas, nos trouxeram de volta ao português. Cultura Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 Wyza Seu chão, matéria e alma voa nas asas do kilapanga Analtino Santos Fotos de Rita Soares U tilizando-a de maneira confluente, Wyza traz como núcleo da sua proposta estética a revitalização desta parte de nós que é o kilapanga, sobrepondo-a às tendências do afrobeat. O resultado desta construção harmónica desafia uma crítica que ainda procura alicerçar as singularidades musicais desta explosão africana que se afirme ao ouvido absoluto da estética da vanguarda que se movimenta atrás dos holofotes da superfície pop, resultando com a designação de Word Music, indício, certamente, dos potênciais artistas que, ao se singularizarem no presente, marcarão a posterioridade numa escala além da África. João Sildes Bunga, o nosso Wyza, segue os que traçam a africanidade como caroço e alma de uma época determinante para o continente, período contextual da necessidade da (im)posição libertária da sua alma e personalidade artística que poderão posteriormente cimentar nos anais a sua participação na criação imagética do “novo mundo” por descurtinar e quebrar as barreiras que as estórias e estorietas da História a submetem na guetização da criação. ARTES | 23 24 | ArtES Analtino Santos - Estes últimos meses com uma agenda muito preenchida Wyza - Sim, Brasil com Dodô Miranda, início de Março show no Bahia para gravação de imagens do documentário África Visita África, depois tocar para turistas no cruzeiro do National Geographic, a participação no primeiro ao vivo de Caminhos dos Sons, no final de Abril uma temporada com duas apresentações no projecto A Nossa Música, coordenado pela Irina Vasconcelos, e na segunda quinzena de Maio um show organizado pelo Tony Nguxi. A.S - Fale dos shows no Brasil e do documentário W- África Visita África: é a África que foi ao longe. Tomei contacto não apenas com a música mas com outras manifestações culturais afro-brasileiras como a culinária, comendo kikuanga, as religiões, o candomblé; entrando em terreiros do côncavo bahiano. Falei com pesquisadores como Zé do Boi, o guitarrista de viola baiana Roberto Mendes e o mais velho Riachao, que com os seus 82 anos dança e anda sem apoio de bengala. Tem muita firmeza, e é impressionante. Quanto a shows, toquei com a Orquestras Sinfónica Tradicional, que acaba de convidar-me para participar no seu próximo disco, e a Orquestra Sinfónica Popular Brasileira de Camaçary. Já com bandas, actuei com o Magari, que é um músico que diz tocar semba e que lá na Bahia está no auge. É de louvar esta iniciativa dele, mas é preciso reconhecer que o que ele toca ainda não é semba. Espero que se materialize a sua intenção de chegar em Angola e tomar contacto com a nossa música. A.S - Já passaram cinco anos depois do 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | terceiro cd “Bakongo”, para quando o quarto? W - Provavelmente este ano. Tenho várias músicas concluídas. Agora que recebi um convite da National Geographic para gravar nos Estados Unidos, penso produzir lá. Mas deixo reafirmado que apoios complementares sempre serão uma mais-valia. A.S - Parece que caiu nas graças deste canal de gravação dos States W - Não sei. Mas de uma coisa tenho certeza: é um tipo de actuação diferente dos outros palcos por onde passei. Actuar para cerca de 200 pessoas de diferentes nacionalidades que não entendem a nossa língua mas que ficam presos a linguagem universal que é a música. No fim perguntam: como é possível tocar de forma tão difícil e cantar ao mesmo tempo de forma livre? E eu respondo que não tive escola e que agradeço a Deus e a minha etnia por proporcionar este dom de fazer música. E mesmo assim nem sempre somos valorizados na nossa terra. A.S - Agora um pouco de historia do “Kintsona”, o seu primeiro trabalho discográfico com uma proposta totalmente diferente dos demais, meio zouk... W - O “kintsona” é das poucas músicas que não se identificam com o que eu gosto de fazer. Quero desde já agradecer ao João Alexandre por ter produzido este álbum, ou seja, ter o prazer de fazer o meu primeiro filho, pois se assim não fosse teria apenas dois. Ele tinha uma maior experiência na kizomba, ma eu já era conhecido nesta minha onda. Olha que Salif Keita, Lokua Kanza e outros já tocaram zouk. Penso que faz parte da minha trajectória, até porque Cultura às vezes fazemos coisas que não nos agradam. Mas foi bom. A.S - “África Yaya” e “Bakongo” W - “África Yaya” é já uma patente. Produzido pelo Reinaldo Maia, brasileiro, foi proposto pela minha produtora, a Maianga Produções de Sérgio Guerra, por quem tenho grande consideração. Eu disse que queria uma sonoridade diferente. Eu gosto de músicas estranhas, ou seja, exóticas. E deu naquele disco. Depois o “Bakongo” foi um outro brasileiro, Maurício Pacheco, que trabalha com Gabriel o Pensador, Vanessa da Matta e outros artistas. Foi um disco não tão complicado como o “África”. Acredito que o próximo será mais simples. Tenho muita coisa destes cinco anos sem lançar. Eu ainda não fiz o meu disco, pode ser este. A.S - Cinco anos sem discos, mas com vários shows fora W - Quando fizemos música para eternidade o nosso disco nunca acaba porque eles não entram na moda, porque elas vivem em movimento, dai continuar a receber convites para actuar fora e, às vezes, dentro do pais. E agora canto com convicção de mim, não como no início de carreira quando só pensava em lançar apenas discos, sendo aquele jovem que cantava em kikongo e que receava não ser possível conquistar Angola e o mundo. Mas agora fazendo nos Estados Unidos e com a Putumayo mais portas se abrirão, pois eles têm uma grande rede de distribuição. A.S - Colaborações W - Destaco o Paulo Flores, não apenas por ter participado no Xé Povo, mas por ter apostado em mim depois do “Kintsona” e Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 da minha passagem nos Vozes Negras. Tem um lado humano muito forte. Foi ele quem me levou à Maianga Produções. A.S - Principais influências W - Salif Keita, Lokua Kanza, Habib Koite, Omou Sankaré, Manu Dibangu, Fela Kuti e muitos outros, como Michael Jackson na dança. Porque quando miúdo gostava de dançar, apenas mais tarde olhei para o seu lado musical. Já na sonoridade musical, o funk, afrobeat e o kilapanga. O Kilapanga vem antes de todos os outros, aliás, o kilapanga é a minha raiz; o kilapanga mora em mim; eu sou o kilapanga. Qualquer toque que dou, qualquer canção minha tem o kilapanga, pois eu o transporto. O kilapanga é o meu chão. A.S - Não notamos nenhum artista angolano W - Não. Olha, a característica da minha música é relativamente nova por cá. Eu gosto dos Irmãos Kafala, Mito Gaspar e Gabriel Tchiema porque partilhamos até certo ponto as mesmas sonoridades. Actualmente já há uma tendência em fazer esta onda musical A.S - Olhando para as influências, parece que não está preocupado com os ArTeS | 25 gostos angolanos W - Eu não sou minimalista. Eu gosto viajar alto. Antes dos últimos dois discos eu dizia que não queria fazer música apenas para Angola mas sim para o mundo, e quem me acolher é o meu povo. Em Angola não ouvem o que faço porque não é semba, não é kuduro nem kazukuta. A minha música não convém para aquelas danças indecentes nem transporta mensagens disparatas. Não é música para as farras, mufetadas, maratonas e shows imediatistas. É um pouco da mesma forma que o jazz e outras músicas alternativas e aparentemente não comerciais. Não queremos relaxar. A.S - Falou do jazz e da música alternativa, quando acaba de participar no primeiro ao vivo de “Caminhos do Som” de Moisés Luís, um dos programas impulsionadores destas tendências musicais W - Moisés é um amigo e temos partilhado muitas coisas. Ele tem contribuído muito para a criação e reforço dos amantes destes estilos e incentivado jovens artistas. A própria Rádio FM STÉREO também facilita ao introduzir na sua grelha um leque de artistas destes estilos. Ele faz a diferença. A.S - Também tem apoiado a Casa da Musica da fundação cultural israelita Arte e Cultura W - Sim. Abracei este projecto de uma instituição estrangeira que tenta ajudar a nossa cultura proporcionado aulas de música a jovens angolanos. É de louvar. Infelizmente aqui são sempre ajudadas as mesmas pessoas. São sempre os mesmos para os shows e projectos que se dizem sociais. Mas penso que poderão surgir outras casas e coisas, eu mesmo estou tão motivado que se tivesse apoio materializava este meu sonho que é o de ensinar e ajudar as crianças e jovens a custo zero. Eu aprendi e recebi a minha primeira guitarra a custo zero, daí estaria a ser injusto pensando em não retribuir desta forma. Devemos apostar na formação do homem, pois é desta forma que também podemos reduzir a pobreza cultural. A.S – Umas das suas actuações ficou marcada pela participação de um exímio tocador de kora W - Eu adoro a África e a kora. Daí partilhar o palco com este irmão africano que carrega este instrumento. Gostaria de conhecer mais países africanos onde respiram a cultura africana. Infelizmente não sentimos isto aqui, de tal forma que há estrangeiros que dizem não encontrarem a África em Angola. Lembro-me de ter sido desencorajado por um artista angolano aquando da nossa participação na Expo do Japão quando pretendia comprar a kora, alegando não ser nosso instrumento e eu respondi-lhe se a guitarra era também de nossa autoria. A.S - Como está o processo da produção do seu DVD? W - Como já disse, os apoios estão todos canalizados para os do semba, kizomba, kuduro, aqueles dos outdoors e das publicidades. A.S - Como tudo começou? W - Minha mãe tocava kissange e eu aprendi a tocar com ela, lá no mato. Eu era o cassule e os meus irmãos estudavam na aldeia, e para me consolar ele cantava para mim. Fazíamos kissange, mas a guerra trouxe-nos para Luanda, onde não encontramos material para produzirmos mais. Tempo lindos, e não tinha pretensão nenhuma em ser músico quando tocava o meu kissange. Depois aprendi guitarra, que agradeço a Deus pelo dom. Sobre África Visita África O documentário está a ser gravado em Angola e na Bahia e pretende mostrar algumas diferenças e semelhanças entre a cultura baihana e angolana. O filme acompanhará Wyza e Dodô Miranda em visitas a músicos baihanos que têm uma forte herança musical africana em seus trabalhos, como Mateus Aleluia, Roberto Mendes, Gabi Guedes, Dão, as Ganhadeiras de Itapuã e outros. Além desses encontros musicais, o documentário vai acompanhar a visita de Wyza e Dodô Miranda a algumas cidades onde a cultura africana é forte, precisamente Santo Amaro, Cachoeira e Salvador. 26 | GRAFITOS NA ALMA Akiz Neto Potencial da palavra: um percurso plástico o exercício da palavra o artista é, com toda a propriedade filosófica, o responsável de toda a projecção envolvente de sua arte. A arte que se propala da nuance conceptual, por que é produzida. Ou seja o sintagma adjectival que irá definir o seu universo discursivo-filosófico e, certamente, representar ou espelhar o resultado do seu saber fazer. Sem este objecto concreto e de elevada remetência conceptual o pressuposto articulado não lhe pertenceria a afirmação de artista. O artista é o criador. Aquele que se projecta de suas tensões vivenciais, o que chamamos nós de tensões ético-cognitivas da personagem, na perspectiva de as vivenciar. Procurando com isto um universo estético capaz de se lhe dar maior luminosidade em critérios de inspiração. Para tal é importante que o homem das artes, quer da literatura, música, teatro, dança, humor, arquitectura, etc., se afirme conforme as normas morais que regem à conduta do próprio homem que se dimensiona na referida arte. Ele deve produzir o seu próprio génio tendo em conta a harmonia que se projecta das formas, das cores, dos contornos, dos movimentos (gestos), etc. Programar para propalar-se o poder estético da criação verbal que se lhe deve o amor. A essência da própria mensagem deve ser proposta na preocupação do criador para o entendimento, a compreensão estética e simultaneamente ético. Neste processo é importante resplandecer ou seja esclarecer conteúdos que cumpram com zelo e respeito à filosofia da moral, isto é, da ética. Esta preocupação plástica é realmente um exercício nítido do artista. Recorrendo ao psicólogo O. M. Lourenço, quanto a esta temática, escreveu o seguinte «a pessoa mais desenvolvida moralmente é a que constrói a ideia de princípios éticos prescritivos e universais.». Estou plenamente de acordo com esta posição do psicólogo, e mais, cumpre-me dizer que esta afirmação fornece-nos uma magia interpretativa assente nos princípios éticos. Logo transporta-nos para a compreensão da etiologia. Se eventualmente alguém naturalmente pronunciar palavras imorais – asneiras – no seio do povo com ideias de princípios éticos prescritivos universalmente, certamente ele não será bem sucedido por esta população. E a vida plástica nos aponta para a fortaleza que se direcciona ao juízo estético como caracterização evidente, no sentido de se conseguir uma densidade estética, que se remete ao processo de criação verbal. Para tal é importante que o artista se caracterize na identificação com atitudes positivas, devendo para o efeito apurar suas vivências e, logicamente, além da sua plástica, saber equacioná-las e dimensioná- N 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | las, para que se anuncie daí o belo que deve ser buscado do melhor verbo. O verbo projectado da melhor escolha do artista. Assim, “em busca do melhor verbo” entende-se pelo assentamento metódico de pesquisa precisa, e na hora exacta, para que a expressão do criador tenha, além do carácter ético; o belo, quer dizer a beleza textual. O belo produz sensações específicas na alma do intérprete, logo a beleza textual deve ser imprescindível. Esta expressividade do estético vigora quando se sente da palavra projectada um fundo ameno capaz de transportar o sentimento que em simbiose com a melodia partilham dentro do espírito do autor como do leitor, do ouvinte ou do assistente. “Potencial da palavra: Percurso Plástico e seus Componentes Críticas” remete-nos a um reflexo profundo que se deve ter sobre o verbo. Cumpre observar aqui que o verbo é a palavra proferida nas suas diversas vertentes filosóficas, e para este caso que estamos a tratar, que é o da arte, a palavra ganha um estatuto especial. É o pensamento que se identifica e se prolifera no momento; é o discurso, o núcleo do sintagma verbal numa trajectória dada para que se crie um conjunto harmonioso e coeso para a musicalidade, daí a necessidade de se cultivar a voz, em todos os passos ensaísticos do autor. Por exemplo o crítico literário Dubroca quanto a esse propósito, a de cultura da voz, disse que “à voz é necessária uma respiração lenta e consciente nasalação, e não pela boca, e que a expiração deve corresponder com o tempo de pausa ou emissão de voz”. Daí se conclui que o público aprecia mais a musicalidade do que as palavras. Esta intervenção não está intimamente registada para o verbalismo exclusivo, e sim representa a essência da plasticidade artística para que possamos, das ideias já criadas pelo poeta, músico, teatrólogo, humorista, etc. obter ideias bem estruturadas e audíveis com prazer. Porque o artista deve necessariamente trabalhar para este sentido. Todos os artistas, e não só, precisam do verbo, porque é o verbo que lhes proporciona a beleza de seus trabalhos, de modo que este seja agradável ao ouvido, à visão e ao tacto, portanto ao espírito. Porém para um mosaico artístico bem estruturado precisamos que o verbo seja admitido a uma crítica [pessoal ou particular], geralmente para tocar a uma suavidade maior de seu conteúdo. A crítica representa geralmente a chave funcional à ponte da existência de uma obra de arte literária, teatral, musical, humorística, etc., cujo objectivo é o de avaliar o mérito do conteúdo. Esta actividade – crítica – consiste em julgar, apreciar ou dar opiniões de acordo ao critério de crítica analítica que se queira sobre o valor de trabalhos intelectuais ou artísticos, quando se trata de arte como é o caso, e geral- Cultura mente a crítica apresenta-se por escrito, fundamentalmente para o caso literário. Logo a essência da própria mensagem deve ser argumento à base da apreensão estética e também ética. Por exemplo um músico”ku durista” que faz as suas”letras de rua” se lhe deve aproveitar o talento, por aquilo que lhe é inato. Porque ao introduzir calões e gíria em seu contexto, o ”ku durista”está exprimindo os seus sentimentos e daí o rufar de tambores, como simbologia de África, que obedecem a um certo ritmo e, certamente, complementado por outros componentes instrumentais, surgindo daí a grande batida ou seja a musicalidade dentro dos parâmetros da cultura angolana, para o caso exclusivo. Fazendo um outro reparo com propósito semelhante, mas a um humorista, este sem o verbo dirigido para o belo; cumpre dizer, para o estético e o ético, simplesmente escandaliza o público que o assiste. É por isso que encontramos beleza na filosofia discursiva quer dos escritores, humorista, músicos, teatrólogos, dançarinos, etc., porque tudo se orienta ou se projecta para agradar o público. No exercício dessas empreitadas, a linguagem escrita, falada e gestual é o verdadeiro pilar da existência da arte. Porém, é importante seleccionar bem o verbo para que possamos, da dicção, da audição e do tacto interpretar os conteúdos e encontrar neles um folclore ou valor que não faça perder o norte dialógico entre as pessoas. Mesmo quando se deseja criticar um governo, se deve projectar a angústia com responsabilidade do verbo, quer dizer o elemento como o potencial da palavra em trâmites artísticos. Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 DIÁLOGO INTERCULTURAL | 27 Maria Eugénia Neto em São Tomé ´Imaginava o verde que tem, imaginava a ilha tão verde como é. O resto, não imaginava. Não fazia a mínima ideia de como pudesse ser.’’ Conceição Lima M aria Eugénia Neto esteve recentemente em São Tomé. Uma estada privada e discreta, acompanhada da nora e de uma neta. Pouco menos de uma semana. Encontrou-se com o Presidente da República, Manuel Pinto da Costa, ‘’um encontro entre velhos amigos’’, confraternizou com intelectuais e artistas, alguns membros do governo, responsáveis pela Fundação Agostinho Neto em São Tomé, descendentes de angolanos que assumem orgulhosamente a sua dualidade cultural. Passei por cá em 1960, quando o meu marido vinha preso de Angola para Lisboa. Mas não saí do aeroporto. O meu marido veio primeiro e eu vim depois, com o nosso filho, Mário Jorge, bebé, tinha sete meses. Vim no avião seguinte, misturada com refugiados da Bélgica que tinham saí- do do Congo. Destino obrigatório dessa curta visita a São Tomé, foi a roça Agostinho Neto, a antiga e imponente Rio do Ouro, rebatizada após a independência em homenagem ao primeiro Presidente angolano e autor de Sagrada Esperança. Maria Eugénia Neto confessou-se emocionada ao visitar esse local tão emblemático do poderio dos roceiros no período colonial, guardião da memória da trágica saga dos chamados contratados angolanos deportados para as ilhas como ‘’indocumentados’’ para fazer florescer as roças do cacau e do café e, hoje, símbolo dos laços entre São Tomé e Príncipe e Angola. Foi aí que, em Setembro de 2012, teve lugar uma cerimónia solene de celebração dos 90º aniversário do nascimento do primeiro presidente angolano, com a sociedade civil são-tomense em peso a ouvir o Reitor da Universidade Lusíada, Mário Pinto de Andrade discorrer sobre a personalidade política de Neto, antes de serem oferecidos exemplares do livro Agostinho Neto e a Libertação de Angola. Ao visitar a roça, não pude deixar de pensar na sorte de todos os angolanos que ali sofreram e morreram num tempo em que os nossos povos não eram donos dos seus destinos. Também não pude deixar de pensar no gesto das autoridades são-tomenses quando decidiram dar o nome do meu marido a esse lugar, que é quase uma cidade, vê-se que tem infraestruturas muito boas, mas é pena estar quase abandonada, apesar de funcionar ali o Gabinete da Câmara Distrital. Foi uma boa ideia, porque para além das instalações serem amplas, sempre é uma presença permanente do Estado, dá uma certa sensação de segurança e obriga a um certo comportamento das pessoas. Sábado. No Club de Santana, uma estância à beira-mar e recuada para quem avança em direção ao Sul, um grupo de intelectuais, artistas, alguns membros do governo, responsáveis da Cultura e da Fundação Agostinho Neto de São Tomé responde ao convite para um almoço de confraternização com a autora de E na floresta os bichos falaram e Presidente da Fundação Agostinho Neto. Entre as iguarias, o muzongué e o mufete fazem bastante sucesso. 28 | DIÁLOGO INTERCULTURAL O ministro da Cultura, Jorge Bom Jesus, dá as boas-vindas e profere um rasgado elogio dos laços que unem os dois países e povos. Agostinho Neto é a sombra tutelar – todos o evocam. Alguém declama excertos de Um bouquet de rosas para ti, dedicado pelo líder nacionalista angolano, na prisão, à que viria a ser sua esposa. Afinal, Sagrada Esperança marcou, de um ou de outro modo, todos os presentes. Caíram todos na armadilha dos homens postados à esquina E de repente no bairro acabou o baile e as facetas endurecerem na noite Todos perguntam por que foram presos ninguém o sabe e todos o sabem afinal(….) Cessam os ruídos dos talheres, calam-se as vozes, desce sobre os presentes a força do poeta denunciando as gargalhadas cruéis da cidade ilumidada/ para banalizar um acontecimento quotidiano/ vindo no silêncio da noite do musseque Sambizanga: um bairro de pretos. O cantor Zézito Mendes interpreta Velho Negro, Partida para o Contrato, Os Meninos do Huambo e outros poemas angolanos. A académica são-tomense Inocência Mata, que com igual àvontade tem estudado e analisado a literatura das ilhas e a literatura angolana, faz questão de sublinhar que Massacre de São Tomé, dedicado por Agostinho Neto ´´à ilustre amiga Alda Graça’’, foi o primeiro poema alusivo à sangrenta repressão de são-tomenses pelas autoridades coloniais portuguesas em 1953. O jovem Katembe afirma com orgulho a sua ascendência e recria Havemos de voltar, adaptando-o à sua condição de angolano-descendente. Na entrevista concedida no dia seguinte, Maria Eugénia Neto não escondeu a emoção. Gostei especialmente do convívio, de ter podido estar com as pessoas, conversar com elas. Os lugares têm um valor especial quando conhecemos as pessoas. Gostei também das músicas, da ideia de se musicar poemas do Presidente e poeta Agostinho Neto e de outros poetas angolanos. A evocação de Agostinho Neto, a revisitação, por são-tomenses, da obra poética do marido, revestiu-se, afirmou ela, de um significado muito especial. Agostinho Neto foi um grande personalidade da cultura, um dos poetas maiores de África e achei muito bem a ideia de se declamarem ali poemas seus, porque é preciso que a África se aposse ou melhor, se reaposse dessas figuras que foram tão fundamentais nas lutas pela independência e pela libertação. Principalmente as jovens gerações. Não é só de Angola que estou a falar, é toda a África e mesmo do mundo. Ele foi um poeta de tal importância, teve um papel tão importante na luta pela libertação dos povos que é preciso ter isso sempre presente. Eis, afirma Maria Eugénia Neto, o objetivo fundamental da Fundação Agostinho Neto: projetar o líder político, o nacionalista, o estadista, o poeta militante, fazer da sua personalidade e da sua vida uma bandeira, um exemplo, ‘’porque nós bem que estamos a precisar’’. 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Acho que ainda não me recuperei da perda e talvez seja um pouco doentio, porque vivo embrenhada na personagem. Manter viva a memória, conservar os seus pertences, publicar inéditos, não permitir que a memória se perca, estou sempre atenta. É uma certa forma de combater a morte, de impedir que a sua morte signifique a morte de tudo aquilo que ele representou e representa. Agora o Estado angolano apoia e depois de muito batalhar, construiu-se esse mausoléu esplendoroso. Maria Eugénia Neto sublinha a aposta da Fundação Agostinho Neto em publicar edições acessíveis ao grande público, edições de baixo custo, destinadas sobretudo aos mais jovens. Há tempos, pedi ao António Domingues, o pintor de origem santomense, que ilustrasse a ‘’Sagrada Esperança’’. É uma edição muito bonita, em português, inglês e francês que está praticamente esgotada. Uma edição especial, de luxo, para ofertas. Agora estamos a pensar em edições não luxuosas, edições que possam chegar aos jovens, aos artistas, ao grande público, para Cultura permitir que a obra do poeta chegue às mãos do povo. A entrevista, testemunhada pela nora no salão do hotel, permite alguns interlúdios confessionais. Referindo-se às facetas do marido, Maria Eugénia Neto diz que se apaixonou pelo poeta, por ter sido esse o primeiro que conheceu. Ainda estudante de Medicina, antes das consecutivas detenções, ‘’ele estava com a fina flor progressista portuguesa, o MUD juvenil, uma espécie da nossa Jota’’. Explica que, tendo sido educada num colégio de freiras com uma educação religiosa, ‘’nunca militou’’ e que a aproximação a Agostinho Neto se deu ‘’por acaso’’. O Humberto Machado, irmão do nosso camarada Ilídio Machado, o primeiro presidente do nosso partido, estava em Portugal a estudar e muita gente ia à casa dele, estudantes, gente da diáspora, os marítimos, havia também um santomense, o Juca Espirito Santo, havia angolanos, o Mário Pinto de Andrade, aqueles da Casa dos Estudantes do Império. A minha casa ficava em frente e a senhora pedia à minha mãe: deixe a Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 DIÁLOGO INTERCULTURAL | 29 Massacre de São Tomé. Geny vir cá e a minha mãe deixava. Era só atravessar a rua. Seguiu-se depois o ‘’contágio’’, o interesse por ‘’coisas culturais’’, a literatura então interdita ou pouco recomendável aos olhos do regime que o grupo devorava. Eles liam coisas progressistas, depois passavam para mim. Liam muito, liam o Jorge Amado, o John Steinbeck, os escritores negros norteamericanos, já não me lembro dos nomes, e eu passei a frequentar o seu círculo. Foi assim, por essa via, através sobretudo dessas leituras de autores progressistas que eu comecei a ter aquilo que posso chamar de educação política, comecei a ter outra noção da realidade, a interessarme pelas coisas. Só ao fim de cinco anos é que namoramos, eu era novinha. Quando ele foi preso, não tinha contacto com ninguém, eu disse à PIDE que era a noiva dele e tenho as cartas que trocámos, vamos a ver se as publicamos. Ainda não sabemos muito bem se vale a pena, mas acho que sim. Eu escrevia para ele dia sim, dia não. Isto foi no Porto e eu tinha uma tia que vivia ali há cerca de 40 quilómetros de distância, que ia todas as semanas buscar a roupa dele para lavar, houve muita solidariedade. Maria Eugénia não tem dúvidas de que o poeta e o político se fundiam. ‘’ Todos os seus poemas conhecidos são políticos e foram catalisadores, foi uma poesia com função. Mesmo nos poemas de amor, a causa nacionalista, a causa africana, a causa dos negros está lá. ‘’ Mas ele escreveu poesia lírica, poesia pura de amor que ele me deu num maço de tabaco. O homem da Pide estava a passar, eu tinha ido à cadeia vê-lo e ele deu-me esse conjunto de poemas líricos, tudo escrito à mão, na mortalha. Tive imensa pena de os ter perdido, não sei onde os pus. Era um outro Agostinho Neto. Para algumas vozes, um político-poeta guiado por uma visão messiânica de si próprio, uma personalidade obstinada. Para Maria Eugénia Neto, ‘’um homem muito culto, muito determinado, com um claro sentido de História, uma espécie de fé inquebrantável no futuro. Isto sentese, lê-se na sua poesia.’’ Eu sei de cor quase toda a poesia dele. Gosto muito de Bamaco, que é sobre o renascer da esperança em África, quando a África começa a afirmar-se. E há um outro poema, não me lembro agora do nome, em que ele diz ´´selvas desbravadas escondem os caminhos por onde heide passar, mas hei-de encontra-los e descobrilos, seja qual for o preço.’’ Aí está tudo delineado, está tudo dito. A conversa deriva para uma poetisa, também nacionalista, também posterior estadista, que também partilhava uma espécie de fé inquebrantável no futuro: Alda Espírito Santo, amiga e companheira de Agostinho Neto, de Amílcar Cabral, de Marcelino dos Santos, de Noémia de Sousa. A essa poetisa dedicou Neto o poema Foi quando o Atlântico Pela força das horas Devolveu cadáveres envolvidos em flores brancas de espuma(…) Em nós a terra verde de São Tomé Será também a ilha do amor. Maria Eugénia Neto conhece o poema e recorda-se bem da figura à qual foi dedicado A Alda fazia parte desse grupo da Casa do Humberto Machado. Ela, a moçambicana Noémia de Sousa e outros. Acho que se alguns de nós tivemos uma vaga ideia sobre como seria São Tomé, essa ideia foi transmitida por ela e por outros são-tomenses que frequentavam o grupo. Acho que o poema lhe foi dedicado porque era uma amiga e companheira, mas também porque ela era o símbolo do povo de São Tomé e Príncipe, aquele poema era para todo o povo são-tomense e ela era, digamos, o veículo. Foi uma homenagem, uma expressão de profunda fraternidade. A convocação de Alda Espírito Santo despoleta a memória de Andreza Espírito Santo, tia de Alda, ‘’a tia Andreza’’ para nacionalistas como Amílcar Cabral, Noémia de Sousa, Vasco Cabral, Marcelino dos Santos e outros que, impossibilitados de discutir questões políticas na vigiada Casa dos Estudantes do Império, se reuniam em casa da ‘’tia Andreza’’, na Rua Actor Valle nº 37. Sim a tia Andreza, lembro-me muito de ouvir falar dela. Costumavam reunir-se ali naquela casa, mas eu não ia. Mas o Marcelino (dos Santos) que está vivo, sabia e sabe muito sobre estas coisas e como estamos a recolher depoi- mentos, a construir arquivos orais, o Marcelino poderia falar sobre isso e sobre outras coisas. Eu sei que a casa da tia Andreza foi muito importante e que muitas coisas eram discutidas ali. Os trinta minutos de entrevista solicitados já se esgotaram. Maria Eugénia Neto tem ainda tempo para voltar a defender, reiterando o discurso no Club de Santana, o aprofundamento dos laços culturais entre São Tomé e Príncipe e Angola. Sim, é muito importante, há muita coisa em comum entre Angola e São Tomé e Príncipe, laços de consanguinidade até, as manifestações culturais, a culinária, toda a gente reconhece isso dos dois lados. Como disse, os artistas, os escritores, os intelectuais podem ser uma mola impulsionadora dos laços culturais que deveriam ser mais fortes. O papel dos Estados é criar o quadro, mas os artistas, os escritores, os intelectuais, a sociedade civil têm muito a fazer para dinamizar as trocas, reforçar o conhecimento mútuo, sabermos o que se faz de um lado e do outro. Isso serve para aumentar não só o conhecimento, mas também a fraternidade e a solidariedade que sempre existiram. 30 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Cultura Ainda a propósito da morte de Chinua Achebe Décio Bettencourt Mateus O meu primeiro contacto com a escrita de Chinua Achebe, falecido no passado 21 Março nos EUA, com 82 dois anos de idade, aconteceu no início da década de 80, em minha adolescência. Li o seu “Um Homem Popular”, edição do INALD, comprado na (então?) tabacaria Tem-Tudo, no Kinaxixi. O livro causou em mim tal impressão, que não só reli como adquiri outros exemplares que fui oferecendo e guardando na minha pequena estante, respectivamente. Ainda hoje cuido com carinho o exemplar envelhecido que tem sobrevivido ao tempo, poeiras e mudanças. Em “Um Homem Popular”, Achebe impressionou-me pela fluência e habilidade narrativa, tom crítico e profundidade temática. Narra a estória do Sr. Nanga, um político nigeriano, popular, polígamo e corrupto. Na verdade o escritor aborda não só a sociedade nigeriana, mas qualquer outra africana – e não só –, em uma crítica que se mantém actual e necessária. Depois li “A Flecha de Deus”. “Um Homem Popular” de Chinua Achebe faz parte, indubitavelmente, dos livros que maior impacto provocaram em mim. Ou seja, é do melhor que já li em termos de literatura! Uma leitura que recomendo aos adolescentes, jovens, intelectuais e políticos do meu país (por onde andas INALD, mais as publicações dos escritores africanos?). Uma leitura de reflexão que seguramente ajudar-nos-á a rever comportamentos política e socialmente nocivos. Albert Chinualumogu Achebe – de seu nome completo – nasceu em Ogidi, sudeste da Nigéria, em Novembro de 1930; pertencia à etnia Igbo. Achebe notabilizou-se internacionalmente no final da década de 50 do século passado, com “Things Fall Apart” (Quando Tudo se Desmorona). Um romance que vendeu acima de 8 milhões de cópias e foi traduzido em mais de 50 línguas, tornando-o no escritor africano mais traduzido de sempre. Outros livros de sucesso do nigeriano incluem “No Longer at Ease”, “Arrow of God” (A Flecha de Deus), “A Man of the People” (Um Homem Popular) e “Anthills of Savannah”. Em 2007 recebeu o prémio Man Booker internacional, dos de maior prestígio da língua inglesa. Além de romancista, é contista, poeta, ensaísta e crítico. Foi professor universitário. Em 1990, Chinua caminhava de automóvel pelas estradas de Lagos com o seu filho Ikechukwu e o motorista ao volante. Sofreram um acidente de viação. A coluna vertebral do escritor sofreu danos irreversíveis. Ficou paralítico da cintura para baixo, passando o resto dos seus dias numa cadeira de rodas. Ainda que um pouco tardiamente não podia deixar de debitar palavras de agradecimento a este gigante da literatura africana: MUITO OBRIGADO CHINUA ACHEBE. DESCANSE EM PAZ! Nota a propósito do artigo “Revisitando o processo dos cinquenta” O jornal Cultura incorreu numa omissão editorial, que levou a que o artigo “Revisitando o Processo dos Cinquenta - Apresentação do Livro ‘Angola - Processos Políticos da Luta pela Independência’ de Maria do Carmo Medina” tivesse saído a público sem a devida menção do seu autor, o professor Fernando Oliveira. Pelo facto, pedimos as nossas desculpas ao ilustre jurista e aos nossos estimados leitores. Fernando Oliveira nasceu no Huambo, em 1946. É licenciado em Direito pela Universidade Clás- sica de Lisboa. Pós-graduado em Direito Internacional pela Universidade de Direito, Economia e Ciências Sociais de Paris. Curso de Direito Internacional Público da Academia de Direito Internacional de Haia. Investigador do Centro de Estudos e Investigação da Academia de Direito Internacional de Haia. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Sucessivamente, membro da Comissão Instaladora da Faculdade (1979), Coordenador Científico da Faculdade, membro da Comissão de Gestão da Faculdade e Director (posteriormente “Decano”) eleito desde Fevereiro de 1997 a 2005. Regente das disciplinas de Direito Internacional Público (1980 a 1998) e de Direito do Mar, desde 2001 até ao presente. Professor Bibliotecário da Faculdade. Professor convidado da Faculdade de Direito da Universidade José Eduardo dos Santos (Huambo). Membro da Associação Internacional de Juristas Democráticos. Delegado de Angola em diversos comités e conferências internacionais de codificação do Direito Internacional, na Organização das Nações Unidas e na Organização de Unidade Africana. Director de Gabinete do Ministro da Informação no Governo de Transição (1975). Auditor da Procuradoria da República (1976/1978). Director de Gabinete Jurídico do Ministério da Justiça (1978/1986). Conselheiro do Ministério das Relações Exteriores (1990/2000). Consultor do Ministério dos Petróleos e do Banco Mundial. Advogado em Angola, desde 1973. Principais publicações: “A Defesa do Consumidor” (1973), “Textos de Direito Internacional, I” (1981); “Textos de Direito Internacional, II”(1985); “Le rôle du mercenariat en Afrique une approche juridique”(1985);“Defesas Penais - Peças Forenses”(1990); “Praticando o Direito, peças forenses”(1998); “Prédio Comfabril – A re paração de uma ilegalidade. Recurso para o Tribunal Supremo”(1999);”Conditions environnementales attachés à l’aide au Développement. Ecologie contre souveraineté (2002); “O Sangue e o Solo da Cidadania: Jus Soli ou Jus Sanguinis?”(2004); “Questões Fiscais e Administrativas – Peças e Pareceres” (2005); “Breve Glossário de Latim para Juristas” (10ª edição, ampliada, 2008); “Textos de Direito Internacional – Vol I” (2012). Cultura | 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 Quinito e Dipanda, no Roque Santeiro BARRA DO KWANZA | 31 Boaventura Cardoso Q uinito tinha escolhido propositadamente aquele local em que, tinha anos, havia se encontrado com seu grande amigo Saiundo. Talvez ele próprio não soubesse justificar a razão de tal escolha. Certo era que, desde aquele primeiro encontro com Saiundo, no Roque Santeiro, aquele grande mercado informal fazia parte da sua vida. Ali tinha passado horas a reviver um pouco da sua trágica existência. Ao se aproximarem dele, Quinito se levantou para que o filho reparasse logo em que estado físico ele se encontrava. Não foi necessário que o seu amigo fizesse o mínimo gesto para que ele identificasse o filho, ou dissesse uma qualquer palavra. Lhe reconheci logo nas suas feições, me vieram à memória as imagens que retenho dele desde que lhe deixara de ver. Dipanda, o seu filho, estava ali! Lhe abraçou com fervor e disse baixinho: “meu filho!” Dipanda, embaraçado, apercebe-se que o pai soluça e, vivamente emocionado, desata a chorar. O amigo de Quinito sentia-se feliz e igualmente emocionado, apesar de aparentar ser um homem forte, pouco dado a sentimentalismos. Passantes paravam e olhavam e depois continuavam a andar em direcção a outros pontos do movimentado mercado. Uma mulher de panos, levando um embrulho na cabeça, ainda que parou para ver a cena, mas depois retomou passo dela dizendo lamúrias numa das línguas nacionais. Depois os três foram para uma barraca onde se sentaram e pediram bebidas. Dipanda observou que queria um refresco. E Quinito, depois de ter feito muitas perguntas ao filho, sobre a sua vida, seus estudos, quantos irmãos tinha, onde vivia e com quem, como estava Tita, começou a contar as contas do seu longo rosário. Dipanda foi confirmando então o que já tinha ouvido dizer do pai: um grande e anónimo he- rói! De facto, Dipanda ao longo de vários anos foi ouvindo a mãe falar-lhe das façanhas do pai, dos confrontos nos musseques de Luanda , da sua heroicidade no meio de grandes combates naqueles idos anos, da sua bravura, da sua áurea de grande comandante, mesmo depois que ele tinha partido para as frentes de combate durante muito tempo ainda que as pessoas lhe chamavam no nome dele de o glorioso comandante Quinito. E Dipanda, sempre curioso, aproveitava todos os momentos em que a mãe estivesse bem disposta para lhe assediar com as muitas perguntas sobre o glorioso passado do pai. E assim foi anotando num caderno os fragmentos mais importantes da vida do pai que não conhecia, mas que sabia ter sido um grande combatente. E em conversa com os amigos contava as cenas em que o pai tinha sido o principal protagonista se empolgando como se ele próprio tivesse vivido aqueles episódios. Sem que a mãe imaginasse o que ficava a fazer no quarto, acordado até altas horas da madrugada, Dipanda foi escrevendo aquilo que teria sido a vida do pai, fazendo recurso à sua imaginação quando fosse necessário preencher longos períodos de tempo em que, pensava algo de particular devesse de ter acontecido. Curioso, no seu íntimo, Dipanda foi alimentando a ténue esperança de que um dia lhe iria conhecer pessoalmente, sem imaginar sequer as dificuldades e os perigos por que o Quinito deveria estar a passar. Talvez esse sentimento lhe fosse instilado pela mãe que, ao lhe falar do pai, fazia-o com muito entusiasmo sem nunca sequer admitir a hipótese de que o seu Quinito pudesse não pertencer já a este mundo. Quando acabou de lhe contar como e em que circunstâncias tinha perdido a perna esquerda, reparou que uma tristeza muito grande ensombrara o rosto alegre de Dipanda. Mas logo disfarçou, mudando de assunto, recordando que só duas semanas depois de ele ter nascido é que lhe fora ver pela primeira vez, não pudera ir a casa antes porque estava destacado na Tourada, que a cidade toda estava em estado de alerta máxima, que em Luanda se ouviam os rebentamentos de lá em Kifangondo, que o inimigo era um exército poderoso e forte que vinha do Norte com o objectivo de impedir que a Independência fosse proclamada a onze de Novembro de mil novecentos e setenta e cinco. Depois de muito hesitar, Dipanda lhe perguntou quantos filhos tinha feito durante o tempo todo que tinha estado nas frentes. Quando lhe respondi que nenhum, que ele era só o meu único filho só, Dipanda não escondeu sua grande satisfação, cara dele se iluminou de muito grande contentamento. Ante o espanto do filho, Quinito lhe adiantou nas razões: tinha sido vontade dele nunca fazer filhos com mulher de ocasião. Tinha sonhado que um dia pudesse casar-se e constituir família segundo os ensinamentos da Santa Madre Igreja. Disse que o filho podia assim imaginar o quantas vezes pensara nele, apesar de distante, nesses longes matos. Não lhe revelou, claro, por respeito, que apesar desse juramento dado, ele tinha tido muitos casos com várias mulheres. Para disfarçar a saudade e angústia por nunca ter sabido dele, nem ao menos ter tido uma sua fotografia recente, seu muito carinho por ele se manifestava nas crianças que foi encontrando por essas andanças. E lhe falei então do miúdo Ndala, de Xangongo, que hoje é um general muito estrelado. (Extracto do romance “NOITES DE VIGÍLIA”) 32 | NAVEGAÇÕES 29 de Abril a 12 de Maio de 2013 | Nos 15 anos de capoeira de Cabuenha Cultura “Chamar a dikanza de reco-reco é uma ofensa muito grave” Matadi Makola Foto: Rita Soares D os rastos da segunda quinzena de Março ainda ressoam nos murmúrios pouco efémeros os momentos do 2º Encontro Nacional de Abadá Capoeira, que ao abrir com a Orquestra de Birimbau em homenagem aos mestres Kamosso e Kituxi ganhou vida sonora, sacando ousadamente do seu repertório uma versão do “Mufete” de André Mingas em arranjos de capoeira. Do certame, ficou registada a apresentação do livro “Percursão do Berinbau de Barriga: sua técnica e sua escrita”, do brasileiro Rodrigues Moraes, e a oferenda musical de algumas canções do músico Boa Nova, que é justamente conhecido nas lides capoeristas por “ Pavarotti da capoeira” devido ao seu tom firme e elevação lírica. Mas isso não era o fim. Além do festival de cantiga no Elinga Teatro e do aulão de capoeira na Nova Marginal de Luanda, a boda do branco e da ginga, que contou com presentes difíceis de serem tidos como modestos, nomeadamente Cornélio Caley, Mestre Kamosso e Mestre Cascão, trazia também no fundo a homenagem aos15 anos de capoeira de Cabuenha, este aluno e amigo engajado dos mestres homenageados. O pequeno Moniz (Cabuenha) do bairro Nelito Soares cresceu em corpo e em espírito e se revestiu das filosofias e crenças de muitos antepassados que com a dança e luta capoeira imanaram para outros níveis do entendimento humano. É com facilidade que os sorrisos lhe atravessam os lábios. Alto e robusto, os seus cabelos soltos e as missangas no pulso e pescoço são as primeiras “fofoqueiras” à vista que denunciam a sua liga- ção material ao continente berço. Pedido a falar, Cabuenha nos explica que começou aqui em Angola em 98 e posteriormente deu continuidade nos lugares onde passou, respectivamente Portugal e Brasil. Para ele, é sempre como se fosse um sonho de criança fazer capoeira com essa estrutura tão evolutiva, tendo presente as províncias de Kuando-Kubango, Malanje, Huambo e outras, sinais que na sua consideração indicam o fazer renascer das nossas manifestações culturais, sendo objectivo da capoeira usar a arte como instrumento de integração social e de resgate dos valores culturais e cívicos. Num exercício de modéstia e realismo, diz mais adiante: “é claro que nem todos serão mestres. Quem reconhece o mestre é a comunidade capoerista, e para tal é preciso ter no mínimo mais de 25 anos de capoeira. Kituxi e Kamosso são mestres. Eles têm muita vivência. É preciso entender a profundidade da vida e não se manter céptico às dinâmicas em volta. Os mestres são pessoas um pouco iluminadas ou coisa parecida e devem um grande respeito à tradição oral, e eu ainda não sou isso”. E continua: “a capoeira tem essa força que mexe bastante com os alicerces da auto-estima. Não vou dizer que a capoeira humaniza, mas ajuda a humanizar. É uma filosofia de vida aberta e que leva a viajar bastante, com exercícios constantes de pesquisa sobre as raízes culturais, elevando-se a partir da música, dança, luta, história e filosofia”. Desafiado a ir buscar-se do seu baú das recordações, conta que já lá vão muitos sonhos nestes 15 anos de capoeira e que antigamente iam à Ilha de Luanda a pé. Sem ser tomado por nostalgias, recorda que tinha sonhos de dar vários mortais, como girar o peão e a virada de quatro giradas, exercícios que sempre lhe chamavam a atenção. Foi na capoeira onde aprendeu tudo, e hoje já crescido o que mais lhe marca é o facto da capoeira ter ajudado a se encontrar como angolano. É esta arte que o levou a “arriscar” esse um pouco de kimbundo que de vez em vez exercita. Contar e cantar em kimbundo são virtudes que deve à capoeira, onde aprendeu o hungo e a dikanza; onde diante de mestres como Fontinha e Kamosso chamar a dikanza de reco-reco é uma ofensa muito grave. Leitores vencedores do desafio Nº XXVIII Sinónimos, Língua Portuguesa Questão: Antónimo da palavra: Humildade Resposta: Soberba Não existiram leitores vencedores. Efemérides Culturais 2013– Ano das Matemáticas do planeta Terra 2005-2014- Decénio das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável 2005-2015- Segundo Decénio Internacional das Populações Indígenas do Mundo 2013-2022 - Decénio internacional da aproximação das culturas