s opostos se atraem. É verdade. Cerca de
95% dos casais é constituído de opostos,
um egoísta e um generoso, que,
aparentemente, combinam muito bem. Para o
médico
psicoterapeuta
Flavio
Gikovate,
entretanto, a relação lastreada no antagonismo
não pode ser considerada de boa qualidade. Essa
dualidade, aceita e legitimada pela sociedade,
acaba deteriorando o convívio íntimo e gera
conseqüências em outras esferas, refletindo-se,
por exemplo, no comportamento dos filhos e até
em atitudes de âmbito social e político.
Com base em seus 40 anos de experiência clínica
e no estudo das relações conjugais, Gikovate já
escreveu vários livros abordando os conflitos que
interferem no amor e na felicidade. Entre eles,
Ensaios sobre o amor e a solidão, Uma nova
visão do amor e A libertação sexual. Neste mês
de junho, comemorando 30 anos da primeira
publicação, está lançando um novo título, O mal,
o bem e mais além, cuja idéia central é fruto de uma longa reflexão: o egoísmo e a
generosidade que se contrapõem na maioria das ligações amorosas.
“Cada vez foi ficando mais claro para mim que a humanidade se divide nesses dois
grupos em todos os aspectos: o egoísta, que recebe mais do que dá, e o generoso, que dá
mais do que recebe. E que generosidade não é virtude, mas uma falha tão grande quanto
o egoísmo”, constata. “O egoísta não tolera frustrações e contrariedades, é mais
estourado e agressivo e procura sempre arrumar um jeito de levar vantagem, porque a
vida dura não faz parte de seu psiquismo. O generoso, por sua vez, não consegue dizer
„não‟ quando solicitado, porque não sabe lidar com a culpa, sentindo-se envaidecido e
superior por conseguir dar mais do que recebe.”
O generoso, conforme enfatiza, é limitado por uma culpa indevida, já que a culpa
correta só deveria ser sentida no caso de o indivíduo realmente causar um dano ao outro.
“Se você quer a minha bala e eu não quero dá-la para você, é um direito meu, e se você
ficar péssimo por causa disso, azar seu”, ilustra. “Agora, se você fizer cara de choro, eu
dou. Com isso, você aprende a fazer chantagem emocional comigo, usando a minha
culpa como uma fraqueza. Eu vou me sentir abusado, com raiva, mas superior.”
De acordo com o psicoterapeuta, o que existe como virtude é o altruísmo – dedicar-se a
causas, fazer doações anônimas. A generosidade na relação íntima, porém, tem
conseqüências negativas, já que seu desdobramento é o egoísmo. Sempre que houver
um generoso, haverá um egoísta. O que explica essa atração? Segundo ele, a inveja: o
egoísta tem inveja do generoso porque acha que ele tem mais para dar, é mais rico, e o
generoso inveja o egoísta porque ele diz „não‟ numa boa e faz muito mais por si mesmo.
“O generoso é muito mais competente para dar coisas ao
outro do que para se presentear”, analisa. “Vai ao shopping,
compra duas coisas e chega, já se sente culpado. O egoísta
não tem limite, não é freado pela culpa. E como ele evita
situações de dor e frustração, também nunca se coloca no
lugar do outro nem imagina o sofrimento que possa causar.
Cuida do interesse próprio e imediato. É capaz de coisas
incríveis, que o generoso não é. Fica uma espécie de inveja
recíproca, que deriva da admiração pela capacidade do outro.
Por um lado, há um clima de encantamento, que leva à
aproximação; por outro, um clima de atrito e insatisfação.
Monta-se então um jogo de poder: o generoso sentindo-se
valorizado, prestigiado e envaidecido com a sua superioridade, o egoísta tentando
dominar o outro no grito e na chantagem emocional.”
O mais grave nessa “trama diabólica”, como ele intitula, é que um reforça o jeito de ser
do outro. “Não posso mudar senão deixarei de ser admirado e amado. Essa é a idéia”,
define. “O generoso cede cada vez mais, achando que assim vai satisfazer o outro, e o
egoísta cada vez exige mais, nunca se dando por satisfeito. Os dois ficam cada vez mais
antagônicos, estagnados, frustrados. Essas diferenças vão se radicalizando com o passar
dos anos, gerando o afastamento ou a ruptura do casal.”
As conseqüências vão ainda além: “Os filhos se vêem diante de dois modelos – um
exigente, estourado, reivindicador, outro bonzinho, tolerante, panos quentes. E dois
modelos validados um pelo outro. A criança vai copiar um dos dois. O segundo filho,
devido à rivalidade entre irmãos, provavelmente seguirá a direção oposta. Dessa forma,
os dois padrões vêm se reproduzindo de uma geração para outra e se estendem da vida
doméstica para a vida pública. O mais agressivo e guerreiro acaba sempre por deter o
poder, enquanto o generoso funciona como uma espécie de poder paralelo. Ele cria a
boa idéia, o egoísta se apropria dela e a executa. Tanto um quanto o outro são modelos
de injustos. Como uma sociedade formada por pessoas assim pode ser justa?”
Para chegar à categoria dos justos, da qual Gikovate apresenta um “retrato falado” em
seu livro, “sem fotografia, pois há pouquíssimos justos no mundo”, o ponto de partida
seria parar de valorizar a generosidade como virtude e passar a vê-la como uma
fraqueza que deriva do excesso de culpa e cria condições inexoráveis para a existência
do egoísmo. “Ambos são imaturos”, enfatiza. “O egoísta não se desenvolve
emocionalmente, porque lida mal com frustração, contrariedade e dor; o generoso,
porque atola na culpa e não diz „não‟ quando deveria.”
O justo, no seu entender, está além desses dois modelos: “Não quer se vangloriar e se
destacar por ser melhor dando mais do que recebe, nem receber mais do que dá. Quer
uma troca equilibrada. Não inveja o oposto, fica contente com o próprio jeito de ser e
passa a valorizar as pessoas parecidas, estabelecendo relações afetivas de qualidade. O
generoso aprende a dizer „não‟ aos pedidos indevidos e deixa de ser objeto de
chantagem, conquistando auto-estima e liberdade pessoal. O egoísta, por sua vez, sem o
generoso por perto, também poderá progredir e amadurecer.”
Com o equilíbrio entre o dar e o receber, todos serão beneficiados, segundo Gikovate.
Inclusive a sociedade. O caminho é longo e começa pelo conhecimento do conceito. É
preciso tomar consciência e, a partir daí, trabalhar a auto-suficiência emocional, ser
mais competente para se virar sozinho, ter um certo controle sobre a vaidade. Superar a
intolerância e a incapacidade de lidar com culpa leva à maturidade emocional, a
respeitar mais as diferenças e os direitos do outro, sem nenhuma idéia heróica de
sacrifício pessoal em favor de nada nem de ninguém. “Parar no ponto justo é a única
forma de buscar uma vida afetiva, pessoal, familiar e social mais equilibrada”, ressalta.
Finalmente, ele diz que seu novo livro se destina a pessoas não preconceituosas,
dispostas a refletir fora do tradicional. “O intuito é abrir caminho para a evolução
pessoal. E isso é possível em qualquer idade, a qualquer tempo.”
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Nem egoistas nem generosos