De 3 a 16 de Setembro de 2012 | Nº 12 | Ano 1
Director: José Luís Mendonça
•Kz 50,00
Reabriu o Museu regional do Dundo
PATRIMÓNIO CULTURAL
Pag. 14 - 15
Pag. 4 - 9
FESTINETO
Agostinho Neto
formação e
ideário de um
intelectual
orgânico
africano
“Em Agostinho Neto, qualidades pessoais
como audácia, orgulho e auto-estima
enquanto africano, a assunção do compromisso político e as formulações teóricas
sobre a libertação e o nacionalismo
traduzem o culminar de um longo
processo de formação.”
ECO DE ANGOLA
Pag. 2
Canção do
destino,
Kama Sywor
Kmanda
(poeta congolês)
ARTES
Pag. 18-19
Da Xicala à
Mutamba:
contrastes de
Luanda
DIÁLOGOINTERCULTURAL Pag. 24-25
Francisco Dia
Costa Alegre Internacional
“Não somos
puros, mas sim
uma mestiçagem muito
complicada”
da Memória
do Tráfico de
Escravos e da
sua abolição
Pag. 29
2 | ECO DE ANGOLA
3 a 16 de Setembro de 2012 |
Kama Sywor KAMANDA (poeta congolês)
Cultura
Canção do destino
Vou onde me leva o vento da esperança
e sigo o astro das existências incompletas.
A canção do destino oprime a humanidade
com os choros dos crentes.
Livro dos mortos, orações dos discípulos,
o rio se afasta com a minha languidez.
Oh palavra sagrada prolonga a tua liberdade
até à raiz dos amores verdadeiros.
O mestre bêbado, o comandante louco,
a minha ilusão absoluta de imitar os deuses,
te oferta, oh mulher,
levada pelo arrebatamento dos sonhos
e a vertigem das delícias sensuais,
a imortalidade condicional.
Miragem de todos os tempos,
mar onde se bebem todas as paixões,
composição natural do belo,
Ah! Como o sol de todas as vidas
e o sangue de todos os desejos,
tu simbolisas os milagres dos dias!
O teu prazer vencido, as tuas ambições reveladas
e a tua sombra penetrada, encontras refúgio
na alquimia dos sonhos.
Infelizmente, ocultei minhas lágrimas na pedra
quando os teus olhos se abriram
ao pavor trágico do declínio de coisas.
Os rios vastos da fé
inundam a minha alma afligida e tremulante
no fluxo e refluxo do sonho
como uma foice de ouro
no fundo de uma queda de água.
E sobre o meu corpo passam e repassam
as águas da História.
(in ‘Les Résignations’, tradução de José L. Mendonça)
Kama Sywor KAMANDA, poeta, escritor, contador de histórias, dramaturgo; nascido em Luebo, na República Democrática do Congo, em 11
de Novembro de 1952. Diploma do Estado em Literatura, 1968; diploma em Jornalismo, Escola de Jornalismo, Kinshasa, Congo, 1969; diploma em
Ciências Políticas, Universidade de Kinshasa, Congo, 1973; licenciatura em Filosofia e Humanidades (menção), Universidade de Kinshasa, Congo,
1975; estudos de Direito, Universidade de Liège, 1981. Conferencista convidado em várias universidades no mundo e autor de críticas culturais e
políticas. Traduzido para inglês, italiano, japonês e chinês, recebeu o reconhecimento internacional da Academia Francesa (Prémio Paul Verlaine
e Premio Théophile Gauthier), Grande Prémio Literário da África Negra, Prémio Melina Mercouri, Associação dos Poetas e Escritores Gregos, Poeta
do Milénio 2000, Academia Internacional dos Poetas, Índia, entre outros.
Cultura
Jornal Angolano de Artes e Letras
Um jornal quinzenal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento.
Nº 12/Ano I/ de 3 a 16 de Setembro de 2012
E-mail: [email protected] / Telefone e Fax: 222 01 82 84
CONSELHO EDITORIAL
Director e Editor-chefe | José Luís Mendonça
Editor de Letras | Isaquiel Cori
Estudos, Recensões e Resenhas |
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Assistente Editorial: | Berenice Rocha
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do Jornal de Angola
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Angola
Emanuel Caboco, Filipe Zau, J.A.S. Lopito Feijóo
K., João N’gola Trindade, Joaquim Aguiar, Johnny
Kapela, Luís Kandjimbo, Nilton André, Norberto
Costa, Patrício Batsîkama, Simão Souindoula,
Ximinya
Cabo Verde | Nuno Rebocho
Brasil | Antônio Moura, Salgado Maranhão
República Dominicana | Carlos Hernández Soto
FONTES DE INFORMAÇÃO:
AGULHA
Revista de cultura, São Paulo, Brasil
Correio da UNESCO, Paris, França
AFRICULTURES, Portal e revista de referência
das culturas africanas, Les Pilles, França
MODO DE USAR & CO., revista de poesia sonora e
visual, em vídeo, e também escrita. Editada por Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domenec, Rio de Janeiro, Brasil
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Mateus Morais de Brito Júnior
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
ECO DE ANGOLA
|3
José Luís Mendonça
Plantar palmeiras na lua
1
O poema “O verde das palmeiras da minha mocidade”, escrito na Cadeia de Caxias no dia 26 de Fevereiro de 1955
por Agostinho Neto, transporta na sua tessitura verbal signos representativos de múltiplos estados psicológicos revelados pelo sujeito poético, enquanto síntese do sentir colectivo.
Neto afirma que partia da sua terra natal “afagando o dedo da insegurança”, deixava para trás o seio materno da Mãe-África, no
qual se acostumara a beber, na sua vivência de homem negro estigmatizado pelo colonialismo, o manancial da Cultura, que lhe
conferia a emancipação (embora condicionada aos átrios da alma) pela via do humanismo, porta de entrada da igualdade universal. A abertura do poema desenha um quadro macabro biovegetal e psicológico de sujidade, podridão das águas do rio
Kwanza, transbordante de troncos e vísceras, onde paira o medo. E o poeta “fugia do verde/ do verde-negro das palmeiras/ da
minha mocidade.”
Numa estrofe desse longo poema, na penúltima estrofe, Neto
diz, agora já com entusiasmo e fé: “E nos gritos embrionários
dos velhos mundos/ tudo revive/esta dramática mocidade de
reencontro/tudo revive em peitos largos de ansiedade/ofegantes à força da verdade/alicerçados no imperecível.”
A visão das palmeiras inserida no poema de A. Neto conduz o
leitor a uma aproximação estético-futurista com os versos do
poeta Ernesto Lara Filho, que, como Neto, também constrói signos de um ideário que franqueia as portas do individualismo
criador para a alegoria do colectivo: «Nós iremos, nós também/
Minha mãe/ pisando o capim queimado/ pisando a areia das
praias/ atravessando os desertos/ Caminhando pelas lavras/ e
derrubando florestas: Nós iremos, nós também plantar mangueiras na Lua.”
O “verde das palmeiras” é retomado aqui, em toda a sua
simbologia de esperança, fé, juventude e força, mas também fruto e tempo de festa, em suma, a idiossincrasia de
todo um povo que fez com que o poeta não se deixasse alienar
pelos caminhos do exílio e retroalimentasse a chama da luta
com a soma da africanidade que lhe corria nas veias. A gesta gloriosa que se seguiu a essa fuga “do verde das palmeiras” da mocidade foi de uma estatura gigantesca e única na História de
África. Nas horas do sofrimento mais íntimo, encerrado entre as
grades da prisão, o poeta visionava a paisagem da sua terra e escrevia: “O verde negro das palmeiras tem beleza!”
Passados que são 56 anos desde a partida de Neto para
uma gesta que culminaria com o içar da bandeira no largo
1º de Maio (hoje da Independência) no dia 11 de Novembro de 1975, nós, os poetas da Angola livre, recolhemos no verde-negro das palmeiras da nossa terra, aquela “estratégia épica,
colectiva, para o povo angolano e um sentido pragmático da história”, como bem referenciou o professor Pires Laranjeira.
Eis-nos, pois, homens deste futuro poetizado em versos magníficos por aquele que partiu um dia “sorridente e triste/deixando
o espírito espezinhado nos currais abandonados”, eis-nos dignificados aqui e agora, com as mãos cheias dos signos que ele nos
legou indo “para mais alto”, até à Lua, onde a alma do poeta conseguiu plantar não só mangueiras, mas também “o verde-negro
das palmeiras”.
2
3
Sumário
ECO DE ANGOLA
Canção do destino | Kama Sywor KAMANDA (poeta congolês)
Plantar palmeiras na lua | José Luís Mendonça
FESTINETO
Agostinho Neto: formação e ideário de um intelectual orgânico africano | Luís Kandjimbo
Dia do Herói Nacional - A marcha, a navalha de Agostinho Neto | Johnny Kapela
PATRIMÓNIO CULTURAL
Dondo: uma vila que persiste ao tempo e à memória | Emanuel Caboco
Reabriu o Museu Regional do Dundo: a primeira e maior instituição museológica
de Angola | Joaquim Aguiar
LETRAS
Os longos dias de resistência (a estreia de Kanda) | J.A.S. Lopito Feijóo K.
Mbânza Kôngo entre 1491-1885 | Patrício Batsîkama
ARTES
Da Xicala à Mutamba: contrastes de Luanda | fotografias de Paulino Damião (50)
GRAFITOS NA ALMA
A introdução das línguas maternas angolanas no sistema de ensino
e a democratização da cultura | Norberto Costa
Será a religião um instrumento de dominação? | João N’gola Trindade
DIÁLOGO INTERCULTURAL
Francisco Costa Alegre: “Não somos puros, mas sim uma mestiçagem
muito complicada” | Matadi Makola
Jean-Joseph Rabearivelo (1901 - 1937). Arte longa, vida breve |Antônio Moura
Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos
e da sua abolição |Carlos Hernández Soto
O Amado do Brasil |Salgado Maranhão
Elinga Teatro é chamariz - Mindelact: arranca no Mindelo durante 8 dias |Nuno Rebocho
BARRA DO KWANZA
Um cinturão | conto de Graciliano Ramos
NAVEGAÇÕES
Kudilonga - O lápis da menina-professora | Ximinya
Mar de Margaridas | Filipe Zau
3 a 16 de Setembro de 2012 |
4|
Cultura
Luis Kandjimbo
Agostinho Neto: formação e ideário
de um intelectual orgânico africano
Introdução
Três proeminentes intelectuais nigerianos fazem alusões ao pensamento
e acção de Agostinho Neto, associan-
do-lhe circunstâncias que convocam
a condição africana.Em 1960, falando da situação do escritor africano na
Conferência Afro-Escandinava de Escritores, em Estocolmo, Wole Soyin-
ka toma como exemplo o escritor angolano, quando se refere ao contexto
desumanizante vivido no século XX.
No seu horizonte estão certamente
as experiências de privação da liber-
dade por que tinha passado Agostinho Neto cuja notoriedade pública
suscitara uma campanha internacional apoiada por intelectuais de diversas origens.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
Em 1981, a revista Okike (An African Journal of New Writing), publicada em Nsukka, Anambra State, sudoeste da Nigéria, sob a direcção editorial de Chinua Achebe, presta uma
homenagem a Agostinho Neto, dedicando-lhe o seu número 18, em que se
destaca o poema escrito pelo eminente escritor nigeriano.
Num texto consagrado à descolonização da teoria e da crítica africana,
publicado em 1990, na revista americana Research in African Literatures, o
professor nigeriano Biodun Jeyifo
considerava que os textos doutrinários de Agostinho Neto sobre a cultura
nacional e a literatura podiam pertencer à categoria do «discurso literário
nacionalista». Trata-se de textos de
discursos proferidos num contexto
institucional, por ocasião da tomada
de posse dos órgãos directivos da
União dos Escritores Angolanos.
Em Agostinho Neto, qualidades pessoais como audácia, orgulho e autoestima enquanto africano, a assunção
do compromisso político e as formulações teóricas sobre a libertação e o nacionalismo traduzem o culminar de
um longo processo de formação. A
avaliação de tais qualidades exige um
conhecimento da genealogia do seu
pensamento. O momento genealógico
inicial há-de situar-se na década de 40
do século XX. Aos efeitos socializadores dos meios de referência associa-se
um programa que começa a concretizar-se a partir da publicação de dois
textos de opinião em O Estandarte,
jornal da Igreja Metodista, nomeadamente A Nova Ordem Começa Em
Nossa Casa e A Paz Que Queremos,
entre 1944 e 1945. Mas é com Instrução ao Nativo, publicado igualmente
em O Estandarte em 1945 e com Uma
causa psicológica: A marcha para o exterior” e Uma necessidade, publicados no jornal O Farolim, em 1946, que
o discurso nacionalista revela as marcas do nativismo angolano das primeiras décadas do século XX. Justifica-se,
por issso, o desenvolvimento de uma
abordagem que privilegie a genealogia do pensamento, no quadro mais
amplo da história intelectual de Angola.
Angola nas primeiras décadas do
século XX: o contexto político e social
Durante a primeira década do século XX registam-se factos políticos de
relevo que produzem fortes impactos
na sociedade colonial angolana. A implantação da República em Portugal,
em 1910, e a aprovação do Acto Colonial, em 1930, no contexto político do
Estado Novo em Portugal, darão lugar
a um conjunto de reformas políticas e
administrativas nos territórios coloniais, incidindo particularmente sobre o estatuto das colónias, a imprensa e a educação.
A institucionalização do ensino
secundário oficial ocorreu apenas em
1919 com a criação do Liceu Salvador
Correia, em Luanda. Tal facto deve ser
assinalado. Representa um momento
de viragem na formação das elites angolanas, no âmbito de um processo
que corresponderia às necessidades
de uma administração moderna, ao
abrigo dos valores republicanos de
que decorrem o exercício efectivo de
direitos e liberdades. O surgimento de
uma camada social de angolanos que
se pretende afirmar como uma elite
que toma consciência da situação de
dominação colonial estará na origem
do desenvolvimento do jornalismo e
da literatura nesse período.
Portanto, o emprego e a ocupação
de cargos no funcionalismo público, o
associativismo, a propriedade de jornais e a escrita (literária e jornalística)
constituíam quatro dos mais importantes instrumentos da defesa dos interesses angolenses que revelam bem
a recepção do republicanismo e das
correntes estéticas e ideológicas que
dominam os panoramas literários
brasileiros, portugueses e europeus
em geral. Estes são os vectores em que
se analisa o nativismo literário angolano.
Em 1922, Catete, a sede da circunscrição civil de Icolo e Bengo, tinha acabado de ser abalada por uma Revolta
Nativista Camponesa que eclodira em
Fevereiro. O pastor e professor Agostinho Pedro Neto, seu pai e um catequista Manuel André, ambos da Igreja Me-
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todista, apoiando a revolta, eram
subscritores de um abaixo-assinado,
datado de 10 de Fevereiro. O encarregado na Missão Americana em Mazozo, Sebastião Gaspar Domingos, envolvido na colecta de dinheiro destinado ao advogado, fora alertado para
que se afastasse do turbilhão da revolta por ordem do bispo Robert Shields,
bispo da Igreja Metodista e Director
das Missões Americanas.
O mentor intelectual da Revolta Catete era um advogado provisionário,
jornalista, escritor e dirigente de associações nativistas. Por essa razão, foi
indiciado como principal arguido de
um dos mais célebres processos de investigações policiais que tiveram lugar nas primeiras décadas do século
XX. Trata-se de António de Assis Júnior. Por ocasião da vaga de prisões,
buscas e apreensões, motivadas pelos
Acontecimentos de Catete, António de
Assis Júnior, com 44 anos de idade, era
director do conhecido jornal O Angolense.
Preso em Fevereiro de 1922, como
arguido do processo de averiguações
administrativas nº 293, é mantido em
prisão durante três meses, sem culpa
formada. Quatro dias depois eram detidos os trabalhadores «indígenas» de
Catete que se tinham deslocado a
Luanda para apresentar reclamações
ao Alto-comissário da República, assessorados por esse tribuno conhecido como «advogado dos nativos».
Negando qualquer papel de instigador e autoria de prelecções de propaganda contra o governo, António de
Assis Júnior reconhecia que tinha sido
contactado para redigir uma exposição, através da qual os operários agrícolas «pretendiam que fossem ouvidos sobre os castigos corporais que
em Catete lhes são aplicados, prisões
arbitrárias que sofrem, trabalho obrigatório que executam por cinquenta e
dois dias em casas particulares, retribuição de vinte centavos diários que
recebem no Posto Algodoeiro, abolição do pagamento de Imposto Indígena a crianças de dez e doze anos, etc.».
Antes da deslocação dos referidos
camponeses a Luanda, António de Assis Júnior, na qualidade de director do
jornal O Angolense, tinha redigido e
publicado um artigo acerca desses
acontecimentos. Sobre ele pesava então a acusação da prática de um crime
de tentativa de «revolta indígena». Para que não lhe fosse imputada qualquer responsabilidade enquanto estivesse preso, apresentou dois requerimentos ao Alto-comissário de Portugal em Angola em que constrói argumentos de uma retórica de ilibação.
As actividades desenvolvidas por
António de Assis Júnior, entre 1920 e
1922, permitem concluir que era o líder de um grupo numeroso. As buscas
e apreensões de que tinha sido alvo, tinham permitido recolher documentos
diversos, arrumados em oito volumes.
As autoridades coloniais identificavam aí a existência de uma causa remota. Na verdade, a causa era bem
mais antiga do que parecia.
A conclusão das averiguações instauradas em 1922, apontavam para a
iminência de uma rebelião fundada
numa doutrina e propaganda nativistas cujos focos de agitação se espalhavam pelas cidades e regiões mais importantes do território, tais como
Benguela, Cabinda, Luanda, Malanje,
Mossamedes, Ndala Tando. Com uma
rede impressionante de contactos que
culminava com a publicação de jornais, entre os quais A Lunda, Angolense e A Verdade. Entre as figuras implicadas destacam-se: António de Assis
Júnior (director de O Angolense), António Joaquim de Miranda (que se encontrava desterrado em Cabinda, antigo colaborador de A Lunda e Era Nova
de Malanje), A. Figueiredo, Custódio
Bento de Azevedo (Sassa, Alto Dande), Gervásio Ferreira Viana ( Ndala
Tando), João Pedro de Sousa (Benguela), José Carlos Oliveira ( Mossamedes, ex-presidente da Liga Angolana), Narciso Espírito Santo (santomense, director de A Verdade), padre
Manuel (Paço Episcopal em Luanda).
Durante os anos 20, registam-se
restrições e inibições ao exercício das
liberdades como resultado da implantação da ditadura com o Estado Novo
em Portugal. É sobre este fundo marcado por um «longo silêncio» que António de Assis Júnior (1878-1960),
após a publicação de Relato dos Acon-
3 a 16 de Setembro de 2012 |
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tecimentos de Dala Tando e Lucala
(1917), uma narrativa e ao mesmo
tempo um testemunho sobre a repressão de acções de reivindicação, a que
se denominou revolta dos nativos, cujos actores constituíam um grupo da
elite local de que ele próprio fazia parte, dá à estampa em 1934 O Segredo da
Morta, o romance inaugural angolano.
Observados os traços estruturantes do pensamento e das ideias produzidas em Angola nesse período, da geração de Assis Júnior não se transita
directamente para a geração de Agostinho Neto. De resto, bastará notar a
distância cronológica que separa as
datas de nascimento de ambos os autores. Há pelo menos uma geração intermédia representada pelo ensaísta
Lourenço Mendes da Conceição. Natural da vila da Muxima (Kakungu), nasceu em 29 de Dezembro de 1896, tendo falecido em Luanda em 29 de Junho
de 1970. Publicou: Três Mestres da
Minha Predilecção (Lisboa, 1948);
Porque se Escreve Luanda com “U”,
(Luanda, O Apostolado, 1943).
1922-1930. De Kaxicane a Luanda
Agostinho Neto nasceu às cinco horas do dia 17 de Setembro de 1922 em
Kaxicane, localidade da circunscrição
civil de Icolo e Bengo cuja sede se encontrava situada em Catete. Nessa data o pai era pastor da chanada «Missão
Americana de Luanda», tendo sido ordenado presbítero em 1925. Em 1930
a família fixa residência no Bairro
Operário, em Luanda, onde seu pai assumiria a responsabilidade de chefiar
o colectivo local de pastores da Igreja
Metodista.
Crónica da formação e morte do pai
Os estudos primários e liceais decorrem entre 1931 e 1944. Com o jornal O Estandarte podemos elaborar
uma crónica da sua formação em Angola. Na edição de 3 de Fevereiro de
1934, refere-se que tinham concluído
«com brilho os seus estudos primários nos exames efectuados na Escola
Primária nº7 de Sousa Coutinho, os
alunos da Escola Primária Evangélica
desta cidade, com as classificações seguintes: Américo de Souza, 18 valores
(distinto); António Agostinho Neto,
18 valores (distinto). Já em Janeiro de
1935, o mesmo jornal, dava conta de
um outro facto. A transição para a 2ª
classe do Liceu desta cidade dos «meninos Alberto Marques e António
Agostinho Neto. A estes meninos que
foram felizes nos seus estudos as nossas felicitações». Os referidos alunos a
que se juntava o nome de Simão Toco,
no ano lectivo de 1936, como testemunha O Estandarte de Março de 1936
estavam matriculados na 2ª classe do
Liceu. A década de 30 chegava ao fim,
quando em Fevereiro de 1939 se
anuncia a realização com sucesso do
exame do 1º ciclo (3º ano) do Liceu do
menino António Agostinho Neto com
Cultura
Agostinho Neto com os pais e irmãos (último em pé do lado direito)
a classificação de 13 valores.
Conclui com 15 valores o Curso de
Ciências do 7º ano do Liceu nos exames realizados em 1944, anuncia com
orgulho O Estandarte de Fevereiro de
1944, nº 95: «Nos exames do 3º ciclo
realizados em Janeiro do corrente ano,
concluiu o 7º ano de Ciências com 15
valores, o nosso prezado irmão na fé,
sr. António Agostinho Neto […]». A redacção de O Estandarte de Novembro
e Dezembro de 1943 (nº92/93) destaca o nome de Agostinho Neto na galeria de colaboradores permanentes:
«Desde a sua fundação-1933 até 1943
teve os seguintes colaboradores: […]
colaboradores permanentes […] António Victor de Carvalho, António
Agostinho Neto […] Domingos F. da
Silva, Gaspar de Almeida». Setes meses antes da sua integração nos quadros do funcionalismo público dos
serviços de saúde, o seu estado de
doença fora noticiada por O Estandarte de Junho/Julho, 1944, (nº99/100):
«Já se encontra felizmente melhor dos
seus padecimentos o nosso prezado
irmão e colaborador, sr. António Agostinho Neto».
Durante o ano de 1946, O Estandarte relata igualmente a doença, a agonia e a morte do pai de Agostinho Neto, o Reverendo Agostinho Pedro Neto.
O Estandarte de Maio, 1946, nº121 escreve: «Há dois meses que o nosso
prezado irmão Rev. Agostinho Pedro
Neto, pastor do circuito dos Dembos,
jaz no leito gravemente doente. Os clínicos têm-no rodeado com os seus cuidados, dispondo-lhe todos os recursos do seu saber; os crentes que estão
ao facto do estado desse nosso querido irmão estão orando […]». Na edição
nº 121 de Maio de 1946, lê-se: «Tivemos o prazer de abraçar a este nosso
prezado irmão e apreciado colaborador, vindo de Malange, a fim de visitar
o seu querido Pai, que se encontra bastante doente». Por fim a notícia da
morte. O Estandarte de Junho, 1946,
nº122, escreve: «Faleceu o Rev. Agostinho Pedro Neto. Depois de um sofrimento de cerca de três meses, dormiu
no Senhor, em 21 do corrente mês, na
sua residência, Bairro Operário, o nosso querido irmão Rev. Agostinho Pedro Neto, Pastor do Circuito dos Dembos». O reverendo Agostinho Pedro
Neto era natural de Kalomboloca. Foi
pastor evangélico e professor primário em Kaxicane onde foi colocado em
1918.Em 1925 foi ordenado Presbítero.
Do funcionalismo público à actividade tribunícia
Em 1944, O Estandarte, na sua edição de Novembro/Dezembro, 1944,
nº105, anunciava que Agostinho Neto
iria ocupar o seu cargo no funcionalismo púbico para o qual tinha sido nomeado. E, no comboio do dia 3 de Novembro, seguira para Malange, «o nosso benquisto irmão, Sr. António A. Neto, cuja ausência sentimos, pois que
além de possuir elevados dotes, foi
também um assíduo colaborador do
nosso jornal. Esperamos que de Malange, continue a honrar «O Estandarte», com a mesma colaboração». No
ano seguinte, na sua edição nº118 de
Dezembro de 1945, O Estandarte, dava uma outra notícia: «Estando de licença disciplinar, veio passar o Natal
ao seio da família, vindo de Malange, o
nosso prezado irmão e amigo, António
Agostinho Neto, ilustre funcionário do
Quadro de Saúde, a quem tivemos o
prazer de abraçar». Meses antes seu
irmão, Pedro Agostinho Neto tinha sido colocado como amanuense nos
Serviços de Saúde e Higiene do Bié, como se lê em O Estandarte, Setembro/
Outubro de 1944, na edição nº104.
Por sua vez Agostinho Neto seria
igualmente transferido para o Bié, logo depois.
Portanto, Agostinho Neto, pertencendo à primeira geração pós-nativista angolana, inscreve-se por direito
próprio na lista de legatários da tradição nativista em que perfilam ilustres
tribunos e publicistas angolanos. Contava então 23 anos de idade, quando
escreveu o seu primeiro texto de pendor pós-nativista. Nas décadas de 30 e
40, frequenta os meios socializadores
protestantes existentes em Luanda,
designadamente, a escola da Igreja
Metodista e o jornal O Estandarte. O
seu percurso escolar é narrado no referido jornal, como vimos, através de
notícias a respeito dos seus êxitos escolares e outros factos como a doença
e a morte do pai, entre 1934 e 1946.
Na primeira metade da década de 40,
Agostinho Neto publica alguns poemas e artigos de inspiração religiosa
no jornal O Estandarte. Neste mesmo
jornal pontificava seu pai, publicando
textos como O Segredo da Paz em
1936 e É preciso divertir a Juventude
Evangélica em 1944.
Em 1940, publica O Segredo de Viver e em 1943 publica As multidões
esperam em O Estandarte. De 1944 a
1959, escreve e publica artigos marcantes no âmbito da história intelectual angolana, a saber:
A Nova Ordem Começa Em Casa
(1944);
A Paz que Esperamos (1945);
Instrução ao Nativo (O Estandarte,
1945);
Uma Causa Psicológica: a “Marcha para o Exterior” (1946);
Uma Necessidade (1946);
Da Vida Espiritual em Angola (1949,
Meridiano)
O Rumo da Literatura Negra (Centro
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
de Estudos Africanos, 1951);
A propósito de Keita Fodeba (Angola,
Revista da Liga Africana, 1953);
Introdução ao Colóquio sobre Poesia
Angolana (1959).
O lugar de Malanje na consolidação
dos ideais
Das gerações de nativistas já referidas, Agostinho Neto recebe o testemunho pela mão de vários dos seus
protagonistas, entre os quais merece
referência José Manuel da Silva Lameira. Foi em Malanje que o jovem intelectual travou conhecimento com essa
lendária figura do movimento nativista angolano, sucessivamente preso e
desterrado para a Guiné-Bissau, Moçambique, Macau e Timor-leste, durante mais de uma década, de 1917 a
1938.
No seu livro de memórias, Recordações Minhas, José Diogo Ventura conta
que o «velho Lameira recebia na sua
residência da «Kapopa», junto à Rua
15 de Agosto, muitas pessoas importantes que gostavam de o ouvir […]
Lembro-me também de uma outra
pessoa porque, mais tarde, veio a ser o
primeiro Presidente da República Popular de Angola. Trata-se do Dr. António Agostinho Neto, na sua passagem
por Malanje, ainda como aspirante
dos Serviços de Saúde e Higiene». Os
textos escritos provavelmente em Malanje e enviados para publicação em
1946 no jornal O Farolim ecoam ideais
tributárias de conversas com José Manuel da Silva Lameira. É significativo o
testemunho de Domingos Van-Dunem, então secretário de redacção
desse jornal, a respeito das circunstâncias em que recebe a visita de
Agostinho Neto. Tal gesto exprimia
uma reacção ao comentário sarcástico
relativamente às atitudes preconceituosas dos funcionários públicos formados no Liceu. Agostinho Neto que
falava igualmente em nome de um
amigo seu, Joffre Van-Dúnem, pretendiam «pedir explicações ao atrevido
escriba».
Numa entrevista que concedeu a
Augusta Conchiglia, Agostinho Neto
observa:
«Também em Malanje vivi uma experiência magnífica. Fiz amizade com
um grupo de pessoas que, em minha
opinião, não se interessavam nada por
política, enquanto para mim a situação de Angola impunha essa preocupação. Mas entre em contacto com os
trabalhadores, com os contratados, e
foi lá que eu senti verdadeiramente e
com força a violência dos reaccionários portugueses. Os anos que vivi em
Malanje com toda a certeza influíram
muito na minha formação política».
Actividade reflexiva e ideias recorrentes
Marcado pela formação cristã e
|7
evangélica, Agostinho Neto manifesta
claramente os seus ideais, nos dois
primeiros textos publicados em O Estandarte, nomeadamente A Nova Ordem Começa Em Nossa Casa e A Paz
Que Queremos, entre 1944 e 1945.
Lança aí o seu programa intelectual e
define os contornos da sua personalidade.
É com Instrução ao Nativo, um outro
artigo publicado em O Estandarte
também em 1945, Uma causa psicológica: A marcha para o exterior” e Uma
necessidade, estes publicados no jornal O Farolim, em 1946, que o nativismo da fase inicial se revela no pensamento deste autor. Se confrontarmos
as ideias recorrentes dos dois textos
anteriores, observa-se uma coerência
no plano da articulação.
Uma das ideias nucleares em Instrução ao Nativo consiste na denúncia
da injustiça, reivindicando para os nativos a qualidade de beneficiários,
pois a instrução é necessária «ao povo
de rodas as regiões de Portugal».
Agostinho Neto levantava aqui «o problema do aumento do nível de instrução aos naturais». Em seu entender, é
visível a discriminação cuja abolição
defende. Por essa razão, observa: «À
parte o desenvolvimento escolar que
se vem notando nos grandes aglomerados de população europeia e o interesse posto na educação da criança
branca, nada, no sentido de se instruir
o natural tem sido feito».
Como exemplo de iniciativas que
contribuíam para a alteração desse estado de coisas, aponta o que faziam as
«Missões Religiosas», particularmente as «Missões Evangélicas» de cujas
escolas «têm saído muitos dos nativos
que hoje exercem funções públicas,
são professores, pastores de igreja e
uma boa parte da massa do operariado nativo, bem como alguns europeus».
Diante dos exemplos das igrejas
que entretanto se debatiam com problemas de ordem financeira e a indiferença das autoridades do chamado
«Império colonial», Agostinho Neto
entendia que mais poderiam estas estas fazer «desde que haja verdadeiro
interesse em resolver-se, ou, pelo menos em aumentar o número de possibilidades de o nativo se instruir, contratar mais professores e abrir mais
escolas».
Continuando a revelar a sua qualidade de membro da igreja evangélica,
sublinha o papel que a sociedade metodista podia desempenhar com o
fundo projectado para beneficiar os
nativos. Mas não fora consentido pelo
governo colonial.
Os textos publicados em O Estandarte, poderiam eventualmente ter sido escritos pelo autor tendo exclusivamente como destinatários a comunidade metodista e evangélica, apesar
de o seu teor ser de alcance mais geral.
Uma Causa Psicológica: A ‘Marcha’
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3 a 16 de Setembro de 2012 |
8|
para o Exterior marca a sua colaboração num jornal que, na década de 40,
seguia ainda as tradições do século
XIX. Trata-se de um artigo publicado
no jornal O Farolim em 1946. Lido e situado no seu contexto, é um texto revelador de elevada maturidade. Com
ele Agostinho Neto dá consistência a
ideias anteriores. Mas evolui, na medida em que diagnostica a falta de unidade entre «os elementos da classe
nativa» que têm tendência para se isolarem uns dos outros. Palpitando em
si um certo tipo de ideal, Agostinho
Neto constata o perigo que espreita:
«É paradoxal a desunião entre nós, nativos, que, para não citar outros aspectos do interesse comum têm que lutar
coesos pela sua economia e pelo aumento do seu nível cultural.»
Do seu ponto de vista, a fraqueza da
classe nativa reside na «psicologia distorcida» que se manifesta no cego seguidismo das modas entre os jovens.
Mas tal facto não é fortuito, pois «a desunião entre os nativos não é posterior à fabricação em série do rapaz
moderno». Por conseguinte, a desunião é simultânea. Ao mesmo tempo
que «a mulher africana moderna assimilando a inobjectividade da vida, dissemelhando-se da avózinha pacatamente crocheteante, adoptando a despreocupação, o bâton, a sola de cortiça
e a saia ascendente; deixou-se apenas
arrastar pelo movimento geral que
transformou o homem, que (digamolo de passagem) é difícil ser- se rebelde!».
A distorção da psicologia colectiva e
a desunião não ocorrem ao acaso. Tem
a sua causa fundamental na estrutura
do ensino ministrado.
«Os nativos são educados como se
tivessem nascido e residissem na Europa. Antes de atingirem a idade em
que são capazes de pensar sem esteio,
não conhecem Angola. Olham a sua
terra de fora para dentro e não ao invés, como seria óbvio. Estudam na escola, minuciosamente, a História e
Geografia de Portugal, enquanto que,
da Colónia, apenas folheiam em sinopses ou estudam levemente».
E qual é a consequência disso?
Agostinho Neto responde: «Os indivíduos assim formados têm a cabeça
sobre vértebras nativas, mas o seu
conteúdo escora-se em vértebras estranhas, de modo que as ideias, as expirações do espírito são estranhas à
terra. Daí o olhar-se esta, a sua gente e
hábitos, o mundo que os rodeia, como
estranhos a si – de fora (…)»
«Produz-se no nativo uma distorção
na sua personalidade que se reflecte
na vida social, desequilibrando-a.»
Semelhante atitude acaba por estar
em consonância com o reducionismo
ocidental e eurocêntrico:
Lá fora há o hábito de depreciar quanto é nativo; e os moços nativos cujos
espíritos derivaram para o exterior e
em quem está atinente um quantum
de vaidade (como em qualquer ser humano) têm vergonha em considerar-
Agostinho Neto com os colégas da Casa dos Estudantes em Coimbra, Portugal
se incluídos naquela esfera depreciada e não somente não a auxiliam como
procuram desprezar as iniciativas de
carácter puramente nativo […]
É de igual modo em Uma causa psicológica: a marcha para o exterior que
lemos o seguinte trecho:
A minha pouca experiência impediria
que a voz chegasse ao céu se eu desse
conselhos. Acho, porém, que a mezinha apropriada para anular os efeitos
perniciosos bastante do eurotropismo seria começar por ‘descobrir ’ Angola aos novos, mostrá-la por meio de
uma propaganda bem dirigida, para
que eles, conhecendo a sua terra, os
homens que a habitam, as suas possibilidades e necessidades, saibam o
que é necessário fazer-se, para depois
querer».
Os textos escritos por Agostinho
Neto na segunda metade da década
de 50, designadamente, Rumo da Literatura Negra e Introdução ao Colóquio sobre poesia Angolana, representam o registo de um pensamento
enriquecido pela largura de horizontes que, superando os discursos tipicamente nativistas, não são rigorosamente negritudinistas, como parece
ser o entendimento de Pires Laranjeira, numa eqívoca generalização
acerca da existência da «negritude
africana de língua portuguesa». Em
Introdução ao Colóquio sobre Poesia
Angolana, Agostinho Neto escreve:
«Entre nós, digo, em Angola e na Metrópole, defendeu-se e combateu-se
este conceito».Trata-se do conceito
de negritude nos termos formulados
por Leopold Senghor. No discurso
proferido na Universidade de Dar-EsSalam,em 1974, retoma esse tópico,
afirmando o seguinte:
«O conceito literário de negritude,
nascido das correntes filosófico-literárias que fizeram a sua época, com o
existencialismo e o surrealismo, pôs
com acerto o problema da consciencialização cultural do homem negro
no mundo, independentemente da
área geográfica em que ele se dispersou.
Conjuntamente com a ideia do panafricanismo, o conceito de negritude,
começou a um certo momento, a falsear o problema negro».
Inscrição social de um intelectual
orgânico
No mês de Setembro de 1947,
Agostinho Neto embarca para Lisboa.
E no ano lectivo 1947-48, era estudante de Medicina, matriculado na Universidade de Coimbra. Após a conclusão do 3º ano do Curso, em 1950, vai
prosseguir os estudos em Lisboa. É
nesta cidade que sofre em 1952 a primeira das sucessivas prisões por razões de ordem política. Aos vinte e oito anos de idade, revelava uma personalidade audaz e combativa, uma forte
consciência cívica e profunda fidelidade aos valores africanos, inequivocamente comprometidos com as lutas
contra o fascismo e o colonialismo
português. A maturidade política alcançada vem coroar um longo processo de formação iniciado em Angola
Cultura
que pode ser ilustrado por vários testemunhos. Um deles é o de Mário António. Recorrendo à memória, reporta-se a uma manifestação estudantil
de 1945, na ressaca da II Guerra Mundial, que percorrera a zona da cidade
alta em Luanda, contando com a presença dois «ex-alunos» do Liceu Salvador Correia, «vestidos à adulta, com
fatos azuis: um homem magro, já trabalhando em repartição pública». Era
Agostinho Neto. O outro «atlético e
sorridente». Era Américo Boavida.
Em 1951, é criado o Departamento Cultural da Associação dos Naturais
de Angola. Segundo Mário António, «o
que se fazia em Luanda naturalmente
ganhava corpo intelectual com a participação de ausentes, entre eles, como
se verá Mário Pinto de Andrade.» Confirma-o a carta de António Jacinto a
Agostinho Neto. No mesmo ano os estudantes africanos residentes em Lisboa constituem um grupo de reflexão
a que designaram Centro de Estudos
Africanos de que fazem parte, entre
outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, o grupo
de pensamento mais politizado. A última sessão do Centro realizou-se em
11 de Abril de 1954.
Referindo-se à actividade de Agostinho Neto, na sessão de 23 de Dezembro de 1951, diz Mário Pinto de Andrade: «[…] Agostinho Neto, em associação com Humberto Machado, tinha
tratado as Migrações dos negros africanos, compulsivas e não compulsivas, aculturação dos negros africanos». Mário Pinto de Andrade faz
igualmente alusão a outros textos de
Agostinho Neto, tais como Rumo da
Literatura Negra, uma crítica consagrada ao romance Uanga de Óscar Ribas, em que se debruça sobre a noção
de ambaquista, além de traduções de
poemas de Senghor.
Quanto às influências desse grupo,
Mário Pinto de Andrade destaca os escritores negros americanos (Countee
Cullen, Langston Hughes, Richard
Wright), poetas Antilhanos, Aimé Césaire, o cubano Nicolás Guillén, Batouala de René Maran . Entre as leituras de referência há que reter o nome
de Keita Fodéba cuja peça «Mestre-Escola» foi encenada pelo Centro de Estudos. E dele fala Agostinho Neto num
artigo de 1953, publicado na revista
Angola da Liga Nacional Africana.
No dizer de Mário Pinto de Andrade, é «no Centro de Estudos Africanos
que nasce a primeira ideia de criação
de um grupo político baseado naqueles que estavam mais empenhados».
Mais adiante, acrescenta: «[…] Éramos portanto Amílcar, Neto, Noémia
de Sousa e Alda do Espírito Santo. Mas
esta organização tinha um nome particular». Entretanto o Centro começa a
desintegrar-se em 1953. Nesse ano
participa no Festival Mundial da Juventude Democrática e no III Congresso Mundial dos Estudantes, realizados
em Bucareste e Varsóvia, respectivamente.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
A criação do Clube Marítimo Africano, em 1954, é uma iniciativa de estudantes e trabalhadores embarcadiços
africanos, entre os quais se destaca
Agostinho Neto que abandonara
Coimbra, passando a residir em Lisboa como estudante da Faculdade de
Medicina. As relações de sociabilidade
com as classes trabalhadoras estão no
centro das suas preocupações, tendo
fixado residência no bairro da Graça,
onde habitavam os operários marítimos africanos.
Até ao fim da década de 50, a trajectória biográfica de Agostinho Neto
permitia já identificá-lo como um homem de letras, irremediavelmente
comprometido com a luta anti-colonial e afirmação da cultura africana. A
categorização sociológica como intelectual orgânico decorre desse perfil
dominado pelas ideias, vinculando-o a
actividades que desafiam directamente o poder colonial, tais como a participação em redes de organizações políticas portuguesas como o MUD-Juvenil.
O prestígio intelectual de Agostinho
Neto aumenta progressivamente.
Noémia de Sousa, relata que após a
sua primeira prisão realizaram-se
muitas reuniões, «uma série de gente»
queria vê-lo, excepto o Francisco José
Tenreiro. O seu activismo político e as
ideias que o suportam permitem reconhecer que foi o primeiro intelectual
orgânico e público da sua geração, tendo sido alvo de sucessivas prisões da
política portuguesa, desde 1951. Em
1955, viria a ser condenado a dezoito
meses de prisão pelo tribunal do Porto. Cumprida a pena, em 1957, já em liberdade, retoma os estudos. Obtém o
grau de licenciado em Medicina pela
Universidade de Lisboa em 1958. Regressa a Angola no ano seguinte, após
especialização em Medicina Tropical.Abre o consultório médico em
Luanda e envolve-se na actividade política clandestina. Após a sua eleição,
em 1960, como líder do MPLA, no interior de Angola, volta a ser preso e deportado para Cabo-Verde, em trânsito
por Bissau e Lisboa. Desencadeia-se
uma campanha internacional para a
sua libertação na qual participam intelectuais europeus como Jean-Paul
Sartre.Transferido para a cadeia do
Aljube em 1962, passa depois ao regime de residência fixa.Em 30 de Junho
de 1962, concretiza-se a sua fuga de
Portugal. Um ano depois, é eleito Presidente do MPLA em Kinshasa.
O ideário da libertação nacional:
entre o cultural e o político
Para lá das dissensões políticas
que abalaram o MPLA, na década de
60 e 70, dando origem ao afastamento
de Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade, à Revolta Activa e à Revolta do
Leste, Agostinho Neto não deixou de
cultivar a sua paixão pelas ideias, atribuindo importantes tarefas aos intelectuais.Em concomitância com o
|9
Encontro de Agostinho Neto com as autoridades tradicionais de Angola
exercício da liderança política e enquanto chefe de Estado, desenvolve
uma importante actividade reflexiva
que deve suscitar o interesse de qualquer investigador da história contemporânea de Angola.
Os discursos proferidos nas Universidades de Dar-Es-Salam (Tanzânia), em 1974 e Lagos (Nigéria), em
1977, a que se juntam outros proferidos na União dos Escritores Angolanos constituem as principais referências do discurso teórico sobre a libertação, o nacionalismo e a cultura. Longe de qualquer ambiguidade, Agostinho Neto, na sua veste de Chefe de Estado, continuava a defender os ideais
de liberdade e dignidade do Homem
Africano, não perdendo de vista o lugar dos intelectuais nos processos de
mudança social.É por isso que o professor nigeriano Biodun Jeyifo considerava que os textos doutrinários de
Agostinho Neto sobre a cultura nacional e a literatura podiam pertencer à
categoria do «discurso literário nacionalista».
Lamentavelmente, quando se procede ao estudo do pensamento sobre a
libertação nacional em África, é raro
ver o nome de Agostinho Neto inscrito
no elenco de autores. Semelhante situação configura um caso de injustiça
intelectual que importa reparar. Tal
pretensão é manifestada pelo professor nigeriano Olúfémi Táiwò no texto
dedicado à Filosofia Política Africana
no Período Pós-Independência,publicado em A Companion to African Philosophy, editado pelo professor ganense Kwasi Wiredu. Olúfémi Táiwò
inclui Agostinho Neto no elenco dos
marxistas africanos que se afirmam
após 1966.
Com efeito, nas suas reflexões sobre a libertação nacional, Agostinho
Neto introduz uma variante na abordagem do fenómeno. Em 1974, tomando como referência o ponto de
vista de Amílcar Cabral , escreve:
No fundo e como vários pensadores
têm afirmado, a luta de libertação nacional é uma luta pela cultura. Mas eu
creio que os laços culturais não evitam
de modo algum a compartimentação
política». E acrescenta, mais adiante:
«Este tem sido um ponto equívoco em
muitas manifestações ditas de libertação nacional.
Ao pretender estabelecer claramente as fronteiras entre o cultural e o político, Agostinho Neto reafirma a sua
identidade política com «a luta dos
povos negros da América, lá onde se
encontrem» e, ao mesmo tempo, considera que tal solidariedade deve conduzir à rejeição da «ideia de libertação
negra». Por isso, conclui: «sem confundir origens com compartimentos
políticos, a América é América, a África é África». Operando no quadro do
pensamento panafricanista e no estrito respeito pelas experiências vividas
pelos africanos e diásporas africanas,
Agostinho Neto evita a generalização.
Sublinha a transversalidade da cultura, mas considera que a sua dimensão
política valoriza a diferença dos contextos em que tais experiências emergem.
Apologia do debate e das ideias
A apologia do debate e das ideias é
uma eloquente expressão do modo como Agostinho Neto interiorizava as tarefas do intelectual, num país que acabava de alcançar a independência política. Por essa razão, entendia que «o
escritor se deve situar na sua época e
exercer a sua função de formador de
consciência, que seja agente activo de
um aperfeiçoamento da humanidade». Em 1979, sucessivamente, por
ocasião da tomada de posse dos corpos gerentes da União dos Escritores
Angolanos, realizada em Janeiro, e na
sessão de encerramento da 6ª Confe-
rência dos Escritores Afro-Asiáticos,
realizada em Julho, defendia o debate
de idieas. E sustentava-o nos seguintes termos:
Penso que é necessário o mais alargado possível debate de ideias, o mais
amplo possível movimento de investigação, dinamização e apresentação
pública de todas as formas culturais
existentes no País, sem quaisquer preconceitos de crácter artístico ou linguístico.
Reitera esse pensamento, quando
falava aos escritores africanos e asiáticos reunidos em Luanda, afirmando:
Persistir na ideia do debate é
sempre acertado, porquanto os homens têm necessidade de se exprimir,
para não assumir a mentalidade burocrática que rapidamente se torna caduca e não é capaz de acompanhar o
desenvolvimento da sociedade humana.
Para Agostinho Neto o debate e as
ideias são absolutamente essenciais à
vitalidade das dinâmicas sociais e às
exigências do conhecimento mais profundo do mundo que nos circunda. Semelhante necessidade pode ser sentida apenas por aqueles que atribuem
valor à incessante indagação sobre a
existência humana, rompendo os condicionalismos do lugar onde se situa o
homem enquanto indivíduo.
Sob os auspícios do «mais alargado possível debate de ideias» emergiu
a geração das incertezas, a geração literária de 80. Num ambiente pouco fecundo do ponto de vista intelectual, a
Brigada Jovem de Literatura de Luanda e outras Brigadas que lhe seguiram
as pegadas em algumas províncias do
país, nomeadamente, Huíla e Huambo,
bem como grupos literários que se
constituem nessa década, procuravam dinamizar as suas actividades literárias e reflexivas em torno dessa
ideia seminal.
3 a 16 de Setembro de 2012 |
10 |
Dia do Herói Nacional
A marcha, a navalha
de Agostinho Neto
JOHNNY KAPELA
(INTERNATIONAL NETWORKING BANTULINK)
U
ma vintena de encontros será organizada pela Fundação António Agostinho Neto
(FAAN), no país e no estrangeiro, de 10 a 17 de Setembro, no quadro da celebração, este ano, da Jornada
do Nacionalista–Mor angolano e do 90º
aniversário do seu nascimento.
Esta teia surgirá das sessões de lançamento, em Luanda, e de apresentação, nas capitais de todas províncias do
país, da impressionante obra em cinco
volumes, intitulada “Agostinho Neto e a
Libertação de Angola, 1949 – 1974, Arquivos da PIDE-DGS”.
Este programa que mobilizará cerca
de quarenta historiadores e especialistas assimilados, será
completado por várias
actividades de carácter
social, educacional, artístico, desportivo e recreativo, cujo essencial
terá lugar em Catete, vila natal do “Sekulo”.
Assim, registar-se-ão
a oportunas e vitais
campanhas de educação rodoviária, aconselhamento e testagem
voluntária sobre o silencioso VIH Sida, aulas
abertas, nas escolas primárias, à volta da obra de Maria Eugénia Neto, “A trepadeira que queria ver o
céu azul”, projeções de filmes documentários, exibição de pecas de teatro, exposição de artes plásticas, concursos de
fotografia e gastronomia tradicional.
Assistir-se-á a vários torneios e provas desportivos nas modalidades tais
como as do basquetebol, ciclismo, futebol de salão, xadrez, demonstrações
equestres e para-quedismo desportivo.
Seguir-se-ão os inevitáveis espectáculos de música e de dança, as passeatas motorizadas e as marchas populares, uma das quais irá até ao Mausoléu
do “Doutor”.
QUÍNTUPLO MEMORIAL
Totalizando cerca de 5.000 páginas, o
quíntuplo memorial, resultante de uma
impressão de grande qualidade e de um
sólido fabrico, encontra-se repartido
em quadros cronológicos e é apresentado, em primus legitumus, por uma introdução geral da Presidente da FAAN,
Maria Eugénia Neto.
Numa metodologia abertamente pe-
dagógica, e que permite fazer leituras
circunstanciadas dos documentos da
Secreta portuguesa, inseriu-se uma notável retrospetiva histórica de autoria
de São Vicente, intitulado “Agostinho
Neto e a liderança da luta pela independência de Angola, 1945 -1975)”.
Seguem, na senda desta dinâmica didática, uma generosa ilustração iconográfica com o desenho do “Kilamba” por
António Domingues e dezenas de fotografias.
A contracapa da compilação reproduz a célebre tríptica fotografia, da Polícia Internacional
(PIDE) do encarcerado, com
cinco aprisionamentos e desterro para a ilha de Santo Antão, em Cabo
Verde.
O
mapeamento da ação
política, diplomática e militar do líder do Movimento
dos Plebeus reforça a
declinação pedagógica
da coletânea.
Os comoventes documentos de arquivos
da Polícia secreta lusa,
cedidos pelo Arquivo
Nacional da Torre do
Tombo, constituem o
essencial da obra e permitem compreender melhor, a partir de fontes primárias privilegiadas dos vinte cinco
anos, a personalidade do “Mesene”, o
seu inquebrantável sentimento nacionalista, as suas démarches de audácia,
prudência e inteligência políticas, assim como de estratégia diplomática.
Nota-se, entre as personalidades que
apresentarão a compêndio, o historiador e perito da UNESCO, Simão Souindoula, que o fará, com Pedro Capumba,
no dia 12 de Setembro, em Mbanza
Kongo, na Província do Zaire.
O mesmo será apresentado na Itália
por Mbeto Traça e em Portugal (Lisboa,
Porto e Coimbra), poro Paulo Vicente
"Nzaji".
Obra fundamental para a historiografia contemporânea de Angola, o monumental agrupamento arquivístico,
ora editado, numa vontade absoluta de
transparência histórica da Fundação do
“Zambi Kilamba”, constitui, para o país
mais um suporte para um bom conhecimento da ação corajosa, durante um
quarto de século, do Pai da Independência.
Cultura
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
DONDO
Uma vila que persiste
ao tempo e à memória
O
desafio que nos foi colocado
para esta edição do Cultura
remete-nos para a história,
práticas e reflexões em torno de um
dos já muito raros lugares-síntese, capaz de evocar o nosso passado, a nossa
história e que por alguma razão se chama Dondo (Ndondu).
A velha e histórica vila do Dondo,
sede do município de Kambambe está
situada a cerca de 200 quilómetros da
capital do país, posicionando-se na
margem direita do Kwanza e bem perto do limite do curso navegável do rio.
Reza a história que lá foi parar Paulo
Dias de Novais por volta de 1583
quando iniciava a sua caminhada através das águas do Kwanza, ao subir rumo à descoberta das lendárias minas
de prata de Kambambe e de uma famosa feira Dondo, que, na época, já
ocupava um espaço vital para a economia dos Mbundos assim como para as
populações dos territórios vizinhos.
A feira passa depois a ter, obviamente, interesse também para os
portugueses e tomam seu controlo
imediatamente. Porém, a verdade é
que o protagonismo dado às transacções comerciais que ali se operavam,
tiveram origens bastante recuadas
no tempo e, portanto,
conclui-se
que a feira do Dondo já era tão ou
mais importante antes da presença
colonial portuguesa.
À feira do Dondo iam parar vários
produtos agro-pecuários vindos de terras longínquas, ou seja, os sertões interiores, como Masanagnu, Kambambi,
Kisama, Pungo-a-Ndongu, Kazengu,
Ambaka, Kasanji, Viyé, Mbalundu, etc.
Os produtos eram designadamente, a cera, o marfim, o sal-gema, o peixe seco e fumigado, o café, o óleo de
palma, o algodão, os artefactos de metais e, inclusivamente, escravos trazidos por pequenas embarcações artesanais (as denominadas Chatas) e por
caravanas que, deixaram traçados no
tempo e no espaço, os rastos das suas
rotas ou itinerários (comerciais).
A antiga feira, ficava, curiosamente,
no local do actual embarcadouro e é
ainda hoje, o local privilegiado para o
comércio de produtos diversos, sobretudo do campo e o pescado, pelas
populações actuais.
As actividades portuárias e comerciais no Dondo passaram a ter um incremento excepcional paralelamente à
ocupação territorial
PATRIMÓNIO CULTURAL | 11
pelos comerciantes portugueses. Os
negócios proporcionaram lucros que
fizeram, por conseguinte, emergir um
aglomerado que teve e tem, inequivocamente, as marcas do seu desenvolvimento assente na actividade mercantil. Dondo que nasceu sob o signo
do comércio tornar-se, numa das
mais belas estruturas urbanas em toda Angola nos séculos XVIII e XIX.
O casario, construído essencialmente, de pedra, barro e cal, ficou entre seculares e frondosas árvores
(acácias rubras), em passeios feitos de
laje e as ruas e praças iluminadas por
candeeiros de cobre de belos efeitos
escultóricos. Predominavam e ainda
subsistem as típicas casas térreas e
sobrados com telhados de cerâmica
portuguesa (algumas substituídas por
chapa de zinco onduladas).
As portas e janelas eram, regra geral, em arcos e as fachadas de linhas
graciosas embora ostentem na sua generalidade simplicidade nos efeitos
ornamentais. Algumas, no entanto,
com motivos decorativos imaginados
ou criados pelos seus construtores. A
sua urbanização ganhou o aspecto do
quotidiano e dinâmica da sua população. A sua organização espacial é assente na criação de espaços públicos e
privados, sobressaindo uma
praça pública com coreto para
as festas e actos oficiais e donde convergem os principais
arruamentos da cidade.
As ruas transversais,
característico da urbanização ortogonal, inspirada
pelo modelo
da Era Pombalina
Emanuel Caboco
(Batalha, 2008:79). O cenário da vila
tornar-se-á mais pitoresco ao juntarse-lhe o seu ambiente vegetal tropical,
no qual, convergem, nomeadamente,
o cunho tradicional e espontâneo das
suas construções e a disposição da sua
arborização. Podemos acrescentarlhe, ainda, o panorama vislumbrante
do rio Kwanza. Tais elementos, não
passam despercebidos ao visitante e,
certamente, levam a considerar a velhinha vila ribeirinha do Dondo, como
que um natural “fenómeno urbano”.
O rio e a vegetação que enquadra a vila, passa a fazer parte integrante de uma
imagem e qualidade ambiental específica, tratando-se de uma perfeita harmonia entre o natural e o artificial numa
simbiose que por vezes nos confunde.
Batalha, um inusitado defensor da
vila (assim como o terão sido Emmanuel Esteves e o autor deste artigo), cita um relatório do secretário-geral de
Angola data de 1869, no qual se faz referência ao facto de uma boa parte das
mercadorias exportadas e registadas
pelas Alfândegas em Luanda, tinham
a sua proveniência do Dondo (Batalha, 2006:102).
Os tratamentos de limpeza, ordem
e embelezamento do aglomerado terá
sido garantido ou supervisionado por
uma Comissão Municipal ad-hoc, criado ao abrigo de uma portaria do Governo-geral de 1857 (INPC, 1959: documentos) e o desenvolvimento da
sua urbe passa, no entanto, a ser comparado à de Moçamedes (Namibe).
O transporte de passageiros e cargas, passa, a partir de 1868, a ser garantido através da ligação com Luanda passa a ser feita por dois barcos à
vapor (Batalha, 2006:103) e de uma
pacata povoação passa à categoria de
vila em 1870, justamente porque, nessa altura, ela já era a principal povoação no interior de Angola.
12 | PATRIMÓNIO CULTURAL
3 a 16 de Setembro de 2012
|
Cultura
Já no século XX, transformar-se-á
num pólo industrial de referência à
economia da colónia e para Portugal.
Nas extremidades são construídos
novos edifícios cujas formas e gabarito correspondem a dinâmica que a
vila teve.
A construção do caminho-de-ferro e da estrada que liga Luanda e Malanje, fizeram desaparecer o tráfego
fluvial do Kwanza e Dondo perderá
toda prosperidade que tinha como
porto natural onde desembocavam
os vários caminhos e rotas (Amaral,
1972:70).
Destacam-se do seu aglomerado o
edifício da antiga Câmara Municipal,
o Mercado Municipal, o emblemático edifício do BPC, as ruínas do antigo Hotel Kwanza, da Casa do leão, a
correnteza de casas típicas da Rua
da Kapakala, a graciosa Estação do
Caminho-de-ferro, o Cemitério à
porta da vila, o sito de embarcação, o
Hospital, dentre tantos outros.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
Dondo de hoje
Dondo experimenta uma fase de
declínio ocasionado construção, no
século XVIII do ramal do caminhode-ferro de Ambaca e Benguela, que
acabou por ofuscar o protagonismo e
a importância económica da vila. Este e outros factores muito fortes, como a guerra civil no nosso País, mas
também, a falta de trabalhos permanentes de manutenção, sobretudo
depois da Independência, provocaram alterações significativas no perfil arquitectónico e urbano da cidade.
As edificações, as infra-estruturas
técnicas e a “própria vida” da vila conheceram uma degradação paulatina e incessante.
Por outro lado, subsistem, ainda,
em nome da ignorância, práticas incorrectas, particularmente no restauro ou reabilitação dos imóveis
que fazem parte do perímetro da zona de arquitectura histórica. Muitos
desses imóveis são submetidos a tratamentos de reparação superficiais
ou quando profundas lhes fazem
perdem irremediavelmente a sua integridade e autenticidade. Consequentemente perde-se a esmerada
identidade da cidade.
Face à gradual mudança do paradigma mercantil da vila e os seus habitantes passam a dedicar-se a outros tipos de comércio, sobretudo o
de taberna. Nos anos 50 do século
passado, a cidade estava muito degradada. Muitas das casas foram
abandonadas pelos seus proprietários, que terão ido para outras paragens em busca de lucros nos seus negócios (INPC, 1959:arquivos).
Ao que consta nos arquivos do Instituto Nacional do Património Cultural, o Arquitecto Batalha nos anos 60,
ao serviço da então Direcção Geral
dos Transportes, Obras Públicas e
Monumentos, empreendeu uma série de tentativas visando a preservação da vila do Dondo, incidindo sobre
o restauro dos imóveis com o fim de
valorizar o aspecto patrimonial da
vila e da sua paisagem histórica e natural (INPC, 1960:arquivos).
Depois da Independência (19791981), voltou o arquitecto batalha, a
tentar animar o projecto de valorização da vila e a sua possível reconversão como atractivo turístico (embora
já o seja naturalmente), propondo
mediadas e acções institucionais de
salvaguarda e planificação, desatinadas a remediar as manifestações
mais evidentes de degradação da vila. Porém, mais uma vez ficou submetida às questões conjunturais.
Tem, efectivamente, a vila do Dondo, uma capital importância histórica e cultural, portadora de uma memória colectiva que nos remete para
lá dos tempos das transacções comerciais com a população lusitana.
Tal factor, terá, certamente, moti-
património Cultural | 13
vado o Ministério da Cultura e o Governo da Província do Kwanza-Norte
a promover a realização de feiras periódicas que, para além de proporcionar o resgate ou a reconstituição
histórica de uma época em que as
trocas comercias, terão gerado efeitos significativos na vila das populações daquela região e não só.
A instituição da “Feira do Dondo” é,
porventura, um ponto de partida para o estudo e reflexões profundas sobre as fronteiras culturais, as formas
de etnicidade dos povos naquela região, a sua organização económica,
as suas tecnologias artesanais, os
factores de interdependência entre
os diferentes povos, a diversidade
das manifestações culturais; ou até
mesmo experimentar a sensação de
viver ou reviver o passado no presente, favorecendo o diálogo renovado entre as comunidades (Convenção
2003:preâmbulo).
Com a feira pode-se, também, proporcionar um circuito, viabilizando a
sensibilização das p+pessoas sobre a
história daquele velho burgo e a necessidade para a sua preservação.
A nossa modesta opinião é de que
é possível construir-se um plano de
protecção e de gestão da histórica vila do Dondo. O objectivo será garantir a preservação dos valores patrimoniais da cidade, melhorar a qualidade de vida da sua população e de
sua atractividade turística.
Sugeríamos, então, só numa primeira fase, que se
impedisse que a degrada-
ção continue ou que continue ao ritmo que tem sucedido.
Será primordial, no entanto, que
se evite a condenação da vila do Dondo, um dia, em vestígio de épocas
passadas e um testemunho da indiferença das gerações actuais. É por isso necessário, multiplicar actualmente, os esforços para dar uma outra imagem e dimensão àquela vila
que, possibilitaria remeter a vila ao
lugar que merece na história da urbanização em Angola, pelo seu significativo valor histórico-cultural.
Constitui um património edificado e paisagístico de grande importância no contexto nacional. O próprio potencial que lhe advém pelo
facto de fazer coincidir um equilíbrio e uma beleza significativas em
termos de paisagem edificada com
um valor cénico muito grande da sua
envolvente pode ser responsável
por uma atractividade aos seus visitantes e turistas.
Constou-nos, porém, a falta da
classificação da vila (como “Cidade
Histórica”, “Zona Histórica” e porque
não “Paisagem Urbana Histórica”?)
que seria, em nosso entender, uma
útil ferramenta de preservação. Pois,
a vila passaria a ter um amparo jurídico e eventualmente ajudaria o Estado fazer face às iniciativas antagónicas à sua condição de um importante “documento histórico”. Salientamos que ela é das mais antigas e,
modéstia à parte, das mais bonitas
do País.
Bibliografia Consultada
Amaral, Ilídio (1962). Ensaio de um estudo geográfico da rede urbana de Angola. Lisboa
Amaral, Ilídio (1978). Contribuição para o conhecimento do fenómeno urbano em Angola. Separata de
Finisterra. Lisboa
Batalha, Fernando (2008). Povoações históricas de
Angola. Ed. Livros Horizonte, Lda. Lisboa
Batalha, Fernando (1959). Vila do Dondo. DSOPT.
Luanda
Batalha, Fernando (1963). Em defesa da vila do Dondo. Luanda
Batalha, Fernando (2006). Angola: arquitectura e
história. Ed. Vega. Lisboa
B José (2005) Arquitectura e urbanismo na África
portuguesa, temas vários. Caleidoscópio. Lisboa
Fernandes, José; Fredeunthal, Aida; Janeiro, Maria
de Lurdes (2006). Angola no século XIX, cidades território e arquitecturas. Lisboa
INPC, Arquivo Documental
Silva, Rosa C. (1996). Dondo: la ville marché avant et
après l’interference portugaise (comunicação apresentada em Africa’s Urban Past). SOAS, Londres
UNESCO. Convenção 1972 sobre o Património Mundial Cultural e Natural
UNESCO. Convenção de 2003 sobre o Património
14 | PATRIMÓNIO CULTURAL
3 a 16 de Setembro de 2012
|
Cultura
REABRIU O MUSEU REGIONAL DO DUNDO
A PRIMEIRA E A MAIOR INSTITUIÇÃO
MUSEOLÓGICA DE ANGOLA
JOAQUIM AGUIAR | Dundo
Texto e fotos
O museu regional do Dundo reabriu as portas ao público, no passado
dia 23 de Agosto, sete anos depois do
seu encerramento para obras de reabilitação e modernização. A cerimónia de abertura foi marcada pela exibição do grupo cultural Akixi e
Tchianda, o mais representativo do
folclore da região, agora assumido
pela nova geração, no quadro da revitalização das “oficinas culturais” da
aldeia museu, um centro de transmissão dos usos e costumes da região.
A reabilitação e modernização do
museu do Dundo, não contemplou
apenas a renovação da exposição de
longa duração, mas também incluiu
novas estratégias de actuação e funcionalidade dos aspectos técnicocientíficos e administrativos do próprio museu.
O museu regional do Dundo passa
agora a ter uma exposição de longa duração que compreende a sala síntese,
sala da pré-história e arqueologia, sala
da organização social, sala da organização política, sala da caça e actividades domésticas, sala das actividades
económicas, sala das artes e actividades lúdicas, sala intermédia de exibição de filmes etnográficos, sala da religião, iniciação masculina e medicina
tradicional, duas salas da história mineira e a sala da colonização e resistência contra a ocupação colonial.
A ministra da cultura, Rosa Cruz e
Silva, que conjuntamente com o governador provincial da Lunda Norte,
Ernesto Muangala, cortaram a fita de
reinauguração do museu regional do
Dundo, considerou que a ocasião é
um “acto de nobreza, para celebrar a
vida, a cultura na sua expressão máxima de um povo, porque os artefactos,
as peças museológicas, a memória
das comunidades das áreas socioculturais aqui representadas, reflectem
o ser no mais profundo do seu íntimo,
explicam a história e em suma a própria cultura”.
Rosa Cruz e Silva destacou o museu
regional do Dundo como “a primeira
e a maior instituição museológica de
Angola” por ter revelado dinamismo
na investigação científica em várias
disciplinas, “desde a pré-história ou
história mais antiga, onde se dedicaram estudos das estações arqueológicas que trouxeram a superfície os vestígios dos tempos memoriais do paleolítico e não só”.
Realçou, igualmente, a etnografia e
antropologia enquanto vocação do
museu regional do Dundo, “para dar
nota ao modo de estar dos povos do
leste de Angola, mas também, e sobretudo do seu pendor artístico”.
A mestria nas artes, dos povos do
leste Angola, segundo a ministra Rosa
Cruz e Silva, “galvanizou, impulsio-
nou e chamou os arqueólogos, os etnólogos, os homens das ciências sociais, depois os biólogos, que tiveram
que produzir e elaborar até a década
de 70 do século XX, uma vasta colecção de estudos sobre os tuchocwe, todos os seus vizinhos e aparentados”.
A ministra considerou, no entanto,
que o museu regional do Dundo, tem
cumprido a função mais representativa da experiência museológica, que
é a de investigação científica, que resulta da longa lista bibliográfica que
conectou este museu com o resto do
mundo.
“A história desta instituição foi feita de muitas glórias, no domínio científico e da celebração da cultura dos
povos que aqui se reportam, pois que
foram criados mecanismos de organização cultural, com a formação de
grupos de dança e equipas de recolha
do cancioneiro da música tradicional”, enfatizou Rosa Cruz e Silva.
O novo museu
Depois da independência do país,
em 1975, lembrou a ministra, assistiu-se a um decrescer de eventos em
razão da situação difícil que se vivia
na altura, assinalando, no entanto,
que “ a museologia em Angola, pela
mão dos próprios angolanos, começa
a dar os primeiros passos, a partir do
museu do Dundo”.
A ministra salientou que os passos
para a reabilitação e renovação do museu do Dundo, começam a ser dados
em 2007, com a elaboração de um programa que previa não só a requalificação da sua infra-estrutura, como também a construção do laboratório de
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
biologia, aldeia museu, a estação arqueológica do Balabala, assim como a
renovação da exposição permanente.
Reiterou que “estão agora criadas
as condições, para fluir a cultura e sobretudo para que os novos investigadores angolanos, tenham larga a sua
capacidade científica e se aumentem
os conhecimentos sobre a cultura desta região, que nos seus particularismos ou na sua essência está muito longe da maior dos angolanos”.
A ministra não deixou de render homenagem algumas personalidades ligadas a cultura, que não só tornaram
viável o projecto de renovação do museu regional do Dundo, como deram
contributo incomensurável no desenvolvimento da cultura nacional.
Rosa Cruz e Silva lembrou a figura
de Henriques Abranches, que a seu
modo criou uma escola de museologia,
que distribuiu as peças pelo país para
criar novos museus, escola essa, segundo a ministra, foi renovada, actualizada e melhorada os seus métodos.
Foi igualmente prestada homenagem a Felizardo Gourgel, que contribuiu para a guarda e preservação do
acervo do museu do Dundo, nos tempos mais difíceis e ao Francisco Xavier
Yambo, o grande impulsionador da revolução dos museus, que culminou
com o estatuto dos museus que foi recentemente aprovado.
A reabertura das portas do museu
regional do Dundo, foi igualmente
possível com o “engajamento de uma
grande equipa, desde a direcção dos
museus, os membros da comissão,
coordenação do projecto de renovação dos museus regional do Dundo e
sobretudo do executivo angolano.
A reabilitação e renovação do museu regional do Dundo custou aos cofres do estado mais de quatro milhões
de dólares.
Sítio de culto da cultura Tchokwe
Ana Clara Guerra Marques, investigadora da cultura Lunda Tchokwe há
mais de vinte anos, disse que o museu
regional do Dundo é e vai continuar a
ser “um sítio de culto da cultura Lunda
Tchokwe”, numa perspectiva de desenvolvimento, preservação e estudo contínuo da riqueza cultural da região.
Mostrou-se satisfeita com os investimentos feitos pelas autoridades, para que o museu se transformasse numa verdadeira “casa pública” destinada a guardar peças, reservas memoriais, transmitir e divulgar a cultura
regional, que, na sua óptica, é muito
forte e que até ultrapassa as fronteiras
do nosso país.
A nível de investigação científica,
Ana Clara Guerra Marques, disse esperar, com as condições que o museu oferece, uma maior intervenção dos intelectuais angolanos no sentido de estudar e publicar artigos que possam
contribuir para a imortalização da
nossa cultura.
“Da minha parte tenho esta nobre
PATRIMÓNIO CULTURAL | 15
missão de pegar nesta cultura e levá-la
para outros contextos, nomeadamente na dança africana ou seja para a
dança contemporânea. Vou investigar,
recolher imagens e estar em contacto
com a essência de forma que a cultura
se mantenha viva”, assegurou, Ana
Clara Guerra Marques.
A investigadora, que é mestre em
performance artística, com a tese “Sobre os Akixi a Kuhangana entre os
Tchokwes de Angola”, comparou o museu regional do Dundo a “uma jóia
bastante preciosa” que carece constantemente de lapidação, de forma a
manter interesse e beleza inicial.
“As pessoas não podem deixar que
esta jóia se estrague, desapareça, devem tudo fazer para continuarem a
promover a cultura, os hábitos e costumes dessa região”, disse.
Para Ana Clara Guerra Marques, o
ritual do mukanda “é uma coisa fantástica e os jovens, a partir de tenra
idade devem saber sobre isso, sobre a
máscara do mwana pwo, o muquíxi,
portanto tudo precisa de mais vida
mais divulgação e mais encontros,
congressos, simpósios para que de
facto se conheça a essência dos povos
da região leste de Angola”.
Historial
O museu do Dundo, foi criado em
1936, pela então companhia de Diamantes de Angola (DIAMANG) e tinha
como secções fundamentais a etnografia, pré-história, folclore e música.
Faziam também parte do museu do
Dundo, o museu do Balabala, que se
dedicava ao estudo da arqueologia,
um laboratório de biologia que ao longo dos anos apresentou ao mundo
científico a descoberta e o conhecimento de novos mamíferos, peixes,
batráquios, sáurios, aves e novas espécies ou géneros de insectos, além de
contribuições para o estudo da fauna
da região da Lunda e da África Central.
Há a destacar, também, a “Aldeia
Museu” que abrigava os artistas que
trabalhavam regularmente em escultura, pintura e tecelagem de forma a
permitir a revitalização de alguns padrões culturais em via de extinção.
As primeiras colecções do museu
do Dundo começaram a ser recolhidas
em 1936, tendo sido obtidas em diversos pontos da região leste do país, mas
sobretudo nas actuais províncias das
Lundas Norte e Sul e Moxico.
A iniciativa cabe ao etnógrafo português José Redinha, colocado ao serviço da administração colonial, na então vila de Portugália, que começou
com uma colecção privada de objectos
etnográficos, a qual evoluiu, com a
pronta intervenção da DIAMANG, para um museu, cujos trabalhos alcançaram o mundo, tendo sido considerado
na década de 1950, como um dos
maiores a sul do Sara.
Até 1974 o museu do Dundo tinha
um acervo de mais de 20 mil peças.
O museu do Dundo desenvolveu um
importante intercâmbio cultural e
científico com organizações congéneres de outros países, tendo participado em vários congressos. A par de dar
a conhecer ao mundo a cultura da região leste de Angola, promoveu igualmente exposições em vários países do
mundo.
16 | KINDA DAS LETRAS
3 a 16 de Setembro de 2012
Os longos dias de resistência
(a estreia de Kanda)
|
Cultura
LOPITO FEIJO
"Quando conheci Victoriano Ferreira Nicolau, estava longe de me
aperceber das qualidades de poeta
carregado de incerteza, no emaranhado terreno das letras. A chama
das suas aspirações assinalava o rumo que traçava, numa linguagem astral, que só os poetas facilmente entendem e o homem humilde se apercebe.
(...)Apostado na simbologia de
combate, no estilo que poetas consagrados angolanos nos habituaram
tem-se a percepção da mensagem
que o autor transmite ao mundo livre,
negando sofrimento e fome, mas carregado de amor próprio."
Inicio esta nótula fazendo jus as
palavras do nosso ancião e "Griot".
Wanhenga Xitu. E quem melhor ou
maior do que ele para homenagear
este poeta da geração de 70, a chamada "Geração Silenciada", que passadas quatro décadas de imenso sofrimento íntimo, vem, arroja-se e matricula-se neste clube sentimental em
que se dialoga "numa linguagem astral, que só os poetas facilmente entendem e o homem humilde se apercebe».
Falo-vos do Nicolau, natural de
Cambambe, antigo combatente e várias vezes "ex" das nossas endiabradas circunstâncias.
Ex-preso político, ex-membro do
governo, ex-deputado, ex-professor
universitário, só para citar alguns
poucos "ex" do autor.
Economista especializado em contabilidade, agora reafirmando o seu
pseudo nome "Kanda" por via da palavra poética. Esperamos jamais estar diante de mais um "ex" da sua intensa pessoalidade. Refiro-me ao expoeta. Pois saberá o poeta que “uma
vez poeta, poeta para sempre”, porque como disse “o velho”, o autor alistou-se agora para um exército que
combate num campo de batalha carregado de perigos vários e que exige o
sacrifício da própria vida em razão da
defesa dos interesses patrimoniais e
morais daqueles que mesmo sabendo
falar não têm voz para expressar o
que sentem.
Passa doravante a ser uma das vozes daqueles que não têm voz. Dos
humildes, dos escravos e sofredores
que tão bem estão retratados na versificação em questão.
Quanto "aos longos dias de resistência", devo dizer, trata-se de um título graficamente espantoso, muito
bem acabado e sociologicamente extravagante (no bom sentido, como
não podia deixar de ser...).
É a todos os títulos um livro poético ímpar. Contém uma detalhadíssima autobiografia do autor que mais
não é senão uma útil ferramenta de
trabalho para sociólogos, historiadores e público leitor se emaranharem
nos circunstantes contextos da luta,
resistência e persistência, não fosse o
autor dono de uma vivência, rica de
«ensinamentos de berço» com os
pais, irmãos, tios, primos e avós em
localidades como Mulende, Katome
de Baixo, Nza Ni Nvula, e Cassualala
na província do Kwanza-Norte e Muxima, Kibala e Banga, na província do
Kwanza-Sul, Marçal, Zangado, Sambizanga, Cazenga, Bairro Popular, Vila
Clotilde e Maculusso em Luanda.
«Em todos esses locais, foi recolhendo elementos que moldaram a
sua personalidade e atitude, adquirindo e transmitindo ensinamentos
de bairro, uns bons, outros nem por
isso, sempre observando e interagindo com as comunidades, inclusive as
comunidades religiosas da Igreja Metodista Unida de Angola, e estabele-
cendo relações distintas com os diversos extractos sociais, raças e tribos do país».
Assim, cotejamos esta telúrica
poesia onde o fenómeno da chamada
interpenetração idiomática está presente (no caso da língua kimbundo
para a língua portuguesa), neste livro
onde podemos ainda deleitar-nos
com algumas históricas imagens do
contexto sociopolítico e paisagístico
de Angola.
A tudo isto, acresce o autor, dois
documentos socio-históricos como
prova dos crimes supostamente cometidos no Estado de Angola da época colonial.
O livro, com prefácio do Decano
dos Escritores Angolanos, o escritor
Mendes de Carvalho, contém textos
do período pré-prisional e de vários
períodos prisionais do autor, bem como de outros períodos que vão de antes de 73 e 1980. E sabem melhor do
que eu (os seus leitores...) quão turbulenta foi a vida dos Angolanos de
73 a 80, já no período pós-independência.
"Trata-se, como se depreende facilmente, de uma obra de poesia de
combate, que traduz uma vivência
apaixonadamente nacionalista, de alguém que, como tantos outros, colocou a sua pedra no edifício do nacionalismo angolano, antes durante e
depois da independência de Angola...". Por isso, o autor tem a mesma
responsabilidade social que tiveram
outros confrades já consagrados que
também apostaram na simbologia de
combate tal como os já falecidos poetas-guerrilheiros: Henrique Abranches, Ngudya Wuendel, Fernando
Costa Andrade, Saidy Mingas, Pedro
de Castro Loy e Simião Kafuxi ou mesmo, Fonseca Wochai, Garcia Bires e
Beto Van-Dúnen ainda vivos.
A juventude é a melhor maneira de
enganar-mo-nos a nós mesmo. Disseme um dia um clássico autor da literatura angolana em razão das ansiedades das pressas e tropeças dos novíssimos. No caso, o nosso jovem autor, Kanda, não teve pressa, soube esperar e ei-lo presente depois de no
ano 2000 ter tomado a corajosa decisão de reiniciar o processo de revisão
e compilação da sua obra de poesia,
no livro que agora dá à estampa, sob o
título "OS LONGOS DIAS DE RESISTÊNCIA", que encerra o Capítulo IV,
com um POEMA INCOMPLETO, para
cuja mensagem o autor convida o leitor a reflectir.
Refira-se que o processo de compilação e de publicação desta obra, que
vem finalmente à estampa decorridos cerca de 10 anos da segunda tentativa de publicação, sofreu várias interrupções, por força de constrangimentos e interferências várias, que
provocaram o adiamento sucessivo
da sua edição.
Penso que, tratando-se de uma
poética de carácter marcadamente
nacionalista, é o aspecto conteudístico que mais importa. Os valores éticos destacam-se ao longo da colectânea, de uma forma suficientemente
acentuada.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
Mbânza Kôngo entre 1491-1885
LETRAS |17
PATRÍCIO BATSÎKAMA
A
evangelização começa no Kongo de forma oficial em 1491: em Abril é baptizado
Mani Nsoyo Nsaku Ne Vûnda; em Maio é
baptizado o Ntotel’a Kongo Nzîng’a Nkuwu. Em Julho, a rainha e o príncipe Mvêmb’a Nzînga
serão baptizados conjuntamente das pessoas que os
Portugueses pensavam ser nobres no Kôngo.
Em 1506, morre o primeiro rei cristão João I,
Ñzîng’a Nkûwu, sendo sucedido por seu filho, Dom
Afonso, Mvêmb’a Ñzînga que os constitucionalistas
kôngo consideram anticonstitucional. Mas, graças à
força aliada dos portugueses, ele alcançou o trono. É
na sua época que a Igreja será instalada na sua capital, doravante dividida em duas cidades: (i) cidadealdeia, com os tradicionalistas em Madîmba; (ii) cidade europeizada, com os modernistas em Mbâzi’a
Kôngo.
Dom Afonso morre em 1543. Nkâng’a Mvêmba,
Dom Pedro I – tido como filho de Afonso I – irá sucedê-lo em 1543, mas também será contestado pelos
constitucionalistas (tradicionalistas). Vencido pelos seus rivais, em 1545, ele irá se refugiar na igreja
São Salvador , escapando da morte (Cuvelier & Jadin, 1953:19).
Em 1545-1547, reina uma guerra civil que assola
a capital e Dom Diogo I (o novo rei) estabelece um
tempo de tranquilidade, que irá durar até 1561. Na
verdade, era um “tradicionalista” que, por razões
políticas e económicas, aceitava cinicamente o cristianismo. Ele personalizava a ambiguidade entre os
“tradicionalistas”, que nessa época serão tidos como
os verdadeiros cidadãos, e os “modernistas”, que
eram assimilados aos “amigos dos estrangeiros”.
Ambicionava uma diplomacia directa com o Vaticano, sem ter Portugal como intermediário, no que
não teve êxito e, descontente com isto, expulsa todos os europeus, salvo alguns padres (no final de
1555 e início de 1556). Em Novembro de 1561, Dom
Diogo I morre de forma trágica, e subirá ao trono
Afonso II, um modernista que será mais tarde morto
pela insurreição dos tradicionalistas contra os “estrangeiros” e seus aliados Kôngo.
A necessidade do consenso levou Bernardo I
Ñzîng’a Mvêmba ao trono, que morre em 1567. Seu
sucessor, Henrique I, reinará alguns meses apenas,
morrendo em 1568. Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba,
que lhe sucede, reinará durante quase vinte anos,
dispondo de uma diplomacia forte como plataforma
de estabilidade. É durante o seu tempo que os guerreiros Yaka, os famosos Jagas, irão invadir Mbânza
Kôngo (Vansina, 1966:421-429). Nesse período da
invasão jaga, várias igrejas foram arruinadas, tal como se pode ler em Pigafetta. A de São Salvador será
(re)construída e elevada ao estatuto de catedral, em
1596, e vários padres serão enviados para essa cidade. O rei Álvaro I enviará Dom António Manuel (Nsaku Ne Vunda), como seu embaixador junto do Papa,
onde – depois da sua captura pelos piratas portugueses e espanhóis – chegará doente a Roma, morrendo no dia seguinte.
Da morte de Álvaro I, sucede Álvaro II, mas, entre
1613 e 1641, os monarcas kôngo são “fabricados”
pelos modernistas ou tradicionalistas: uns são demasiado jovens (Dom Garcia I, 1624-1626) para a
situação do reino; outros são de facto crianças (Dom
Álvaro IV, 1631-1636). Nessa época, há presença de
holandeses, franceses e outros europeus, que se interessam pelo comércio com Kôngo. Os holandeses
chegarão a guerrear com os portugueses, na tentativa de expulsá-los do Kôngo (e Angola), logo no fim
desse período. Rainha Nzîng’a Mbandi interviu.
Dom António I, Vit’a Nkânga, será coroado rei em
1661, depois de muitos monarcas serem assassinados. Por sinal, ele é um tradicionalista, cuja candidatura os padres europeus não aconselhavam, chegando alguns a orquestrar contra a mesma. Tudo isso
porque ele intencionava expulsar do seu reino todos
os europeus, tal como o fez Dom Diogo I (ver acima).
Dom António I convoca todos Kôngo do país a lutar
contra a opressão portuguesa. Todo Kôngo foi sensibilizado porque pensava assim terminar com a colonização portuguesa. A luta entre os modernistas e
os tradicionalistas, favorece vitoriosamente os primeiros, na grande batalha de Ambwîla. Mas são as
consequências que nos interessam: (i) os tradicionalistas, que saem da sua “cidade-aldeia”, irão pilhar
a “cidade europeizada”, destruindo igrejas. Algumas
desapareceram, sobrevivendo a Catedral de São Salvador, que tinha os “seus murros ainda de pé” (Cuvelier, 1953:57-62); (ii) a cidade europeizada “transformou-se numa floresta… não habitada… e abandonada aos animais selvagens” (Balandier,
2009:67). Nem tradicionalistas nem modernistas
pretendiam lá viver jamais; (iii) o país contará, doravante, com três capitais: (a) de Mbânza Kôngo,
que ainda permanecia no imaginário de todos; (b)
abriu-se uma capital, a Kibângu; (c) uma terceira capital estava instalada em Kôngo dya Lêmba. O Papa
chegou a reconhecer a capital de Kôngo dya Lêmba
(através de uma Bula). Com as duas outras capitais,
Mbânza-Kôngo ficou sem povoação. O “corpo religioso” e “corpo diplomático” sairão, então, de São
Salvador, para a capital reconhecida por bula papal.
No princípio do século XVIII, surge um movimento “antonista” liderado por Chimpa Vita (geralmente conhecida por Kimpa Vita). Dos seus objectivos,
conseguimos sintetizar os seguintes: (i) criar plataforma de negociação entre os tradicionalistas e os
modernistas ; (ii) mobilizar as populações a reconhecer Mbânz’a Kôngo como capital e destituir os
dois reis; (iii) preparar novas eleições. Infelizmente,
em 1706, a líder deste movimento é capturada pelos
padres Bernardo da Gallo e Lorenzo da Lucca para
ser queimada viva (Batsîkama, [1969] 1999:31). Os
poucos habitantes que já ocupavam Mbânz’a Kôngo
irão fugir e se distanciar da “cidade europeizada”:
Mbânz’a Kôngo ficava despovoada pela terceira vez.
Sua nova povoação passou a ser efectiva alguns
anos antes (entre 1842-1884) e depois da Conferência de Berlim. Nessa altura, Mbânz’a Kôngo era uma
parte de Angola, colónia portuguesa e sua povoação
obedeceu a uma política colonial portuguesa de povoar as cidades. Primeiro, porque lá se encontravam
algumas infra-estruturas a serem aproveitadas e,
segundo, porque se construiu outras novas.
Durante essa época, as velhas cidades perdidas
foram descobertas, inclusive os muros chamados
Kulumbîmbi. A sua descoberta criou: (i) felicidade,
porque existia apenas na oralidade com hesitações
de localização, de modo a convergir as versões existentes; (ii) lembrança da união entre as populações,
o que incentivou a povoação das próprias populações; (iii) responsabilidade acrescida da administração colonial em conservar a memória local. Mas
tudo indica que a memória colectiva loca tem dificuldades em separar as duas cidades, porque ambas
cidades pré-existem no comportamento psicossocial como “um todo”, assim como, quando os Kôngo
evocam sua origem comum (Kôngo dya Ntôtila ou
Kôngo dya Ngûnga ou ainda Ñkûmb’a Wungûdi…),
reconhecem a pluralidade como base da sua união.
Esta é atribuída a uma Mãe ancestral, Ngûndu ou
Mazînga. Eis a razão pela qual os nativos de Mbânz’a
Kôngo defendem que Deus terá construído Kûlumbîmbi.
18 | ARTES
3 a 16 de Setembro de 2012 |
Cultura
Paulino Damião (50)
Da Xicala à Mutamba:contrastes de Luanda
O
olho atento de Paulino Damião (50) lança,
por detrás da câmara fotográfica, uma lágrima sobre os velhos muros de Luanda, em
contraste com a tendência renovadora e modernizadora que faz a cidade capital voar alto, até à luminosa
indiferença das nuvens. E aí temos estas imagens,
captadas com o amor de um kaluanda habituado a
calcorrear as vielas das ruas mais antigas, estreitas,
onde só passam persistentes saudosistas da velha
Luanda e peões habituados a encurtar caminhos onde noctívagos cidadãos vão despir o seu destino, de
um kaluanda que também se deixa encantar pela natureza imponente do veloz betão forrado a alumínio,
ou pela imensa avenida 4 de Fevereiro, atapetada de
um verde promissor, onde as palmeiras junto ao
murmurar da baía deixam no ar uma aura de evasão.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
ARTES | 19
Paulino Damião (mais conhecido por Cinquenta), nasceu em Nambuangongo, província do Bengo. Com 36 anos de
carreira, todos feitos ao serviço do Jornal de Angola foi galardoado, em 2010, com o Prémio Nacional de Jornalismo, categoria de fotojornalismo. “Aos 14 anos oi capturado pela tropa colonial e, dada a idade, “ficava entre os militares que ele chama
de artistas – músicos, pintores, redactores, fotógrafos. Ironicamente, foi no campo de guerra que descobriu sua paixão. Nunca
mais parou de fotografar. Em 80 foi enviado a Moscovo para cobrir a olimpíada. Era o único fotógrafo negro credenciado para os jogos olímpicos. Conhece quase toda a África subsaariana. O cognome “50” ganhou no começo da carreira. Cobria jogos
de futebol apenas com uma lente de 50 mm, pois era a única que possuía, quando os outros fotógrafos, já nesta época, usavam
longas teleobjectivas. “O fotógrafo da 50”, assim se referiam a ele aqueles que não sabiam seu nome. Assim ficou.” (extractos
do artigo postado por Greg, no sítio internet ‘Casa de Luanda’)
20 | ARTES
3 a 16 de Setembro de 2012 |
Cultura
José Carlos de Almeida:
“Namíbia, estás na minha mente”
“
Namíbia, gostei imenso de te conhecer.
Até já tomei a liberdade de te tratar por «tu».
Namíbia, estás na minha mente
Matadi Makola
Do disfarçado silêncio da foto, o
grito de contexto e de protesto.
Ambos por África. Somente da
África com sede de África. Os mais
atentos e perspicazes poderão
achar que, em muitos sentidos de
si, África é jóia de valor de oferenda de núpcias cujo brilho é dependente da perspectiva da dimensão de nós. Não fabricável e sã. Da
fotografia à palavra, estamos nós
algures por aí. Talvez dentro do
contexto, o texto ajude a procurar
interrogações nas picadas, estepes e crateras do nosso ser. Afinal
o que é África, quando tudo nos leva distante da mútua aproximação às coisas da terra, da natureza, dos bichos, seus mais repletos
sinónimos?! Para muitos, aquela
África, berço habitat dos bichos
mais estranhos e de formatos extravagantes; submersa na adjecti-
”
José Carlos de Almeida
vação de exótica; é uma mera quimera, incluindo alguns rebentos
que nasceram e nunca saíram dela mas que, a priori, a sua vivência
jamais sabe ao sabor deste “culto
à natureza” a que chamaram de
África, e se agarram às alturas dos
prédios como cativeiro da imaginação, ou, na ironia, casuais intérpretes de Ícaro.
Qual é a diferença? Qual é a piada de dizer que sou de África? Claro que responder só sim seria difícil e, caso assim acontecesse, um
epíteto antónimo de verdadeiro
seria o caso raro de uma visita desejada a escassos minutos da hora
da refeição, seguido de um escrupulosamente sincero “bom apetite” livre da exaustiva proeza de
esconder nas grades das feições
faciais o mínimo sinal de discordância aturável.
Assim, numa próspera e, culturalmente, dialogante viagem à Namíbia, José Carlos de Almeida,
nosso conterrâneo e homem de
cultura, autor do livro “Ensaboado e Enxaguado”, nos propõe,
mais do que uma saudável inveja
dele por ser o protagonista (o que
arrancaria uma doce dose de orgulho para qualquer amante de
África e de tudo que é seu), uma
fuga ao monopólio do barulho dos
automóveis, ao estaladiço dos vidros das janelas dos altos prédios;
ao alucinante (às vezes, e com alguma sorte) som do salto-alto nas
escadas e elevadores; ao vício do
oxigénio da máquina que se apossa dos nossos sentidos diariamente; da nossa condição de destinatário obrigatório das esquebras das pontas do barulhento kuduro no táxi; e nos desafia silenciosamente, na delícia das suas fotografias de viagem, para que
abramos atalhos que nos conduzam às reservas naturais, ou melhor, às reservas de nós, trazendo
à mistura a crítica escancarada do
absurdo de ser que é parte do habitat de maravilhas da natureza e
passa a existência sem se oferecer
à oportunidade de diferenciar o
roncar de um automóvel e o bramido de um elefante, talvez também por isso digno de ser chamado de “despercebido de si”.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
GRAFITOS NA ALMA | 21
A introdução das línguas maternas
angolanas no sistema de ensino
e a democratização da cultura
(à memória do meu colega de banca
de redacção, Emílio Té)
Norberto Costa
H
á mais de uma década que a
UNESCO instituiu o Dia da
Língua Materna, acautelando
assim os interesses das
crianças e adultos que não têm acesso
ao sistema de educação formal, por
via da língua familiar do seu meio social de origem - a família.
É um dado adquirido para quem tem
preocupações sócios culturais: a língua materna é a língua primeira dos
falantes de uma determinada comunidade étnica, sendo que a língua eventualmente apreendida a posterior pelo
falante seja a língua segunda, embora
casos há em que o mesmo desaprende
a primeira e passe a ter maior competência linguística numa outra. Nesta
última língua o falante faz apelo para
se fazer entender e ser reconhecido
como indivíduo pertencente a determinado agrupamento humano, sendo
um importante factor de identidade
social e cultural. É, involuntariamente,
regra geral, nesta língua que ele pensa
e racionaliza o mundo, embora, nalguns casos, com resquícios da anterior.
O drama sociocultural e psicológico é
saliente: os empréstimos linguísticos
das línguas africanas impregnadas na
variante da língua portuguesa em Angola, em virtude do esquema de mobi-
lidade social dos membros dos distintos grupos étnico-linguísticos, sociais
e rácico-culturais. E mesmo os “ruídos” que se ouvem, por exemplo, em
muitos dos falantes do português em
Luanda, o exemplo é sintomático, conferindo à variante angolana do português (angolano) outros ingredientes e
sabores, em determinados contextos,
longe do “meio socialmente elaborado” (no dizer de W. Labor), ou seja,
com “status” social privilegiado, que
mais se aproxima da língua original,
ou seja do português vernáculo cultivado pelo poeta dos Lusíadas. Mais
dramático ainda é o caso das crianças
que abandonaram compulsivamente
ou não as suas aldeias e chegadas às
cidades, sobretudo no litoral, e mais
particularmente em Luanda, foram
forçadas a mudar de língua no seu
processo de socialização, onde a língua mais falada é o português, tendo
sido “assimiladas” à língua europeia e
esquecido a sua primeira língua materna. Nesta circunstância, a língua
materna passa a ser o português, em
virtude da aculturação a que foram sujeitos, como “os olhos linda da filha do
soba/ que se perderam em Luanda”,
como cantou o poeta.
Nestes termos, é um lugar comum
dizer-se que o indivíduo só pensa
numa língua. Isso é tão interessante
que a língua materna é a utensilagem
através da qual nós exprimimos a
nossa cosmovisão; como concebemos
o mundo, rimos e brincamos às escondidas o jogo da cabra cega da vida
“que estamos com ela”, em que muito
vigarista se faz passar por gente
grande “batendo nganga”; e é tão dramático ainda, porquanto é na língua
maternal em que nós amamos, sofremos e até choramos a morte dos nossos ente queridos.
22 | DIÁLOGO INTERCULTURAL
3 a 16 de Setembro de 2012
Crise de identidade
Vem de molde assinalar que muito
do insucesso escolar que se regista na
aprendizagem da língua portuguesa
nos dias que correm (e podemos alargar mais a nossa perspectiva analítica a outras disciplinas), bem como na
transmissão de outras matérias didácticas tem a ver a com a crise de
identidade que enfrenta a criança
que abandona a família, o seu primeiro mundo, e encara, em termos de
mobilidade social, um novo mundo a escola, entrando em conflito de personalidade, pois a sua língua materna
aí não tem espaço, para dar livre curso ás suas potencialidades cognitivas
e lúdicas, apreendidas no seio do seu
meio de origem social, que no caso da
aldeia encontra expressão cultural na
dança, tradição oral e cânticos tradicionais, jogos dramáticos e lúdicos,
repositório transmitido de geração
em geração, no jango ou no dique, por
altura em que se juntam para acarretar agua, ou ainda nas caçadas ou
mais ainda no retiro na fase de circuncisão a sangue frio, o que não deixa(va) de ser horrendo, relevando
uma certa contingência bárbara, que
de tão retrógrada merece ser abandonada a favor da anestesia prévia.
Nestes termos, todo este património cultural a criança não poderá partilhar ou intercambiar com os colegas
que só falam português, as mais das
vezes, por bloqueamentos socioculturais, linguísticos e psicológicos terríveis, onde sobreleva a língua diversa da falada na escola, num meio estranho: seja urbano, semi-urbano e
mesmo semi-rural. Assim sendo, o
conflito sociocultural vivido pela
criança em crise de identidade com
uma aprendizagem numa linga segunda, é agravado, bem como os seus
colegas perdem uma rica oportunidade para tomarem contacto, pelo
menos potencialmente, com o imaginário oral daquele falante de língua
maternal de origem africana, veiculando a sua experiência na ruralidade
na língua do seu meio de origem - aldeia -, que a instituição escolar, “in limini”, não reconhece como canal de
comunicação padronizado, pelo menos do ponto de vista da metodologia
didáctica que visa, entre outros objectivos pedagógicos, afastar o ruído
na comunicação entre o professor e o
aluno (e já agora também entre os colegas).
Haja em vista assinalar que a criança que não tem o português como língua materna e dada que a sua não é
leccionada na escola, parte numa situação de desigualdade social, a priori, com os condiscípulos, o que requer
que seja alterado este “círculo vicioso”, criando-se um “círculo virtuoso”
que abrande o peso e o impacto da
pesada herança do assimilacionismo
colonial e valorize as línguas maternas angolanas no sistema escolar. Já
que a exclusão desse sistema linguís-
|
Cultura
apreendidas e adaptadas, com a devida actualização metodológica e modernização pedagógica, em “tour horizon”, sem desprimor pela experiências africanas e não só no domínio, pelos Ministérios da Educação e Cultura,
bem como da Comunicação Social, para levar a bom porto uma tal política
educacional, cultural e linguística, que
coloque as nossas distintas línguas
maternas angolanas na crista da onda
do acesso ao saber científico e do desenvolvimento, vencendo-se, assim,
decididamente a batalha conta o analfabetismo, cujas bases foram lançadas
desde os primórdios da nossa independência e ensaiadas ainda no maquis debaixo das árvores e os alunos
sentados nas pedras, ainda que este
conhecimento rudimentar fosse
transmitido entre os maquisards na
língua do colonizador, que de dominante passou a dominada, na configuração mental de uma franja significativa dos antigos colonizados, que a têm
como língua materna e mesmo segunda, compaginando o ambiente de diglossia no país, em que a língua neo-latina convive com as de raiz bantu em
Angola e, quiçá, nos distintos PALOP,
com as especificidades que se conhecem, em virtude dos contextos locais,
onde existem dois crioulos, como em
Cabo-Verde e Guiné-Bissau, por exemplo) e demais línguas africanas.
________________________________________
Notas
tico de matriz africana no ensino, como sugeria o poeta da Sagrada Esperança”, “não resolve os nossos problemas”, pelo que havia que ponderar
desde já a sua inclusão(2). Os passos
dados neste sentido pelo MED colhem a todos os títulos, ainda que serôdios. Antes tarde do que nunca - lá
reza o provérbio português
Estratégias de trabalho
As balizas de uma tal estratégia de trabalho há muito foram ensaiadas e lançadas, como a aprovação da grafia de pelo menos 6 línguas nacionais, em 1976.
A experiência-piloto em ordem à sua adopção no sistema de ensino poderia ser
articulada para já com a elaboração de manuais e demais material didáctico. Resumidamente, se é certo que as demais línguas, além das seis que já têm grafia
oficial, poderiam aguardar por melhor oportunidade, dada que uma empreitada de tal envergadura carece de investimentos vultuosos que não se esgotam na
ocupação de pesquisadores para fixação da sua padronização, mas implicam
também a formação de professores que vão leccionar as e nas línguas em causa,
antecedida, sobretudo, de uma prévia formação de formadores de e em línguas
nacionais.
As experiências neste domínio existem ao nível por exemplo das igrejas desde longa data (com realce para a protestante perseguida e acusada de desportugalização dos nativos no passado pelas autoridades coloniais, devido ao magistério exercido pelas missões nas línguas locais, a par da tradução da bíblia nas
línguas maternas angolanas), bem como, mais recentemente, ao nível, por
exemplo, do CEFOJOR, que ministra cursos em várias línguas nacionais, e o da
Alliance Française que ministra cursos em kimbundu; lições que poderiam
1) Ainda na década de
90, em entrevista ao semanário “Correio da Semana”,
o falecido deputado Lanvu
Emamnuel Norman havia
proposto, num particular
rasgo de lucidez e de magistral visão estratégica,
que as línguas nacionais,
pelo menos as mais faladas
no país, fossem usadas para traduzir as distintas
parlamentares,
sessões
que são de todo interesse
do eleitor, que elege os
seus representantes, e do
povo, em geral, que, como
ficou visto, a maior parte
dele não fala o português,
senão arranha o pejorativamente designado “pretoguês”
2)esta peça já estava escrita quando a foi anunciada a inclusão para breve
das línguas nacionais no
sistema de ensino no Moxico, pela voz do ministro da
Educação. A ver vamos.
Partamos para mais um
novo “grande desfio” sonhado e jogado pelo poeta
do Kiaposse.
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
Será a religião
um instrumento de dominação?
H
á geralmente um credo popular segundo o qual a religião seria o “ópio do povo”. Devo admitir que a
História apresenta as grandes religiões como suporte do comportamento das massas, e logo vem a mente a
curiosidade de saber se os crentes não
estariam apenas obedecer as vontades humanas dos seus líderes. Daí a
minha pergunta inicial: será a religião
um instrumento de dominação?
Apraz-me aqui reflectir um pouco em
torno dessa questão.
Contexto
histórico-filosófico
Nos diálogos platónicos da República, Sócrates defende que os jovens devem ser programados pela “razão”
para que a sua integridade na sociedade seja coerente. Ora, a religião
programa pela “fé” a integridade do
Homem em geral. Busca-se a verdade pela razão e a fé é auxiliada pela
imaginação.
Na época medieval euro-ocidental, (séc. V-XV), a Igreja Católica afirmou-se e buscou no modelo religioso as ferramentas políticas para a
“Cidade” romana. Nasce o catolicismo romano (Dave Hunt, pgs 231233), do qual somos herdeiros. Razão
pela qual Estado e religião mantêm
suas relações inelutáveis e proporcionou uma leitura dicotómica: os infiéis/desordeiros; os fiéis/ordeiros;
nãoe
católicos/cidadãos
católicos/indígenas, etc.
A predominância da religião sobre
o Estado manifestou-se de várias maneiras: no monopólio do ensino, na
entronização e excomunhão de monarcas pela Igreja, etc., etc. A visão teocêntrica permitiu a Igreja legitimar a
relação desigual senhor-servo e exercer o controlo sobre o pensamento do
homem medieval em todos os níveis,
inclusive no domínio intelectual. No
século XVI o Catolicismo foi perturbado com o surgimento da Reforma: o
monopólio da interpretação dos textos bíblicos passou ao alcance do crente. O pluralismo interpretativo proporcionou o liberalismo; este suportou a democratização e o fim da superioridade do dogmatismo católico
(Jostein Gaarder e outros, pp. 204220). Ainda assim, a Igreja dispunha
de muito poder: (i) acumulou riqueza
dos reinos sob seu controle; (ii) afirmou-se como potência diplomática
entre os reinos adversários; (iii) detinha ainda milhares de fiéis a sacrificar
as suas “vidas” em nome da fé católica.
Com a descoberta das Américas, a
Europa projecta a “caça à riqueza”. O
solo americano, promissor, necessitava de mão-de-obra. Esta será encon-
GRAFITOS NA ALMA | 23
João N’gola Trindade
trada em África, sobretudo. Mas para o
sucesso disso dependeu da religião
(católica romana e protestante). Jomo
Kenyatta resumiria bem isso com as
suas palavras, que cito (traduzo):
“Eles tinham a Bíblia e nós as terras;
eles ensinaram-nos a rezar com os
olhos fechados. E quando abrimos os
olhos (ao dizer ámen), eles tinham as
terras, e nós a Bíblia”. Durante mais de
três séculos, os Africanos foram coisificados, despersonalizados e vendidos como mercadorias. Os Estadosnação que surgiram na Europa ocidental precisavam fazer fortuna e bus
caram na religião uma ferramenta
decisiva para dominar.
Em Angola, a religião contribui de
várias formas (Schubert, 2000): na
educação, na pacificação, depois dos
conflitos que tivemos, enquadrar/integrar jovens/sociedade. Se a colonização de Angola foi auxiliada pela religião, e atendendo que a escravatura
terá sido potencialmente auxiliada pela “fé”, importa salientar que a descolonização da mesma contou com a religião (Henderson, 2000). Eduardo
dos Santos (1969: 97-110; 201-213)
aborda, na sua obra, o auxílio que as
revoltas de 1960-1961 em Angola tiveram na mainmise da religião messiânica.
Voltemos a nossa pergunta inicial
que, acho eu, é o que nos interessa. Do
que foi dito atrás, percebe-se que a religião é, de facto, um instrumento de
organização social e pode, de modo
igual, servir de suporte de estabilidade na personalidade do indivíduo.
Nesse pressuposto, vamos questionar
dois aspectos da religião perante o homem: (i) medo; (ii) salvação.
O medo da fraqueza que implantou
o pecado original, o medo da “noite
primitiva” e o medo do destino humano são os três pontos que, de certa for-
ma, dão poder a religião no ser humano. Se castigamos quem infringe a norma/lei, como se castigará o “Homem
imaterial” (alma?) pelos inúmeros pecados cometidos? Ou ainda, o que
acontece depois da morte? Se os mitos
expõem um Inferno castigador, a curiosidade humana tem medo perante
o seu “destino”. A incerteza de não saber se a morte do corpo significaria a
morte do “espírito” que vivifica o corpo, inquieta continuamente a curiosidade humana e a ciência ainda não esclareceu esta “noite primitiva”.
Da mesma forma que o homem busca, continuamente, os meios da sua
salvação, buscando na fé o suporte
pluridimensional, o homem constrói
as suas convicções e verdades como
forma de ter resposta às curiosidades
existenciais. Existem duas salvações
no homem: (i) salvação material; (ii)
salvação imaterial. Se a religião pode
proporcionar riquezas (Weber,
1964[2010]) aos indivíduos ou as instituições, ela pode em mesma proporção, promover riquezas imateriais.
Perante o pecado adâmico (no suor do
rosto comerás o seu pão, Bíblia: Génesis, 3:19), essa salvação apraz ao Homem, perante o pecado humano (ultra-egoísmo do Homem explorar outro homem) que busca um humanismo consigo mesmo.
Conclusão
O termo religião, deriva do latim religare/religere: (i) organizar; ordenar; estruturar; (ii) submeter-se as
normas naturais/divinas; cumprir
com o ordenamento tal como prescrito/pré-estabelecido; etc. Eis a razão
pela qual religião significa: temor a
Deus, pratica de cultos, conjunto de ritos/cerimónias, veneração as coisas
sagradas, etc.
Com essa definição, e de acordo
com o que nós prescrevemos anteriormente, fica claro perceber que a religião seja um instrumento potente. Pode dominar (como também libertar)
indivíduos, instituições, países e continentes.
24 | DIÁLOGO INTERCULTURAL
3 a 16 de Setembro de 2012
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Cultura
MAYOMBE (Ao Pepetela)
Matadi Makola
S
ocialmente vestido de conselheiro da embaixada de São
Tomé e Príncipe em Angola, Francisco Fonseca Costa
Alegre é um escritor que passaria despercebido numa
esquina qualquer das nossas ruas sem que muitos (falando aqui das consequências da carência de intercambio entre
escritores dos PALOP) dessem conta do vulto literário santomense que passa ao lado. Sorte a nossa que, ainda numa daquelas sempre preguiçosas e frias manhãs de cacimbo, tivemos a audácia inexplicável até agora de nos esbarrarmos com ele e habilmente, depois de um gradual golpe de vista, termos marcado
uma conversa quente.
Nascido no dia 2 de Fevereiro na cidade de São Tomé, São Tomé e Príncipe, fez os estudos secundários em sua cidade natal e
estudos superiores de Francês em Besançon, França, e de Comunicação Social em Nova Iorque, Estados Unidos da América.
Poeta, crítico e ensaísta, vem colaborando regularmente em
jornais e revistas santomenses e estrangeiras. Da sua produção
soam títulos como: “Madala”, poesia (1991), “Cinzas do Madala”,
poesia (1992), “Mussandá”, prosa (1994), “Muteté”, prosa
(1998), “Brasas de Mutété”, Prosa, Estudo da Literatura Santomense (1998), “Mussungú, poesia (2002), “Crónicas de Magodinho”, prosa (2003), “Kissanga-Kiando”, Crítica Literária (2004)
Santomensidade, prosa (2006),“Latitude 63”, prosa (2008).
C
arregado de franqueza e sensatez, virtudes que um bom escritor
não dispensa, consciente da sua inquietante palpitação artística ao
assumir a sua indefinição, que para os mais atentos pode ser visto
como claro sinal de solidez da sua intangível missão de criador, com palavras e modéstias que só a idade bem conseguida dá, Costa alegre deixa sempre à conversa o carimbo do africano que sabe bem ser santomense:
Cultura - Como define a literatura santomense de hoje?
Francisco Costa Alegre - A literatura santomense de hoje está marcada por realidades que os próprios protagonistas e operadores do tecer literário têm manifestado para fazerem o corpus dessa realidade literária
contemporânea que ainda é incipiente. Envolvida na história de São Tomé, esta literatura divide-se em dois espaços: o período antigo e o período
recente. O primeiro acaba em 1975 e o segundo até aos dias actuais, este
que é o período de passagem de testemunho onde se destacam nomes como o contista e romancista Albertino Bragança, a poetisa Conceição de
Deus Lima, o contista Jerónimo Salvaterra e muitos outros que vão trazendo novas auras à literatura santomense.
C - Que sentido se pode ter da miscigenação santomense?
F.C.A - Eu, por exemplo, me sinto dividido entre a descendência moçambicana e a portuguesa, e no meio estou sempre a me perguntar quem
Mayombe é terra de zumbidos
Ali aprende-se a teoria,
Às vezes ergue-se, às vezes se sucumbe
No pólipo da sabedoria;
Aprende-se a ser narrador
Faz-se um animismo realista
Só e só do Mayombe real e animador
Renovador chamado universalista;
Mayombe será sempre Mayombe
Diferente e sempre Mayombe
Transformar e ser sempre Mayombe
No pólipo da sabedoria;
Tocar-se-ão batucadas da Mucanda,
E a cabindando a vida do povo anda
Andará crioula e genuína no Mayombe
No Polípo da sabedoria;
Corta-se uma árvore.
Corta-se o crescer duma sabedoria,
Nascerão outras centenas de árvores
E o saber multiplicar-se-á na geração que cria
O pólipo da sabedoria;
Luandando a gente se preocupa
Preocupa-se com Mayombe
Ser-se só Mayombe ou também luandando
No realismo realista de toda árvore
No pólipo da sabedoria.
Francisco Costa Alegre in Mussungú
sou. E é na ideia imediata de espaço onde me apego para afirmar que sou
santomense.
Isto já espelha que a república de São Tomé e Príncipe é determinantemente um espaço sui generis onde há um pouco de todos. Nós temos descendências de angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, portugueses.
Esta mescla de vários povos de diferentes lugares é que dá o sentido da
crioulização da literatura santomense. Todo corpus da literatura santomense contemporânea é uma desenvoltura desta mestiçagem.
C - Em “História da Literatura Santomense” questiona: seremos verdadeiramente Bantu? Será a identidade de
São Tomé e Príncipe uma missão
ainda por se cumprir?
F.C.A - Com certeza que a
nossa definição como santomenses é algo ainda por se descobrir. Em São Tomé existe a
consciência de um povo: o povo Bantu, que é originário da
costa africana e que de alguma
forma não podemos estar de fora
devido a nossa constituição como
Francisco Costa Alegre
“Não somos puros, mas sim
uma mestiçagem muito complicada”
Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012
povo. E sempre que esta questão se coloca perguntamo-nos: será que o povo
santomense é verdadeiramente Bantu? Porque quando se chega à questão
os santomenses questionam-se a si mesmo procurando definir uma identidade homogénea, e isto leva-nos à conclusão de que não somos puros, mas
sim uma mestiçagem muito complicada. Ou, na procura de possibilidades
de nós, pode ser que aceitemos a mestiçagem como pureza/base para nos
construirmos e daí advir uma pura definição de nós, porque São Tomé é
uma mistura de muito sangue. E é sobretudo na prescrição sanguínea que
nós nos afirmamos Bantu, embora conscientes de que não somos um povo
Bantu puro.
C - Que reminiscências santomenses se pode ver do futuro africano ante o
realismo?
F.C.A - É uma questão bastante complicada. O futuro de África será construído à medida que o tempo vai surgindo e como nós recebemos a estafeta
das realidades dos antepassados e saibamos transpô-las às gerações da
posterioridade. No conceito africano, seria a realidade da construção da
identidade santomense que eu, em alguns casos, chamo de santomensidade.
C - Acredita no risco do conceito e realidade africana ser um mito para a
posterioridade ante os actuais níveis de aculturação?
F.C.A - Todo o mito é uma referência de algo que se passou. Pode ser que,
em consequência do realismo, o passado e conceito de África pura para o futurismo venha a ser um mito. Mas o mito como referência longínqua que a
sociedade mantém perene e que se conserve nas mentes a realidade africana.
C - Do Poema Mayombe do livro “Mussungú” lêem-se apelos à sabedoria
africana. O que fica por detrás do poema?
F.C.A - Foi depois de ter lido o livro “Mayombe” de Pepetela que me veio a
inspiração de escrever este poema. De facto, os velhos são apanágio de sabedoria e a morte de cada velho é a morte de um dicionário, e muitas vezes
uma biblioteca. Outra referência é o mito de que quando se corta uma árvore do Mayombe imediatamente nasce outra.
Este poema é um apelo às bibliotecas vivas e da própria realidade em si,
isto também pensando em invocar elementos culturais PALOP.
C - Em “Madala” tem uma visão infinita e melancólica. Que acontecimentos externos o levaram a prescrever obra?
F.C.A - Eu sou descendente de uma família de escritores, e essa minha primeira obra ainda é incipiente. Foi o meu primeiro passo na literatura. Eu escrevi o livro inspirado nesta palavra que é originária de Moçambique, e que
em São Tomé perdeu o sentido de ser velho e passou a ser talismã.
C - Para quem acha que é o dever de realizar o sonho africano?
F.C.A - O sonho de reavivar África é um desafio que nós todos encontramos. Já Alda do Espírito Santo dizia num dos seus poemas: “ A liberdade é a
pátria dos homens”. Isto querendo dizer que os homens enquanto não forem livres de preconceito e ostentarem uma vida social estável eles não serão livres. Serão sempre oprimidos de uma ou de outra forma. Isso compete
aos africanos, principalmente aos operadores literários a missão de trazer
aos povos africanos uma mensagem de construção de um futuro e identidade que nós podemos almejar. O africano não pode voltar as costas às ideias
do desenvolvimento ou repudiar o melhor do ocidente. É preciso assentar
num adágio que explica que “o vinho é inimigo do homem, mas voltar as costas ao inimigo é a maior cobardia”. Nós não podemos virar contra o ocidente,
mas devemos enfrenta-lo encarnando os nossos valores culturais.
C - Depois de uma vasta produção literária, como observa a missão de escritor?
F.C.A - De muitos sonhos. A nossa missão de escritores e sonhadores faz
com que muita gente afirme que os escritores vivem no espaço. Isso é verdade. Mas os escritores não podem inteiramente viver no espaço. Eles vivem
no espaço com a perspectiva de alterar o solo firme.
C - Que dificuldades encontra o escritor santomense de hoje?
F.C.A - O nível de aceitação de tendências do ocidente em São Tomé também é muito grande em relação às coisas puramente africanas. Não tanto
aqui em Angola porque o processo torna-se mais fácil para os músicos e escritores. Mas em São Tomé um dos grandes problemas é a falta de gráficas.
Todas as minhas obras são publicadas em Portugal. Somente “Madala” é que
foi artesanal. E muitas vezes os revisores portugueses cortam a seu favor
parte de alguns textos. Embora exista a liberdade de imprensa, eles só publicam o que acham que não lhes afecta. Diferente seria se nós tivéssemos as
nossas gráficas, ou uma sustentabilidade para o efeito.
C - A que conclusão chega sobre o acto de escrever?
F.C.A - Para mim, o acto de escrever é uma manifestação artística, um desabafo, uma maneira de divulgar a realidade do meu país, uma vontade firme de construir e de aprender. Eu quero ser um escritor santomense. Eu
ainda não sou escritor. Tudo aquilo que eu faço dá-me alguma sustentabilidade para me considerar um operador literário com ambições. Mas eu gos-
DIÁLOGO INTERCULTURAL | 25
taria de aprender muito mais para poder escrever também, porque cada vez
que eu escrevo eu noto em mim, quando me volto para trás, que tive progresso pelas coisas que fui aprendendo sempre. Escrever é uma forma de
me melhorar.
C - Há uma definição justa para si?
F.C.A - Eu sou escritor sem rosto. Ainda não tenho um rosto bem definido.
Eu não posso dizer que sou um poeta, romancista ou crítico literário. Mas
posso dizer que sou um indivíduo que investiga e depois tenta compô-lo em
poesia ou conto. Eu sou contista, e não um romancista.
C - Com “Latitude 63”, “Rosas do Vento”, “A Cidade de São Tomé”, “Brasas
de Mutété”e “Kissa-Kianda”, fruição intelectual e letargia académica podem
justificar a sua intervenção além da Literatura?
F.C.A - A travessia que faço da Literatura à Sociologia e, embora um pouco
menos, à Historia é necessidade minha como cidadão em contribuir para o
registo de factos históricos do meu povo. Um exemplo muito vivo é o caso do
hino nacional de São Tomé e Príncipe ser produto de um texto crioulo que
anda desaparecido e que até hoje ninguém consegue recuperar. Este texto
era o hino de luta em combate. Hoje ninguém sabe como encontrá-lo.
C - Pode afirmar-se como um crítico de critérios africanos?
F.C.A – Confesso que ainda sou produto do ocidente. Mas não sou radical.
Eu faço a crítica a partir de parâmetros ocidentais mas atendendo sempre a
realidade africana e santomense. Na “Teorização da Literatura Santomense” tentei criar a teoria da literatura santomense como parte inseparável da
história. À medida que se dá passos na história, a literatura também obedece aos critérios de mudança.
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Cultura
Jean-Joseph Rabearivelo (1901 - 1937)
Arte longa, vida breve
minavam, durante todo o século anterior, os valores tradicionais da ilha, a
grande Ilha Vermelha.
Antônio Moura
M
adagascar, na época do
nascimento de Jean-Joseph Rabearivelo, nome
artístico posteriormente adotado, é uma colônia francesa
e as classes dominantes, arruinadas, subsistem em convivência com
os poderes estrangeiros, que já do-
Filho natural de uma jovem protestante de sobrenome Rabozivelo e
descendente de uma casta real empobrecida, a dos Zanadra Lambo, JeanCasimir Rabe, seu nome verdadeiro,
teve o apoio financeiro de um tio católico, que proporcionou-lhe os estudos. Sua vida acadêmica, porém, foi
curta: iniciou seus estudos nos Irmãos das Escolas Cristãs, passando
em seguida ao Colégio Saint-Michel,
de orientação Jesuíta, do qual é expulso aos treze anos, finalizando sua trajetória escolar num liceu público, onde passa apenas alguns meses. A par-
tir daí, converte-se em um jovem autodidata com sede de erudição em
contra-posição ao ambiente miserável que o cerca. Mas é preciso ganhar
o sustento e, para isso, o futuro poeta
trabalha, sucessivamente, como secretário, escrevente e bibliotecário.
Começa então a publicar seus primeiros ensaios em revistas e periódicos,
sob pseudônimos de aura romântica,
como Almace Valmond ou Jean Osmé.
trairá o necessário para a sua subsistência até a sua morte. Porque passa a
ser conhecido na Europa através de
um artigo, em francês, sobre a poesia
malgache, publicada pela revista austríaca missionária Anthropos.
O ano de 1923 tem para Rabearivelo uma importância vital, por três
motivos princiais:
Porque conhece a Pierre Camo,
que, de certa forma, será para ele o
que o professor Georges Izambard foi
para Rimbaud, incentivando-o, amparando-o, introduzindo-o nos salões artísticos e atualizando-o em relação ao que se havia feito e se estava
fazendo na França.
Porque passa a trabalhar na Imprimerie de Imerina, de onde sairá a
maioria dos seus livros e da qual ex-
A partir desta época aparece a primeira parte de sua obra, mais precisamente de 1924 a 1930, com La cou-
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DIÁLOGO INTERCULTURAL | 27
amarguras: sua saúde declina a cada dia, assim como fica também cada vez mais difícil conciliar-se
com a vida cotidiana no ambiente castrador da colônia; o governo nega-lhe, às vésperas, uma viagem
prevista à Exposição Universal em Paris, onde um
bailarino, Serge Lifar, iria interpretar sua cantata
Imaitsoalana; as dívidas acumulam-se e os credores
o levam aos tribunais, onde é declarado culpado.
Diante deste quadro, tenta, num recurso desesperado, acrescentar mais dinheiro aos seus rendimentos solicitando um posto de funcionário público, mas a administração o recusa, por não possuir
nenhum título oficial. Dois dias após a esta tentativa
frustrada, no dia 22 de julho, o poeta escreve a última página do seu diário e suicida-se, ingerindo dez
gramas de cianureto.
DOIS POEMAS
DE JEAN-JOSEPH
RABEARIVELO
EM TRADUÇÃO DE ANTÔNIO MOURA
O boi branco
Esta constelação em forma de cruz,
é ela o Cruzeiro do Sul?
Eu prefiro chamá-la Boi-branco,
como os Árabes.
Ele vem de um parque que se estende
às margens da noite
e se enfurna entre duas Vias Lácteas.
O rio de luz não tem aplacado sua sede,
e ei-lo que bebe avidamente do golfo
das nebulosas.
Sendo um efebo cego nas regiões do dia,
ele nada tem podido acariciar com seus
cornos;
mas, agora que as flores nascem
nas pradarias da noite
e que a lua brota de um salto como
um touro,
seus olhos recobram a visão, e ele
parece mais forte que os bois azuis
e os bois selvagens que dormem
em nossos desertos.
Ler
pe de cendre (1924), Silves (1927), Volumes (1928)
e L´interference, uma novela sobre a sociedade colonial, publicada apenas postumamente, em 1988.
Quanto aos poemas, no entender de Juan Abeleira,
são ainda estilisticamente concebidos sob a influência insidiosa da escola parnasiana, mas onde já se
pode rastrear ao menos duas das maiores preocupações essenciais de Rabearivelo: o culto dos antepassados e a exaltação da legendária Larivo.
Obras que, na interpretação de H. Mariol, traduzem a luta interior do homem de letras ocidental em
que Rabearivelo tinha se tornado e do indonésio
que mantinha preservada a herança de seus ancestrais. 1924 é também o ano em que começa a escrever os Calepins Bleus (Cadernos Azuis), célebre diário escrito até mesmo o dia da sua morte. Rabearivelo casa-se em 1926 com Mary Razafitrimo, uma de
suas alunas particulares, que, posteriormente, lhe
dará um filho e quatro filhas. Ainda que até nós tenha chegado a imagem de um Rabearivelo muito carinhoso com a sua progênie, parece que a relação
entre o poeta e sua mulher não foi o que se possa
chamar de harmoniosa. E, possivelmente, o principal motivo disso tenha sido a crescente adesão de
Rabearivelo ao ópio. Droga a que recorreu mais como um bálsamo às sua dores de corpo e de alma do
que como fonte de inspiração, ainda que este fizesse
parte de um suposto projeto poético e espiritual
próximo ao da vidência rimbaudiana.
Então, a partir de 1929/30 sua vida vai decaindo
sem parar, ao passo que, paradoxalmente, sua obra
vai se elevando. O tema do mais-além, para citar ainda uma vez mais Juan Abeleira, torna-se, aos poucos, uma obsessão que resultará fatal, somando-se
um interesse real, não apenas literário, por astrologia e ocultismo e todo o tipo de excessos que acabam por minar-lhe a saúde, já originariamente precária, pois era asmático. Uma série de acontecimentos trágicos começam então a acumularse ao seu redor, até que a morte de sua filha Voahangy, em 1933,
provavelmente causada por negligência de um médico, transtorna-lhe profundamente.
Para Jean-Joseph Rabearivelo, 1937, o seu último
ano de vida na terra, é uma sucessão de desilusões e
Não faças ruído, não fales:
vão explorar uma floresta os olhos,
o coração
o espírito, os sonhos...
Floresta secreta, porém palpável:
floresta.
Floresta de rumoroso silêncio,
floresta onde se refugiou o pássaro
que se prende à laço,
o pássaro que se prende à laço,
que faremos cantar
ou que faremos chorar.
Que faremos cantar, que faremos chorar
o lugar de seu nascimento.
Floresta. Pássaro.
Floresta secreta, pássaro oculto
em vossas mãos.
Antônio Moura nasceu em Belém do Pará, em 1963, onde ainda reside e trabalha. Poeta, letrista, roteirista de cinema e vídeo. Publicous
as coletâneas Dez (1997), Hong Kong & Outros Poemas (1999) e Rio
Silêncio (2004).
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Rabearivelo,
obras literárias
completas, tomo II
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Cultura
Edição crítica coordenada
por S. Metinger, L. Ink, L.
amarosoa, C. Riffard
País do autor: Madagáscar
Autor: Jean-Joseph Rabearivelo
Edição: CNRS Editions
País de Edição: França
ISBN: 978-2-271-07390-7
Género: estudos literários, críticas
Números de páginas: 1792
Aparição: 07 Junho 2012
I
maginemos, no início deste vigésimo século, no coração de uma ilha ainda submetida
à França, um jovem de cor que descobre o
dom da expressão, associado ao amor pelas
letras e pela língua francesa! Consciente de ser
um génio, Jean-Joseph Rabiearivelo, nascido em
1903, trabalha então para se tornar no primeiro
“intelectual” da sua nação. Poeta, jornalista e crítico, romancista e dramaturgo, historiador e tradutor, ele esforçar-se-á para manter o equilíbrio entre o inato e a abertura de espírito que lhe foi permitida por um médio estrangeiro prestigioso.
Ele que se diz “filho de reis de uma época longínqua” mas vive em condições duras no seu estatuto de bastardo, será a luz brilhante da sua
“raça”. Isto passará pelo domínio da língua do
conquistador e pelo excelente destaque que ele
mostrará no campo literário de uma das mais antigas civilizações da Europa. Além disso, ele não
se esquece e não esquecerá nunca a língua e a civilização malgaches. A sua perspectiva intelectual, literária, estética e crítica está traçada e o
seu sonho mais querido é de por em contacto e
fazer passar uma cultura dentro da outra, ou seja, as duas culturas que são as suas: a europeia (a
francesa mais particularmente) e a malgache.
A sua admirável criatividade não se contenta
em explorar os modelos em vigor, e o domínio da
língua francesa não significa submissão intelectual e moral ao conquistador. Esta língua vinda
de outros pontos, imposta primeiramente pela
força das armas, mas amada apaixonadamente,
pode tornar-se uma ferramenta de abertura ao
mundo e à universidade da literatura enquanto
expressão da dignidade humana.
Este segundo tomo das suas obras completas
compreende, em primeiro, a obra essencial, isto é,
a obra de criatividade – a poesia, as narrações, as
peças de teatro – em seguida, a obra do eminente
transmissor de cultura e de civilizações que ele foi
durante toda a sua fulgurante carreira – as traduções de poemas malgaches tradicionais e contemporâneos para o francês – e finalmente a contribuição do intelectual engajado e criativo – os artigos críticos e os ensaios de história.
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Dia Internacional da Memória
do Tráfico de Escravos e da sua abolição
Carlos Hernández Sot
A 23 de Agosto de cada ano, o mundo celebra o Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua abolição.
O tráfico de escravos, praticado inicialmente por países europeus e logo a seguir pela América colonial, teve a cumplicidade dos chefes africanos e durou
desde o século XV ao XIX. Era caracterizado pela captura, venda, transporte e
exploração de mais de 15 milhões de pessoas e seus descendentes ao longo de
quatro séculos (Curtin, 1969).
Para não esquecermos este trágico processo, a UNESCO criou em 1994 o Projecto “Rota do Escravo” e em 23 de Agosto de cada ano é prestada homenagem
aos homens e mulheres que lutaram contra esta opressão.
O comércio de escravos resultou na acumulação de capital nas grandes potências europeias e dos Estados Unidos da América e na base económica que
permitiu a industrialização da Europa e da América, enquanto a África ficou
despojada da sua riqueza, população e sua força de trabalho jovem. A acumulação primitiva do capital europeu e norte-americano é, portanto, amassado com
o sangue dos negros africanos.
O tráfico negreiro foi também uma tragédia humana e um desastre cultural.
Como parte da tragédia humana, famílias foram separadas e desunidas na África e negros escravizados na América, onde foram tratados como animais, sendo-lhes negada a possibilidade de formação de famílias estáveis, e despojados
das suas antigas culturas e suas línguas nativas.
Os africanos escravizados foram proibidos de seguir as suas crenças e práticas religiosas e, consequentemente, foram doutrinados, embora superficialmente, na religião católica. Mas na viagem transatlântica dos navios negreiros,
os africanos também viajaram com os seus deuses, especialmente o aquáticos
(mães de água), como Kalunga, a deusa do mar e da morte da bacia do CongoAngola. Desembarcaram com eles em solo americano. A reunião e confronto de
culturas deu origem a religiões sincréticas nascidos em terras do Novo Mundo:
voodoo em suas diferentes versões, Santeria, Candomblé, algumas formas de
catolicismo popular americano e outras expressões religiosas híbridas.
Quando não foi possível a manutenção económica das colónias, ocorreu gradualmente, nos Estados Unidos, a abolição da escravatura, que nasceu disfarçada como "acto misericordioso e compassivo", mas na realidade foi principalmente devido a fortes razões económicas.
Hoje, a luta contra a escravidão continua principalmente contra dois dos
efeitos da história da escravidão: o racismo e a discriminação. Também continua na luta pelo reconhecimento do pluralismo cultural na construção de novas identidades e a criação de uma ideia renovada
de cidadania.
No Dia Internacional da Memória do
Tráfico de Escravos e da sua Abolição, o Dr. Simão Souindoula, historiador angolano, membro do Comité Científico Internacional
da UNESCO - Projecto Rota do
Escravo, apresentou uma palestra subordinada ao tema
“¡KALUNGA EH ! LOS CONGOS DEVILLA MELLA–Património Intangível da Humanidade”.
Na sede da companhia de
Teatro Laa-Roi teve lugar a
terceira sessão do projecto
Afidika nzo yeto, bukisi beto,
com a projecção do filme
“AMISTAD”, de Steven Spielberg. Costa de Cuba, 1839. Dezenas de escravizados negros libertam-se das correntes e assumem o
comando do navio negreiro La Amistad. Eles sonham retornar para a África,
mas desconhecem navegação e vêem-se obrigados a confiar em dois tripulantes sobreviventes, que os enganam e fazem com que, após dois meses, sejam capturados por um navio americano, quando desordenadamente navegaram até à costa de Connecticut.
30 | DIÁLOGO INTERCULTURAL
O Amado do Brasil
Salgado Maranhão
A
exuberante presença do romancista Jorge Amado no panorama da literatura brasileira do sec. XX, trouxe um enorme contributo ao âmbito da linguagem e do debate de questões raciais até então sublimadas.
O arejamento instaurado a partir da Semana de Arte Moderna, em
1922, encheu o Brasil de entusiasmo criativo, especialmente o Nordeste, que
elencaria na década seguinte, a mais importante linhagem de ficcionistas brasileiros. Surgia, quase na mesma geração, José Américo de Almeida, Raquel de
Queirós, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Adonias Filho – e o próprio Jorge
Amado.
Porém, à parte as distinções de estilo, os demais romancistas do ciclo nordestino, mantêm uma certa coerência na temática e no manejo da linguagem, que se
ajustam à maneira de falar de toda uma região. Em cada um desses autores, é o
Nordeste em sua vasta cultura que se faz representar, com pouca diferença de um
estado para o outro.
Ao contrário disso, Jorge Amado é o Romancista da Bahia, aquele que é universal, justamente, por contar a sua aldeia, como queria Dostoiévski.
Nenhum escritor reinventou a Bahia como ele, nem mesmo os cientistas sociais da sua geração ou da anterior, que se esmeraram na busca da exatidão de fatos históricos e culturais. A Bahia de Jorge Amado é mítica, queimada pelo sol da
raça negra, que deu ginga, amor e humor a uma terra que congrega seus litorâneos para a mística e para a vida mansa. Numa edônica atmosfera de luxúria tropical, aporta em sua prosa uma enorme legião de tipos humanos, que não representa apenas o lado social periférico que a elite rejeita, mais que isso, Jorge os
transforma em figuras sedutoras e até mesmo apaixonantes em suas autênticas
contradições.
Durante décadas, em sua longeva trajetória de sucesso, nenhum outro escritor
brasileiro o alcançou. Traduzido para mais de trinta línguas, conheceu em vida o
que todos almejavam. Por isso, também, teve que enfrentar duras críticas ao seu
estilo e à sua abordagem na questão da negritude. Do estilo, criticaram-lhe a verve redundante e as recorrências ao mesmo tema; da negritude, acusaram-no de
exacerbar em suas obras, particularmente, a sexualidade da mulher negra, gerando um estereótipo degradante. Este, inclusive, é o aspecto de maior rejeição à
sua obra, nos dias de hoje, na comunidade afrodescendente. E pode ter sido a causa do ostracismo aos seus livros de pelo menos uma década sem novas edições.
Seja como for, é impossível negar a enorme presença desse autor no imaginário do povo brasileiro. Sua hábil construção de personagens só é comparável aos
grandes do passado, como Machado de Assis e Lima Barreto. Além disso, as críticas que lhe são desferidas, se por um lado se ancoram em algum fundamento, por
outro, não são de todo justas, porque, dá lição de moral não é papel do ficcionista.
Como cidadão, Jorge Amado foi um homem ajustado à sua época e às suas demandas. Comunista de primeira hora, aliou-se às causas mais urgentes do seu
tempo, sujeitando-se(juntamente com a sua amada de vida inteira, a também escritora Zélia Gattai)a exílios e restrições diversas em prol dos seus princípios. Extremamente afetivo, fez jus ao sobrenome Amado: mimou e foi mimado pelos
amigos e pelo povo da Bahia e do Brasil, sua famosa generosidade abriu caminhos para muitos que se iniciaram no incerto mundo das letras(inclusive,a única
coletânea do poeta Agostinho Neto, lançada no Brasil,tem prefácio seu).
De modo que, as comemorações que se levantam no centenário do seu nascimento, são o justo prêmio a um extraordinário escritor que amou a literatura e o
seu país mais do que tudo.
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Cultura
Mindelact
arranca
no Mindelo
durante 8 dias
Nuno Rebocho
Q
uarenta espetáculos teatrais vão encher a cidade do Mindelo,
na ilha de S. Vicente, Cabo Verde, de 7 a 15 de Setembro próximos, durante o grande festival cénico que costuma ser o Mindelact. Criado em 1995, por iniciativa do português João Branco, que se fixou naquela ilha, o certame confrontou-se este ano com algumas dificuldades, sobretudo as resultantes da grave crise económica internacional,
a qual acabou por afetar este muito significativo festival da melhor dramaturgia.
Vencendo com denodo as dificuldades, o Mindelact sobe aos diversos
palcos mindelenses, desde o Centro Cultural até à Academia Jota Monte.
Este ano, suscita muita expetativa a Teatrolândia, isto é, uma iniciativa
paralela ao Festival que funciona como um seu segmento dedicado ao
público juvenil.
Grupos cénicos de sete países vão atuar neste Mindelact, com destaque para Angola (cujo Elinga Teatro será uma das grandes atrações).
Mas além de Angola, vão estar presentes companhias vindas do Brasil,
de Marrocos, de França, Itália, de Portugal e, obviamente, de Cabo Verde.
Durante os oito dias de representações, realizam-se cursos de formação que servem para garantir a continuidade da qualidade das apresentações, criando novos e mais protagonistas da cena cabo-verdiana.
O teatro de rua, concorrendo com o que se mostra nos palcos, dá enorme projeção pública ao Mindelact que, nesses dias, se converte na capital, por excelência, da dramaturgia em Cabo Verde. No entanto, o esforço
desta Associação não se restringe ao Mindelo, propagando-se dele a todo o arquipélago.
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Um cinturão
BARRA DO KWANZA |31
CONTO de Graciliano Ramos
A
s minhas primeiras relações com a justiça
foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos,
por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas
ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto
era natural.
Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor.
Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas.
Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com
água de sal – e houve uma discussão na família. Minha
avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó.
Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme.
Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai
acordando, levantando-se de mau humor, batendo
com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz
áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma
exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me
trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a
minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa
esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa,
fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulirme: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do
corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha
mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem
de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e
sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o
cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me:
atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar
com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos,
atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de
significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha
tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os
olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero
constituíram as maiores torturas da minha infância, e
as consequências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado
a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça,
nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma
pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima,
como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece,
uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro.
A horrível sensação de que me furam os tímpanos
com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficoume na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e
os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira
do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro,
sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos
os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava
o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do
martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e
pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigoume as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu
devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um
pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as
pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas.
Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me
um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não
fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois,
quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco.
Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para
rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os
pulmões, movia-me num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da
fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os
gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as
pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalarme com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi
meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentarse e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o
maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando
se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a
cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a
minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a
presença dele sempre me deu. Não se aproximou:
conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se
afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
Graciliano Ramos considerado um dos
mais importantes escritores do moderno romance brasileiro, nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, sertão de Alagoas, filho primogénito dos dezasseis que teriam seus pais, Sebastião Ramos de
Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu a
sua infância nas cidades de Viçosa, Palmeira
dos Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regime
das secas e das surras que lhe eram aplicadas
por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo,
a ideia de que todas as relações humanas são
regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico "Infância", assim se referia a seus
pais: "Um homem sério, de testa larga (...),
dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma
senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...),
olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura".
Em 1894, a família muda-se para Buíque
(PE), onde o escritor tem contacto com as primeiras letras.
Em janeiro de 1953, é internado na Casa de
Saúde e Maternidade S. Vitor, onde vem a falecer. É publicado o livro "Memórias do cárcere", que Graciliano não chegou a concluir, tendo ficado sem o capítulo final.
Bibliografia:
- Caetés - romance
- São Bernardo - romance
- Angústia - romance
- Vidas secas - romance
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Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da República).
- Cartas - correspondência pessoal.
32 | NAVEgAçõEs
3 a 16 de Setembro de 2012 |
Kudilonga
Cultura
O lápis da menina-professora
Ximinya
m meados dos anos 70 o bairrinho
pobre vivia tempos conturbados como
todos os outros bairros e regiões do
país. As mudanças radicais que se
anunciavam vinham alterar convicções e certezas. Os mais velhos perdiam as marcas dum
passado recente, adquiridas em detrimento de
suas próprias identidades, e desconheciam o
futuro que lhes parecia incerto. Viam, assustados, seus filhos, generosos, abraçarem “novos
tempos e novas vontades”.
A menina do bairrinho pobre, agora adolescente,
identificava-se com estes novos tempos. Esqueceu
temporariamente a Faculdade e voltou à escola
primária do seu bairrinho para ensinar a ler e a
escrever aos operários, empregadas domésticas,
lavadeiras e outros trabalhadores que não tinham
tido acesso à escola. Gostava de ensinar e apercebeu-se, admirada, que preparava as lições de alfabetização dos seus alunos com o mesmo afinco
que preparara as suas aulas na escola e no liceu.
Duas barreiras se lhe deparavam e, na sua idade e
inexperiência, pareciam-lhe gigantescas: o fosso
da idade entre ela e os adultos que afalbetizava e
a dificuldade da luta contra o analfabetismo. Toda
a sua educação fora baseada no respeito pelos
mais velhos que tinham sempre razão mesmo
quando não a tivessem. Como iriam eles agora
aceitar que ela lhes ditasse regras?
Começou a sua primeira lição de pedagogia, no
terreno. Aqueles mais velhos não sabiam ler mas
possuíam sabedorias que ela ignorava e que eles
lhe foram transmitindo enquanto ela lhes revelava
o novo mundo das letras e dos números. E nessa
troca de saberes, enriqueceram-se mutuamente,
cada um se apoiando na sua experiência e competência. Afinal não fora necessário “ditar regras”
mas procurar em si palavras e gestos simples para
transmitir uma técnica que os adultos analfabetos
E
desconheciam. Com espanto, a menina-professora
constatou que o lápis que ela manipulava distraidamente e com ligeireza se transformava num instrumento cortante que os alunos adultos,
receosamente, ostentavam entre os dedos hirtos e
tensos, tal um punhal trespassando as páginas do
caderno. A letra “a” ondulante, maleável, o “b” esbelto que se esticava vaidoso e que ela tão bem
sabia desenhar, desafiavam os alfabetizados adultos que, após um dia de trabalho, se dirigiam corajosamente à escola, a mesma para onde tinham
mandado estudar os filhos, hoje seus professores!
A jovem do bairrinho pobre entendeu a complexidade da arte de ensinar. Teve sempre uma empatia com os seus alunos e deles recebeu as
primeiras lições empíricas de pedagogia que valiam certamente muitas aulas na Faculdade! Mas
isso a jovem do bairrinho pobre só descobriu
muito mais tarde quando defendeu a sua tese de
pedagogia na Faculdade, já no estrangeiro, no seu
exílio voluntário.
Paris, 05 de Janeiro de 2012
Mar de Margaridas
Doces olhos aguados
de mar
fitando o árido
dos meus olhos secos
num mar de margaridas
bebi água do teu olhar
e sorri
Flor
mulher
pétalas de mel
no olhar magoado
sal na doçura
e eu
Eu
me saceio
na frescura
do teu seio
Filipe Zau
Do livro “Encanto de um Mar que eu Canto” (1996)
Efemérides
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