REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL I. 73 missão integral capítulo 7 REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL ANTÔNIO CARLOS BARRO1 QUANDO PENSAMOS EM avaliar a missão integral no Brasil, poderíamos buscar várias vertentes para fazer uma análise que explicitasse esse marco histórico. Poderíamos, por exemplo, falar das pessoas que contribuíram para que essa proposta da missão integral fosse solidificada, sedimentada. Fazendo assim, correríamos o risco de deixar algumas pessoas à margem. Então preferimos olhar a missão integral a partir da vertente ou da ótica de três organizações. Mas, antes disso, mesmo sem termos ainda um registro histórico desse processo, tentaremos entender um pouco como esse tema chegou até nós ou como ele chegou até as nossas igrejas. UM OLHAR HISTÓRICO DE FORA PARA DENTRO Se olharmos para o século 19, nos Estados Unidos, quando a condição dos trabalhadores era precária e a riqueza estava concentrada nas mãos 74 MISSÃO INTEGRAL de poucas pessoas — isso nos Estados Unidos do século 19, e não no Brasil de hoje... —, havia uma certa efervescência em alguns grupos no sentido de trazer estas questões também para dentro das igrejas. E o conceito do reino de Deus, que era apenas um conceito escatológico — de que um dia o reino de Deus viria na pessoa de Jesus Cristo por meio de sua segunda vinda —, passou a ser trabalhado no sentido de que poderia começar a ser implantado já aqui na terra. Alguns teólogos e pastores iniciaram, então, reflexões nessa direção: o reino de Deus não estava no além, no futuro, mas já estava presente, e as condições do reino já deviam também estar presentes na igreja. Assim, podemos identificar, na história mais recente, que a missão integral é fruto também dessas reflexões ali nos Estados Unidos entre trabalhadores e alguns pastores e seminários. Um tema que se tornou bastante forte e que continua forte até hoje é o de Missio Dei: a missão tem como origem o trono da graça de Deus. Daí derivou-se o conceito de que a igreja deveria integrar-se na Missio Dei: deveria trabalhar ou ir para a rua a partir da concepção de que Deus está agindo no mundo. A Missio Dei foi muito importante para a igreja, e vários missiólogos e teólogos trabalharam a missiologia a partir da Missio Dei. Certamente que as reuniões do Conselho Mundial de Igrejas, por meio de suas declarações e conclusões, também ajudaram na sedimentação da idéia de missão integral. Paralelo a esse período da Missio Dei na Europa, surge também a chamada teologia política dos teólogos germânicos. Karl Rehner, Johann Metz, Schillebeeck e outros trabalharam a concepção da teologia política que acabou influenciando Bonhoeffer e Moltmann, que, por sua vez, influenciaram o desenvolvimento da teologia na América Latina, dando início ou pelo menos ajudando a estabelecer a teologia da esperança na América Latina e no Brasil. A teologia política contribuiu em dois aspectos. Primeiro, corrigiu a tendência de confinar a teologia à arena privada e particular, reduzindo o coração da mensagem cristã e o exercício prático da fé a uma decisão meramente individual, à parte do mundo. Foi, portanto, uma reação à separação entre religião e sociedade. Segundo, contribuiu para o esforço da teologia em formular a mensagem escatológica do cristianismo no contexto da sociedade de hoje. REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 75 Percebemos então que, quando trabalhamos o conceito de missão integral, em certo sentido somos herdeiros desses acontecimentos fora do Brasil. Porque ainda hoje, neste congresso, estamos falando em trabalhar as mensagens do cristianismo no conceito da sociedade atual — o mesmo tema da teologia política por volta de 1930 a 1940. E como as pessoas reagiram ao evangelho social, à Missio Dei e à teologia política? Alguns reagiram veementemente, crendo que esses movimentos estavam orquestrando uma diminuição da preponderância do evangelho, ou da pregação do evangelho como atividade primária da igreja. Surgiram reações e algumas fortes críticas, explicitando que esses movimentos queriam tirar o evangelismo do papel principal da função da igreja no mundo. Outros reagiram positivamente, refletindo, criando congressos, conferências, seminários para uma reflexão mais aberta, mais saudável a respeito daquilo que estava sendo proposto. O livro de Luiz Longuini Neto, O Novo Rosto da Missão,2 é um excelente apanhado histórico dos acontecimentos dessa fase e focaliza os movimentos e congressos realizados na América Latina, como CELA (Conferência Evangélica Latino-Americana) I, II e III, e CLADE (Congresso Latino-Americano de Evangelização) I, II, III e IV. Em 1966 aconteceu nos Estados Unidos — fazendo uma rápida pincelada — o Congresso de Wheaton, que procurou demonstrar que nós, evangélicos, deveríamos ter também uma preocupação com a justiça social e a transformação da sociedade. Depois, num outro salto, foi a vez do Congresso de Lausanne, em 1974. Sob a liderança de homens e mulheres que tinham o coração nessa direção, trabalhou-se a questão da missão integral, ação social e evangelização. E o Lausanne 74 produziu filhos e filhas pelo mundo todo: conferências e mais conferências, inclusive o nosso CBE, de 1983. Foi a partir do Congresso de Lausanne, então, que as coisas, pelo menos no mundo evangélico, ficaram um pouco mais definidas. É difícil conceituar desta forma, mas, na falta de outras palavras, podemos dizer o seguinte: os mais fundamentalistas, os mais conservadores continuaram crendo que a evangelização é a tarefa principal da igreja. Outros, numa segunda posição um pouco mais moderada, começaram 76 MISSÃO INTEGRAL a pensar que a busca pela justiça social também deveria ser integrada à missão da igreja, mas ainda subordinada à evangelização; para estes, a evangelização continuava sendo ainda a primeira missão, a prioridade da igreja. E um terceiro grupo começou a trabalhar na direção de que não há prioridade na missão da igreja, não há prioridade na missão integral: tanto a evangelização como a ação social se completam, sem uma priorização entre elas. O CBE, influenciado pelo Congresso de Lausanne, trabalhou bastante ainda na conceituação de que a evangelização era a tarefa principal da igreja. Na convocação para o congresso, nós lemos: “Reafirmar a evangelização como tarefa prioritária da igreja, desafiando o povo de Deus a realizá-la de forma autêntica e urgente em âmbito nacional e mundial”. Assim temos uma breve história de como chegamos ao que chamamos de missão integral. Aqui chegamos, influenciados por outros movimentos, outros congressos, tanto nos Estados Unidos como na Europa e na América Latina. VISIBILIZANDO A MISSÃO INTEGRAL Voltemos então para o como essa missão integral é trabalhada no Brasil, como ela é visibilizada aqui na terra, na nossa pátria. Ao fazermos isso, como já foi dito, poderíamos ter escolhido várias vertentes. Mas era necessário fazer um corte, uma definição, uma delimitação. Assim, escolhemos três organizações que, num certo sentido, representam a maioria das pessoas presentes no CBE2: a Visão Mundial, a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABU) e a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), Setor Brasil. Muitos militam ou militaram em algumas delas, e alguns militam ou militaram nas três ao mesmo tempo. Ao fazer essa avaliação, queremos crer que estamos celebrando o que essas entidades fizeram. Estamos celebrando o passado, a vitória que Deus concedeu por meio dessas organizações. E estamos também dizendo que elas ajudaram a solidificar e sedimentar o tema da missão integral no Brasil. REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 77 1. Visão Mundial do Brasil A Visão Mundial está bem próxima daqui — sua sede fica em Belo Horizonte.3 Mas nosso objetivo, antes de falar nisso, é identificar os traços sociais da face brasileira de Jesus, analisar a atitude de diferentes segmentos da sociedade frente a tais necessidades e destacar como a Visão Mundial tem conseguido, com o conceito de missão integral, fazer diferença qualitativa na vida de milhares de pessoas no contexto brasileiro. Foi fundada em 1950 pelo jornalista Bob Pierce, egresso da Mocidade para Cristo. Enquanto fazia uma viagem à China, ele viu a situação deplorável em que os chineses viviam. Voltou aos Estados Unidos e conclamou os norte-americanos a auxiliarem aqueles chineses a fim de que tivessem uma vida mais digna. A partir daí, a Visão Mundial adotou o seguinte propósito: “Para a glória de Deus”. Isso é muito importante porque a nossa conclusão será semelhante: para a glória de Deus. O propósito da Visão Mundial é unir pessoas em todos os lugares, no sentido de assistir os mais carentes, ajudando-os a atingir o potencial que Deus lhes deu dentro de sua própria cultura, dando-lhes uma oportunidade válida de aceitar o evangelho de Jesus Cristo. Observamos que, num certo sentido, este propósito se reporta à criação, à teologia da criação — talvez de forma não intencional, mas é o que depreendemos ao ler o seu propósito. Procurando promover a justiça, o desenvolvimento transformador sustentável e o socorro em situações de emergência, a Visão Mundial tem como princípio de existência seguir a Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, trabalhando com os pobres e oprimidos para promover a transformação humana, buscar a justiça e testificar as boas novas do reino de Deus. Ela procura identificar a face brasileira de Jesus Cristo, para então passar a servi-lo, assumindo também uma postura profética. Esta é uma intenção, uma declaração de fé, e nós louvamos a Deus porque a Visão Mundial tem feito isso nestes anos todos. Muitos, independentemente de credo, raça, localidade geográfica, têm visto a presença amorosa e bondosa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo por meio desse trabalho. 78 MISSÃO INTEGRAL Trata-se de um testemunho desses irmãos e irmãs, heróis alguns, anônimos outros, que, abnegadamente, nos diversos recantos deste Brasil, representam Jesus Cristo da forma mais concreta e mais visível para o nosso tão sofrido povo. A Visão Mundial enxerga a face brasileira de Jesus. Para criar e promover a consciência de missão integral, a Visão Mundial criou o Boletim da Visão Mundial, um informativo mensal. Quantos aqui não foram informados, inspirados e transformados quando recebiam, e quando recebem ainda, as notícias da Visão Mundial? Sem falar nos artigos de fundamentação bíblica e teológica sobre evangelismo e responsabilidade social, e informes sobre as grandes necessidades sociais do país. A Visão Mundial participou também na publicação e divulgação de livros que tinham a sua visão — por exemplo, a série Lausanne.4 O primeiro título da série, Tive Fome — um desafio a servir a Deus no mundo, já diz bastante. A divulgação do Pacto de Lausanne, em especial, tanto pela impressão como pelos congressos, foi um serviço relevante à igreja no Brasil. A organização de congressos e simpósios sistematizando a missão integral foi outra iniciativa importante da Visão Mundial. Quantos de nós participamos desses congressos e pudemos ter nossas vidas transformadas, influenciadas, sedimentadas, corrigidas por esse trabalho? Em especial o CBE e agora o CBE2. Agradecemos a Deus pela Visão Mundial, pelos irmãos e irmãs que estiveram à frente do trabalho para a realização desses congressos. Ainda que rapidamente, é interessante sabermos como a Visão Mundial trabalha a missão integral: nas áreas de saúde, cuidado de mães, educação, desenvolvimento comunitário, desenvolvimento econômico, direitos humanos, agroecologia, emergência e reabilitação, combate à violência, abuso e exploração sexual contra a criança e o adolescente. Estas são as áreas em que a Visão Mundial está trabalhando ativamente e desenvolvendo, portanto, a missão que Jesus Cristo confiou a ela. Assim, se alguém veio a este congresso e não sabe o que é missão integral, aqui temos delineados caminhos e pistas que podemos seguir junto às nossas comunidades locais. E se a Visão Mundial é REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 79 uma das pioneiras na missão integral, por que não copiarmos ou não nos integrarmos naquilo que ela já está fazendo? Louvamos a Deus pela Visão Mundial e afirmamos inegavelmente que ela, nestas três décadas de existência no Brasil, tornou marcante a presença cristã no país — não apenas ajudando a criar a consciência de missão integral, mas principalmente transformando em realidade os princípios de vida, justiça e solidariedade postulados pelo reino de Deus e estabelecidos por Jesus Cristo. Ela tornou possível aquilo que para nós foi sempre um tormento, uma luta, que era visibilizar Jesus Cristo ao mundo. Pelo trabalho abnegado dos irmãos da Visão Mundial, Jesus Cristo tem se feito presente na terra brasileira. 2. ABUB – Aliança Bíblica Universitária do Brasil Outra organização que contribuiu bastante para a divulgação e sedimentação da missão integral foi a Aliança Bíblica Universitária do Brasil. A ABU vai até os nossos colégios e universidades. Ali, quando o jovem ainda está com o seu coração e a sua mente abertos para tantas coisas, a ABU procura sedimentar nele a visão do reino de Deus. A ABU é essencialmente um movimento missionário interdenominacional, eclesiástico, confessional, liderado por seus próprios participantes. A identidade teológica do movimento parece estar em perfeita sintonia com o que se poderia denominar de evangélico, no Brasil, ou evangelical, em outros lugares. Essa forma de auto-identificação doutrinária evidencia-se na afirmação de dogmas bastante tradicionais nesse meio por parte da ABU. Em sua base de fé, são afirmados princípios como a autoridade das Escrituras, Jesus Cristo como único mediador entre Deus e o homem, a ressurreição e segunda vinda de Cristo. Se você ler os postulados da ABU, você encontrará ali a sua própria declaração de fé.5 A filosofia de trabalho baseia-se em dois princípios: um de caráter doutrinário, e outro, estrutural e prático. Talvez os irmãos da ABU não se vejam representados dessa forma, mas essa constatação foi fruto da nossa pesquisa, e esperamos ter sido fiéis. O movimento de estudantes e profissionais se baseia teologicamente na pessoa de Jesus Cristo e estrategicamente na ação evangelizadora de 80 MISSÃO INTEGRAL estudantes. Portanto a ABU tem como princípio a centralidade da pessoa de Jesus Cristo. A concepção de missão integral na ABU provém dos diversos congressos já mencionados, da participação desses jovens, homens e mulheres, dos diversos seminários, do ministério de literatura etc. A ABU tem trabalhado e abrasileirado esses conceitos, pois não é uma organização do tipo que pega um conceito de fora e insere no Brasil sem nenhuma preocupação com a contextualização. Louvamos a Deus pelo cuidado muito especial desses nossos irmãos nesse sentido. É a ABU inserida no contexto do nosso Brasil, do nosso povo. Esse conceito da missão integral pode ser visto em duas dimensões: uma de caráter positivo, outra de cunho negativo. A realização da missão implica em um sim de Deus ao mundo, expresso pela sua solidariedade para com o sofrimento e a desesperança humanos. E implica também em um não de Deus expresso de forma conflitiva com os valores e as ações do mundo, que são contrários ao seu reinado. Portanto, nós dizemos sim a Deus, e não aos valores e esquemas que o mundo impõe para o povo cristão — e é exatamente assim que e ABU também trabalha. É interessante observar como esse aspecto é trabalhado com os estudantes, que logo se tornam profissionais. São profissionais que saem de suas universidades, não com o projeto ou propósito de ganharem dinheiro, ficarem ricos e “bem de vida”, mas com o projeto de ser uma bênção para o outro. Isso é fruto do trabalho abnegado dos nossos irmãos da ABU. A missão, portanto, é uma missão integral — tem como horizonte a ação, o reino de Deus. O conceito de missão integral da ABU aparece ainda, de forma talvez sutil, na descrição de seus objetivos, que são quatro: evangelização de estudantes, maturidade do homem integral em Cristo, missão e serviço, e assistência. Ela procura manter a coerência entre a teoria, aquilo em que crê e que professa formalmente, e a prática, a busca da vivência desses valores professados, transcendendo a mera atividade de evangelizar ou assistir aos estudantes em suas necessidades. A ABU, então, crendo nisso, procura difundir esses conceitos. Muitos de nós se lembram dos congressos organizados pela ABU que marcaram a história da igreja brasileira: “Jesus Cristo: Senhorio, Propósito, Missão”, e “Igreja: Comunidade Missionária”. Alguns de nós se lembram dos livros6 que REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 81 foram produzidos por esses congressos. (Se você não conhece isso muito bem, procure num sebo e compre esses livros; se não achá-los, tire xerox e leia aqueles postulados e conceitos que nossa geração aprendeu por meio desse dois congressos.) Portanto, a ABU contribuiu de forma efetiva, eficiente e eficaz para que a missão integral chegasse às nossas igrejas locais, aos nossos púlpitos. Muitos pastores foram formados e forjados nos encontros da ABU. Louvamos a Deus por esse irmãos e irmãs que, de forma também abnegada, têm feito diferença no nosso país. 3. FTL – Fraternidade Teológica Latino-Americana Por último, trataremos da FTL — Fraternidade Teológica LatinoAmericana. Essa organização nasceu na América Latina, com vários participantes do Brasil, e tornou-se um importante canal na promoção da missão integral no nosso continente. Pessoalmente creio que, a partir da FTL, nós alcançamos a maturidade, nós declaramos ao mundo que não éramos tão-somente bebês espirituais nas áreas de teologia e espiritualidade, que já tínhamos crescido e também podíamos fazer teologia a partir da nossa realidade. A FTL tem como identidade e missão promover a reflexão em torno do evangelho e seu significado para o ser humano e a sociedade na América Latina. Com essa finalidade, estimula o desenvolvimento de um pensamento evangélico aberto aos desafios da vida no continente latino-americano. Para isso, aceita o caráter normativo da Bíblia como a Palavra escrita de Deus, ouvindo, sob a direção do Espírito Santo, a mensagem bíblica em relação às ambigüidades, à situação concreta. Constitui uma plataforma de diálogo entre pensadores que confessam a Jesus Cristo como Salvador e Senhor, dispostos a refletir, à luz da Bíblia, a fim de comunicar o evangelho em meio às culturas latinoamericanas. Foi com esse propósito que nasceu a Fraternidade. E a FTL no Brasil, por meio de nossos irmãos que deram início à caminhada aqui, seguiu a mesma direção: contribuir para a vida e a missão das igrejas evangélicas no Brasil e na América Latina, sem pretender falar em nome delas nem assumir a posição de ser seu porta-voz. Aliás, isto a FTL 82 MISSÃO INTEGRAL nunca pretendeu ser: porta-voz das igrejas brasileiras. Ela apenas pretendia colaborar para que as igrejas refletissem os seus contextos à luz da Palavra de Deus e que o evangelho apresentado fosse um evangelho honesto, sincero e verdadeiro à Palavra e também ao povo. Promoveu a reflexão em torno do evangelho e seu significado para o ser humano e a sociedade na América Latina por meio dos CLADEs, núcleos nacionais, boletins teológicos e consultas. A FTL foi um movimento pequeno, transmitido de boca a boca. Em face da realidade missionária da igreja evangélica brasileira, no início surgiram dois grandes desafios: como enfrentar a pobreza e como atuar politicamente como cristãos, mantendo-se simultaneamente a identidade bíblica e o compromisso evangelizador. Nós somos e estamos num país pobre. Como deveríamos enfrentar essa pobreza? (É interessante que a FTL já se adiantava em muito aos temas que são propostos hoje inclusive pelo governo.) Como deveríamos enfrentar, como igreja, essa situação? Como deveríamos visibilizar Jesus Cristo para este mundo e, ao fazer isto, não perder a identidade? Como conseguiríamos não negociar aquilo que cremos ser os postulados bíblicos e verdadeiros do evangelho? Para firmar a integralidade da missão era necessário atuar em duas tarefas simultaneamente: primeiro, valorizar a produção teológica contextual. Muitos que receberam os boletins da FTL puderam perceber isso e foram influenciados pelas mensagens e artigos do pessoal da FTL. Em segundo lugar, era preciso defender a urgente e imperiosa necessidade de as igrejas se engajarem no serviço social. Quando falamos em missão integral, estamos falando de algo que faz parte da essência da igreja, do ser da igreja, de um engajamento. E, nesse engajamento, a igreja não perde a sua identidade. O caminho escolhido para demonstrar isso foi lembrar que o compromisso missionário integral estava presente na vida e missão de Jesus Cristo. Ele é o modelo da nossa missão. Se você sair deste congresso sem aprender absolutamente nada, ou nem lembrar de nada, que você se lembre apenas disso: Jesus Cristo é o modelo da nossa missão. Não há outro. E se aparecer um outro por aí, é um outro jesus; portanto, rejeite-o em nome de Jesus! O Jesus REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 83 revelado nas Escrituras continua sendo e sempre será o modelo da nossa missão. Ele não é um Jesus muito popular, mas é o nosso Jesus, e não há outro. Deus só tinha um e mandou aquele. Só tem aquele e é com Ele que nós vamos. Amém? É com este que eu vou. (Havia uma canção que dizia isso: “É com este que eu vou”; não sei se era crente ou não, mas “é com este que eu vou”!) Vamos com este, gente, porque não há outro. Assim, o nosso compromisso é com a missão de Jesus Cristo. Imediatamente depois dessa reflexão cristológica, tratou-se da vida no Espírito. Desde o início, a FTL falou isto: a missão não é nem pragmática nem teórica, apenas. A missão não foi criada nos gabinetes com ar-condicionado, nem nas reuniões de estratégia ou de marketing. A missão da igreja é totalmente dependente da ação do Espírito Santo na sua vida. Graças a Deus porque, num passado recente, homens e mulheres nos lembraram dessa grande verdade das Sagradas Escrituras. O caminho escolhido foi mostrar, com uma cristologia e pneumatologia renovadas, que a reflexão teológica na FTL Brasil ocupou-se intensamente da justiça social e da ação política. O tema teológico predominante foi o reino de Deus. Resgatou-se a teologia do reino de Deus. A integralidade do reino foi a base da integralidade da missão da igreja. E a missão da igreja só podia ser justificada com uma renovada compreensão e experiência de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Para encerrar esta parte, gostaria de falar sobre os dois grandes desafios da FTL: 1) O desafio de discernir o nosso contexto. Deus nos deu inteligência — pelo menos é o que o apóstolo Paulo fala na carta aos Coríntios: “temos a mente de Cristo” (1 Co 2.16). Nós não temos a mente dos gurus de hoje; nós temos a mente de Cristo. Sendo que a mente de Cristo é inteligente e nós temos a sua mente, logo, a nossa mente também é inteligente. Temos capacidade para discernir a nossa época e o nosso povo, assim como Cristo teve a capacidade de discernir a sua época e o seu povo. Cristo presente na caminhada da história nos ajuda a discernir a nossa época e o momento em que vivemos; 2) O desafio de desenvolver uma hermenêutica contextual da Bíblia. Pergunto: o que adianta termos uma Bíblia se, ao lermos esta Bíblia, vamos lê-la com olhos europeus, ou olhos americanos, ou olhos outros? Nós temos de ler a 84 MISSÃO INTEGRAL Bíblia com os nossos próprios olhos — olhos que foram abertos pelo Espírito Santo. Se o Espírito Santo não quisesse que lêssemos a Bíblia com os nossos olhos, Ele continuaria a mantê-los fechados. Como Ele abriu os nossos olhos, vamos ler a Bíblia com os nossos olhos, para o nosso povo, para a nossa gente. Também por isso agradecemos a Deus pelos irmãos e irmãs — um grupo remanescente — que continuam lutando para que a FTL não se acabe no Brasil. Em nossos últimos encontros, tivemos apenas dez a quinze pessoas. Eu não gostaria de ser um cavaleiro do Apocalipse nem, por outro lado, supervalorizar essas pessoas. Mas devemos reconhecer o trabalho delas. E você deve se juntar à FTL para ajudar a manter vivos os postulados por ela abraçados e a memória desse movimento em sua própria geração. Participe da FTL! Vamos continuar trabalhando nessa direção porque novos homens e mulheres de Deus estão surgindo — e se eles copiarem os modelos de igreja que temos hoje no Brasil, estaremos perdidos. Você tem a opção de se tornar famoso, emulando esses grandes que estão por aí, ou de ser apenas um servo de Deus, trabalhando os conceitos de missão integral. Minha opinião é que o melhor para você é ser um servo de Deus. CONCLUSÃO Quando vínhamos para cá, algumas pessoas, conversando aqui e ali, achavam que deveríamos reformular alguns postulados do primeiro CBE ou desse passado memorável da igreja brasileira — a igreja que trabalhou a missão integral. Mas, meus irmãos e irmãs, este congresso não é um funeral! Não estou vendo aqui de cima, nem vocês aí de baixo, um caixão escrito “Missão Integral” e nem vamos aqui lamentar e chorar pensando que ela está morta. Não vamos olhar para o passado e dizer: “Como nós éramos isto e aquilo...”. Nem vamos assentar às margens da Lagoa da Pampulha e chorar pelo que aconteceu, e que não acontece mais hoje. Não! Estamos aqui neste congresso para celebrar o que Deus fez. Louvado seja o nome de Deus! Mas estamos aqui também para olhar para o REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 85 futuro, porque Jesus ainda não voltou. E se Ele não voltar até o final deste congresso, quando chegarmos aos nossos lares, aos nossos povos e à nossa gente, ainda teremos alguma coisa para fazer ali. Então, que este CBE possa também olhar para o futuro e lançar algumas pistas, algumas diretrizes, algumas avenidas nas quais possamos andar. No primeiro CBE, trabalhou-se ainda a questão da prioridade na evangelização, conforme vimos no texto convocatório. Produziu-se um livro, que é uma preciosidade: A Evangelização do Brasil: Uma Tarefa Inacabada.7 Quero fazer uma proposta humilde para vocês. A primeira é sobre a glória de Deus. Precisamos desesperadamente resgatar esta face primária da missão da igreja, que é apontar para a glória de Deus. Jesus Cristo foi o primeiro que disse isso. Jesus tinha percepção do céu. A única pessoa que estava no céu e veio à terra se chama Jesus Cristo. (Há uns aí que dizem que foram lá e voltaram, mas esses nem estou interessado em ouvir...) Ninguém entende melhor de céu e de glória de Deus do que Jesus. Não sei porque não o escutamos um pouco mais. Ele disse o seguinte: “Eu quero que vocês façam boas coisas aí na terra, que vocês sejam excelentes, e que em tudo o que vocês fizerem, o meu Pai receba glória”. Foi isso o que Ele disse, e com autoridade, porque Ele conhece o Pai. Ele disse: “o meu Pai quer ser glorificado por vocês”. E muitas vezes nós entendemos que glorificar a Deus é cantar algum cântico para Ele, erguer as mãos, pular, esbugalhar o olho, entrar em transe, ver anjo descendo e anjo subindo. Você pode ver tudo isso; mas, se você não glorificar a Deus, você está vendo é o Diabo, meu irmão! Porque, se em toda a sua ação, por mais espiritual que ela seja, Deus não estiver sendo glorificado, logo você está apontado para você e para mim. E isto é diabólico — é uma “diabolice” sutil do inimigo apontar para você mesmo. Precisamos resgatar esse princípio, mas não como um chavão, como tem acontecido por aí. A gente vê “para a glória de Deus” na placa da igreja, no boletim de não sei onde... Mas, se você começa a analisar aquele movimento, aqueles frutos... Se nós temos dúvidas se é para a glória de Deus, imagine só o que Deus está pensando! 86 MISSÃO INTEGRAL Então, que a minha igreja, a sua igreja, a minha organização, a sua organização diminuam cada vez mais. Que Jesus apareça, que Deus seja glorificado! É esse escárnio moderno com a glória de Deus que está lançando o nome da igreja no descrédito. É esse apontar para o ser humano, valorizando o ser humano, valorizando a sua organização, que tem lançado a igreja no descrédito. Vamos recuperar essa missão, a missão primeira: ser verdadeiro para com Deus. E a verdade que Deus busca no meu coração é esta: “Pai, a ti seja a honra, seja a glória, sejam os louvores, para todo o sempre, hoje e eternamente”. Porque é isso o que vai acontecer na eternidade: a glória do Senhor será vista em sua plenitude. Deus será adorado de maneira contínua. Por isso não há missão integral que não aponte para a glória de Deus. Se há uns espiritualistas, há também aqueles horizontalistas, que realizam um excelente trabalho do ponto de vista humano. Mas Deus não recebe a glória. E Ele quer ser louvado, quer ser exaltado por intermédio da nossa missão. A segunda conclusão é que a missão da igreja é a apresentação de Jesus Cristo a todas as pessoas, indistintamente, como o Filho de Deus que veio salvar e servir, servir e salvar. Essa é a missão da igreja. Reconheço que estou oferecendo a face para levar umas “bolachadas” dos que sabem mais. Mas ouso dizer que a missão da igreja não é evangelizar, nem é fazer missões. Estas tarefas são secundárias. A missão da igreja é apresentar Jesus Cristo ao mundo. Jesus Cristo veio ao mundo e Ele mesmo disse que veio para salvar. Quando encontrava pessoas que precisavam da salvação, Ele as salvava e apontava o caminho para Deus. Quando encontrava pessoas que precisavam ser servidas, Ele as servia. Ora Ele curava, ora dava o pão, ora dava um consolo. Mas quando Jesus salvava, Ele também servia. E quando servia, Ele também salvava. Nós entramos por um caminho no qual esquartejamos Jesus Cristo. E a igreja se colocou, ou tem se colocado, como mediadora entre Deus e o ser humano. Criticamos que Maria está intermediando as pessoas e Deus, mas não ficamos para trás: intermediamos Jesus Cristo e o outro. REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 87 Quando apresentamos Jesus a alguém, temos muito medo de que aquela pessoa não consiga compreender Jesus. E agimos como se Jesus fosse fraco e débil, que não pode enfrentar ninguém. Falamos com a pessoa: “Você conhece Jesus? Olha, Jesus é assim” — e falamos o que nós achamos que Jesus é. Apresentamos a parte de Jesus de que mais gostamos. Se a pessoa é um empresário falido, dizemos: “Jesus vai ungir o seu... negócio” (quase que eu digo ministério...). Assim, vamos apresentando Jesus da maneira que achamos conveniente. Aí falamos para Jesus: “Jesus, está vendo esta pessoa aqui? Cuidado com ela! Ela não presta, ela tem problemas, tem uns defeitos. Cuidado, que ela vai engambelar o Senhor... Deixa que eu trato da questão aqui.” E para a pessoa: “Fala, o que você quer de Jesus? ... Não, isso não. É demais. Não é hora ainda. Você se converteu há pouco tempo, tem de passar pela classe tal. Não peça isso pra Jesus agora, você pode ofendê-lo.” Ainda não estamos entendendo que a nossa missão não é evangelizar. Evangelizar, o pessoal por aí está fazendo... e estamos vendo os resultados. A nossa missão é apresentar Jesus Cristo a alguém e permitir que Ele a chame pelo nome, a abrace e lhe diga: “Eu conheço você. Eu conheço o seu coração”. Se aquela pessoa precisa de salvação, Jesus certamente a salvará, porque Ele é o Salvador. Se aquela pessoa precisa ser servida, Jesus a servirá, porque Ele é o Servo de Deus. Jesus fará isso por meio de mim e de você. Nós somos a face de Jesus para este mundo. Jesus quer salvar o povo brasileiro pela igreja brasileira. Jesus quer servir o povo brasileiro pelo serviço abnegado da igreja. Enquanto ficarmos tentando estabelecer o que vem primeiro, não chegaremos a lugar nenhum. Não importa o que vem primeiro. A questão é quem vai primeiro. E quem vai primeiro se chama Jesus Cristo. Ele vai primeiro. Quando a igreja chega em algum lugar, o Espírito Santo já chegou antes. Já está tomando chimarrão, bebendo caldo-de-cana, fazendo um monte de coisas. Como já disse, a questão não é o que vem primeiro. Esta pergunta está mal formulada. Se perguntarmos o que vem primeiro, diremos que deve ser aquilo de que mais gostamos — por exemplo, o louvor, ou a evangelização, ou o serviço. Por isso a pergunta não deve ser o que vem primeiro, mas quem vai primeiro. E quem vai primeiro se chama Jesus Cristo. 88 MISSÃO INTEGRAL O Brasil hoje precisa de Cristo, e esse Cristo é você. O Brasil precisa de um homem-Cristo, uma mulher-Cristo, uma editora-Cristo, um seminário-Cristo, uma faculdade-Cristo. Neste sentido, o Brasil não precisa ser rebatizado. As igrejas evangélicas hoje estão simplesmente rebatizando as pessoas. E isso não está fazendo a menor diferença! Não importa se o camarada foi batizado com pouca ou muita água, se na igreja X, ou na igreja B, ou na igreja Y. Há um rodízio de batismos neste Brasil. E esses batizados, apesar de, quem sabe, terem sido imersos nas águas, não estão imersos na realidade do nosso povo. Continuam com caixa 2, caixa 3, continuam contando mentira, matando o outro, oprimindo o próximo. Evangelizar desse modo é um péssimo serviço, porque estamos mascarando uma realidade. Nós evangelizamos o sujeito e falamos para ele: “Você quer aceitar a Jesus?”, ao que ele responde: “Eu quero, quem é o idiota que não quer?” Mas precisamos saber se Jesus vai aceitar a pessoa. E se ela, quando Jesus a aceita, está disposta a caminhar com Jesus nas trilhas do calvário, pelas ruas e becos deste mundo. Se no primeiro CBE afirmamos que a evangelização é prioridade da igreja, quero propor que, neste congresso, afirmemos que a prioridade da igreja brasileira é a apresentação de Jesus Cristo ao povo brasileiro. “Proclamar o reino de Deus, vivendo o evangelho de Cristo” — este é o nosso tema e é certamente disso que precisamos: proclamar, vivendo. Existe muito tagarela hoje no Brasil. Tagarelice não é proclamação. Proclamação é vida, e vida de Jesus Cristo. Que o nosso desafio neste congresso seja o de viver a missão integral. A missão integral não é uma grife. É um conceito de vida. É uma ideologia — você vive aquilo e luta por aquilo. E só será realizada se houver cooperação. Para estar imerso na missão integral, é preciso entender que você é deficiente. E a sua deficiência será corrigida pelo outro. A missão integral só pode ser vivida por deficientes. Quando sou corrigido na minha deficiência, então sou complementado pelo outro e assim começo a realizar a missão integral. O outro também me recebe na sua deficiência e, juntos, realizamos a missão integral. Ninguém aqui é auto-suficiente para fazer por si próprio a missão integral de Jesus Cristo. Nós somos todos deficientes, necessitados da graça de Deus e REVISÃO DO MARCO DA MISSÃO INTEGRAL 89 necessitados do outro. Por isso quero declarar o seguinte: Eu preciso de você. Que Deus nos abençoe! Amém. Notas 1. Com Alfredo dos Santos Oliva, Júlio Paulo Tavares Zabatiero e Wander de Lara Proença, todos da Faculdade Teológica Sul-Americana. 2. LONGUINI NETO, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002. 304 p. 3. Visite <www.visaomundial.org.br> para conhecer mais sobre a Visão Mundial no Brasil. 4. A série Lausanne foi reeditada em 2004 pela ABU Editora: <www.abub.org.br/ editora>. 5. Visite <www.abub.org.br> para conhecer a Base de Fé completa da ABUB. 6. BREPHOL, Dieter et. al. Jesus Cristo: senhorio, propósito, missão. São Paulo: ABU Editora, 1978. 156 p. 7. STEUERNAGEL, Valdir. ed. A evangelização do Brasil: uma tarefa inacabada. (As principais palestras e seminários do Congresso Brasileiro de Evangelização.) São Paulo: ABU Editora, 1985. 285 p. Autores: Caio Fábio D’Araújo Filho, Valdir R. Steuernagel, Carlos Alberto de Quadros Bezerra, Alcebíapes P. Vasconcelos, Noé Stanley Gonçalves, Key Yuassa, Arzemiro Hoffmann, Abraão de Almeida, Reynoldo Frenzel, Dieter Brepohl, Paulo Ayres Mattos, Carlos Pinheiro Queiroz, Irland Pereira de Azevedo, Manfred Grellert, Gerson Fischer, Dilmar Devantier, Ênio Mueller, Russel Shedd, Luis José Dietrich, Douglas Wehmuth, Joseph Martin, Sérgio de Gouveia Franco, Ageu Heringer Lisboa, Francisco Lotufo Neto, Betty Bacon, Alva Couto, Mirna F. Leite e Péricles Couto. Antônio Carlos Barro é pastor presbiteriano e professor da Faculdade Teológica Sul-Americana, em Londrina, PR.