De 3 a 16 de Setembro de 2012 | Nº 12 | Ano 1 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 Reabriu o Museu regional do Dundo PATRIMÓNIO CULTURAL Pag. 14 - 15 Pag. 4 - 9 FESTINETO Agostinho Neto formação e ideário de um intelectual orgânico africano “Em Agostinho Neto, qualidades pessoais como audácia, orgulho e auto-estima enquanto africano, a assunção do compromisso político e as formulações teóricas sobre a libertação e o nacionalismo traduzem o culminar de um longo processo de formação.” ECO DE ANGOLA Pag. 2 Canção do destino, Kama Sywor Kmanda (poeta congolês) ARTES Pag. 18-19 Da Xicala à Mutamba: contrastes de Luanda DIÁLOGOINTERCULTURAL Pag. 24-25 Francisco Dia Costa Alegre Internacional “Não somos puros, mas sim uma mestiçagem muito complicada” da Memória do Tráfico de Escravos e da sua abolição Pag. 29 2 | ECO DE ANGOLA 3 a 16 de Setembro de 2012 | Kama Sywor KAMANDA (poeta congolês) Cultura Canção do destino Vou onde me leva o vento da esperança e sigo o astro das existências incompletas. A canção do destino oprime a humanidade com os choros dos crentes. Livro dos mortos, orações dos discípulos, o rio se afasta com a minha languidez. Oh palavra sagrada prolonga a tua liberdade até à raiz dos amores verdadeiros. O mestre bêbado, o comandante louco, a minha ilusão absoluta de imitar os deuses, te oferta, oh mulher, levada pelo arrebatamento dos sonhos e a vertigem das delícias sensuais, a imortalidade condicional. Miragem de todos os tempos, mar onde se bebem todas as paixões, composição natural do belo, Ah! Como o sol de todas as vidas e o sangue de todos os desejos, tu simbolisas os milagres dos dias! O teu prazer vencido, as tuas ambições reveladas e a tua sombra penetrada, encontras refúgio na alquimia dos sonhos. Infelizmente, ocultei minhas lágrimas na pedra quando os teus olhos se abriram ao pavor trágico do declínio de coisas. Os rios vastos da fé inundam a minha alma afligida e tremulante no fluxo e refluxo do sonho como uma foice de ouro no fundo de uma queda de água. E sobre o meu corpo passam e repassam as águas da História. (in ‘Les Résignations’, tradução de José L. Mendonça) Kama Sywor KAMANDA, poeta, escritor, contador de histórias, dramaturgo; nascido em Luebo, na República Democrática do Congo, em 11 de Novembro de 1952. Diploma do Estado em Literatura, 1968; diploma em Jornalismo, Escola de Jornalismo, Kinshasa, Congo, 1969; diploma em Ciências Políticas, Universidade de Kinshasa, Congo, 1973; licenciatura em Filosofia e Humanidades (menção), Universidade de Kinshasa, Congo, 1975; estudos de Direito, Universidade de Liège, 1981. Conferencista convidado em várias universidades no mundo e autor de críticas culturais e políticas. Traduzido para inglês, italiano, japonês e chinês, recebeu o reconhecimento internacional da Academia Francesa (Prémio Paul Verlaine e Premio Théophile Gauthier), Grande Prémio Literário da África Negra, Prémio Melina Mercouri, Associação dos Poetas e Escritores Gregos, Poeta do Milénio 2000, Academia Internacional dos Poetas, Índia, entre outros. Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras Um jornal quinzenal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento. Nº 12/Ano I/ de 3 a 16 de Setembro de 2012 E-mail: [email protected] / Telefone e Fax: 222 01 82 84 CONSELHO EDITORIAL Director e Editor-chefe | José Luís Mendonça Editor de Letras | Isaquiel Cori Estudos, Recensões e Resenhas | Coimbra Adolfo (Matadi Makola) Assistente Editorial: | Berenice Rocha Fotografia | Paulino Damião (Cinquenta) e Arquivo do Jornal de Angola Arte e Paginação | Tomás Cruz, Sandu Kaleia, Ines Quingando e Alberto Bumba COLABORAM NESTE NÚMERO: Angola Emanuel Caboco, Filipe Zau, J.A.S. Lopito Feijóo K., João N’gola Trindade, Joaquim Aguiar, Johnny Kapela, Luís Kandjimbo, Nilton André, Norberto Costa, Patrício Batsîkama, Simão Souindoula, Ximinya Cabo Verde | Nuno Rebocho Brasil | Antônio Moura, Salgado Maranhão República Dominicana | Carlos Hernández Soto FONTES DE INFORMAÇÃO: AGULHA Revista de cultura, São Paulo, Brasil Correio da UNESCO, Paris, França AFRICULTURES, Portal e revista de referência das culturas africanas, Les Pilles, França MODO DE USAR & CO., revista de poesia sonora e visual, em vídeo, e também escrita. Editada por Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domenec, Rio de Janeiro, Brasil NORMAS EDITORIAIS O Jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serão comunicados aos autores. Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem, ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também num ficheiro separado. 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Neto afirma que partia da sua terra natal “afagando o dedo da insegurança”, deixava para trás o seio materno da Mãe-África, no qual se acostumara a beber, na sua vivência de homem negro estigmatizado pelo colonialismo, o manancial da Cultura, que lhe conferia a emancipação (embora condicionada aos átrios da alma) pela via do humanismo, porta de entrada da igualdade universal. A abertura do poema desenha um quadro macabro biovegetal e psicológico de sujidade, podridão das águas do rio Kwanza, transbordante de troncos e vísceras, onde paira o medo. E o poeta “fugia do verde/ do verde-negro das palmeiras/ da minha mocidade.” Numa estrofe desse longo poema, na penúltima estrofe, Neto diz, agora já com entusiasmo e fé: “E nos gritos embrionários dos velhos mundos/ tudo revive/esta dramática mocidade de reencontro/tudo revive em peitos largos de ansiedade/ofegantes à força da verdade/alicerçados no imperecível.” A visão das palmeiras inserida no poema de A. Neto conduz o leitor a uma aproximação estético-futurista com os versos do poeta Ernesto Lara Filho, que, como Neto, também constrói signos de um ideário que franqueia as portas do individualismo criador para a alegoria do colectivo: «Nós iremos, nós também/ Minha mãe/ pisando o capim queimado/ pisando a areia das praias/ atravessando os desertos/ Caminhando pelas lavras/ e derrubando florestas: Nós iremos, nós também plantar mangueiras na Lua.” O “verde das palmeiras” é retomado aqui, em toda a sua simbologia de esperança, fé, juventude e força, mas também fruto e tempo de festa, em suma, a idiossincrasia de todo um povo que fez com que o poeta não se deixasse alienar pelos caminhos do exílio e retroalimentasse a chama da luta com a soma da africanidade que lhe corria nas veias. A gesta gloriosa que se seguiu a essa fuga “do verde das palmeiras” da mocidade foi de uma estatura gigantesca e única na História de África. Nas horas do sofrimento mais íntimo, encerrado entre as grades da prisão, o poeta visionava a paisagem da sua terra e escrevia: “O verde negro das palmeiras tem beleza!” Passados que são 56 anos desde a partida de Neto para uma gesta que culminaria com o içar da bandeira no largo 1º de Maio (hoje da Independência) no dia 11 de Novembro de 1975, nós, os poetas da Angola livre, recolhemos no verde-negro das palmeiras da nossa terra, aquela “estratégia épica, colectiva, para o povo angolano e um sentido pragmático da história”, como bem referenciou o professor Pires Laranjeira. Eis-nos, pois, homens deste futuro poetizado em versos magníficos por aquele que partiu um dia “sorridente e triste/deixando o espírito espezinhado nos currais abandonados”, eis-nos dignificados aqui e agora, com as mãos cheias dos signos que ele nos legou indo “para mais alto”, até à Lua, onde a alma do poeta conseguiu plantar não só mangueiras, mas também “o verde-negro das palmeiras”. 2 3 Sumário ECO DE ANGOLA Canção do destino | Kama Sywor KAMANDA (poeta congolês) Plantar palmeiras na lua | José Luís Mendonça FESTINETO Agostinho Neto: formação e ideário de um intelectual orgânico africano | Luís Kandjimbo Dia do Herói Nacional - A marcha, a navalha de Agostinho Neto | Johnny Kapela PATRIMÓNIO CULTURAL Dondo: uma vila que persiste ao tempo e à memória | Emanuel Caboco Reabriu o Museu Regional do Dundo: a primeira e maior instituição museológica de Angola | Joaquim Aguiar LETRAS Os longos dias de resistência (a estreia de Kanda) | J.A.S. Lopito Feijóo K. Mbânza Kôngo entre 1491-1885 | Patrício Batsîkama ARTES Da Xicala à Mutamba: contrastes de Luanda | fotografias de Paulino Damião (50) GRAFITOS NA ALMA A introdução das línguas maternas angolanas no sistema de ensino e a democratização da cultura | Norberto Costa Será a religião um instrumento de dominação? | João N’gola Trindade DIÁLOGO INTERCULTURAL Francisco Costa Alegre: “Não somos puros, mas sim uma mestiçagem muito complicada” | Matadi Makola Jean-Joseph Rabearivelo (1901 - 1937). Arte longa, vida breve |Antônio Moura Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua abolição |Carlos Hernández Soto O Amado do Brasil |Salgado Maranhão Elinga Teatro é chamariz - Mindelact: arranca no Mindelo durante 8 dias |Nuno Rebocho BARRA DO KWANZA Um cinturão | conto de Graciliano Ramos NAVEGAÇÕES Kudilonga - O lápis da menina-professora | Ximinya Mar de Margaridas | Filipe Zau 3 a 16 de Setembro de 2012 | 4| Cultura Luis Kandjimbo Agostinho Neto: formação e ideário de um intelectual orgânico africano Introdução Três proeminentes intelectuais nigerianos fazem alusões ao pensamento e acção de Agostinho Neto, associan- do-lhe circunstâncias que convocam a condição africana.Em 1960, falando da situação do escritor africano na Conferência Afro-Escandinava de Escritores, em Estocolmo, Wole Soyin- ka toma como exemplo o escritor angolano, quando se refere ao contexto desumanizante vivido no século XX. No seu horizonte estão certamente as experiências de privação da liber- dade por que tinha passado Agostinho Neto cuja notoriedade pública suscitara uma campanha internacional apoiada por intelectuais de diversas origens. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 Em 1981, a revista Okike (An African Journal of New Writing), publicada em Nsukka, Anambra State, sudoeste da Nigéria, sob a direcção editorial de Chinua Achebe, presta uma homenagem a Agostinho Neto, dedicando-lhe o seu número 18, em que se destaca o poema escrito pelo eminente escritor nigeriano. Num texto consagrado à descolonização da teoria e da crítica africana, publicado em 1990, na revista americana Research in African Literatures, o professor nigeriano Biodun Jeyifo considerava que os textos doutrinários de Agostinho Neto sobre a cultura nacional e a literatura podiam pertencer à categoria do «discurso literário nacionalista». Trata-se de textos de discursos proferidos num contexto institucional, por ocasião da tomada de posse dos órgãos directivos da União dos Escritores Angolanos. Em Agostinho Neto, qualidades pessoais como audácia, orgulho e autoestima enquanto africano, a assunção do compromisso político e as formulações teóricas sobre a libertação e o nacionalismo traduzem o culminar de um longo processo de formação. A avaliação de tais qualidades exige um conhecimento da genealogia do seu pensamento. O momento genealógico inicial há-de situar-se na década de 40 do século XX. Aos efeitos socializadores dos meios de referência associa-se um programa que começa a concretizar-se a partir da publicação de dois textos de opinião em O Estandarte, jornal da Igreja Metodista, nomeadamente A Nova Ordem Começa Em Nossa Casa e A Paz Que Queremos, entre 1944 e 1945. Mas é com Instrução ao Nativo, publicado igualmente em O Estandarte em 1945 e com Uma causa psicológica: A marcha para o exterior” e Uma necessidade, publicados no jornal O Farolim, em 1946, que o discurso nacionalista revela as marcas do nativismo angolano das primeiras décadas do século XX. Justifica-se, por issso, o desenvolvimento de uma abordagem que privilegie a genealogia do pensamento, no quadro mais amplo da história intelectual de Angola. Angola nas primeiras décadas do século XX: o contexto político e social Durante a primeira década do século XX registam-se factos políticos de relevo que produzem fortes impactos na sociedade colonial angolana. A implantação da República em Portugal, em 1910, e a aprovação do Acto Colonial, em 1930, no contexto político do Estado Novo em Portugal, darão lugar a um conjunto de reformas políticas e administrativas nos territórios coloniais, incidindo particularmente sobre o estatuto das colónias, a imprensa e a educação. A institucionalização do ensino secundário oficial ocorreu apenas em 1919 com a criação do Liceu Salvador Correia, em Luanda. Tal facto deve ser assinalado. Representa um momento de viragem na formação das elites angolanas, no âmbito de um processo que corresponderia às necessidades de uma administração moderna, ao abrigo dos valores republicanos de que decorrem o exercício efectivo de direitos e liberdades. O surgimento de uma camada social de angolanos que se pretende afirmar como uma elite que toma consciência da situação de dominação colonial estará na origem do desenvolvimento do jornalismo e da literatura nesse período. Portanto, o emprego e a ocupação de cargos no funcionalismo público, o associativismo, a propriedade de jornais e a escrita (literária e jornalística) constituíam quatro dos mais importantes instrumentos da defesa dos interesses angolenses que revelam bem a recepção do republicanismo e das correntes estéticas e ideológicas que dominam os panoramas literários brasileiros, portugueses e europeus em geral. Estes são os vectores em que se analisa o nativismo literário angolano. Em 1922, Catete, a sede da circunscrição civil de Icolo e Bengo, tinha acabado de ser abalada por uma Revolta Nativista Camponesa que eclodira em Fevereiro. O pastor e professor Agostinho Pedro Neto, seu pai e um catequista Manuel André, ambos da Igreja Me- |5 todista, apoiando a revolta, eram subscritores de um abaixo-assinado, datado de 10 de Fevereiro. O encarregado na Missão Americana em Mazozo, Sebastião Gaspar Domingos, envolvido na colecta de dinheiro destinado ao advogado, fora alertado para que se afastasse do turbilhão da revolta por ordem do bispo Robert Shields, bispo da Igreja Metodista e Director das Missões Americanas. O mentor intelectual da Revolta Catete era um advogado provisionário, jornalista, escritor e dirigente de associações nativistas. Por essa razão, foi indiciado como principal arguido de um dos mais célebres processos de investigações policiais que tiveram lugar nas primeiras décadas do século XX. Trata-se de António de Assis Júnior. Por ocasião da vaga de prisões, buscas e apreensões, motivadas pelos Acontecimentos de Catete, António de Assis Júnior, com 44 anos de idade, era director do conhecido jornal O Angolense. Preso em Fevereiro de 1922, como arguido do processo de averiguações administrativas nº 293, é mantido em prisão durante três meses, sem culpa formada. Quatro dias depois eram detidos os trabalhadores «indígenas» de Catete que se tinham deslocado a Luanda para apresentar reclamações ao Alto-comissário da República, assessorados por esse tribuno conhecido como «advogado dos nativos». Negando qualquer papel de instigador e autoria de prelecções de propaganda contra o governo, António de Assis Júnior reconhecia que tinha sido contactado para redigir uma exposição, através da qual os operários agrícolas «pretendiam que fossem ouvidos sobre os castigos corporais que em Catete lhes são aplicados, prisões arbitrárias que sofrem, trabalho obrigatório que executam por cinquenta e dois dias em casas particulares, retribuição de vinte centavos diários que recebem no Posto Algodoeiro, abolição do pagamento de Imposto Indígena a crianças de dez e doze anos, etc.». Antes da deslocação dos referidos camponeses a Luanda, António de Assis Júnior, na qualidade de director do jornal O Angolense, tinha redigido e publicado um artigo acerca desses acontecimentos. Sobre ele pesava então a acusação da prática de um crime de tentativa de «revolta indígena». Para que não lhe fosse imputada qualquer responsabilidade enquanto estivesse preso, apresentou dois requerimentos ao Alto-comissário de Portugal em Angola em que constrói argumentos de uma retórica de ilibação. As actividades desenvolvidas por António de Assis Júnior, entre 1920 e 1922, permitem concluir que era o líder de um grupo numeroso. As buscas e apreensões de que tinha sido alvo, tinham permitido recolher documentos diversos, arrumados em oito volumes. As autoridades coloniais identificavam aí a existência de uma causa remota. Na verdade, a causa era bem mais antiga do que parecia. A conclusão das averiguações instauradas em 1922, apontavam para a iminência de uma rebelião fundada numa doutrina e propaganda nativistas cujos focos de agitação se espalhavam pelas cidades e regiões mais importantes do território, tais como Benguela, Cabinda, Luanda, Malanje, Mossamedes, Ndala Tando. Com uma rede impressionante de contactos que culminava com a publicação de jornais, entre os quais A Lunda, Angolense e A Verdade. Entre as figuras implicadas destacam-se: António de Assis Júnior (director de O Angolense), António Joaquim de Miranda (que se encontrava desterrado em Cabinda, antigo colaborador de A Lunda e Era Nova de Malanje), A. Figueiredo, Custódio Bento de Azevedo (Sassa, Alto Dande), Gervásio Ferreira Viana ( Ndala Tando), João Pedro de Sousa (Benguela), José Carlos Oliveira ( Mossamedes, ex-presidente da Liga Angolana), Narciso Espírito Santo (santomense, director de A Verdade), padre Manuel (Paço Episcopal em Luanda). Durante os anos 20, registam-se restrições e inibições ao exercício das liberdades como resultado da implantação da ditadura com o Estado Novo em Portugal. É sobre este fundo marcado por um «longo silêncio» que António de Assis Júnior (1878-1960), após a publicação de Relato dos Acon- 3 a 16 de Setembro de 2012 | 6| tecimentos de Dala Tando e Lucala (1917), uma narrativa e ao mesmo tempo um testemunho sobre a repressão de acções de reivindicação, a que se denominou revolta dos nativos, cujos actores constituíam um grupo da elite local de que ele próprio fazia parte, dá à estampa em 1934 O Segredo da Morta, o romance inaugural angolano. Observados os traços estruturantes do pensamento e das ideias produzidas em Angola nesse período, da geração de Assis Júnior não se transita directamente para a geração de Agostinho Neto. De resto, bastará notar a distância cronológica que separa as datas de nascimento de ambos os autores. Há pelo menos uma geração intermédia representada pelo ensaísta Lourenço Mendes da Conceição. Natural da vila da Muxima (Kakungu), nasceu em 29 de Dezembro de 1896, tendo falecido em Luanda em 29 de Junho de 1970. Publicou: Três Mestres da Minha Predilecção (Lisboa, 1948); Porque se Escreve Luanda com “U”, (Luanda, O Apostolado, 1943). 1922-1930. De Kaxicane a Luanda Agostinho Neto nasceu às cinco horas do dia 17 de Setembro de 1922 em Kaxicane, localidade da circunscrição civil de Icolo e Bengo cuja sede se encontrava situada em Catete. Nessa data o pai era pastor da chanada «Missão Americana de Luanda», tendo sido ordenado presbítero em 1925. Em 1930 a família fixa residência no Bairro Operário, em Luanda, onde seu pai assumiria a responsabilidade de chefiar o colectivo local de pastores da Igreja Metodista. Crónica da formação e morte do pai Os estudos primários e liceais decorrem entre 1931 e 1944. Com o jornal O Estandarte podemos elaborar uma crónica da sua formação em Angola. Na edição de 3 de Fevereiro de 1934, refere-se que tinham concluído «com brilho os seus estudos primários nos exames efectuados na Escola Primária nº7 de Sousa Coutinho, os alunos da Escola Primária Evangélica desta cidade, com as classificações seguintes: Américo de Souza, 18 valores (distinto); António Agostinho Neto, 18 valores (distinto). Já em Janeiro de 1935, o mesmo jornal, dava conta de um outro facto. A transição para a 2ª classe do Liceu desta cidade dos «meninos Alberto Marques e António Agostinho Neto. A estes meninos que foram felizes nos seus estudos as nossas felicitações». Os referidos alunos a que se juntava o nome de Simão Toco, no ano lectivo de 1936, como testemunha O Estandarte de Março de 1936 estavam matriculados na 2ª classe do Liceu. A década de 30 chegava ao fim, quando em Fevereiro de 1939 se anuncia a realização com sucesso do exame do 1º ciclo (3º ano) do Liceu do menino António Agostinho Neto com Cultura Agostinho Neto com os pais e irmãos (último em pé do lado direito) a classificação de 13 valores. Conclui com 15 valores o Curso de Ciências do 7º ano do Liceu nos exames realizados em 1944, anuncia com orgulho O Estandarte de Fevereiro de 1944, nº 95: «Nos exames do 3º ciclo realizados em Janeiro do corrente ano, concluiu o 7º ano de Ciências com 15 valores, o nosso prezado irmão na fé, sr. António Agostinho Neto […]». A redacção de O Estandarte de Novembro e Dezembro de 1943 (nº92/93) destaca o nome de Agostinho Neto na galeria de colaboradores permanentes: «Desde a sua fundação-1933 até 1943 teve os seguintes colaboradores: […] colaboradores permanentes […] António Victor de Carvalho, António Agostinho Neto […] Domingos F. da Silva, Gaspar de Almeida». Setes meses antes da sua integração nos quadros do funcionalismo público dos serviços de saúde, o seu estado de doença fora noticiada por O Estandarte de Junho/Julho, 1944, (nº99/100): «Já se encontra felizmente melhor dos seus padecimentos o nosso prezado irmão e colaborador, sr. António Agostinho Neto». Durante o ano de 1946, O Estandarte relata igualmente a doença, a agonia e a morte do pai de Agostinho Neto, o Reverendo Agostinho Pedro Neto. O Estandarte de Maio, 1946, nº121 escreve: «Há dois meses que o nosso prezado irmão Rev. Agostinho Pedro Neto, pastor do circuito dos Dembos, jaz no leito gravemente doente. Os clínicos têm-no rodeado com os seus cuidados, dispondo-lhe todos os recursos do seu saber; os crentes que estão ao facto do estado desse nosso querido irmão estão orando […]». Na edição nº 121 de Maio de 1946, lê-se: «Tivemos o prazer de abraçar a este nosso prezado irmão e apreciado colaborador, vindo de Malange, a fim de visitar o seu querido Pai, que se encontra bastante doente». Por fim a notícia da morte. O Estandarte de Junho, 1946, nº122, escreve: «Faleceu o Rev. Agostinho Pedro Neto. Depois de um sofrimento de cerca de três meses, dormiu no Senhor, em 21 do corrente mês, na sua residência, Bairro Operário, o nosso querido irmão Rev. Agostinho Pedro Neto, Pastor do Circuito dos Dembos». O reverendo Agostinho Pedro Neto era natural de Kalomboloca. Foi pastor evangélico e professor primário em Kaxicane onde foi colocado em 1918.Em 1925 foi ordenado Presbítero. Do funcionalismo público à actividade tribunícia Em 1944, O Estandarte, na sua edição de Novembro/Dezembro, 1944, nº105, anunciava que Agostinho Neto iria ocupar o seu cargo no funcionalismo púbico para o qual tinha sido nomeado. E, no comboio do dia 3 de Novembro, seguira para Malange, «o nosso benquisto irmão, Sr. António A. Neto, cuja ausência sentimos, pois que além de possuir elevados dotes, foi também um assíduo colaborador do nosso jornal. Esperamos que de Malange, continue a honrar «O Estandarte», com a mesma colaboração». No ano seguinte, na sua edição nº118 de Dezembro de 1945, O Estandarte, dava uma outra notícia: «Estando de licença disciplinar, veio passar o Natal ao seio da família, vindo de Malange, o nosso prezado irmão e amigo, António Agostinho Neto, ilustre funcionário do Quadro de Saúde, a quem tivemos o prazer de abraçar». Meses antes seu irmão, Pedro Agostinho Neto tinha sido colocado como amanuense nos Serviços de Saúde e Higiene do Bié, como se lê em O Estandarte, Setembro/ Outubro de 1944, na edição nº104. Por sua vez Agostinho Neto seria igualmente transferido para o Bié, logo depois. Portanto, Agostinho Neto, pertencendo à primeira geração pós-nativista angolana, inscreve-se por direito próprio na lista de legatários da tradição nativista em que perfilam ilustres tribunos e publicistas angolanos. Contava então 23 anos de idade, quando escreveu o seu primeiro texto de pendor pós-nativista. Nas décadas de 30 e 40, frequenta os meios socializadores protestantes existentes em Luanda, designadamente, a escola da Igreja Metodista e o jornal O Estandarte. O seu percurso escolar é narrado no referido jornal, como vimos, através de notícias a respeito dos seus êxitos escolares e outros factos como a doença e a morte do pai, entre 1934 e 1946. Na primeira metade da década de 40, Agostinho Neto publica alguns poemas e artigos de inspiração religiosa no jornal O Estandarte. Neste mesmo jornal pontificava seu pai, publicando textos como O Segredo da Paz em 1936 e É preciso divertir a Juventude Evangélica em 1944. Em 1940, publica O Segredo de Viver e em 1943 publica As multidões esperam em O Estandarte. De 1944 a 1959, escreve e publica artigos marcantes no âmbito da história intelectual angolana, a saber: A Nova Ordem Começa Em Casa (1944); A Paz que Esperamos (1945); Instrução ao Nativo (O Estandarte, 1945); Uma Causa Psicológica: a “Marcha para o Exterior” (1946); Uma Necessidade (1946); Da Vida Espiritual em Angola (1949, Meridiano) O Rumo da Literatura Negra (Centro Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 de Estudos Africanos, 1951); A propósito de Keita Fodeba (Angola, Revista da Liga Africana, 1953); Introdução ao Colóquio sobre Poesia Angolana (1959). O lugar de Malanje na consolidação dos ideais Das gerações de nativistas já referidas, Agostinho Neto recebe o testemunho pela mão de vários dos seus protagonistas, entre os quais merece referência José Manuel da Silva Lameira. Foi em Malanje que o jovem intelectual travou conhecimento com essa lendária figura do movimento nativista angolano, sucessivamente preso e desterrado para a Guiné-Bissau, Moçambique, Macau e Timor-leste, durante mais de uma década, de 1917 a 1938. No seu livro de memórias, Recordações Minhas, José Diogo Ventura conta que o «velho Lameira recebia na sua residência da «Kapopa», junto à Rua 15 de Agosto, muitas pessoas importantes que gostavam de o ouvir […] Lembro-me também de uma outra pessoa porque, mais tarde, veio a ser o primeiro Presidente da República Popular de Angola. Trata-se do Dr. António Agostinho Neto, na sua passagem por Malanje, ainda como aspirante dos Serviços de Saúde e Higiene». Os textos escritos provavelmente em Malanje e enviados para publicação em 1946 no jornal O Farolim ecoam ideais tributárias de conversas com José Manuel da Silva Lameira. É significativo o testemunho de Domingos Van-Dunem, então secretário de redacção desse jornal, a respeito das circunstâncias em que recebe a visita de Agostinho Neto. Tal gesto exprimia uma reacção ao comentário sarcástico relativamente às atitudes preconceituosas dos funcionários públicos formados no Liceu. Agostinho Neto que falava igualmente em nome de um amigo seu, Joffre Van-Dúnem, pretendiam «pedir explicações ao atrevido escriba». Numa entrevista que concedeu a Augusta Conchiglia, Agostinho Neto observa: «Também em Malanje vivi uma experiência magnífica. Fiz amizade com um grupo de pessoas que, em minha opinião, não se interessavam nada por política, enquanto para mim a situação de Angola impunha essa preocupação. Mas entre em contacto com os trabalhadores, com os contratados, e foi lá que eu senti verdadeiramente e com força a violência dos reaccionários portugueses. Os anos que vivi em Malanje com toda a certeza influíram muito na minha formação política». Actividade reflexiva e ideias recorrentes Marcado pela formação cristã e |7 evangélica, Agostinho Neto manifesta claramente os seus ideais, nos dois primeiros textos publicados em O Estandarte, nomeadamente A Nova Ordem Começa Em Nossa Casa e A Paz Que Queremos, entre 1944 e 1945. Lança aí o seu programa intelectual e define os contornos da sua personalidade. É com Instrução ao Nativo, um outro artigo publicado em O Estandarte também em 1945, Uma causa psicológica: A marcha para o exterior” e Uma necessidade, estes publicados no jornal O Farolim, em 1946, que o nativismo da fase inicial se revela no pensamento deste autor. Se confrontarmos as ideias recorrentes dos dois textos anteriores, observa-se uma coerência no plano da articulação. Uma das ideias nucleares em Instrução ao Nativo consiste na denúncia da injustiça, reivindicando para os nativos a qualidade de beneficiários, pois a instrução é necessária «ao povo de rodas as regiões de Portugal». Agostinho Neto levantava aqui «o problema do aumento do nível de instrução aos naturais». Em seu entender, é visível a discriminação cuja abolição defende. Por essa razão, observa: «À parte o desenvolvimento escolar que se vem notando nos grandes aglomerados de população europeia e o interesse posto na educação da criança branca, nada, no sentido de se instruir o natural tem sido feito». Como exemplo de iniciativas que contribuíam para a alteração desse estado de coisas, aponta o que faziam as «Missões Religiosas», particularmente as «Missões Evangélicas» de cujas escolas «têm saído muitos dos nativos que hoje exercem funções públicas, são professores, pastores de igreja e uma boa parte da massa do operariado nativo, bem como alguns europeus». Diante dos exemplos das igrejas que entretanto se debatiam com problemas de ordem financeira e a indiferença das autoridades do chamado «Império colonial», Agostinho Neto entendia que mais poderiam estas estas fazer «desde que haja verdadeiro interesse em resolver-se, ou, pelo menos em aumentar o número de possibilidades de o nativo se instruir, contratar mais professores e abrir mais escolas». Continuando a revelar a sua qualidade de membro da igreja evangélica, sublinha o papel que a sociedade metodista podia desempenhar com o fundo projectado para beneficiar os nativos. Mas não fora consentido pelo governo colonial. Os textos publicados em O Estandarte, poderiam eventualmente ter sido escritos pelo autor tendo exclusivamente como destinatários a comunidade metodista e evangélica, apesar de o seu teor ser de alcance mais geral. Uma Causa Psicológica: A ‘Marcha’ PUBLICIDADE 3 a 16 de Setembro de 2012 | 8| para o Exterior marca a sua colaboração num jornal que, na década de 40, seguia ainda as tradições do século XIX. Trata-se de um artigo publicado no jornal O Farolim em 1946. Lido e situado no seu contexto, é um texto revelador de elevada maturidade. Com ele Agostinho Neto dá consistência a ideias anteriores. Mas evolui, na medida em que diagnostica a falta de unidade entre «os elementos da classe nativa» que têm tendência para se isolarem uns dos outros. Palpitando em si um certo tipo de ideal, Agostinho Neto constata o perigo que espreita: «É paradoxal a desunião entre nós, nativos, que, para não citar outros aspectos do interesse comum têm que lutar coesos pela sua economia e pelo aumento do seu nível cultural.» Do seu ponto de vista, a fraqueza da classe nativa reside na «psicologia distorcida» que se manifesta no cego seguidismo das modas entre os jovens. Mas tal facto não é fortuito, pois «a desunião entre os nativos não é posterior à fabricação em série do rapaz moderno». Por conseguinte, a desunião é simultânea. Ao mesmo tempo que «a mulher africana moderna assimilando a inobjectividade da vida, dissemelhando-se da avózinha pacatamente crocheteante, adoptando a despreocupação, o bâton, a sola de cortiça e a saia ascendente; deixou-se apenas arrastar pelo movimento geral que transformou o homem, que (digamolo de passagem) é difícil ser- se rebelde!». A distorção da psicologia colectiva e a desunião não ocorrem ao acaso. Tem a sua causa fundamental na estrutura do ensino ministrado. «Os nativos são educados como se tivessem nascido e residissem na Europa. Antes de atingirem a idade em que são capazes de pensar sem esteio, não conhecem Angola. Olham a sua terra de fora para dentro e não ao invés, como seria óbvio. Estudam na escola, minuciosamente, a História e Geografia de Portugal, enquanto que, da Colónia, apenas folheiam em sinopses ou estudam levemente». E qual é a consequência disso? Agostinho Neto responde: «Os indivíduos assim formados têm a cabeça sobre vértebras nativas, mas o seu conteúdo escora-se em vértebras estranhas, de modo que as ideias, as expirações do espírito são estranhas à terra. Daí o olhar-se esta, a sua gente e hábitos, o mundo que os rodeia, como estranhos a si – de fora (…)» «Produz-se no nativo uma distorção na sua personalidade que se reflecte na vida social, desequilibrando-a.» Semelhante atitude acaba por estar em consonância com o reducionismo ocidental e eurocêntrico: Lá fora há o hábito de depreciar quanto é nativo; e os moços nativos cujos espíritos derivaram para o exterior e em quem está atinente um quantum de vaidade (como em qualquer ser humano) têm vergonha em considerar- Agostinho Neto com os colégas da Casa dos Estudantes em Coimbra, Portugal se incluídos naquela esfera depreciada e não somente não a auxiliam como procuram desprezar as iniciativas de carácter puramente nativo […] É de igual modo em Uma causa psicológica: a marcha para o exterior que lemos o seguinte trecho: A minha pouca experiência impediria que a voz chegasse ao céu se eu desse conselhos. Acho, porém, que a mezinha apropriada para anular os efeitos perniciosos bastante do eurotropismo seria começar por ‘descobrir ’ Angola aos novos, mostrá-la por meio de uma propaganda bem dirigida, para que eles, conhecendo a sua terra, os homens que a habitam, as suas possibilidades e necessidades, saibam o que é necessário fazer-se, para depois querer». Os textos escritos por Agostinho Neto na segunda metade da década de 50, designadamente, Rumo da Literatura Negra e Introdução ao Colóquio sobre poesia Angolana, representam o registo de um pensamento enriquecido pela largura de horizontes que, superando os discursos tipicamente nativistas, não são rigorosamente negritudinistas, como parece ser o entendimento de Pires Laranjeira, numa eqívoca generalização acerca da existência da «negritude africana de língua portuguesa». Em Introdução ao Colóquio sobre Poesia Angolana, Agostinho Neto escreve: «Entre nós, digo, em Angola e na Metrópole, defendeu-se e combateu-se este conceito».Trata-se do conceito de negritude nos termos formulados por Leopold Senghor. No discurso proferido na Universidade de Dar-EsSalam,em 1974, retoma esse tópico, afirmando o seguinte: «O conceito literário de negritude, nascido das correntes filosófico-literárias que fizeram a sua época, com o existencialismo e o surrealismo, pôs com acerto o problema da consciencialização cultural do homem negro no mundo, independentemente da área geográfica em que ele se dispersou. Conjuntamente com a ideia do panafricanismo, o conceito de negritude, começou a um certo momento, a falsear o problema negro». Inscrição social de um intelectual orgânico No mês de Setembro de 1947, Agostinho Neto embarca para Lisboa. E no ano lectivo 1947-48, era estudante de Medicina, matriculado na Universidade de Coimbra. Após a conclusão do 3º ano do Curso, em 1950, vai prosseguir os estudos em Lisboa. É nesta cidade que sofre em 1952 a primeira das sucessivas prisões por razões de ordem política. Aos vinte e oito anos de idade, revelava uma personalidade audaz e combativa, uma forte consciência cívica e profunda fidelidade aos valores africanos, inequivocamente comprometidos com as lutas contra o fascismo e o colonialismo português. A maturidade política alcançada vem coroar um longo processo de formação iniciado em Angola Cultura que pode ser ilustrado por vários testemunhos. Um deles é o de Mário António. Recorrendo à memória, reporta-se a uma manifestação estudantil de 1945, na ressaca da II Guerra Mundial, que percorrera a zona da cidade alta em Luanda, contando com a presença dois «ex-alunos» do Liceu Salvador Correia, «vestidos à adulta, com fatos azuis: um homem magro, já trabalhando em repartição pública». Era Agostinho Neto. O outro «atlético e sorridente». Era Américo Boavida. Em 1951, é criado o Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola. Segundo Mário António, «o que se fazia em Luanda naturalmente ganhava corpo intelectual com a participação de ausentes, entre eles, como se verá Mário Pinto de Andrade.» Confirma-o a carta de António Jacinto a Agostinho Neto. No mesmo ano os estudantes africanos residentes em Lisboa constituem um grupo de reflexão a que designaram Centro de Estudos Africanos de que fazem parte, entre outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, o grupo de pensamento mais politizado. A última sessão do Centro realizou-se em 11 de Abril de 1954. Referindo-se à actividade de Agostinho Neto, na sessão de 23 de Dezembro de 1951, diz Mário Pinto de Andrade: «[…] Agostinho Neto, em associação com Humberto Machado, tinha tratado as Migrações dos negros africanos, compulsivas e não compulsivas, aculturação dos negros africanos». Mário Pinto de Andrade faz igualmente alusão a outros textos de Agostinho Neto, tais como Rumo da Literatura Negra, uma crítica consagrada ao romance Uanga de Óscar Ribas, em que se debruça sobre a noção de ambaquista, além de traduções de poemas de Senghor. Quanto às influências desse grupo, Mário Pinto de Andrade destaca os escritores negros americanos (Countee Cullen, Langston Hughes, Richard Wright), poetas Antilhanos, Aimé Césaire, o cubano Nicolás Guillén, Batouala de René Maran . Entre as leituras de referência há que reter o nome de Keita Fodéba cuja peça «Mestre-Escola» foi encenada pelo Centro de Estudos. E dele fala Agostinho Neto num artigo de 1953, publicado na revista Angola da Liga Nacional Africana. No dizer de Mário Pinto de Andrade, é «no Centro de Estudos Africanos que nasce a primeira ideia de criação de um grupo político baseado naqueles que estavam mais empenhados». Mais adiante, acrescenta: «[…] Éramos portanto Amílcar, Neto, Noémia de Sousa e Alda do Espírito Santo. Mas esta organização tinha um nome particular». Entretanto o Centro começa a desintegrar-se em 1953. Nesse ano participa no Festival Mundial da Juventude Democrática e no III Congresso Mundial dos Estudantes, realizados em Bucareste e Varsóvia, respectivamente. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 A criação do Clube Marítimo Africano, em 1954, é uma iniciativa de estudantes e trabalhadores embarcadiços africanos, entre os quais se destaca Agostinho Neto que abandonara Coimbra, passando a residir em Lisboa como estudante da Faculdade de Medicina. As relações de sociabilidade com as classes trabalhadoras estão no centro das suas preocupações, tendo fixado residência no bairro da Graça, onde habitavam os operários marítimos africanos. Até ao fim da década de 50, a trajectória biográfica de Agostinho Neto permitia já identificá-lo como um homem de letras, irremediavelmente comprometido com a luta anti-colonial e afirmação da cultura africana. A categorização sociológica como intelectual orgânico decorre desse perfil dominado pelas ideias, vinculando-o a actividades que desafiam directamente o poder colonial, tais como a participação em redes de organizações políticas portuguesas como o MUD-Juvenil. O prestígio intelectual de Agostinho Neto aumenta progressivamente. Noémia de Sousa, relata que após a sua primeira prisão realizaram-se muitas reuniões, «uma série de gente» queria vê-lo, excepto o Francisco José Tenreiro. O seu activismo político e as ideias que o suportam permitem reconhecer que foi o primeiro intelectual orgânico e público da sua geração, tendo sido alvo de sucessivas prisões da política portuguesa, desde 1951. Em 1955, viria a ser condenado a dezoito meses de prisão pelo tribunal do Porto. Cumprida a pena, em 1957, já em liberdade, retoma os estudos. Obtém o grau de licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa em 1958. Regressa a Angola no ano seguinte, após especialização em Medicina Tropical.Abre o consultório médico em Luanda e envolve-se na actividade política clandestina. Após a sua eleição, em 1960, como líder do MPLA, no interior de Angola, volta a ser preso e deportado para Cabo-Verde, em trânsito por Bissau e Lisboa. Desencadeia-se uma campanha internacional para a sua libertação na qual participam intelectuais europeus como Jean-Paul Sartre.Transferido para a cadeia do Aljube em 1962, passa depois ao regime de residência fixa.Em 30 de Junho de 1962, concretiza-se a sua fuga de Portugal. Um ano depois, é eleito Presidente do MPLA em Kinshasa. O ideário da libertação nacional: entre o cultural e o político Para lá das dissensões políticas que abalaram o MPLA, na década de 60 e 70, dando origem ao afastamento de Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade, à Revolta Activa e à Revolta do Leste, Agostinho Neto não deixou de cultivar a sua paixão pelas ideias, atribuindo importantes tarefas aos intelectuais.Em concomitância com o |9 Encontro de Agostinho Neto com as autoridades tradicionais de Angola exercício da liderança política e enquanto chefe de Estado, desenvolve uma importante actividade reflexiva que deve suscitar o interesse de qualquer investigador da história contemporânea de Angola. Os discursos proferidos nas Universidades de Dar-Es-Salam (Tanzânia), em 1974 e Lagos (Nigéria), em 1977, a que se juntam outros proferidos na União dos Escritores Angolanos constituem as principais referências do discurso teórico sobre a libertação, o nacionalismo e a cultura. Longe de qualquer ambiguidade, Agostinho Neto, na sua veste de Chefe de Estado, continuava a defender os ideais de liberdade e dignidade do Homem Africano, não perdendo de vista o lugar dos intelectuais nos processos de mudança social.É por isso que o professor nigeriano Biodun Jeyifo considerava que os textos doutrinários de Agostinho Neto sobre a cultura nacional e a literatura podiam pertencer à categoria do «discurso literário nacionalista». Lamentavelmente, quando se procede ao estudo do pensamento sobre a libertação nacional em África, é raro ver o nome de Agostinho Neto inscrito no elenco de autores. Semelhante situação configura um caso de injustiça intelectual que importa reparar. Tal pretensão é manifestada pelo professor nigeriano Olúfémi Táiwò no texto dedicado à Filosofia Política Africana no Período Pós-Independência,publicado em A Companion to African Philosophy, editado pelo professor ganense Kwasi Wiredu. Olúfémi Táiwò inclui Agostinho Neto no elenco dos marxistas africanos que se afirmam após 1966. Com efeito, nas suas reflexões sobre a libertação nacional, Agostinho Neto introduz uma variante na abordagem do fenómeno. Em 1974, tomando como referência o ponto de vista de Amílcar Cabral , escreve: No fundo e como vários pensadores têm afirmado, a luta de libertação nacional é uma luta pela cultura. Mas eu creio que os laços culturais não evitam de modo algum a compartimentação política». E acrescenta, mais adiante: «Este tem sido um ponto equívoco em muitas manifestações ditas de libertação nacional. Ao pretender estabelecer claramente as fronteiras entre o cultural e o político, Agostinho Neto reafirma a sua identidade política com «a luta dos povos negros da América, lá onde se encontrem» e, ao mesmo tempo, considera que tal solidariedade deve conduzir à rejeição da «ideia de libertação negra». Por isso, conclui: «sem confundir origens com compartimentos políticos, a América é América, a África é África». Operando no quadro do pensamento panafricanista e no estrito respeito pelas experiências vividas pelos africanos e diásporas africanas, Agostinho Neto evita a generalização. Sublinha a transversalidade da cultura, mas considera que a sua dimensão política valoriza a diferença dos contextos em que tais experiências emergem. Apologia do debate e das ideias A apologia do debate e das ideias é uma eloquente expressão do modo como Agostinho Neto interiorizava as tarefas do intelectual, num país que acabava de alcançar a independência política. Por essa razão, entendia que «o escritor se deve situar na sua época e exercer a sua função de formador de consciência, que seja agente activo de um aperfeiçoamento da humanidade». Em 1979, sucessivamente, por ocasião da tomada de posse dos corpos gerentes da União dos Escritores Angolanos, realizada em Janeiro, e na sessão de encerramento da 6ª Confe- rência dos Escritores Afro-Asiáticos, realizada em Julho, defendia o debate de idieas. E sustentava-o nos seguintes termos: Penso que é necessário o mais alargado possível debate de ideias, o mais amplo possível movimento de investigação, dinamização e apresentação pública de todas as formas culturais existentes no País, sem quaisquer preconceitos de crácter artístico ou linguístico. Reitera esse pensamento, quando falava aos escritores africanos e asiáticos reunidos em Luanda, afirmando: Persistir na ideia do debate é sempre acertado, porquanto os homens têm necessidade de se exprimir, para não assumir a mentalidade burocrática que rapidamente se torna caduca e não é capaz de acompanhar o desenvolvimento da sociedade humana. Para Agostinho Neto o debate e as ideias são absolutamente essenciais à vitalidade das dinâmicas sociais e às exigências do conhecimento mais profundo do mundo que nos circunda. Semelhante necessidade pode ser sentida apenas por aqueles que atribuem valor à incessante indagação sobre a existência humana, rompendo os condicionalismos do lugar onde se situa o homem enquanto indivíduo. Sob os auspícios do «mais alargado possível debate de ideias» emergiu a geração das incertezas, a geração literária de 80. Num ambiente pouco fecundo do ponto de vista intelectual, a Brigada Jovem de Literatura de Luanda e outras Brigadas que lhe seguiram as pegadas em algumas províncias do país, nomeadamente, Huíla e Huambo, bem como grupos literários que se constituem nessa década, procuravam dinamizar as suas actividades literárias e reflexivas em torno dessa ideia seminal. 3 a 16 de Setembro de 2012 | 10 | Dia do Herói Nacional A marcha, a navalha de Agostinho Neto JOHNNY KAPELA (INTERNATIONAL NETWORKING BANTULINK) U ma vintena de encontros será organizada pela Fundação António Agostinho Neto (FAAN), no país e no estrangeiro, de 10 a 17 de Setembro, no quadro da celebração, este ano, da Jornada do Nacionalista–Mor angolano e do 90º aniversário do seu nascimento. Esta teia surgirá das sessões de lançamento, em Luanda, e de apresentação, nas capitais de todas províncias do país, da impressionante obra em cinco volumes, intitulada “Agostinho Neto e a Libertação de Angola, 1949 – 1974, Arquivos da PIDE-DGS”. Este programa que mobilizará cerca de quarenta historiadores e especialistas assimilados, será completado por várias actividades de carácter social, educacional, artístico, desportivo e recreativo, cujo essencial terá lugar em Catete, vila natal do “Sekulo”. Assim, registar-se-ão a oportunas e vitais campanhas de educação rodoviária, aconselhamento e testagem voluntária sobre o silencioso VIH Sida, aulas abertas, nas escolas primárias, à volta da obra de Maria Eugénia Neto, “A trepadeira que queria ver o céu azul”, projeções de filmes documentários, exibição de pecas de teatro, exposição de artes plásticas, concursos de fotografia e gastronomia tradicional. Assistir-se-á a vários torneios e provas desportivos nas modalidades tais como as do basquetebol, ciclismo, futebol de salão, xadrez, demonstrações equestres e para-quedismo desportivo. Seguir-se-ão os inevitáveis espectáculos de música e de dança, as passeatas motorizadas e as marchas populares, uma das quais irá até ao Mausoléu do “Doutor”. QUÍNTUPLO MEMORIAL Totalizando cerca de 5.000 páginas, o quíntuplo memorial, resultante de uma impressão de grande qualidade e de um sólido fabrico, encontra-se repartido em quadros cronológicos e é apresentado, em primus legitumus, por uma introdução geral da Presidente da FAAN, Maria Eugénia Neto. Numa metodologia abertamente pe- dagógica, e que permite fazer leituras circunstanciadas dos documentos da Secreta portuguesa, inseriu-se uma notável retrospetiva histórica de autoria de São Vicente, intitulado “Agostinho Neto e a liderança da luta pela independência de Angola, 1945 -1975)”. Seguem, na senda desta dinâmica didática, uma generosa ilustração iconográfica com o desenho do “Kilamba” por António Domingues e dezenas de fotografias. A contracapa da compilação reproduz a célebre tríptica fotografia, da Polícia Internacional (PIDE) do encarcerado, com cinco aprisionamentos e desterro para a ilha de Santo Antão, em Cabo Verde. O mapeamento da ação política, diplomática e militar do líder do Movimento dos Plebeus reforça a declinação pedagógica da coletânea. Os comoventes documentos de arquivos da Polícia secreta lusa, cedidos pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, constituem o essencial da obra e permitem compreender melhor, a partir de fontes primárias privilegiadas dos vinte cinco anos, a personalidade do “Mesene”, o seu inquebrantável sentimento nacionalista, as suas démarches de audácia, prudência e inteligência políticas, assim como de estratégia diplomática. Nota-se, entre as personalidades que apresentarão a compêndio, o historiador e perito da UNESCO, Simão Souindoula, que o fará, com Pedro Capumba, no dia 12 de Setembro, em Mbanza Kongo, na Província do Zaire. O mesmo será apresentado na Itália por Mbeto Traça e em Portugal (Lisboa, Porto e Coimbra), poro Paulo Vicente "Nzaji". Obra fundamental para a historiografia contemporânea de Angola, o monumental agrupamento arquivístico, ora editado, numa vontade absoluta de transparência histórica da Fundação do “Zambi Kilamba”, constitui, para o país mais um suporte para um bom conhecimento da ação corajosa, durante um quarto de século, do Pai da Independência. Cultura Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 DONDO Uma vila que persiste ao tempo e à memória O desafio que nos foi colocado para esta edição do Cultura remete-nos para a história, práticas e reflexões em torno de um dos já muito raros lugares-síntese, capaz de evocar o nosso passado, a nossa história e que por alguma razão se chama Dondo (Ndondu). A velha e histórica vila do Dondo, sede do município de Kambambe está situada a cerca de 200 quilómetros da capital do país, posicionando-se na margem direita do Kwanza e bem perto do limite do curso navegável do rio. Reza a história que lá foi parar Paulo Dias de Novais por volta de 1583 quando iniciava a sua caminhada através das águas do Kwanza, ao subir rumo à descoberta das lendárias minas de prata de Kambambe e de uma famosa feira Dondo, que, na época, já ocupava um espaço vital para a economia dos Mbundos assim como para as populações dos territórios vizinhos. A feira passa depois a ter, obviamente, interesse também para os portugueses e tomam seu controlo imediatamente. Porém, a verdade é que o protagonismo dado às transacções comerciais que ali se operavam, tiveram origens bastante recuadas no tempo e, portanto, conclui-se que a feira do Dondo já era tão ou mais importante antes da presença colonial portuguesa. À feira do Dondo iam parar vários produtos agro-pecuários vindos de terras longínquas, ou seja, os sertões interiores, como Masanagnu, Kambambi, Kisama, Pungo-a-Ndongu, Kazengu, Ambaka, Kasanji, Viyé, Mbalundu, etc. Os produtos eram designadamente, a cera, o marfim, o sal-gema, o peixe seco e fumigado, o café, o óleo de palma, o algodão, os artefactos de metais e, inclusivamente, escravos trazidos por pequenas embarcações artesanais (as denominadas Chatas) e por caravanas que, deixaram traçados no tempo e no espaço, os rastos das suas rotas ou itinerários (comerciais). A antiga feira, ficava, curiosamente, no local do actual embarcadouro e é ainda hoje, o local privilegiado para o comércio de produtos diversos, sobretudo do campo e o pescado, pelas populações actuais. As actividades portuárias e comerciais no Dondo passaram a ter um incremento excepcional paralelamente à ocupação territorial PATRIMÓNIO CULTURAL | 11 pelos comerciantes portugueses. Os negócios proporcionaram lucros que fizeram, por conseguinte, emergir um aglomerado que teve e tem, inequivocamente, as marcas do seu desenvolvimento assente na actividade mercantil. Dondo que nasceu sob o signo do comércio tornar-se, numa das mais belas estruturas urbanas em toda Angola nos séculos XVIII e XIX. O casario, construído essencialmente, de pedra, barro e cal, ficou entre seculares e frondosas árvores (acácias rubras), em passeios feitos de laje e as ruas e praças iluminadas por candeeiros de cobre de belos efeitos escultóricos. Predominavam e ainda subsistem as típicas casas térreas e sobrados com telhados de cerâmica portuguesa (algumas substituídas por chapa de zinco onduladas). As portas e janelas eram, regra geral, em arcos e as fachadas de linhas graciosas embora ostentem na sua generalidade simplicidade nos efeitos ornamentais. Algumas, no entanto, com motivos decorativos imaginados ou criados pelos seus construtores. A sua urbanização ganhou o aspecto do quotidiano e dinâmica da sua população. A sua organização espacial é assente na criação de espaços públicos e privados, sobressaindo uma praça pública com coreto para as festas e actos oficiais e donde convergem os principais arruamentos da cidade. As ruas transversais, característico da urbanização ortogonal, inspirada pelo modelo da Era Pombalina Emanuel Caboco (Batalha, 2008:79). O cenário da vila tornar-se-á mais pitoresco ao juntarse-lhe o seu ambiente vegetal tropical, no qual, convergem, nomeadamente, o cunho tradicional e espontâneo das suas construções e a disposição da sua arborização. Podemos acrescentarlhe, ainda, o panorama vislumbrante do rio Kwanza. Tais elementos, não passam despercebidos ao visitante e, certamente, levam a considerar a velhinha vila ribeirinha do Dondo, como que um natural “fenómeno urbano”. O rio e a vegetação que enquadra a vila, passa a fazer parte integrante de uma imagem e qualidade ambiental específica, tratando-se de uma perfeita harmonia entre o natural e o artificial numa simbiose que por vezes nos confunde. Batalha, um inusitado defensor da vila (assim como o terão sido Emmanuel Esteves e o autor deste artigo), cita um relatório do secretário-geral de Angola data de 1869, no qual se faz referência ao facto de uma boa parte das mercadorias exportadas e registadas pelas Alfândegas em Luanda, tinham a sua proveniência do Dondo (Batalha, 2006:102). Os tratamentos de limpeza, ordem e embelezamento do aglomerado terá sido garantido ou supervisionado por uma Comissão Municipal ad-hoc, criado ao abrigo de uma portaria do Governo-geral de 1857 (INPC, 1959: documentos) e o desenvolvimento da sua urbe passa, no entanto, a ser comparado à de Moçamedes (Namibe). O transporte de passageiros e cargas, passa, a partir de 1868, a ser garantido através da ligação com Luanda passa a ser feita por dois barcos à vapor (Batalha, 2006:103) e de uma pacata povoação passa à categoria de vila em 1870, justamente porque, nessa altura, ela já era a principal povoação no interior de Angola. 12 | PATRIMÓNIO CULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura Já no século XX, transformar-se-á num pólo industrial de referência à economia da colónia e para Portugal. Nas extremidades são construídos novos edifícios cujas formas e gabarito correspondem a dinâmica que a vila teve. A construção do caminho-de-ferro e da estrada que liga Luanda e Malanje, fizeram desaparecer o tráfego fluvial do Kwanza e Dondo perderá toda prosperidade que tinha como porto natural onde desembocavam os vários caminhos e rotas (Amaral, 1972:70). Destacam-se do seu aglomerado o edifício da antiga Câmara Municipal, o Mercado Municipal, o emblemático edifício do BPC, as ruínas do antigo Hotel Kwanza, da Casa do leão, a correnteza de casas típicas da Rua da Kapakala, a graciosa Estação do Caminho-de-ferro, o Cemitério à porta da vila, o sito de embarcação, o Hospital, dentre tantos outros. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 Dondo de hoje Dondo experimenta uma fase de declínio ocasionado construção, no século XVIII do ramal do caminhode-ferro de Ambaca e Benguela, que acabou por ofuscar o protagonismo e a importância económica da vila. Este e outros factores muito fortes, como a guerra civil no nosso País, mas também, a falta de trabalhos permanentes de manutenção, sobretudo depois da Independência, provocaram alterações significativas no perfil arquitectónico e urbano da cidade. As edificações, as infra-estruturas técnicas e a “própria vida” da vila conheceram uma degradação paulatina e incessante. Por outro lado, subsistem, ainda, em nome da ignorância, práticas incorrectas, particularmente no restauro ou reabilitação dos imóveis que fazem parte do perímetro da zona de arquitectura histórica. Muitos desses imóveis são submetidos a tratamentos de reparação superficiais ou quando profundas lhes fazem perdem irremediavelmente a sua integridade e autenticidade. Consequentemente perde-se a esmerada identidade da cidade. Face à gradual mudança do paradigma mercantil da vila e os seus habitantes passam a dedicar-se a outros tipos de comércio, sobretudo o de taberna. Nos anos 50 do século passado, a cidade estava muito degradada. Muitas das casas foram abandonadas pelos seus proprietários, que terão ido para outras paragens em busca de lucros nos seus negócios (INPC, 1959:arquivos). Ao que consta nos arquivos do Instituto Nacional do Património Cultural, o Arquitecto Batalha nos anos 60, ao serviço da então Direcção Geral dos Transportes, Obras Públicas e Monumentos, empreendeu uma série de tentativas visando a preservação da vila do Dondo, incidindo sobre o restauro dos imóveis com o fim de valorizar o aspecto patrimonial da vila e da sua paisagem histórica e natural (INPC, 1960:arquivos). Depois da Independência (19791981), voltou o arquitecto batalha, a tentar animar o projecto de valorização da vila e a sua possível reconversão como atractivo turístico (embora já o seja naturalmente), propondo mediadas e acções institucionais de salvaguarda e planificação, desatinadas a remediar as manifestações mais evidentes de degradação da vila. Porém, mais uma vez ficou submetida às questões conjunturais. Tem, efectivamente, a vila do Dondo, uma capital importância histórica e cultural, portadora de uma memória colectiva que nos remete para lá dos tempos das transacções comerciais com a população lusitana. Tal factor, terá, certamente, moti- património Cultural | 13 vado o Ministério da Cultura e o Governo da Província do Kwanza-Norte a promover a realização de feiras periódicas que, para além de proporcionar o resgate ou a reconstituição histórica de uma época em que as trocas comercias, terão gerado efeitos significativos na vila das populações daquela região e não só. A instituição da “Feira do Dondo” é, porventura, um ponto de partida para o estudo e reflexões profundas sobre as fronteiras culturais, as formas de etnicidade dos povos naquela região, a sua organização económica, as suas tecnologias artesanais, os factores de interdependência entre os diferentes povos, a diversidade das manifestações culturais; ou até mesmo experimentar a sensação de viver ou reviver o passado no presente, favorecendo o diálogo renovado entre as comunidades (Convenção 2003:preâmbulo). Com a feira pode-se, também, proporcionar um circuito, viabilizando a sensibilização das p+pessoas sobre a história daquele velho burgo e a necessidade para a sua preservação. A nossa modesta opinião é de que é possível construir-se um plano de protecção e de gestão da histórica vila do Dondo. O objectivo será garantir a preservação dos valores patrimoniais da cidade, melhorar a qualidade de vida da sua população e de sua atractividade turística. Sugeríamos, então, só numa primeira fase, que se impedisse que a degrada- ção continue ou que continue ao ritmo que tem sucedido. Será primordial, no entanto, que se evite a condenação da vila do Dondo, um dia, em vestígio de épocas passadas e um testemunho da indiferença das gerações actuais. É por isso necessário, multiplicar actualmente, os esforços para dar uma outra imagem e dimensão àquela vila que, possibilitaria remeter a vila ao lugar que merece na história da urbanização em Angola, pelo seu significativo valor histórico-cultural. Constitui um património edificado e paisagístico de grande importância no contexto nacional. O próprio potencial que lhe advém pelo facto de fazer coincidir um equilíbrio e uma beleza significativas em termos de paisagem edificada com um valor cénico muito grande da sua envolvente pode ser responsável por uma atractividade aos seus visitantes e turistas. Constou-nos, porém, a falta da classificação da vila (como “Cidade Histórica”, “Zona Histórica” e porque não “Paisagem Urbana Histórica”?) que seria, em nosso entender, uma útil ferramenta de preservação. Pois, a vila passaria a ter um amparo jurídico e eventualmente ajudaria o Estado fazer face às iniciativas antagónicas à sua condição de um importante “documento histórico”. Salientamos que ela é das mais antigas e, modéstia à parte, das mais bonitas do País. Bibliografia Consultada Amaral, Ilídio (1962). Ensaio de um estudo geográfico da rede urbana de Angola. Lisboa Amaral, Ilídio (1978). Contribuição para o conhecimento do fenómeno urbano em Angola. Separata de Finisterra. Lisboa Batalha, Fernando (2008). Povoações históricas de Angola. Ed. Livros Horizonte, Lda. Lisboa Batalha, Fernando (1959). Vila do Dondo. DSOPT. Luanda Batalha, Fernando (1963). Em defesa da vila do Dondo. Luanda Batalha, Fernando (2006). Angola: arquitectura e história. Ed. Vega. Lisboa B José (2005) Arquitectura e urbanismo na África portuguesa, temas vários. Caleidoscópio. Lisboa Fernandes, José; Fredeunthal, Aida; Janeiro, Maria de Lurdes (2006). Angola no século XIX, cidades território e arquitecturas. Lisboa INPC, Arquivo Documental Silva, Rosa C. (1996). Dondo: la ville marché avant et après l’interference portugaise (comunicação apresentada em Africa’s Urban Past). SOAS, Londres UNESCO. Convenção 1972 sobre o Património Mundial Cultural e Natural UNESCO. Convenção de 2003 sobre o Património 14 | PATRIMÓNIO CULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura REABRIU O MUSEU REGIONAL DO DUNDO A PRIMEIRA E A MAIOR INSTITUIÇÃO MUSEOLÓGICA DE ANGOLA JOAQUIM AGUIAR | Dundo Texto e fotos O museu regional do Dundo reabriu as portas ao público, no passado dia 23 de Agosto, sete anos depois do seu encerramento para obras de reabilitação e modernização. A cerimónia de abertura foi marcada pela exibição do grupo cultural Akixi e Tchianda, o mais representativo do folclore da região, agora assumido pela nova geração, no quadro da revitalização das “oficinas culturais” da aldeia museu, um centro de transmissão dos usos e costumes da região. A reabilitação e modernização do museu do Dundo, não contemplou apenas a renovação da exposição de longa duração, mas também incluiu novas estratégias de actuação e funcionalidade dos aspectos técnicocientíficos e administrativos do próprio museu. O museu regional do Dundo passa agora a ter uma exposição de longa duração que compreende a sala síntese, sala da pré-história e arqueologia, sala da organização social, sala da organização política, sala da caça e actividades domésticas, sala das actividades económicas, sala das artes e actividades lúdicas, sala intermédia de exibição de filmes etnográficos, sala da religião, iniciação masculina e medicina tradicional, duas salas da história mineira e a sala da colonização e resistência contra a ocupação colonial. A ministra da cultura, Rosa Cruz e Silva, que conjuntamente com o governador provincial da Lunda Norte, Ernesto Muangala, cortaram a fita de reinauguração do museu regional do Dundo, considerou que a ocasião é um “acto de nobreza, para celebrar a vida, a cultura na sua expressão máxima de um povo, porque os artefactos, as peças museológicas, a memória das comunidades das áreas socioculturais aqui representadas, reflectem o ser no mais profundo do seu íntimo, explicam a história e em suma a própria cultura”. Rosa Cruz e Silva destacou o museu regional do Dundo como “a primeira e a maior instituição museológica de Angola” por ter revelado dinamismo na investigação científica em várias disciplinas, “desde a pré-história ou história mais antiga, onde se dedicaram estudos das estações arqueológicas que trouxeram a superfície os vestígios dos tempos memoriais do paleolítico e não só”. Realçou, igualmente, a etnografia e antropologia enquanto vocação do museu regional do Dundo, “para dar nota ao modo de estar dos povos do leste de Angola, mas também, e sobretudo do seu pendor artístico”. A mestria nas artes, dos povos do leste Angola, segundo a ministra Rosa Cruz e Silva, “galvanizou, impulsio- nou e chamou os arqueólogos, os etnólogos, os homens das ciências sociais, depois os biólogos, que tiveram que produzir e elaborar até a década de 70 do século XX, uma vasta colecção de estudos sobre os tuchocwe, todos os seus vizinhos e aparentados”. A ministra considerou, no entanto, que o museu regional do Dundo, tem cumprido a função mais representativa da experiência museológica, que é a de investigação científica, que resulta da longa lista bibliográfica que conectou este museu com o resto do mundo. “A história desta instituição foi feita de muitas glórias, no domínio científico e da celebração da cultura dos povos que aqui se reportam, pois que foram criados mecanismos de organização cultural, com a formação de grupos de dança e equipas de recolha do cancioneiro da música tradicional”, enfatizou Rosa Cruz e Silva. O novo museu Depois da independência do país, em 1975, lembrou a ministra, assistiu-se a um decrescer de eventos em razão da situação difícil que se vivia na altura, assinalando, no entanto, que “ a museologia em Angola, pela mão dos próprios angolanos, começa a dar os primeiros passos, a partir do museu do Dundo”. A ministra salientou que os passos para a reabilitação e renovação do museu do Dundo, começam a ser dados em 2007, com a elaboração de um programa que previa não só a requalificação da sua infra-estrutura, como também a construção do laboratório de Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 biologia, aldeia museu, a estação arqueológica do Balabala, assim como a renovação da exposição permanente. Reiterou que “estão agora criadas as condições, para fluir a cultura e sobretudo para que os novos investigadores angolanos, tenham larga a sua capacidade científica e se aumentem os conhecimentos sobre a cultura desta região, que nos seus particularismos ou na sua essência está muito longe da maior dos angolanos”. A ministra não deixou de render homenagem algumas personalidades ligadas a cultura, que não só tornaram viável o projecto de renovação do museu regional do Dundo, como deram contributo incomensurável no desenvolvimento da cultura nacional. Rosa Cruz e Silva lembrou a figura de Henriques Abranches, que a seu modo criou uma escola de museologia, que distribuiu as peças pelo país para criar novos museus, escola essa, segundo a ministra, foi renovada, actualizada e melhorada os seus métodos. Foi igualmente prestada homenagem a Felizardo Gourgel, que contribuiu para a guarda e preservação do acervo do museu do Dundo, nos tempos mais difíceis e ao Francisco Xavier Yambo, o grande impulsionador da revolução dos museus, que culminou com o estatuto dos museus que foi recentemente aprovado. A reabertura das portas do museu regional do Dundo, foi igualmente possível com o “engajamento de uma grande equipa, desde a direcção dos museus, os membros da comissão, coordenação do projecto de renovação dos museus regional do Dundo e sobretudo do executivo angolano. A reabilitação e renovação do museu regional do Dundo custou aos cofres do estado mais de quatro milhões de dólares. Sítio de culto da cultura Tchokwe Ana Clara Guerra Marques, investigadora da cultura Lunda Tchokwe há mais de vinte anos, disse que o museu regional do Dundo é e vai continuar a ser “um sítio de culto da cultura Lunda Tchokwe”, numa perspectiva de desenvolvimento, preservação e estudo contínuo da riqueza cultural da região. Mostrou-se satisfeita com os investimentos feitos pelas autoridades, para que o museu se transformasse numa verdadeira “casa pública” destinada a guardar peças, reservas memoriais, transmitir e divulgar a cultura regional, que, na sua óptica, é muito forte e que até ultrapassa as fronteiras do nosso país. A nível de investigação científica, Ana Clara Guerra Marques, disse esperar, com as condições que o museu oferece, uma maior intervenção dos intelectuais angolanos no sentido de estudar e publicar artigos que possam contribuir para a imortalização da nossa cultura. “Da minha parte tenho esta nobre PATRIMÓNIO CULTURAL | 15 missão de pegar nesta cultura e levá-la para outros contextos, nomeadamente na dança africana ou seja para a dança contemporânea. Vou investigar, recolher imagens e estar em contacto com a essência de forma que a cultura se mantenha viva”, assegurou, Ana Clara Guerra Marques. A investigadora, que é mestre em performance artística, com a tese “Sobre os Akixi a Kuhangana entre os Tchokwes de Angola”, comparou o museu regional do Dundo a “uma jóia bastante preciosa” que carece constantemente de lapidação, de forma a manter interesse e beleza inicial. “As pessoas não podem deixar que esta jóia se estrague, desapareça, devem tudo fazer para continuarem a promover a cultura, os hábitos e costumes dessa região”, disse. Para Ana Clara Guerra Marques, o ritual do mukanda “é uma coisa fantástica e os jovens, a partir de tenra idade devem saber sobre isso, sobre a máscara do mwana pwo, o muquíxi, portanto tudo precisa de mais vida mais divulgação e mais encontros, congressos, simpósios para que de facto se conheça a essência dos povos da região leste de Angola”. Historial O museu do Dundo, foi criado em 1936, pela então companhia de Diamantes de Angola (DIAMANG) e tinha como secções fundamentais a etnografia, pré-história, folclore e música. Faziam também parte do museu do Dundo, o museu do Balabala, que se dedicava ao estudo da arqueologia, um laboratório de biologia que ao longo dos anos apresentou ao mundo científico a descoberta e o conhecimento de novos mamíferos, peixes, batráquios, sáurios, aves e novas espécies ou géneros de insectos, além de contribuições para o estudo da fauna da região da Lunda e da África Central. Há a destacar, também, a “Aldeia Museu” que abrigava os artistas que trabalhavam regularmente em escultura, pintura e tecelagem de forma a permitir a revitalização de alguns padrões culturais em via de extinção. As primeiras colecções do museu do Dundo começaram a ser recolhidas em 1936, tendo sido obtidas em diversos pontos da região leste do país, mas sobretudo nas actuais províncias das Lundas Norte e Sul e Moxico. A iniciativa cabe ao etnógrafo português José Redinha, colocado ao serviço da administração colonial, na então vila de Portugália, que começou com uma colecção privada de objectos etnográficos, a qual evoluiu, com a pronta intervenção da DIAMANG, para um museu, cujos trabalhos alcançaram o mundo, tendo sido considerado na década de 1950, como um dos maiores a sul do Sara. Até 1974 o museu do Dundo tinha um acervo de mais de 20 mil peças. O museu do Dundo desenvolveu um importante intercâmbio cultural e científico com organizações congéneres de outros países, tendo participado em vários congressos. A par de dar a conhecer ao mundo a cultura da região leste de Angola, promoveu igualmente exposições em vários países do mundo. 16 | KINDA DAS LETRAS 3 a 16 de Setembro de 2012 Os longos dias de resistência (a estreia de Kanda) | Cultura LOPITO FEIJO "Quando conheci Victoriano Ferreira Nicolau, estava longe de me aperceber das qualidades de poeta carregado de incerteza, no emaranhado terreno das letras. A chama das suas aspirações assinalava o rumo que traçava, numa linguagem astral, que só os poetas facilmente entendem e o homem humilde se apercebe. (...)Apostado na simbologia de combate, no estilo que poetas consagrados angolanos nos habituaram tem-se a percepção da mensagem que o autor transmite ao mundo livre, negando sofrimento e fome, mas carregado de amor próprio." Inicio esta nótula fazendo jus as palavras do nosso ancião e "Griot". Wanhenga Xitu. E quem melhor ou maior do que ele para homenagear este poeta da geração de 70, a chamada "Geração Silenciada", que passadas quatro décadas de imenso sofrimento íntimo, vem, arroja-se e matricula-se neste clube sentimental em que se dialoga "numa linguagem astral, que só os poetas facilmente entendem e o homem humilde se apercebe». Falo-vos do Nicolau, natural de Cambambe, antigo combatente e várias vezes "ex" das nossas endiabradas circunstâncias. Ex-preso político, ex-membro do governo, ex-deputado, ex-professor universitário, só para citar alguns poucos "ex" do autor. Economista especializado em contabilidade, agora reafirmando o seu pseudo nome "Kanda" por via da palavra poética. Esperamos jamais estar diante de mais um "ex" da sua intensa pessoalidade. Refiro-me ao expoeta. Pois saberá o poeta que “uma vez poeta, poeta para sempre”, porque como disse “o velho”, o autor alistou-se agora para um exército que combate num campo de batalha carregado de perigos vários e que exige o sacrifício da própria vida em razão da defesa dos interesses patrimoniais e morais daqueles que mesmo sabendo falar não têm voz para expressar o que sentem. Passa doravante a ser uma das vozes daqueles que não têm voz. Dos humildes, dos escravos e sofredores que tão bem estão retratados na versificação em questão. Quanto "aos longos dias de resistência", devo dizer, trata-se de um título graficamente espantoso, muito bem acabado e sociologicamente extravagante (no bom sentido, como não podia deixar de ser...). É a todos os títulos um livro poético ímpar. Contém uma detalhadíssima autobiografia do autor que mais não é senão uma útil ferramenta de trabalho para sociólogos, historiadores e público leitor se emaranharem nos circunstantes contextos da luta, resistência e persistência, não fosse o autor dono de uma vivência, rica de «ensinamentos de berço» com os pais, irmãos, tios, primos e avós em localidades como Mulende, Katome de Baixo, Nza Ni Nvula, e Cassualala na província do Kwanza-Norte e Muxima, Kibala e Banga, na província do Kwanza-Sul, Marçal, Zangado, Sambizanga, Cazenga, Bairro Popular, Vila Clotilde e Maculusso em Luanda. «Em todos esses locais, foi recolhendo elementos que moldaram a sua personalidade e atitude, adquirindo e transmitindo ensinamentos de bairro, uns bons, outros nem por isso, sempre observando e interagindo com as comunidades, inclusive as comunidades religiosas da Igreja Metodista Unida de Angola, e estabele- cendo relações distintas com os diversos extractos sociais, raças e tribos do país». Assim, cotejamos esta telúrica poesia onde o fenómeno da chamada interpenetração idiomática está presente (no caso da língua kimbundo para a língua portuguesa), neste livro onde podemos ainda deleitar-nos com algumas históricas imagens do contexto sociopolítico e paisagístico de Angola. A tudo isto, acresce o autor, dois documentos socio-históricos como prova dos crimes supostamente cometidos no Estado de Angola da época colonial. O livro, com prefácio do Decano dos Escritores Angolanos, o escritor Mendes de Carvalho, contém textos do período pré-prisional e de vários períodos prisionais do autor, bem como de outros períodos que vão de antes de 73 e 1980. E sabem melhor do que eu (os seus leitores...) quão turbulenta foi a vida dos Angolanos de 73 a 80, já no período pós-independência. "Trata-se, como se depreende facilmente, de uma obra de poesia de combate, que traduz uma vivência apaixonadamente nacionalista, de alguém que, como tantos outros, colocou a sua pedra no edifício do nacionalismo angolano, antes durante e depois da independência de Angola...". Por isso, o autor tem a mesma responsabilidade social que tiveram outros confrades já consagrados que também apostaram na simbologia de combate tal como os já falecidos poetas-guerrilheiros: Henrique Abranches, Ngudya Wuendel, Fernando Costa Andrade, Saidy Mingas, Pedro de Castro Loy e Simião Kafuxi ou mesmo, Fonseca Wochai, Garcia Bires e Beto Van-Dúnen ainda vivos. A juventude é a melhor maneira de enganar-mo-nos a nós mesmo. Disseme um dia um clássico autor da literatura angolana em razão das ansiedades das pressas e tropeças dos novíssimos. No caso, o nosso jovem autor, Kanda, não teve pressa, soube esperar e ei-lo presente depois de no ano 2000 ter tomado a corajosa decisão de reiniciar o processo de revisão e compilação da sua obra de poesia, no livro que agora dá à estampa, sob o título "OS LONGOS DIAS DE RESISTÊNCIA", que encerra o Capítulo IV, com um POEMA INCOMPLETO, para cuja mensagem o autor convida o leitor a reflectir. Refira-se que o processo de compilação e de publicação desta obra, que vem finalmente à estampa decorridos cerca de 10 anos da segunda tentativa de publicação, sofreu várias interrupções, por força de constrangimentos e interferências várias, que provocaram o adiamento sucessivo da sua edição. Penso que, tratando-se de uma poética de carácter marcadamente nacionalista, é o aspecto conteudístico que mais importa. Os valores éticos destacam-se ao longo da colectânea, de uma forma suficientemente acentuada. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 Mbânza Kôngo entre 1491-1885 LETRAS |17 PATRÍCIO BATSÎKAMA A evangelização começa no Kongo de forma oficial em 1491: em Abril é baptizado Mani Nsoyo Nsaku Ne Vûnda; em Maio é baptizado o Ntotel’a Kongo Nzîng’a Nkuwu. Em Julho, a rainha e o príncipe Mvêmb’a Nzînga serão baptizados conjuntamente das pessoas que os Portugueses pensavam ser nobres no Kôngo. Em 1506, morre o primeiro rei cristão João I, Ñzîng’a Nkûwu, sendo sucedido por seu filho, Dom Afonso, Mvêmb’a Ñzînga que os constitucionalistas kôngo consideram anticonstitucional. Mas, graças à força aliada dos portugueses, ele alcançou o trono. É na sua época que a Igreja será instalada na sua capital, doravante dividida em duas cidades: (i) cidadealdeia, com os tradicionalistas em Madîmba; (ii) cidade europeizada, com os modernistas em Mbâzi’a Kôngo. Dom Afonso morre em 1543. Nkâng’a Mvêmba, Dom Pedro I – tido como filho de Afonso I – irá sucedê-lo em 1543, mas também será contestado pelos constitucionalistas (tradicionalistas). Vencido pelos seus rivais, em 1545, ele irá se refugiar na igreja São Salvador , escapando da morte (Cuvelier & Jadin, 1953:19). Em 1545-1547, reina uma guerra civil que assola a capital e Dom Diogo I (o novo rei) estabelece um tempo de tranquilidade, que irá durar até 1561. Na verdade, era um “tradicionalista” que, por razões políticas e económicas, aceitava cinicamente o cristianismo. Ele personalizava a ambiguidade entre os “tradicionalistas”, que nessa época serão tidos como os verdadeiros cidadãos, e os “modernistas”, que eram assimilados aos “amigos dos estrangeiros”. Ambicionava uma diplomacia directa com o Vaticano, sem ter Portugal como intermediário, no que não teve êxito e, descontente com isto, expulsa todos os europeus, salvo alguns padres (no final de 1555 e início de 1556). Em Novembro de 1561, Dom Diogo I morre de forma trágica, e subirá ao trono Afonso II, um modernista que será mais tarde morto pela insurreição dos tradicionalistas contra os “estrangeiros” e seus aliados Kôngo. A necessidade do consenso levou Bernardo I Ñzîng’a Mvêmba ao trono, que morre em 1567. Seu sucessor, Henrique I, reinará alguns meses apenas, morrendo em 1568. Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba, que lhe sucede, reinará durante quase vinte anos, dispondo de uma diplomacia forte como plataforma de estabilidade. É durante o seu tempo que os guerreiros Yaka, os famosos Jagas, irão invadir Mbânza Kôngo (Vansina, 1966:421-429). Nesse período da invasão jaga, várias igrejas foram arruinadas, tal como se pode ler em Pigafetta. A de São Salvador será (re)construída e elevada ao estatuto de catedral, em 1596, e vários padres serão enviados para essa cidade. O rei Álvaro I enviará Dom António Manuel (Nsaku Ne Vunda), como seu embaixador junto do Papa, onde – depois da sua captura pelos piratas portugueses e espanhóis – chegará doente a Roma, morrendo no dia seguinte. Da morte de Álvaro I, sucede Álvaro II, mas, entre 1613 e 1641, os monarcas kôngo são “fabricados” pelos modernistas ou tradicionalistas: uns são demasiado jovens (Dom Garcia I, 1624-1626) para a situação do reino; outros são de facto crianças (Dom Álvaro IV, 1631-1636). Nessa época, há presença de holandeses, franceses e outros europeus, que se interessam pelo comércio com Kôngo. Os holandeses chegarão a guerrear com os portugueses, na tentativa de expulsá-los do Kôngo (e Angola), logo no fim desse período. Rainha Nzîng’a Mbandi interviu. Dom António I, Vit’a Nkânga, será coroado rei em 1661, depois de muitos monarcas serem assassinados. Por sinal, ele é um tradicionalista, cuja candidatura os padres europeus não aconselhavam, chegando alguns a orquestrar contra a mesma. Tudo isso porque ele intencionava expulsar do seu reino todos os europeus, tal como o fez Dom Diogo I (ver acima). Dom António I convoca todos Kôngo do país a lutar contra a opressão portuguesa. Todo Kôngo foi sensibilizado porque pensava assim terminar com a colonização portuguesa. A luta entre os modernistas e os tradicionalistas, favorece vitoriosamente os primeiros, na grande batalha de Ambwîla. Mas são as consequências que nos interessam: (i) os tradicionalistas, que saem da sua “cidade-aldeia”, irão pilhar a “cidade europeizada”, destruindo igrejas. Algumas desapareceram, sobrevivendo a Catedral de São Salvador, que tinha os “seus murros ainda de pé” (Cuvelier, 1953:57-62); (ii) a cidade europeizada “transformou-se numa floresta… não habitada… e abandonada aos animais selvagens” (Balandier, 2009:67). Nem tradicionalistas nem modernistas pretendiam lá viver jamais; (iii) o país contará, doravante, com três capitais: (a) de Mbânza Kôngo, que ainda permanecia no imaginário de todos; (b) abriu-se uma capital, a Kibângu; (c) uma terceira capital estava instalada em Kôngo dya Lêmba. O Papa chegou a reconhecer a capital de Kôngo dya Lêmba (através de uma Bula). Com as duas outras capitais, Mbânza-Kôngo ficou sem povoação. O “corpo religioso” e “corpo diplomático” sairão, então, de São Salvador, para a capital reconhecida por bula papal. No princípio do século XVIII, surge um movimento “antonista” liderado por Chimpa Vita (geralmente conhecida por Kimpa Vita). Dos seus objectivos, conseguimos sintetizar os seguintes: (i) criar plataforma de negociação entre os tradicionalistas e os modernistas ; (ii) mobilizar as populações a reconhecer Mbânz’a Kôngo como capital e destituir os dois reis; (iii) preparar novas eleições. Infelizmente, em 1706, a líder deste movimento é capturada pelos padres Bernardo da Gallo e Lorenzo da Lucca para ser queimada viva (Batsîkama, [1969] 1999:31). Os poucos habitantes que já ocupavam Mbânz’a Kôngo irão fugir e se distanciar da “cidade europeizada”: Mbânz’a Kôngo ficava despovoada pela terceira vez. Sua nova povoação passou a ser efectiva alguns anos antes (entre 1842-1884) e depois da Conferência de Berlim. Nessa altura, Mbânz’a Kôngo era uma parte de Angola, colónia portuguesa e sua povoação obedeceu a uma política colonial portuguesa de povoar as cidades. Primeiro, porque lá se encontravam algumas infra-estruturas a serem aproveitadas e, segundo, porque se construiu outras novas. Durante essa época, as velhas cidades perdidas foram descobertas, inclusive os muros chamados Kulumbîmbi. A sua descoberta criou: (i) felicidade, porque existia apenas na oralidade com hesitações de localização, de modo a convergir as versões existentes; (ii) lembrança da união entre as populações, o que incentivou a povoação das próprias populações; (iii) responsabilidade acrescida da administração colonial em conservar a memória local. Mas tudo indica que a memória colectiva loca tem dificuldades em separar as duas cidades, porque ambas cidades pré-existem no comportamento psicossocial como “um todo”, assim como, quando os Kôngo evocam sua origem comum (Kôngo dya Ntôtila ou Kôngo dya Ngûnga ou ainda Ñkûmb’a Wungûdi…), reconhecem a pluralidade como base da sua união. Esta é atribuída a uma Mãe ancestral, Ngûndu ou Mazînga. Eis a razão pela qual os nativos de Mbânz’a Kôngo defendem que Deus terá construído Kûlumbîmbi. 18 | ARTES 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura Paulino Damião (50) Da Xicala à Mutamba:contrastes de Luanda O olho atento de Paulino Damião (50) lança, por detrás da câmara fotográfica, uma lágrima sobre os velhos muros de Luanda, em contraste com a tendência renovadora e modernizadora que faz a cidade capital voar alto, até à luminosa indiferença das nuvens. E aí temos estas imagens, captadas com o amor de um kaluanda habituado a calcorrear as vielas das ruas mais antigas, estreitas, onde só passam persistentes saudosistas da velha Luanda e peões habituados a encurtar caminhos onde noctívagos cidadãos vão despir o seu destino, de um kaluanda que também se deixa encantar pela natureza imponente do veloz betão forrado a alumínio, ou pela imensa avenida 4 de Fevereiro, atapetada de um verde promissor, onde as palmeiras junto ao murmurar da baía deixam no ar uma aura de evasão. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 ARTES | 19 Paulino Damião (mais conhecido por Cinquenta), nasceu em Nambuangongo, província do Bengo. Com 36 anos de carreira, todos feitos ao serviço do Jornal de Angola foi galardoado, em 2010, com o Prémio Nacional de Jornalismo, categoria de fotojornalismo. “Aos 14 anos oi capturado pela tropa colonial e, dada a idade, “ficava entre os militares que ele chama de artistas – músicos, pintores, redactores, fotógrafos. Ironicamente, foi no campo de guerra que descobriu sua paixão. Nunca mais parou de fotografar. Em 80 foi enviado a Moscovo para cobrir a olimpíada. Era o único fotógrafo negro credenciado para os jogos olímpicos. Conhece quase toda a África subsaariana. O cognome “50” ganhou no começo da carreira. Cobria jogos de futebol apenas com uma lente de 50 mm, pois era a única que possuía, quando os outros fotógrafos, já nesta época, usavam longas teleobjectivas. “O fotógrafo da 50”, assim se referiam a ele aqueles que não sabiam seu nome. Assim ficou.” (extractos do artigo postado por Greg, no sítio internet ‘Casa de Luanda’) 20 | ARTES 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura José Carlos de Almeida: “Namíbia, estás na minha mente” “ Namíbia, gostei imenso de te conhecer. Até já tomei a liberdade de te tratar por «tu». Namíbia, estás na minha mente Matadi Makola Do disfarçado silêncio da foto, o grito de contexto e de protesto. Ambos por África. Somente da África com sede de África. Os mais atentos e perspicazes poderão achar que, em muitos sentidos de si, África é jóia de valor de oferenda de núpcias cujo brilho é dependente da perspectiva da dimensão de nós. Não fabricável e sã. Da fotografia à palavra, estamos nós algures por aí. Talvez dentro do contexto, o texto ajude a procurar interrogações nas picadas, estepes e crateras do nosso ser. Afinal o que é África, quando tudo nos leva distante da mútua aproximação às coisas da terra, da natureza, dos bichos, seus mais repletos sinónimos?! Para muitos, aquela África, berço habitat dos bichos mais estranhos e de formatos extravagantes; submersa na adjecti- ” José Carlos de Almeida vação de exótica; é uma mera quimera, incluindo alguns rebentos que nasceram e nunca saíram dela mas que, a priori, a sua vivência jamais sabe ao sabor deste “culto à natureza” a que chamaram de África, e se agarram às alturas dos prédios como cativeiro da imaginação, ou, na ironia, casuais intérpretes de Ícaro. Qual é a diferença? Qual é a piada de dizer que sou de África? Claro que responder só sim seria difícil e, caso assim acontecesse, um epíteto antónimo de verdadeiro seria o caso raro de uma visita desejada a escassos minutos da hora da refeição, seguido de um escrupulosamente sincero “bom apetite” livre da exaustiva proeza de esconder nas grades das feições faciais o mínimo sinal de discordância aturável. Assim, numa próspera e, culturalmente, dialogante viagem à Namíbia, José Carlos de Almeida, nosso conterrâneo e homem de cultura, autor do livro “Ensaboado e Enxaguado”, nos propõe, mais do que uma saudável inveja dele por ser o protagonista (o que arrancaria uma doce dose de orgulho para qualquer amante de África e de tudo que é seu), uma fuga ao monopólio do barulho dos automóveis, ao estaladiço dos vidros das janelas dos altos prédios; ao alucinante (às vezes, e com alguma sorte) som do salto-alto nas escadas e elevadores; ao vício do oxigénio da máquina que se apossa dos nossos sentidos diariamente; da nossa condição de destinatário obrigatório das esquebras das pontas do barulhento kuduro no táxi; e nos desafia silenciosamente, na delícia das suas fotografias de viagem, para que abramos atalhos que nos conduzam às reservas naturais, ou melhor, às reservas de nós, trazendo à mistura a crítica escancarada do absurdo de ser que é parte do habitat de maravilhas da natureza e passa a existência sem se oferecer à oportunidade de diferenciar o roncar de um automóvel e o bramido de um elefante, talvez também por isso digno de ser chamado de “despercebido de si”. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 GRAFITOS NA ALMA | 21 A introdução das línguas maternas angolanas no sistema de ensino e a democratização da cultura (à memória do meu colega de banca de redacção, Emílio Té) Norberto Costa H á mais de uma década que a UNESCO instituiu o Dia da Língua Materna, acautelando assim os interesses das crianças e adultos que não têm acesso ao sistema de educação formal, por via da língua familiar do seu meio social de origem - a família. É um dado adquirido para quem tem preocupações sócios culturais: a língua materna é a língua primeira dos falantes de uma determinada comunidade étnica, sendo que a língua eventualmente apreendida a posterior pelo falante seja a língua segunda, embora casos há em que o mesmo desaprende a primeira e passe a ter maior competência linguística numa outra. Nesta última língua o falante faz apelo para se fazer entender e ser reconhecido como indivíduo pertencente a determinado agrupamento humano, sendo um importante factor de identidade social e cultural. É, involuntariamente, regra geral, nesta língua que ele pensa e racionaliza o mundo, embora, nalguns casos, com resquícios da anterior. O drama sociocultural e psicológico é saliente: os empréstimos linguísticos das línguas africanas impregnadas na variante da língua portuguesa em Angola, em virtude do esquema de mobi- lidade social dos membros dos distintos grupos étnico-linguísticos, sociais e rácico-culturais. E mesmo os “ruídos” que se ouvem, por exemplo, em muitos dos falantes do português em Luanda, o exemplo é sintomático, conferindo à variante angolana do português (angolano) outros ingredientes e sabores, em determinados contextos, longe do “meio socialmente elaborado” (no dizer de W. Labor), ou seja, com “status” social privilegiado, que mais se aproxima da língua original, ou seja do português vernáculo cultivado pelo poeta dos Lusíadas. Mais dramático ainda é o caso das crianças que abandonaram compulsivamente ou não as suas aldeias e chegadas às cidades, sobretudo no litoral, e mais particularmente em Luanda, foram forçadas a mudar de língua no seu processo de socialização, onde a língua mais falada é o português, tendo sido “assimiladas” à língua europeia e esquecido a sua primeira língua materna. Nesta circunstância, a língua materna passa a ser o português, em virtude da aculturação a que foram sujeitos, como “os olhos linda da filha do soba/ que se perderam em Luanda”, como cantou o poeta. Nestes termos, é um lugar comum dizer-se que o indivíduo só pensa numa língua. Isso é tão interessante que a língua materna é a utensilagem através da qual nós exprimimos a nossa cosmovisão; como concebemos o mundo, rimos e brincamos às escondidas o jogo da cabra cega da vida “que estamos com ela”, em que muito vigarista se faz passar por gente grande “batendo nganga”; e é tão dramático ainda, porquanto é na língua maternal em que nós amamos, sofremos e até choramos a morte dos nossos ente queridos. 22 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 Crise de identidade Vem de molde assinalar que muito do insucesso escolar que se regista na aprendizagem da língua portuguesa nos dias que correm (e podemos alargar mais a nossa perspectiva analítica a outras disciplinas), bem como na transmissão de outras matérias didácticas tem a ver a com a crise de identidade que enfrenta a criança que abandona a família, o seu primeiro mundo, e encara, em termos de mobilidade social, um novo mundo a escola, entrando em conflito de personalidade, pois a sua língua materna aí não tem espaço, para dar livre curso ás suas potencialidades cognitivas e lúdicas, apreendidas no seio do seu meio de origem social, que no caso da aldeia encontra expressão cultural na dança, tradição oral e cânticos tradicionais, jogos dramáticos e lúdicos, repositório transmitido de geração em geração, no jango ou no dique, por altura em que se juntam para acarretar agua, ou ainda nas caçadas ou mais ainda no retiro na fase de circuncisão a sangue frio, o que não deixa(va) de ser horrendo, relevando uma certa contingência bárbara, que de tão retrógrada merece ser abandonada a favor da anestesia prévia. Nestes termos, todo este património cultural a criança não poderá partilhar ou intercambiar com os colegas que só falam português, as mais das vezes, por bloqueamentos socioculturais, linguísticos e psicológicos terríveis, onde sobreleva a língua diversa da falada na escola, num meio estranho: seja urbano, semi-urbano e mesmo semi-rural. Assim sendo, o conflito sociocultural vivido pela criança em crise de identidade com uma aprendizagem numa linga segunda, é agravado, bem como os seus colegas perdem uma rica oportunidade para tomarem contacto, pelo menos potencialmente, com o imaginário oral daquele falante de língua maternal de origem africana, veiculando a sua experiência na ruralidade na língua do seu meio de origem - aldeia -, que a instituição escolar, “in limini”, não reconhece como canal de comunicação padronizado, pelo menos do ponto de vista da metodologia didáctica que visa, entre outros objectivos pedagógicos, afastar o ruído na comunicação entre o professor e o aluno (e já agora também entre os colegas). Haja em vista assinalar que a criança que não tem o português como língua materna e dada que a sua não é leccionada na escola, parte numa situação de desigualdade social, a priori, com os condiscípulos, o que requer que seja alterado este “círculo vicioso”, criando-se um “círculo virtuoso” que abrande o peso e o impacto da pesada herança do assimilacionismo colonial e valorize as línguas maternas angolanas no sistema escolar. Já que a exclusão desse sistema linguís- | Cultura apreendidas e adaptadas, com a devida actualização metodológica e modernização pedagógica, em “tour horizon”, sem desprimor pela experiências africanas e não só no domínio, pelos Ministérios da Educação e Cultura, bem como da Comunicação Social, para levar a bom porto uma tal política educacional, cultural e linguística, que coloque as nossas distintas línguas maternas angolanas na crista da onda do acesso ao saber científico e do desenvolvimento, vencendo-se, assim, decididamente a batalha conta o analfabetismo, cujas bases foram lançadas desde os primórdios da nossa independência e ensaiadas ainda no maquis debaixo das árvores e os alunos sentados nas pedras, ainda que este conhecimento rudimentar fosse transmitido entre os maquisards na língua do colonizador, que de dominante passou a dominada, na configuração mental de uma franja significativa dos antigos colonizados, que a têm como língua materna e mesmo segunda, compaginando o ambiente de diglossia no país, em que a língua neo-latina convive com as de raiz bantu em Angola e, quiçá, nos distintos PALOP, com as especificidades que se conhecem, em virtude dos contextos locais, onde existem dois crioulos, como em Cabo-Verde e Guiné-Bissau, por exemplo) e demais línguas africanas. ________________________________________ Notas tico de matriz africana no ensino, como sugeria o poeta da Sagrada Esperança”, “não resolve os nossos problemas”, pelo que havia que ponderar desde já a sua inclusão(2). Os passos dados neste sentido pelo MED colhem a todos os títulos, ainda que serôdios. Antes tarde do que nunca - lá reza o provérbio português Estratégias de trabalho As balizas de uma tal estratégia de trabalho há muito foram ensaiadas e lançadas, como a aprovação da grafia de pelo menos 6 línguas nacionais, em 1976. A experiência-piloto em ordem à sua adopção no sistema de ensino poderia ser articulada para já com a elaboração de manuais e demais material didáctico. Resumidamente, se é certo que as demais línguas, além das seis que já têm grafia oficial, poderiam aguardar por melhor oportunidade, dada que uma empreitada de tal envergadura carece de investimentos vultuosos que não se esgotam na ocupação de pesquisadores para fixação da sua padronização, mas implicam também a formação de professores que vão leccionar as e nas línguas em causa, antecedida, sobretudo, de uma prévia formação de formadores de e em línguas nacionais. As experiências neste domínio existem ao nível por exemplo das igrejas desde longa data (com realce para a protestante perseguida e acusada de desportugalização dos nativos no passado pelas autoridades coloniais, devido ao magistério exercido pelas missões nas línguas locais, a par da tradução da bíblia nas línguas maternas angolanas), bem como, mais recentemente, ao nível, por exemplo, do CEFOJOR, que ministra cursos em várias línguas nacionais, e o da Alliance Française que ministra cursos em kimbundu; lições que poderiam 1) Ainda na década de 90, em entrevista ao semanário “Correio da Semana”, o falecido deputado Lanvu Emamnuel Norman havia proposto, num particular rasgo de lucidez e de magistral visão estratégica, que as línguas nacionais, pelo menos as mais faladas no país, fossem usadas para traduzir as distintas parlamentares, sessões que são de todo interesse do eleitor, que elege os seus representantes, e do povo, em geral, que, como ficou visto, a maior parte dele não fala o português, senão arranha o pejorativamente designado “pretoguês” 2)esta peça já estava escrita quando a foi anunciada a inclusão para breve das línguas nacionais no sistema de ensino no Moxico, pela voz do ministro da Educação. A ver vamos. Partamos para mais um novo “grande desfio” sonhado e jogado pelo poeta do Kiaposse. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 Será a religião um instrumento de dominação? H á geralmente um credo popular segundo o qual a religião seria o “ópio do povo”. Devo admitir que a História apresenta as grandes religiões como suporte do comportamento das massas, e logo vem a mente a curiosidade de saber se os crentes não estariam apenas obedecer as vontades humanas dos seus líderes. Daí a minha pergunta inicial: será a religião um instrumento de dominação? Apraz-me aqui reflectir um pouco em torno dessa questão. Contexto histórico-filosófico Nos diálogos platónicos da República, Sócrates defende que os jovens devem ser programados pela “razão” para que a sua integridade na sociedade seja coerente. Ora, a religião programa pela “fé” a integridade do Homem em geral. Busca-se a verdade pela razão e a fé é auxiliada pela imaginação. Na época medieval euro-ocidental, (séc. V-XV), a Igreja Católica afirmou-se e buscou no modelo religioso as ferramentas políticas para a “Cidade” romana. Nasce o catolicismo romano (Dave Hunt, pgs 231233), do qual somos herdeiros. Razão pela qual Estado e religião mantêm suas relações inelutáveis e proporcionou uma leitura dicotómica: os infiéis/desordeiros; os fiéis/ordeiros; nãoe católicos/cidadãos católicos/indígenas, etc. A predominância da religião sobre o Estado manifestou-se de várias maneiras: no monopólio do ensino, na entronização e excomunhão de monarcas pela Igreja, etc., etc. A visão teocêntrica permitiu a Igreja legitimar a relação desigual senhor-servo e exercer o controlo sobre o pensamento do homem medieval em todos os níveis, inclusive no domínio intelectual. No século XVI o Catolicismo foi perturbado com o surgimento da Reforma: o monopólio da interpretação dos textos bíblicos passou ao alcance do crente. O pluralismo interpretativo proporcionou o liberalismo; este suportou a democratização e o fim da superioridade do dogmatismo católico (Jostein Gaarder e outros, pp. 204220). Ainda assim, a Igreja dispunha de muito poder: (i) acumulou riqueza dos reinos sob seu controle; (ii) afirmou-se como potência diplomática entre os reinos adversários; (iii) detinha ainda milhares de fiéis a sacrificar as suas “vidas” em nome da fé católica. Com a descoberta das Américas, a Europa projecta a “caça à riqueza”. O solo americano, promissor, necessitava de mão-de-obra. Esta será encon- GRAFITOS NA ALMA | 23 João N’gola Trindade trada em África, sobretudo. Mas para o sucesso disso dependeu da religião (católica romana e protestante). Jomo Kenyatta resumiria bem isso com as suas palavras, que cito (traduzo): “Eles tinham a Bíblia e nós as terras; eles ensinaram-nos a rezar com os olhos fechados. E quando abrimos os olhos (ao dizer ámen), eles tinham as terras, e nós a Bíblia”. Durante mais de três séculos, os Africanos foram coisificados, despersonalizados e vendidos como mercadorias. Os Estadosnação que surgiram na Europa ocidental precisavam fazer fortuna e bus caram na religião uma ferramenta decisiva para dominar. Em Angola, a religião contribui de várias formas (Schubert, 2000): na educação, na pacificação, depois dos conflitos que tivemos, enquadrar/integrar jovens/sociedade. Se a colonização de Angola foi auxiliada pela religião, e atendendo que a escravatura terá sido potencialmente auxiliada pela “fé”, importa salientar que a descolonização da mesma contou com a religião (Henderson, 2000). Eduardo dos Santos (1969: 97-110; 201-213) aborda, na sua obra, o auxílio que as revoltas de 1960-1961 em Angola tiveram na mainmise da religião messiânica. Voltemos a nossa pergunta inicial que, acho eu, é o que nos interessa. Do que foi dito atrás, percebe-se que a religião é, de facto, um instrumento de organização social e pode, de modo igual, servir de suporte de estabilidade na personalidade do indivíduo. Nesse pressuposto, vamos questionar dois aspectos da religião perante o homem: (i) medo; (ii) salvação. O medo da fraqueza que implantou o pecado original, o medo da “noite primitiva” e o medo do destino humano são os três pontos que, de certa for- ma, dão poder a religião no ser humano. Se castigamos quem infringe a norma/lei, como se castigará o “Homem imaterial” (alma?) pelos inúmeros pecados cometidos? Ou ainda, o que acontece depois da morte? Se os mitos expõem um Inferno castigador, a curiosidade humana tem medo perante o seu “destino”. A incerteza de não saber se a morte do corpo significaria a morte do “espírito” que vivifica o corpo, inquieta continuamente a curiosidade humana e a ciência ainda não esclareceu esta “noite primitiva”. Da mesma forma que o homem busca, continuamente, os meios da sua salvação, buscando na fé o suporte pluridimensional, o homem constrói as suas convicções e verdades como forma de ter resposta às curiosidades existenciais. Existem duas salvações no homem: (i) salvação material; (ii) salvação imaterial. Se a religião pode proporcionar riquezas (Weber, 1964[2010]) aos indivíduos ou as instituições, ela pode em mesma proporção, promover riquezas imateriais. Perante o pecado adâmico (no suor do rosto comerás o seu pão, Bíblia: Génesis, 3:19), essa salvação apraz ao Homem, perante o pecado humano (ultra-egoísmo do Homem explorar outro homem) que busca um humanismo consigo mesmo. Conclusão O termo religião, deriva do latim religare/religere: (i) organizar; ordenar; estruturar; (ii) submeter-se as normas naturais/divinas; cumprir com o ordenamento tal como prescrito/pré-estabelecido; etc. Eis a razão pela qual religião significa: temor a Deus, pratica de cultos, conjunto de ritos/cerimónias, veneração as coisas sagradas, etc. Com essa definição, e de acordo com o que nós prescrevemos anteriormente, fica claro perceber que a religião seja um instrumento potente. Pode dominar (como também libertar) indivíduos, instituições, países e continentes. 24 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura MAYOMBE (Ao Pepetela) Matadi Makola S ocialmente vestido de conselheiro da embaixada de São Tomé e Príncipe em Angola, Francisco Fonseca Costa Alegre é um escritor que passaria despercebido numa esquina qualquer das nossas ruas sem que muitos (falando aqui das consequências da carência de intercambio entre escritores dos PALOP) dessem conta do vulto literário santomense que passa ao lado. Sorte a nossa que, ainda numa daquelas sempre preguiçosas e frias manhãs de cacimbo, tivemos a audácia inexplicável até agora de nos esbarrarmos com ele e habilmente, depois de um gradual golpe de vista, termos marcado uma conversa quente. Nascido no dia 2 de Fevereiro na cidade de São Tomé, São Tomé e Príncipe, fez os estudos secundários em sua cidade natal e estudos superiores de Francês em Besançon, França, e de Comunicação Social em Nova Iorque, Estados Unidos da América. Poeta, crítico e ensaísta, vem colaborando regularmente em jornais e revistas santomenses e estrangeiras. Da sua produção soam títulos como: “Madala”, poesia (1991), “Cinzas do Madala”, poesia (1992), “Mussandá”, prosa (1994), “Muteté”, prosa (1998), “Brasas de Mutété”, Prosa, Estudo da Literatura Santomense (1998), “Mussungú, poesia (2002), “Crónicas de Magodinho”, prosa (2003), “Kissanga-Kiando”, Crítica Literária (2004) Santomensidade, prosa (2006),“Latitude 63”, prosa (2008). C arregado de franqueza e sensatez, virtudes que um bom escritor não dispensa, consciente da sua inquietante palpitação artística ao assumir a sua indefinição, que para os mais atentos pode ser visto como claro sinal de solidez da sua intangível missão de criador, com palavras e modéstias que só a idade bem conseguida dá, Costa alegre deixa sempre à conversa o carimbo do africano que sabe bem ser santomense: Cultura - Como define a literatura santomense de hoje? Francisco Costa Alegre - A literatura santomense de hoje está marcada por realidades que os próprios protagonistas e operadores do tecer literário têm manifestado para fazerem o corpus dessa realidade literária contemporânea que ainda é incipiente. Envolvida na história de São Tomé, esta literatura divide-se em dois espaços: o período antigo e o período recente. O primeiro acaba em 1975 e o segundo até aos dias actuais, este que é o período de passagem de testemunho onde se destacam nomes como o contista e romancista Albertino Bragança, a poetisa Conceição de Deus Lima, o contista Jerónimo Salvaterra e muitos outros que vão trazendo novas auras à literatura santomense. C - Que sentido se pode ter da miscigenação santomense? F.C.A - Eu, por exemplo, me sinto dividido entre a descendência moçambicana e a portuguesa, e no meio estou sempre a me perguntar quem Mayombe é terra de zumbidos Ali aprende-se a teoria, Às vezes ergue-se, às vezes se sucumbe No pólipo da sabedoria; Aprende-se a ser narrador Faz-se um animismo realista Só e só do Mayombe real e animador Renovador chamado universalista; Mayombe será sempre Mayombe Diferente e sempre Mayombe Transformar e ser sempre Mayombe No pólipo da sabedoria; Tocar-se-ão batucadas da Mucanda, E a cabindando a vida do povo anda Andará crioula e genuína no Mayombe No Polípo da sabedoria; Corta-se uma árvore. Corta-se o crescer duma sabedoria, Nascerão outras centenas de árvores E o saber multiplicar-se-á na geração que cria O pólipo da sabedoria; Luandando a gente se preocupa Preocupa-se com Mayombe Ser-se só Mayombe ou também luandando No realismo realista de toda árvore No pólipo da sabedoria. Francisco Costa Alegre in Mussungú sou. E é na ideia imediata de espaço onde me apego para afirmar que sou santomense. Isto já espelha que a república de São Tomé e Príncipe é determinantemente um espaço sui generis onde há um pouco de todos. Nós temos descendências de angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, portugueses. Esta mescla de vários povos de diferentes lugares é que dá o sentido da crioulização da literatura santomense. Todo corpus da literatura santomense contemporânea é uma desenvoltura desta mestiçagem. C - Em “História da Literatura Santomense” questiona: seremos verdadeiramente Bantu? Será a identidade de São Tomé e Príncipe uma missão ainda por se cumprir? F.C.A - Com certeza que a nossa definição como santomenses é algo ainda por se descobrir. Em São Tomé existe a consciência de um povo: o povo Bantu, que é originário da costa africana e que de alguma forma não podemos estar de fora devido a nossa constituição como Francisco Costa Alegre “Não somos puros, mas sim uma mestiçagem muito complicada” Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 povo. E sempre que esta questão se coloca perguntamo-nos: será que o povo santomense é verdadeiramente Bantu? Porque quando se chega à questão os santomenses questionam-se a si mesmo procurando definir uma identidade homogénea, e isto leva-nos à conclusão de que não somos puros, mas sim uma mestiçagem muito complicada. Ou, na procura de possibilidades de nós, pode ser que aceitemos a mestiçagem como pureza/base para nos construirmos e daí advir uma pura definição de nós, porque São Tomé é uma mistura de muito sangue. E é sobretudo na prescrição sanguínea que nós nos afirmamos Bantu, embora conscientes de que não somos um povo Bantu puro. C - Que reminiscências santomenses se pode ver do futuro africano ante o realismo? F.C.A - É uma questão bastante complicada. O futuro de África será construído à medida que o tempo vai surgindo e como nós recebemos a estafeta das realidades dos antepassados e saibamos transpô-las às gerações da posterioridade. No conceito africano, seria a realidade da construção da identidade santomense que eu, em alguns casos, chamo de santomensidade. C - Acredita no risco do conceito e realidade africana ser um mito para a posterioridade ante os actuais níveis de aculturação? F.C.A - Todo o mito é uma referência de algo que se passou. Pode ser que, em consequência do realismo, o passado e conceito de África pura para o futurismo venha a ser um mito. Mas o mito como referência longínqua que a sociedade mantém perene e que se conserve nas mentes a realidade africana. C - Do Poema Mayombe do livro “Mussungú” lêem-se apelos à sabedoria africana. O que fica por detrás do poema? F.C.A - Foi depois de ter lido o livro “Mayombe” de Pepetela que me veio a inspiração de escrever este poema. De facto, os velhos são apanágio de sabedoria e a morte de cada velho é a morte de um dicionário, e muitas vezes uma biblioteca. Outra referência é o mito de que quando se corta uma árvore do Mayombe imediatamente nasce outra. Este poema é um apelo às bibliotecas vivas e da própria realidade em si, isto também pensando em invocar elementos culturais PALOP. C - Em “Madala” tem uma visão infinita e melancólica. Que acontecimentos externos o levaram a prescrever obra? F.C.A - Eu sou descendente de uma família de escritores, e essa minha primeira obra ainda é incipiente. Foi o meu primeiro passo na literatura. Eu escrevi o livro inspirado nesta palavra que é originária de Moçambique, e que em São Tomé perdeu o sentido de ser velho e passou a ser talismã. C - Para quem acha que é o dever de realizar o sonho africano? F.C.A - O sonho de reavivar África é um desafio que nós todos encontramos. Já Alda do Espírito Santo dizia num dos seus poemas: “ A liberdade é a pátria dos homens”. Isto querendo dizer que os homens enquanto não forem livres de preconceito e ostentarem uma vida social estável eles não serão livres. Serão sempre oprimidos de uma ou de outra forma. Isso compete aos africanos, principalmente aos operadores literários a missão de trazer aos povos africanos uma mensagem de construção de um futuro e identidade que nós podemos almejar. O africano não pode voltar as costas às ideias do desenvolvimento ou repudiar o melhor do ocidente. É preciso assentar num adágio que explica que “o vinho é inimigo do homem, mas voltar as costas ao inimigo é a maior cobardia”. Nós não podemos virar contra o ocidente, mas devemos enfrenta-lo encarnando os nossos valores culturais. C - Depois de uma vasta produção literária, como observa a missão de escritor? F.C.A - De muitos sonhos. A nossa missão de escritores e sonhadores faz com que muita gente afirme que os escritores vivem no espaço. Isso é verdade. Mas os escritores não podem inteiramente viver no espaço. Eles vivem no espaço com a perspectiva de alterar o solo firme. C - Que dificuldades encontra o escritor santomense de hoje? F.C.A - O nível de aceitação de tendências do ocidente em São Tomé também é muito grande em relação às coisas puramente africanas. Não tanto aqui em Angola porque o processo torna-se mais fácil para os músicos e escritores. Mas em São Tomé um dos grandes problemas é a falta de gráficas. Todas as minhas obras são publicadas em Portugal. Somente “Madala” é que foi artesanal. E muitas vezes os revisores portugueses cortam a seu favor parte de alguns textos. Embora exista a liberdade de imprensa, eles só publicam o que acham que não lhes afecta. Diferente seria se nós tivéssemos as nossas gráficas, ou uma sustentabilidade para o efeito. C - A que conclusão chega sobre o acto de escrever? F.C.A - Para mim, o acto de escrever é uma manifestação artística, um desabafo, uma maneira de divulgar a realidade do meu país, uma vontade firme de construir e de aprender. Eu quero ser um escritor santomense. Eu ainda não sou escritor. Tudo aquilo que eu faço dá-me alguma sustentabilidade para me considerar um operador literário com ambições. Mas eu gos- DIÁLOGO INTERCULTURAL | 25 taria de aprender muito mais para poder escrever também, porque cada vez que eu escrevo eu noto em mim, quando me volto para trás, que tive progresso pelas coisas que fui aprendendo sempre. Escrever é uma forma de me melhorar. C - Há uma definição justa para si? F.C.A - Eu sou escritor sem rosto. Ainda não tenho um rosto bem definido. Eu não posso dizer que sou um poeta, romancista ou crítico literário. Mas posso dizer que sou um indivíduo que investiga e depois tenta compô-lo em poesia ou conto. Eu sou contista, e não um romancista. C - Com “Latitude 63”, “Rosas do Vento”, “A Cidade de São Tomé”, “Brasas de Mutété”e “Kissa-Kianda”, fruição intelectual e letargia académica podem justificar a sua intervenção além da Literatura? F.C.A - A travessia que faço da Literatura à Sociologia e, embora um pouco menos, à Historia é necessidade minha como cidadão em contribuir para o registo de factos históricos do meu povo. Um exemplo muito vivo é o caso do hino nacional de São Tomé e Príncipe ser produto de um texto crioulo que anda desaparecido e que até hoje ninguém consegue recuperar. Este texto era o hino de luta em combate. Hoje ninguém sabe como encontrá-lo. C - Pode afirmar-se como um crítico de critérios africanos? F.C.A – Confesso que ainda sou produto do ocidente. Mas não sou radical. Eu faço a crítica a partir de parâmetros ocidentais mas atendendo sempre a realidade africana e santomense. Na “Teorização da Literatura Santomense” tentei criar a teoria da literatura santomense como parte inseparável da história. À medida que se dá passos na história, a literatura também obedece aos critérios de mudança. 26 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura Jean-Joseph Rabearivelo (1901 - 1937) Arte longa, vida breve minavam, durante todo o século anterior, os valores tradicionais da ilha, a grande Ilha Vermelha. Antônio Moura M adagascar, na época do nascimento de Jean-Joseph Rabearivelo, nome artístico posteriormente adotado, é uma colônia francesa e as classes dominantes, arruinadas, subsistem em convivência com os poderes estrangeiros, que já do- Filho natural de uma jovem protestante de sobrenome Rabozivelo e descendente de uma casta real empobrecida, a dos Zanadra Lambo, JeanCasimir Rabe, seu nome verdadeiro, teve o apoio financeiro de um tio católico, que proporcionou-lhe os estudos. Sua vida acadêmica, porém, foi curta: iniciou seus estudos nos Irmãos das Escolas Cristãs, passando em seguida ao Colégio Saint-Michel, de orientação Jesuíta, do qual é expulso aos treze anos, finalizando sua trajetória escolar num liceu público, onde passa apenas alguns meses. A par- tir daí, converte-se em um jovem autodidata com sede de erudição em contra-posição ao ambiente miserável que o cerca. Mas é preciso ganhar o sustento e, para isso, o futuro poeta trabalha, sucessivamente, como secretário, escrevente e bibliotecário. Começa então a publicar seus primeiros ensaios em revistas e periódicos, sob pseudônimos de aura romântica, como Almace Valmond ou Jean Osmé. trairá o necessário para a sua subsistência até a sua morte. Porque passa a ser conhecido na Europa através de um artigo, em francês, sobre a poesia malgache, publicada pela revista austríaca missionária Anthropos. O ano de 1923 tem para Rabearivelo uma importância vital, por três motivos princiais: Porque conhece a Pierre Camo, que, de certa forma, será para ele o que o professor Georges Izambard foi para Rimbaud, incentivando-o, amparando-o, introduzindo-o nos salões artísticos e atualizando-o em relação ao que se havia feito e se estava fazendo na França. Porque passa a trabalhar na Imprimerie de Imerina, de onde sairá a maioria dos seus livros e da qual ex- A partir desta época aparece a primeira parte de sua obra, mais precisamente de 1924 a 1930, com La cou- Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 DIÁLOGO INTERCULTURAL | 27 amarguras: sua saúde declina a cada dia, assim como fica também cada vez mais difícil conciliar-se com a vida cotidiana no ambiente castrador da colônia; o governo nega-lhe, às vésperas, uma viagem prevista à Exposição Universal em Paris, onde um bailarino, Serge Lifar, iria interpretar sua cantata Imaitsoalana; as dívidas acumulam-se e os credores o levam aos tribunais, onde é declarado culpado. Diante deste quadro, tenta, num recurso desesperado, acrescentar mais dinheiro aos seus rendimentos solicitando um posto de funcionário público, mas a administração o recusa, por não possuir nenhum título oficial. Dois dias após a esta tentativa frustrada, no dia 22 de julho, o poeta escreve a última página do seu diário e suicida-se, ingerindo dez gramas de cianureto. DOIS POEMAS DE JEAN-JOSEPH RABEARIVELO EM TRADUÇÃO DE ANTÔNIO MOURA O boi branco Esta constelação em forma de cruz, é ela o Cruzeiro do Sul? Eu prefiro chamá-la Boi-branco, como os Árabes. Ele vem de um parque que se estende às margens da noite e se enfurna entre duas Vias Lácteas. O rio de luz não tem aplacado sua sede, e ei-lo que bebe avidamente do golfo das nebulosas. Sendo um efebo cego nas regiões do dia, ele nada tem podido acariciar com seus cornos; mas, agora que as flores nascem nas pradarias da noite e que a lua brota de um salto como um touro, seus olhos recobram a visão, e ele parece mais forte que os bois azuis e os bois selvagens que dormem em nossos desertos. Ler pe de cendre (1924), Silves (1927), Volumes (1928) e L´interference, uma novela sobre a sociedade colonial, publicada apenas postumamente, em 1988. Quanto aos poemas, no entender de Juan Abeleira, são ainda estilisticamente concebidos sob a influência insidiosa da escola parnasiana, mas onde já se pode rastrear ao menos duas das maiores preocupações essenciais de Rabearivelo: o culto dos antepassados e a exaltação da legendária Larivo. Obras que, na interpretação de H. Mariol, traduzem a luta interior do homem de letras ocidental em que Rabearivelo tinha se tornado e do indonésio que mantinha preservada a herança de seus ancestrais. 1924 é também o ano em que começa a escrever os Calepins Bleus (Cadernos Azuis), célebre diário escrito até mesmo o dia da sua morte. Rabearivelo casa-se em 1926 com Mary Razafitrimo, uma de suas alunas particulares, que, posteriormente, lhe dará um filho e quatro filhas. Ainda que até nós tenha chegado a imagem de um Rabearivelo muito carinhoso com a sua progênie, parece que a relação entre o poeta e sua mulher não foi o que se possa chamar de harmoniosa. E, possivelmente, o principal motivo disso tenha sido a crescente adesão de Rabearivelo ao ópio. Droga a que recorreu mais como um bálsamo às sua dores de corpo e de alma do que como fonte de inspiração, ainda que este fizesse parte de um suposto projeto poético e espiritual próximo ao da vidência rimbaudiana. Então, a partir de 1929/30 sua vida vai decaindo sem parar, ao passo que, paradoxalmente, sua obra vai se elevando. O tema do mais-além, para citar ainda uma vez mais Juan Abeleira, torna-se, aos poucos, uma obsessão que resultará fatal, somando-se um interesse real, não apenas literário, por astrologia e ocultismo e todo o tipo de excessos que acabam por minar-lhe a saúde, já originariamente precária, pois era asmático. Uma série de acontecimentos trágicos começam então a acumularse ao seu redor, até que a morte de sua filha Voahangy, em 1933, provavelmente causada por negligência de um médico, transtorna-lhe profundamente. Para Jean-Joseph Rabearivelo, 1937, o seu último ano de vida na terra, é uma sucessão de desilusões e Não faças ruído, não fales: vão explorar uma floresta os olhos, o coração o espírito, os sonhos... Floresta secreta, porém palpável: floresta. Floresta de rumoroso silêncio, floresta onde se refugiou o pássaro que se prende à laço, o pássaro que se prende à laço, que faremos cantar ou que faremos chorar. Que faremos cantar, que faremos chorar o lugar de seu nascimento. Floresta. Pássaro. Floresta secreta, pássaro oculto em vossas mãos. Antônio Moura nasceu em Belém do Pará, em 1963, onde ainda reside e trabalha. Poeta, letrista, roteirista de cinema e vídeo. Publicous as coletâneas Dez (1997), Hong Kong & Outros Poemas (1999) e Rio Silêncio (2004). 28 | DIÁLOGO INTERCULTURAL Rabearivelo, obras literárias completas, tomo II 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura Edição crítica coordenada por S. Metinger, L. Ink, L. amarosoa, C. Riffard País do autor: Madagáscar Autor: Jean-Joseph Rabearivelo Edição: CNRS Editions País de Edição: França ISBN: 978-2-271-07390-7 Género: estudos literários, críticas Números de páginas: 1792 Aparição: 07 Junho 2012 I maginemos, no início deste vigésimo século, no coração de uma ilha ainda submetida à França, um jovem de cor que descobre o dom da expressão, associado ao amor pelas letras e pela língua francesa! Consciente de ser um génio, Jean-Joseph Rabiearivelo, nascido em 1903, trabalha então para se tornar no primeiro “intelectual” da sua nação. Poeta, jornalista e crítico, romancista e dramaturgo, historiador e tradutor, ele esforçar-se-á para manter o equilíbrio entre o inato e a abertura de espírito que lhe foi permitida por um médio estrangeiro prestigioso. Ele que se diz “filho de reis de uma época longínqua” mas vive em condições duras no seu estatuto de bastardo, será a luz brilhante da sua “raça”. Isto passará pelo domínio da língua do conquistador e pelo excelente destaque que ele mostrará no campo literário de uma das mais antigas civilizações da Europa. Além disso, ele não se esquece e não esquecerá nunca a língua e a civilização malgaches. A sua perspectiva intelectual, literária, estética e crítica está traçada e o seu sonho mais querido é de por em contacto e fazer passar uma cultura dentro da outra, ou seja, as duas culturas que são as suas: a europeia (a francesa mais particularmente) e a malgache. A sua admirável criatividade não se contenta em explorar os modelos em vigor, e o domínio da língua francesa não significa submissão intelectual e moral ao conquistador. Esta língua vinda de outros pontos, imposta primeiramente pela força das armas, mas amada apaixonadamente, pode tornar-se uma ferramenta de abertura ao mundo e à universidade da literatura enquanto expressão da dignidade humana. Este segundo tomo das suas obras completas compreende, em primeiro, a obra essencial, isto é, a obra de criatividade – a poesia, as narrações, as peças de teatro – em seguida, a obra do eminente transmissor de cultura e de civilizações que ele foi durante toda a sua fulgurante carreira – as traduções de poemas malgaches tradicionais e contemporâneos para o francês – e finalmente a contribuição do intelectual engajado e criativo – os artigos críticos e os ensaios de história. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 DIÁLOGO INTERCULTURAL | 29 Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua abolição Carlos Hernández Sot A 23 de Agosto de cada ano, o mundo celebra o Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua abolição. O tráfico de escravos, praticado inicialmente por países europeus e logo a seguir pela América colonial, teve a cumplicidade dos chefes africanos e durou desde o século XV ao XIX. Era caracterizado pela captura, venda, transporte e exploração de mais de 15 milhões de pessoas e seus descendentes ao longo de quatro séculos (Curtin, 1969). Para não esquecermos este trágico processo, a UNESCO criou em 1994 o Projecto “Rota do Escravo” e em 23 de Agosto de cada ano é prestada homenagem aos homens e mulheres que lutaram contra esta opressão. O comércio de escravos resultou na acumulação de capital nas grandes potências europeias e dos Estados Unidos da América e na base económica que permitiu a industrialização da Europa e da América, enquanto a África ficou despojada da sua riqueza, população e sua força de trabalho jovem. A acumulação primitiva do capital europeu e norte-americano é, portanto, amassado com o sangue dos negros africanos. O tráfico negreiro foi também uma tragédia humana e um desastre cultural. Como parte da tragédia humana, famílias foram separadas e desunidas na África e negros escravizados na América, onde foram tratados como animais, sendo-lhes negada a possibilidade de formação de famílias estáveis, e despojados das suas antigas culturas e suas línguas nativas. Os africanos escravizados foram proibidos de seguir as suas crenças e práticas religiosas e, consequentemente, foram doutrinados, embora superficialmente, na religião católica. Mas na viagem transatlântica dos navios negreiros, os africanos também viajaram com os seus deuses, especialmente o aquáticos (mães de água), como Kalunga, a deusa do mar e da morte da bacia do CongoAngola. Desembarcaram com eles em solo americano. A reunião e confronto de culturas deu origem a religiões sincréticas nascidos em terras do Novo Mundo: voodoo em suas diferentes versões, Santeria, Candomblé, algumas formas de catolicismo popular americano e outras expressões religiosas híbridas. Quando não foi possível a manutenção económica das colónias, ocorreu gradualmente, nos Estados Unidos, a abolição da escravatura, que nasceu disfarçada como "acto misericordioso e compassivo", mas na realidade foi principalmente devido a fortes razões económicas. Hoje, a luta contra a escravidão continua principalmente contra dois dos efeitos da história da escravidão: o racismo e a discriminação. Também continua na luta pelo reconhecimento do pluralismo cultural na construção de novas identidades e a criação de uma ideia renovada de cidadania. No Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, o Dr. Simão Souindoula, historiador angolano, membro do Comité Científico Internacional da UNESCO - Projecto Rota do Escravo, apresentou uma palestra subordinada ao tema “¡KALUNGA EH ! LOS CONGOS DEVILLA MELLA–Património Intangível da Humanidade”. Na sede da companhia de Teatro Laa-Roi teve lugar a terceira sessão do projecto Afidika nzo yeto, bukisi beto, com a projecção do filme “AMISTAD”, de Steven Spielberg. Costa de Cuba, 1839. Dezenas de escravizados negros libertam-se das correntes e assumem o comando do navio negreiro La Amistad. Eles sonham retornar para a África, mas desconhecem navegação e vêem-se obrigados a confiar em dois tripulantes sobreviventes, que os enganam e fazem com que, após dois meses, sejam capturados por um navio americano, quando desordenadamente navegaram até à costa de Connecticut. 30 | DIÁLOGO INTERCULTURAL O Amado do Brasil Salgado Maranhão A exuberante presença do romancista Jorge Amado no panorama da literatura brasileira do sec. XX, trouxe um enorme contributo ao âmbito da linguagem e do debate de questões raciais até então sublimadas. O arejamento instaurado a partir da Semana de Arte Moderna, em 1922, encheu o Brasil de entusiasmo criativo, especialmente o Nordeste, que elencaria na década seguinte, a mais importante linhagem de ficcionistas brasileiros. Surgia, quase na mesma geração, José Américo de Almeida, Raquel de Queirós, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Adonias Filho – e o próprio Jorge Amado. Porém, à parte as distinções de estilo, os demais romancistas do ciclo nordestino, mantêm uma certa coerência na temática e no manejo da linguagem, que se ajustam à maneira de falar de toda uma região. Em cada um desses autores, é o Nordeste em sua vasta cultura que se faz representar, com pouca diferença de um estado para o outro. Ao contrário disso, Jorge Amado é o Romancista da Bahia, aquele que é universal, justamente, por contar a sua aldeia, como queria Dostoiévski. Nenhum escritor reinventou a Bahia como ele, nem mesmo os cientistas sociais da sua geração ou da anterior, que se esmeraram na busca da exatidão de fatos históricos e culturais. A Bahia de Jorge Amado é mítica, queimada pelo sol da raça negra, que deu ginga, amor e humor a uma terra que congrega seus litorâneos para a mística e para a vida mansa. Numa edônica atmosfera de luxúria tropical, aporta em sua prosa uma enorme legião de tipos humanos, que não representa apenas o lado social periférico que a elite rejeita, mais que isso, Jorge os transforma em figuras sedutoras e até mesmo apaixonantes em suas autênticas contradições. Durante décadas, em sua longeva trajetória de sucesso, nenhum outro escritor brasileiro o alcançou. Traduzido para mais de trinta línguas, conheceu em vida o que todos almejavam. Por isso, também, teve que enfrentar duras críticas ao seu estilo e à sua abordagem na questão da negritude. Do estilo, criticaram-lhe a verve redundante e as recorrências ao mesmo tema; da negritude, acusaram-no de exacerbar em suas obras, particularmente, a sexualidade da mulher negra, gerando um estereótipo degradante. Este, inclusive, é o aspecto de maior rejeição à sua obra, nos dias de hoje, na comunidade afrodescendente. E pode ter sido a causa do ostracismo aos seus livros de pelo menos uma década sem novas edições. Seja como for, é impossível negar a enorme presença desse autor no imaginário do povo brasileiro. Sua hábil construção de personagens só é comparável aos grandes do passado, como Machado de Assis e Lima Barreto. Além disso, as críticas que lhe são desferidas, se por um lado se ancoram em algum fundamento, por outro, não são de todo justas, porque, dá lição de moral não é papel do ficcionista. Como cidadão, Jorge Amado foi um homem ajustado à sua época e às suas demandas. Comunista de primeira hora, aliou-se às causas mais urgentes do seu tempo, sujeitando-se(juntamente com a sua amada de vida inteira, a também escritora Zélia Gattai)a exílios e restrições diversas em prol dos seus princípios. Extremamente afetivo, fez jus ao sobrenome Amado: mimou e foi mimado pelos amigos e pelo povo da Bahia e do Brasil, sua famosa generosidade abriu caminhos para muitos que se iniciaram no incerto mundo das letras(inclusive,a única coletânea do poeta Agostinho Neto, lançada no Brasil,tem prefácio seu). De modo que, as comemorações que se levantam no centenário do seu nascimento, são o justo prêmio a um extraordinário escritor que amou a literatura e o seu país mais do que tudo. 3 a 16 de Setembro de 2012 | Cultura Mindelact arranca no Mindelo durante 8 dias Nuno Rebocho Q uarenta espetáculos teatrais vão encher a cidade do Mindelo, na ilha de S. Vicente, Cabo Verde, de 7 a 15 de Setembro próximos, durante o grande festival cénico que costuma ser o Mindelact. Criado em 1995, por iniciativa do português João Branco, que se fixou naquela ilha, o certame confrontou-se este ano com algumas dificuldades, sobretudo as resultantes da grave crise económica internacional, a qual acabou por afetar este muito significativo festival da melhor dramaturgia. Vencendo com denodo as dificuldades, o Mindelact sobe aos diversos palcos mindelenses, desde o Centro Cultural até à Academia Jota Monte. Este ano, suscita muita expetativa a Teatrolândia, isto é, uma iniciativa paralela ao Festival que funciona como um seu segmento dedicado ao público juvenil. Grupos cénicos de sete países vão atuar neste Mindelact, com destaque para Angola (cujo Elinga Teatro será uma das grandes atrações). Mas além de Angola, vão estar presentes companhias vindas do Brasil, de Marrocos, de França, Itália, de Portugal e, obviamente, de Cabo Verde. Durante os oito dias de representações, realizam-se cursos de formação que servem para garantir a continuidade da qualidade das apresentações, criando novos e mais protagonistas da cena cabo-verdiana. O teatro de rua, concorrendo com o que se mostra nos palcos, dá enorme projeção pública ao Mindelact que, nesses dias, se converte na capital, por excelência, da dramaturgia em Cabo Verde. No entanto, o esforço desta Associação não se restringe ao Mindelo, propagando-se dele a todo o arquipélago. Cultura | 3 a 16 de Setembro de 2012 Um cinturão BARRA DO KWANZA |31 CONTO de Graciliano Ramos A s minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural. Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a. Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras. Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulirme: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo. Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação. Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos. Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as consequências delas me acompanharam. O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira. Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro. Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficoume na lembrança: parece que foi pregada a martelo. A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio. Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigoume as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo. Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa. Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero. O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível. Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalarme com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentarse e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado. Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou. Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra. Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça. Graciliano Ramos considerado um dos mais importantes escritores do moderno romance brasileiro, nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, sertão de Alagoas, filho primogénito dos dezasseis que teriam seus pais, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Viveu a sua infância nas cidades de Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE), sob o regime das secas e das surras que lhe eram aplicadas por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo, a ideia de que todas as relações humanas são regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico "Infância", assim se referia a seus pais: "Um homem sério, de testa larga (...), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura". Em 1894, a família muda-se para Buíque (PE), onde o escritor tem contacto com as primeiras letras. Em janeiro de 1953, é internado na Casa de Saúde e Maternidade S. Vitor, onde vem a falecer. É publicado o livro "Memórias do cárcere", que Graciliano não chegou a concluir, tendo ficado sem o capítulo final. Bibliografia: - Caetés - romance - São Bernardo - romance - Angústia - romance - Vidas secas - romance - Infância - memórias - Dois dedos - contos - Insônia - contos - Memórias do cárcere - memórias - Viagem - impressões sobre a Tcheco-Eslováquia e a URSS. - Linhas tortas - crônicas - Viventes das Alagoas - crônicas - Alexandre e outros irmãos (Histórias de Alexandre, A terra dos meninos pelados e Pequena história da República). - Cartas - correspondência pessoal. 32 | NAVEgAçõEs 3 a 16 de Setembro de 2012 | Kudilonga Cultura O lápis da menina-professora Ximinya m meados dos anos 70 o bairrinho pobre vivia tempos conturbados como todos os outros bairros e regiões do país. As mudanças radicais que se anunciavam vinham alterar convicções e certezas. Os mais velhos perdiam as marcas dum passado recente, adquiridas em detrimento de suas próprias identidades, e desconheciam o futuro que lhes parecia incerto. Viam, assustados, seus filhos, generosos, abraçarem “novos tempos e novas vontades”. A menina do bairrinho pobre, agora adolescente, identificava-se com estes novos tempos. Esqueceu temporariamente a Faculdade e voltou à escola primária do seu bairrinho para ensinar a ler e a escrever aos operários, empregadas domésticas, lavadeiras e outros trabalhadores que não tinham tido acesso à escola. Gostava de ensinar e apercebeu-se, admirada, que preparava as lições de alfabetização dos seus alunos com o mesmo afinco que preparara as suas aulas na escola e no liceu. Duas barreiras se lhe deparavam e, na sua idade e inexperiência, pareciam-lhe gigantescas: o fosso da idade entre ela e os adultos que afalbetizava e a dificuldade da luta contra o analfabetismo. Toda a sua educação fora baseada no respeito pelos mais velhos que tinham sempre razão mesmo quando não a tivessem. Como iriam eles agora aceitar que ela lhes ditasse regras? Começou a sua primeira lição de pedagogia, no terreno. Aqueles mais velhos não sabiam ler mas possuíam sabedorias que ela ignorava e que eles lhe foram transmitindo enquanto ela lhes revelava o novo mundo das letras e dos números. E nessa troca de saberes, enriqueceram-se mutuamente, cada um se apoiando na sua experiência e competência. Afinal não fora necessário “ditar regras” mas procurar em si palavras e gestos simples para transmitir uma técnica que os adultos analfabetos E desconheciam. Com espanto, a menina-professora constatou que o lápis que ela manipulava distraidamente e com ligeireza se transformava num instrumento cortante que os alunos adultos, receosamente, ostentavam entre os dedos hirtos e tensos, tal um punhal trespassando as páginas do caderno. A letra “a” ondulante, maleável, o “b” esbelto que se esticava vaidoso e que ela tão bem sabia desenhar, desafiavam os alfabetizados adultos que, após um dia de trabalho, se dirigiam corajosamente à escola, a mesma para onde tinham mandado estudar os filhos, hoje seus professores! A jovem do bairrinho pobre entendeu a complexidade da arte de ensinar. Teve sempre uma empatia com os seus alunos e deles recebeu as primeiras lições empíricas de pedagogia que valiam certamente muitas aulas na Faculdade! Mas isso a jovem do bairrinho pobre só descobriu muito mais tarde quando defendeu a sua tese de pedagogia na Faculdade, já no estrangeiro, no seu exílio voluntário. Paris, 05 de Janeiro de 2012 Mar de Margaridas Doces olhos aguados de mar fitando o árido dos meus olhos secos num mar de margaridas bebi água do teu olhar e sorri Flor mulher pétalas de mel no olhar magoado sal na doçura e eu Eu me saceio na frescura do teu seio Filipe Zau Do livro “Encanto de um Mar que eu Canto” (1996) Efemérides 2012 Ano Internacional das Cooperativas | Ano Internacional da Energia Sustentável para Todos 2003 – 2012Década da Nações Unidas para a Literacia – Educação para Todos 2005 - 2012Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável | Segunda Década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo 2005 – 2015Década Internacional para a acção, “Água para a Vida” 2008 - 2017Segunda Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza 2010 - 2020Década das Nações Unidas para os Desertos e a Luta contra a Desertificação.