EDITORIAL Fernando Leça 04 CIDADE Jorge Mario Jáuregui 06 ANÁLISE Estela Morales 14 ARTE INDÍGENA Reynaldo Damazio 18 ARTES PLÁSTICAS Leonor Amarante 22 OLHAR GOVERNADOR REVISTA NOSSA AMÉRICA SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS DIRETOR JOSÉ SERRA JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA CONSELHO CURADOR SECRETÁRIO DE ENSINO SUPERIOR (PRESIDENTE) FERNANDO LEÇA EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE LEONOR AMARANTE COLABORADORA ANA CANDIDA VESPUCCI HENRIQUE DE ARAUJO SECRETÁRIO DE CULTURA DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIO JOÃO SAYAD EVERTON SANTANA SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO TRATAMENTO DE IMAGENS - ESTAGIÁRIO ALBERTO GOLDMAN JAKSON FONTES REITORA DA USP COLABORARAM NESTE NÚMERO REITOR DA UNICAMP JOSÉ TADEU JORGE REITOR DA UNESP MARCOS MACARI PRESIDENTE DA FAPESP CARLOS ALBERTO VOGT MEMBROS DO CONSELHO ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO FERNÃO CARLOS BOTELHO BRACHER DIRETORIA EXECUTIVA DA FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA DIRETOR PRESIDENTE FERNANDO LEÇA CHEFE DE GABINETE JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA Ana Maria Cicaccio, Bráulio Tavares, Carlos Guilherme Mota, Carlos Newton Júnior, Cirenaica Moreira, Estela Morales, Jorge Mario Jáuregui, Lux Vidal, Manuel da Costa Pinto, Marcelo Lyra, Maureen Bisilliat, Reynaldo Damazio. CONSELHO EDITORIAL Aníbal Quijano, Bruno Aillon, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Chaves, Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes. NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604. Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: pub. [email protected]. Os textos são de inteira responsablidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista. ADOLPHO JOSÉ MELFI DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS FERNANDO CALVOZO Carlos Guilherme Mota Lux Vidal Maureen Bisilliat MEMÓRIA 35 PRODUÇÃO - ESTAGIÁRIO JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI SUELY VILELA SAMPAIO Cirenaica Moreira 28 CTP, Impressão e Acabamento HOMENAGEM Carlos Newton Júnior Bráulio Tavares 44 CINEMA Marcelo Lyra 54 CÁTEDRA 58 Ana Candida Vespucci LIVROS Manuel da Costa Pinto Ana Maria Cicaccio 60 AGENDA 64 DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO SÉRGIO JACOMINI capa: “VIVE EM CINCINNATI Y NI SIQUIERA MI ESCRIBE.” FOTO DE CIRENAICA MOREIRA 3 M EDITORIAL anter uma revista no mercado editorial brasileiro por quase vinte anos é tarefa difícil. O alto custo da edição, a complexidade da distribuição, entre outros fatores, fazem com que as publicações tenham vida curta ou periodicidade irregular. A Revista Nossa América, que desde 1989 vem sendo editada ora uma ora duas vezes ao ano (na média 1,3/ano de 89 a 2005), fixou-se em duas edições em 2006 e chega a três em 2007, a caminho de uma periodicidade trimestral já no próximo ano, acontecimento auspicioso para o Memorial da América Latina e fator importante para a fidelização do público leitor. Neste número homenageamos uma personalidade ímpar, Ariano Suassuna, que ao completar 80 anos ainda mostra um vigor invejável, com uma obra literária, teatral e poética que encanta tanto o público 4 juvenil como o adulto. Isso se confirmou também na oportunidade de sua presença aqui no Memorial, em setembro. As favelas latino-americanas, temas constantes de livros, filmes e noticiários policiais têm sido, do ponto de vista urbano, objeto de especialistas. Jorge Mário Jáuregui, arquiteto argentino radicado no Rio, que já trabalhou em mais de 20 favelas em vários países e expôs projetos sobre o assunto na Bienal de Veneza e na Documenta de Kassel, na Alemanha, traça um panorama da situação desse questionado segmento das metrópoles. Os espaços públicos criados pela sociedade para o uso da informação permitem observar o mundo por meio da imagem, dos sons, dos símbolos, do alfabeto e da linguagem, como analisa Estela Morales, mexicana e doutora em assuntos latino-americanos. A obra do antropólogo, educador, professor e político brasileiro Darcy Ribeiro pode ser sintetizada por meio de um de seus pensamentos. “No Brasil, a mestiçagem sempre se fez com muita alegria, e se fez desde o primeiro dia.” A antropóloga Lux Vidal, o historiador Carlos Guilherme Mota e a fotógrafa Maureen Bisilliat, comentam a complexa e ao mesmo tempo simples trajetória desse intelectual brasileiro que marcou toda uma geração. A fotografia ocupa cada vez mais lugar de destaque na cultura mundial. Estética, política e denúncia se entrelaçam em alguns ensaios como o da cubana radicada nos Estados Unidos, Cirenaica Moreira. O bombardeio sobre Guernica, há 70 anos, horrorizou Picasso e o inspirou para criar sua obra-prima. A chuva de bombas que dizimou quarenta por cento da cidade basca nos serve de alerta sobre qualquer tentativa de abuso de poder. O roteiro tem sido objeto de estudos tanto por parte de roteiristas quanto de escritores. Di Moretti, autor dos filmes Cabra Cega e Latitude Zero, conta ao crítico Marcelo Lyra a situação deste segmento. A Cátedra do Memorial, programa acadêmico de intercâmbio, está em seu segundo módulo e aborda um assunto atual e inquietante, o meio ambiente, do qual dependerá o futuro do planeta. O curso está a cargo de um dos mais eminentes estudiosos do assunto, o professor José Goldemberg, que está orientando alunos de vários países latino-americanos. Há livros que são atemporais como A Grande Guerra, escrito a oito mãos por Roa Bastos, paraguaio; Eric Nepomunceno, brasileiro; Alejandro Maciel, argentino, e Omar Prego Gadea, uruguaio, resenhado por Ana Maria Ciccacio. Outro texto se desenha transcendental, é Geografia do Romance, de Carlos Fuentes, analisado por Manuel da Costa Pinto. Na agenda do Memorial, destacamos eventos importantes como a inauguração de parte dos painéis de Maria Bonomi, expostos na entrada principal do Memorial, a exposição Mirada Latino Americana do MAC-USP, com obras do acervo, e o Festival Latino Americano de Cinema. Nesta seção incluímos ainda resenhas de algumas publicações que lançamos este ano. Boa leitura! Fernando Leça Presidente do Memorial da América Latina 5 CIDADE FAVELAS CAMINHO INCERTO O DESAFIO DA INSERÇÃO SOCIAL JORGE MARIO JÁUREGUI U ma maneira de descobrir uma cidade latino-americana é realizar o percurso desde a relativa “completude” da estrutura morfológica do centro, até a dispersão dos assentamentos periféricos, atravessando uma série infinita de não-lugares. De várias maneiras experimentamos hoje uma reposição política do cidadão, no sentido de expressar demandas de “urbanidade” emergentes desde diversos setores sociais, o que recoloca o tema do “marginal”, manifestado por meio da necessidade de uma recomposição das centralidades. Novas forças emergem (a pressão dos favelados no Rio de Janeiro e em São Paulo, os descontentes de todo tipo que marcham esporadicamente em 6 Construção ao longo de adutora no Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro. Foto: Gabriel leandro jáuregui 7 várias capitais do Continente, etc.) reconfigurando nossas paisagens urbanas. Um processo tanto de confluência quanto de choque como horizonte sociocultural e político do urbanismo contemporâneo, que torna necessário distinguir entre “estratégias” mais amplas disponíveis para as classes governantes e as elites políticas e econômicas e “táticas” mais limitadas às que se vêem confinados os cidadãos, tratando de enfrentar situações concretas. A brecha que existe entre as práticas espaciais e os espaços representativos, obriga a pensar novos modelos de interpretação e organização física capazes de gerar sentido. As mudanças no modo de produção têm provocado nas últimas décadas, no nível macro, novas formas de sociabilidade e organização material relacionadas com a passagem da economia de escala à economia de alcance. No nível local, novas formas de segregação socioespacial têm feito sua aparição fragmentando ainda mais as grandes metrópoles do Continente. A inserção das cidades latino-americanas na economia mundial apresenta, no que se refere ao impacto local, uma clara evidência da necessidade da busca de articulação das relações econômicas e sociais entre cidades, e entre diferentes áreas da mesma cidade, incorporando as comunidades aos processos de transformação. Mas para se obter resultados verificáveis, é necessário adequar tanto o marco teórico quanto os métodos às pressões exercidas sobre o âmbito local no sentido de reforçar sua própria lógica histórica. Hoje é evidente a necessidade de buscar articulações tanto entre os espaços de fluxos e a formação de centralidades, quanto entre os setores formais e informais da sociedade como formas de estruturar as novas topografias urbanas emergentes. O que vem colocar 8 contundentemente o problema da busca da conectividade da estrutura urbana, do milieu condutor urbano, como questão central. Redirecionar o funcionamento da estrutura sem perder massa crítica e potencializá-la como base para a evolução, reconhecendo sua essência descontínua, mas conectiva, através de intervenções no existente cuidadosamente selecionadas, é o desafio atual. Verifica-se hoje tanto uma crise de paradigmas quanto, ao mesmo tempo, uma busca de novos paradigmas relacionados com complexidade, pluralidade, práxis e transdisciplinariedade; este último, um conceito em busca de sistematização. Assistimos a um apagamento de fronteiras, o que provoca por um lado incoerência, fusão e hibridação entre métodos e teorias, e por outro lado, uma abertura de fronteiras e a necessidade da consideração de contextos em constante mutação. Podemos identificar quatro modos de intervenção urbana que implicam um posicionamento cultural específico. Um “urbanismo defensivo” entendido como ações de salvaguarda do patrimônio histórico ou ambiental; um “urbanismo de requalificação”, que põe o acento na forma física, destinado a “recompor” a cidade através de ações requalificadoras; um “urbanismo estratégico”, em que as ações se limitam a poucos pontos ou áreas de intervenção, tentando interpretar as forças e as lógicas que transformam o território, buscando “canalizá-las”; e um “urbanismo de articulação do físico com o social”, que põe a ênfase nos aspectos multiplicadores das ações urbanas tendentes a “costurar” o território da cidade, combatendo a segregação urbanístico-social. Esta concepção busca enfrentar o “déficit de cidade”, a não-cidade nos “nichos de pobreza”, Foto: Gabriel leandro jáuregui Foto: Gabriel leandro jáuregui Foto: Gabriel leandro jáuregui mas não só neles, configurando espaço público e introduzindo equipamentos e serviços, instalações para a geração de trabalho e renda, instalações culturais e esportivas, centros cívicos, conectando os tecidos formal e informal da cidade. Articula o físico (urbanístico- ambiental- infra-estrutural) com o social (cultural-econômico-existencial) e o ecológico (ecologia mental, social e do meio ambiente) em duas perspectivas, uma estratégica (Plano Ideal) e outra tática (Plano de Intervenção). Estes paradigmas de atuação mencionados colocam questões de sentido, validade e congruência, que devem ser manejadas desde uma posição ética, com competência e rigor instrumental, ao se abordar as questões sociourbanísticas contemporâneas na sua intercessão com as problemáticas do sujeito. De uma maneira geral, podemos dizer que o planejamento urbano busca preparar a cidade para criar possibilidades de “fazer chover”, captando recursos da “nuvem da globalização”, isto é, tentando capturar investimentos, enquanto, paralelamente, os projetos de escala urbana buscam introduzir valências através de intervenções e modificações na infra-estrutura, na composição de uma paisagem esteticamente elaborada, e mediante a qualificação dos equipamentos do espaço público. Estes projetos têm por objetivo produzir o que poderíamos chamar de “excitação urbanística”, através de uma colocação em evidência das qualidades, das potencialidades e do nível de integração desejado para o espaço urbano. A abordagem da questão urbana contemporânea na América Latina exige colocar no centro das atenções as relações entre os setores formais e informais, o que demanda uma forma de trabalho em que se interceptam várias disciplinas (urbanismo, engenharias, Vistas do Complexo do Alemão, Rio de Janreiro. 9 Foto: divulgação arquitetura, paisagismo, sociologia, economia, filosofia, psicanálise, entre as mais relevantes). Para poder pensar articulações entre a cidade formal (a que obedece a formas de desenvolvimento que ocorrem dentro dos canais legais, planejados e regulados pelo poder público) e a cidade informal (a que se caracteriza por uma ocupação indiscriminada do solo, falta de títulos de propriedade, falta de diretrizes oficiais, pela ausência de equipamentos e serviços públicos, e por moradias deficientes) é necessário considerar as diferentes dinâmicas específicas das megalópoles latino-americanas, que excedem as ferramentas conceituais e os instrumentos práticos disponíveis no campo do urbanismo. Assumir que a cidade (ou seja, aquilo que ainda continuamos englobando sob este nome) é um problema social e econômico, mas, desde a nossa perspectiva, é também um problema de definição formal, mantém válida a ques- 10 tão de que a forma de uma cidade (ou de fragmentos dela) é a forma de uma coletividade. O que exige antes de qualquer coisa compreender a sociedade em que vivemos, fazer sua análise crítica, e dela deduzir as premissas válidas para a atuação em cada situação concreta. A nova questão urbana das cidades latino-americanas, que materializa a inserção subordinada na modernidademundo neoliberal, coloca o desafio de repensar a construção do direito à urbanidade como projeto e apropriação da dinâmica da cidade por forças que se articulam no território do precário e do informal fragmentado. Isto tem a ver com a identificação dos processos de construção de novas institucionalidades e redes sociais para o desenvolvimento do território, a partir de espaços urbanos inscritos na lógica da estigmatização. As favelas são uma manifestação do desajuste social que se verifica por toda América Latina, desde o México Foto: divulgação até o sul do continente. Em cada país adquirem nomes diferentes (villas miseria, pueblos jóvenes, callampas, etc.) e características particulares, mas todas compartem o fato de ser uma parte da cidade que não se quer “registrar”, e da qual não se quer saber muito. Elas são os sintomas de sociedades e cidades partidas. São conglomerados físico-sociaisambientais, caracterizados pelas suas condições específicas de inserção no território urbano. Estão definidas pela sua singularidade topográfico-paisagística, suas dimensões, seu grau de organização interna e sua dinâmica econômico-cultural. São carentes em maior ou menor grau de serviços infra-estruturais, escolas, equipamentos de saúde, centros culturais, instalações desportivas; têm frágeis representações do poder público, deficientes serviços de coleta do lixo e quase decorativos serviços de “segurança pública” . Nelas não existe a noção de espaço público, pois tudo é privado, e também não existem normas legalizadas sobre a delimitação entre o privado e o comunitário. O que existe é uma convivência consensuada que está permanentemente em negociação. A quantidade de população em situação de ocupação informal nas metrópoles latino-americanas varia muito de um país para outro. Variando de 5 a 10% do total da população do município em países como Argentina, Uruguai ou Chile, de 30 a 50% no México e Brasil e chegando a 60% em Caracas e 70% em Lima. A característica da informalidade urbana é de múltipla matriz, e se transforma rapidamente nas grandes metrópoles de nosso Continente. Ela define um modo específico de ser e de viver que pode servir como referência de convivencialidade e gestão participativa do relativo ao interesse coletivo, para o conjunto da sociedade. Configurar novos centros de vida comunitária, diferenciando-os entre os que cumprem a função de articuladores 11 da vida interna da comunidade, e os que funcionam como conectores em relação aos bairros vizinhos, é parte substancial de cada projeto. Cada proposta de estruturação socioespacial elaborada se baseia na formulação de um esquema de centralidade específico que pode ter um caráter linear quando se configura segundo seqüências interconectadas de atividades, como nos projetos para Fernão Cardim no Rio ou Montedónico, em Valparaíso, Chile. Ou um caráter pontual, quando configura centros de atividades concentradas em torno de vazios estruturantes, tais como centros esportivos ou praças, nos casos de Fubá-Campinho e Vidigal no Rio, Pueblo de Santa Fé na cidade do México, e Villa 31 em Buenos Aires, entre outras. O projeto para a favela de Petare em Caracas, Venezuela, a maior da América Latina, utiliza uma estratégia de articulação que reconfigura as centralidades existentes e introduz ao mesmo tempo novos atratores de urbanidade, constituídos por espécies de novas ágoras de escala metropolitana que têm como função requalificar tanto o tecido existente, quanto transformá-lo em elemento de interesse de toda a cidade. O passeio público projetado para o Complexo de Manguinhos, por sua vez, constitui um tipo de centralidade linear de grande escala (tem uma extensão de 2 km) e congrega atividades tanto de lazer quanto de comércios e serviços, e intercambiador modal de transporte. Forma parte da configuração deste passeio público “uma fachada urbana” constituída por edifícios de re-localização para moradores das favelas do Complexo. Este eixo linear define um grande atrativo urbano de escala metropolitana capaz de transformar profundamente o local e o entorno. Um projeto com o mesmo caráter de eixo estruturador de escala metropolitana foi elaborado para o corredor urbano 8-CM-8 em Montevidéu, Uruguai. 12 Mas é de todo o Estado e de todo o território que fala esta parte da cidade, que só é escutada como problema. O quê é que pode o arquiteto, implicado e lançado neste território de altas intensidades em processo de desertificação, quanto ao futuro? Hoje existem maiores riscos e ameaças ao buscar desenvolver uma conexão comunicativa com os habitantes de cada favela onde vamos intervir. No lugar de um urbanismo de Master Plan y de Normativa, o que devemos buscar ao pensar e atuar na cidade informal, com sentido de oportunidade, são alternativas guiadas por uma leitura cuidadosa das condições locais, e pela escuta atenta das demandas. Desde o ponto de vista de um arquiteto, é necessário identificar quais são os pontos de inflexão ou peças que devemos conectar, para permitir devir cidade a estas partes hoje excluídas dos benefícios da urbanidade. Sabemos que existem lobbies de interesses que exercem forte pressão sobre os municípios e decidem questões fundamentais que vão desde a forma de ocupação de terrenos, até a delimitação de itinerários e o valor do reajuste de passagens do transporte coletivo. É todo um modelo excludente que marginaliza das decisões os afetados diretos, o que deve ser transformado para oferecer pontos de passagem entre estes dois mundos. O desafio consiste na articulação das questões ligadas a uma nova forma de relação com o meio ambiente, (especificamente a inclusão de certa forma de natureza nas megalópoles), a incorporação dos excluídos dos benefícios da urbanidade a uma nova qualidade de vida, e a adequação das cidades para absorver as demandas de crescimento de uma forma mais respeitosa e inteligente. Foto: Gabriel leandro jáuregui Foto: divulgação Rede elétrica e telefônica no Complexo de Manguinhos, Rio de Janeiro. Tudo implica revisar criticamente a forma como hoje vivemos nas cidades, pensando-as num sentido muito mais generoso, capaz de oferecer oportunidades para todos, o que implica fundamentalmente, repensar o uso dos recursos existentes sob novos parâmetros, e a geração de novas formas de engajamento produtivo. Refletir sobre o conceito de bem público e de espaço público, investindo nas possibilidades de intensificação da vida cultural e educativa como conector social. Hoje é necessário criar lugares com grande poder de aglutinação e qualidade estética, capazes de reinventar o nosso imaginário coletivo. Neste sentido talvez a lição principal aprendida na tarefa de urbanizar favelas consista em perceber que, a pesar de todos os problemas e de todas as carências, é o amor à vida, mesmo que trágica, efêmera e dolorosa, o que pode permitir, na convivência, alcançar algo de felicidade. Jorge Mario Jáuregui é arquiteto-urbanista e participou dos programas Rio-Cidade e Favela-Bairro no Rio de Janeiro. 13 ANÁLISE RESPEITO À DIVERSIDADE A PLURALIDADE DA INFORMAÇÃO ESTELA MORALES T anto a Península Ibérica como a América Latina se encontram diante de situações, crenças e valores comuns e, ao mesmo tempo, diante do desafio de aceitar uma diversidade cultural real. Esta, entendida como um enriquecimento, produz uma pluralidade que repercute de maneira importante na produção da informação, a qual, apoiada na dinâmica da globalização, propiciará a comunicação, a discussão, a discrepância, a aceitação e a geração do conhecimento. Cada país e região possuem conhecimento; entretanto, para poder participar da sinfonia global, é necessário assumir o compromisso de registrar e organizar a informação com o 14 propósito de que esta obtenha visibilidade nos circuitos internacionais e um espaço na diversidade e na pluralidade mundiais. Estas diversidade e multiculturalidade têm como uma de suas expressões a linguagem, com a qual expressamos nossas idéias e sentimentos; a linguagem e a informação – como objetivação destes conhecimentos, sensações e experiências – são a moeda de troca mais importante na bibliotecnologia. Para os estudos da América Latina, como região e como conceito, os pensamentos do espanhol José Ortega y Gasset, do mexicano Leopoldo Zea e do brasileiro Darcy Ribeiro são fundamentais, porque nos permitem entender e expressar plenamente nossa diferença e, ao mesmo tempo, nossa universalidade. A partir das proposições do primeiro, a circunstância permite ao segundo não só fundamentar um princípio filosófico como uma circunstância dos latino-americanos e o latino-americano, que, junto com as proposições de Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e Antonio Candido sobre a formação multicultural e multirracial do Brasil, nos dão as bases de uma pluralidade e de uma diversidade que identificam o ser latino-americano. A circunstância no homem latinoamericano compreende, portanto, os mesmos mundos exterior e interior, ou seja, o próprio corpo, a psique, o mundo físico-geográfico e o mundo social-histórico: os demais homens, os usos sociais, todo o repertório de crenças, idéias e opiniões de um tempo determinado. E, se durante centenas de anos, o mundo ocidental se assumiu como o único modelo válido, com uma só estética e uma só forma de qualificar aos demais, hoje em dia podemos apreciar o diferente como distintivo, mas não como desvantagem. Assim podemos apreciar dignamente e em um plano de igualdade o europeu, o africano, o asiático, o latino-americano. As migrações e sua conseqüente diversidade disseminaram sua semente no rico multiculturalismo e colheram contribuições culturais de ida e volta, não só por meio de deslocamentos físicos como também mediante os livros Foto: divulgação e a informação, assim como o fluxo transfronteiriço de impressos e dados, que se incrementou exponencialmente com o desenvolvimento da tecnologia. A infodiversidade compreende o respeito à pluralidade, o resgate da informação de cada localidade, a conversação, a disponibilidade e o livre acesso a essa informação. O conjunto de ações e funções que implica a infodiversidade permite a todo ser humano viver em um ambiente de pluralidade de idéias e pensamentos, tanto do passado como do presente, que lhe darão um equilíbrio na sua vida como indivíduo e como parte de um grupo social; da mesma maneira lhe propor- 15 cionarão elementos para conhecer os feitos a partir do eu e a partir do outro, para entender e aceitar plenamente a diversidade como valor universal e alcançar a unidade na diversidade. Embora a pluralidade desperte o temor da perda da identidade, também assume que é quem a reafirma e fortalece em uma convivência de semelhanças e diferenças que permite aplicar coletivamente decisões vinculantes, porque os grupos culturais não são unitários nem estáticos; há uma reconfiguração das culturas locais devido à globalização e à integração regional, aos intercâmbios culturais, à internacionalização do mercado, à cooperação transfronteiriça e à migração, aspectos que vão determinar as linhas sociais da bibliotecnologia e os serviços de informação. Uma manifestação vital da diversidade é a língua: para a Espanha, a América hispânica e países de outras origens, o idioma espanhol; para Portugal, Brasil e alguns países africanos, o português. Ambos traçam um fio condutor de comunicação entre diferentes povos, comunidades e culturas, que, por sua vez, vão distinguir-se uns dos outros, mas, em primeira instância, o espanhol e o português serão os idiomas de registro do conhecimento, segundo o caso, das idéias e sentimentos de todos os habitantes de países que o falam e dos indivíduos que nos movimentos migratórios o conservam e utilizam no novo lugar de assentamento, que pode ter um idioma oficial diferente. A diversidade de línguas que são faladas na América Latina é tão rica e variada como sua própria diversidade; poderíamos ver uns exemplos em dois cenários: a) as línguas indígenas e b) as línguas não-indígenas, de outros grupos culturais contemporâneos. A riqueza indígena de nossa região se vê refletida em suas línguas. 16 Só o Brasil registra 180; a Colômbia, 80, e o México, 62. As linguagens indígenas compreendem: 12 na Argentina, 180 no Brasil, 5 no Chile, 80 na Colômbia e 62 no México. No aspecto de línguas “estrangeiras” ou provenientes de culturas contemporâneas que são faladas, além do espanhol e do português também há um mosaico policromático. No México, a presença do inglês é muito evidente, entre outras razões pela proximidade e uma fronteira de 3,152 km. Os imigrantes europeus não-espanhóis deixaram seu sinal em pequenos grupos que conservaram formas antigas de algumas línguas como o vêneto, falado por imigrantes italianos desde 1882, mais as línguas atuais como o inglês, o francês, o italiano, o alemão, o português, o russo, o chinês, o grego, o japonês, o árabe e o hebraico, por exemplo. Podemos encontrar situações similares em todos os países da América Latina. Como exemplo, no Brasil, podemos mencionar o espanhol, o alemão, o francês, o inglês, o italiano, o japonês, o russo, o árabe e o chinês. A língua é a moeda de troca mais importante na organização e no uso da informação, já que esta tem o alfabeto como meio de registro majoritário e, embora existam línguas que, de acordo com a disciplina ou campo de trabalho, podem se impor como expressão internacional de intercâmbio, este contexto nos coloca diante de duas situações que convivem no estudo do comportamento e dos serviços de informação. Se todos os que falamos espanhol ou português registrássemos nossas idéias em tais idiomas, estas teriam mais visibilidade nos impressos e na informação digital; por outro lado, a comunicação entre pares na ciência e na academia elabora seus próprios có- Foto: divulgação digos de comunicação, usando outras línguas para intercâmbio. Os especialistas em organização e uso da comunicação não podem deixar de estudar os temas clássicos como a classificação ou a leitura, porque são temas nodais no corpus do conhecimento disciplinar; mas, ao mesmo tempo, têm que incluir a análise de todo avanço tecnológico útil ao ciclo da informação ou de toda mudança social e política que determine a atitude e compartimento dos usuários em geral ou da comunidade científica. Os espaços públicos criados pela sociedade para o uso da informação - uma biblioteca, um arquivo, uma sala de leitura ou livraria - permitem observar o mundo através da imagem, do som, dos símbolos, do alfabeto e da linguagem e devem, hoje em dia, propiciar que os habitantes de seu entorno, da região latino-americana, possam exercer o direito à informação, respeitando a pluralidade e a diversidade como expressões do multiculturalismo que nos caracteriza. Estela Morales é doutora em Estudos Latino-Americanos pelo Centro Coordenador e Difusor de Estudos LatinoAmericanos - UNAM. 17 ARTE INDÍGENA UNIVERSO MÍTICO A PRESENÇA DO INVISÍVEL REYNALDO DAMAZIO N o município do Oiapoque, Amapá, localizado no extremo norte do país e na divisa com a Guiana Francesa, quatro comunidades indígenas sobrevivem ao tempo histórico definido pela civilização ocidental e à aculturação, somando hoje cerca de cinco mil habitantes. Sãos eles os povos Karipuna, Palikur, Galibi-Marworno e Galibi-Kali’na, cujas origens remontam a um longo processo de migrações, com inúmeras fusões, tanto antigas como recentes. Ocupando a bacia do rio Uaçá, numa região de savana alagada, essas quatro etnias apresentam uma rica diversidade cultural, que inclui um exuberante artesanato, variedade de idiomas, mitologias ancestrais, arquitetura, culinária e práticas esportivas, como o arco e flecha e o futebol. 18 Foto: MIGUEL CHAVES Detalhe de escudo, que é feito de entrecasca de árvore ou de madeira esculpida e pintada. Uma parte significativa desse universo mítico e ao mesmo tempo concreto, sedimentado nas práticas e nos hábitos do dia-a-dia, pode ser conhecida e analisada na bela exposição A Presença do Invisível - Vida Cotidiana e Ritual entre os Povos Indígenas do Oiapoque, instalada no Museu do Índio do Rio de Janeiro, com curadoria da antropóloga Lux Boelitz Vidal, da Universidade de São Paulo. O cuida- do com que foi organizada a mostra e os detalhes que lá estão representados permitem ao visitante mergulhar na refinada urdidura de cestos, joalherias, cuias e tecelagens; nos objetos de configuração animal; nos artefatos de guerra, que guardam a simbologia da resistência à colonização francesa e portuguesa, aos caçadores de escravos e piratas; no registro da festa do Turé, em que os participantes agradecem 19 Foto: SÉRGIO ZACCHI Foto: LUX VIDAL Foto: SÉRGIO ZACCHI Cestaria: a arte de trançar fibras vegetais. Pintura corporal, usada em circunstâncias formais. As colheres de madeira são artefatos da região. As maiores servem para preparar os alimentos de festas. aos seres sobrenaturais, ou invisíveis, pelas curas alcançadas nos rituais xamânicos realizados por pajés. Na ocasião do festejo, a comunidade se reúne para dançar, cantar e beber o caxiri, bebida típica preparada pelas mulheres da tribo a partir da mandioca, enquanto ouve histórias contadas pelos pajés. Mastros enfeitados e grandes bancos com design zoomorfo, trazendo imagens de cobras e jacarés, compõem o cenário do ritual. 20 Ainda que preservem suas peculiaridades culturais, os quatro povos que habitam a região do Oiapoque mantêm fortes laços de solidariedade, tanto por compartilharem um território e uma situação geopolítica comuns, como por sua ligação através do trabalho, da educação, das relações de parentesco e de infraestrutura. Suas tarefas de subsistência se dividem entre a lida com a roça, a pesca diária, a caça, a produção da farinha de mandioca e de alimentos como a tapioca e o tucupi, que são utilizados pelos próprios indígenas, ou comercializados nas cidades vizinhas. A fabricação da farinha de mandioca e de seus derivados acontece em sistema de mutirão, com a reunião das famílias em construções apropriadas, denominadas cabê. Devido a proximidade com a Guiana, muitos índios falam francês, além do português e do kheol, língua nativa. Foto: SÉRGIO ZACCHI Foto: SÉRGIO ZACCHI Cestaria: abano. Escultura de madeira é uma das atividades mais expressivas entre os indígenas do Oiapoque. Os motivos utilizados pelos artesãos para a composição de peças decorativas e objetos do cotidiano, talhados em madeira, ou configurados em adereços corporais, arte plumária, cestos e instrumentos musicais são normalmente inspirados pelos pajés, que os vislumbram em sonhos e conversas com entes sobrenaturais. A riqueza desses grafismos - que são gravados, pintados, recortados e trançados em suportes diversos - é impressionante e demonstra a criatividade plástica dos índios ao estabelecer com os elementos da natureza uma relação estética vital, incluindo traços fundamentais de sua cosmologia. Todo o esforço da antropóloga Lux Vidal para estudar e resgatar a cultura dos povos do Oiapoque - que pode ser medido por suas extenuantes viagens de avião, ônibus e barcos à região e pelas pesquisas coordenadas na USP, a partir de 1990 - parece ter sido recompensado na exposição A Presença do Invisível. Ali todos nós - de qualquer etnia ou credo - ganhamos um espaço vivo, poético, de reflexão sobre uma visão de mundo diversa da nossa e que em muito nos enriquece. Reynaldo Damazio é sociólogo, poeta e editor do site Web Livros e do K - Jornal de crítica. 21 ARTES PLÁSTICAS GUERNICA NUNCA MAIS UM MASSACRE PARA NÃO SE ESQUECER LEONOR AMARANTE A poeira tomava conta da praça principal, pequena para abrigar dezenas de camponeses que vinham à vila para vender sua colheita. Em Guernica, cidadezinha da região basca de sete mil habitantes, dia de feira era dia de festa, dia consagrado para garantir o sustento. A algazarra dos vendedores logo foi substituída pelos gritos de terror que se misturavam ao ruído do bimotor pertencente à aviação alemã que por mais de duas horas, jogou toneladas de bombas sobre uma população indefesa, dizimando trinta por cento dela. Tudo isso por ordem do General Franco que comandava a Espanha sob as botas de chumbo, apadrinhado por Hitler. O ataque supostamente 22 A figura eqüestre, elemento recorrente no trabalho de Picasso, nesta obra é retratada com toda dramaticidade. serviria de lição aos militantes bascos e aos comunistas. O episódio revoltou Picasso que morava na capital francesa. Ao ser convidado para pintar uma tela para o Pavilhão Espanhol na Feira Internacional de Paris, retratou a chacina. O público não entendeu e não gostou da obra, mas Picasso não se abalou. Sentia que havia concluído uma expressiva obra, que mais tarde foi consagrada pela crítica como a mais importante do século 20. Na verdade, ele teve uma antevisão do que viria dois anos depois com o massacre de Berlim, Varsóvia, Dresden, Leningrado, Nagasaki e Hiroshima. Segundo os especialistas em armamento bélico, a destruição de Guernica foi a primeira demonstração da técnica do chamado bombardeamento de saturação, que depois seria usado na Segunda Guerra Mundial. 23 Por exigência de Picasso, em repúdio ao governo de Franco, Guernica ficou exposta, em comodato, no Museu de Arte Moderna de Nova York, até a queda de Franco, quando foi transportada para o Museu do Prado, em Madri. A tela chegou a Nova York propositalmente no dia primeiro de maio de 1939, embora nos Estados Unidos o dia do trabalho não seja comemorado nesta 24 data. O quadro permaneceu nos Estados Unidos por quatro décadas, sob a guarda do MoMA até que em 9 de setembro de 1981 foi levado para Madri. “Um ano antes, durante o período de negociações para o retorno da tela à Espanha, várias cidades a reclamaram, entre elas Guernica. Afinal, a obra fora feita por sua causa e tornou-se conhecida em todo o mundo. O privilégio, no entanto, coube à capital espanhola. A pintura, concebida na fase cubista, resultou no mais bem acabado exemplar do movimento. Realizada em branco e preto, para reforçar a dramaticidade do episódio, teve alguns de seus desenhos preliminares executados em cores. Em mais de sete metros Picasso desconstrói o bombardeio, para depois reconstruí-lo. Entre as figuras de destaque do quadro surge imponente o cavalo, que uma vez mais povoa as telas de Picasso, só que agora aparece agitado com o bombardeio, um paradigma do poder de destruição do governo Franco. Outro destaque é a figura do touro imóvel que já foi entendido como símbolo da impotência dos espanhóis frente às arbitrariedades do governo. 25 Guernica esteve na segunda Bienal de São Paulo, em 1953. Chegou ao Ibirapuera em um dia chuvoso, sob lona, em um caminhão. Para exibi-la em Madri em 1981, o Museu do Prado montou um esquema de segurança com rigor semelhante ao dos aeroportos, com detector de metais e vidro a prova de bala. No entanto, em 1954, quando esteve na segunda edição da Bienal de São Paulo, Guernica chegou quase desprotegida, junto com um conjunto de 65 telas significativas da fase cubista de Picasso. O Parque do Ibirapuera, que seria inaugurado na mesma ocasião, por conta dos festejos do Quarto Cente- 26 A obra-prima de Picasso foi executada em preto e branco, mas alguns dos estudos preliminares são coloridos. nário de São Paulo, era um grande lamaçal. Guernica chegou dentro de um tubo, sobre um caminhão com apenas uma lona por cima. O pavilhão do Ibirapuera apresentava goteiras, mas nem por isso escandalizou os críticos e diretores de museus internacionais presentes à Bienal. Hoje, passados 70 anos do massacre, a tela que se encontra no Museu Reina Sofía simboliza o uso de poder indiscriminado, uma bandeira de alerta contra os abusos ainda vividos em todos os Continentes. 27 OLHAR METÁFORA DE TODOS OS SONHOS PARA UM MUNDO SEM POESIA CIRENAICA MOREIRA A fotógrafa Cirenaica Moreira se insere num elenco de mulheres cuja criatividade, força e ousadia vão além das imagens e podem ser uma metáfora de todos os sonhadores que sobrevivem neste mundo sem poesia. Cubana com trânsito nos Estados Unidos, Cirenaica dá a seu corpo poderes transcendentais. Sua objetiva funciona como um pára-raio, e a revela como uma mulher criadora de mundos e sem as amarras do objeto fotografado. Neste ensaio de registros íntimos, uma cartografia embalada com toques cenográficos sobrepõe-se as utopias e expõe o que lhe interessa. 28 29 30 31 32 33 34 MEMÓRIA DARCY RIBEIRO UTOPIA E REALIDADE CARLOS GUILHERME MOTA LUX VIDAL MAUREEN BISILLIAT N a trajetória intelectual de Darcy Ribeiro é impossível separar a atuação política da pesquisa antropológica, a militância pela educação da prática literária, a utopia da realidade. Espírito inquieto e generoso, ele sempre acreditou que o Brasil poderia ser melhor, mais democrático e justo, sem as desigualdades que se consolidaram ao longo de nossa formação histórica colonial, oligárquica e escravocrata. Como antropólogo, Darcy Ribeiro fundou o Museu do Índio e deixou ensaios provocadores, como O Processo Civilizatório, As Américas e a Civilização e O Povo Brasileiro; participou da fundação da Universidade de Brasília e foi seu primeiro reitor; 35 nas funções de vice-governador e de secretário de Cultura do Rio de Janeiro instalou os CIEPs, escolas com turno integral e práticas esportivas para as crianças de famílias de baixa renda; foi o criador do projeto cultural do Memorial da América Latina, em São Paulo; eleito senador da República, em 1991, elaborou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1999; produziu obras de ficção originais, como Maíra e Utopia selvagem. Parte de sua obra foi gestada no exílio, nas andanças pela América Latina, que tanto conhecia e amava. Ao discursar na Sorbonne, onde recebeu o título de doutor, afirmou ser “um homem de causas”. Mesmo no final da vida, em luta contra o câncer, preferiu fugir do hospital para terminar de escrever um livro. Nesta homenagem a Darcy Ribeiro, nos dez anos de sua morte, prestam seu depoimento o historiador Carlos Guilherme Mota, a antropóloga Lux Vidal e a fotógrafa e amiga Maureen Bisilliat. IDÉIA QUE DEU CERTO Carlos Guilherme Mota Numa tarde de janeiro de 1988, estando eu na direção do recém-criado Instituto de Estudos Avançados da USP, Darcy procurou-me animado, falando da criação de um “Centro de Atividades Culturais na Barra Funda”. Telefonara na véspera, dizendo que estava em São Paulo e que desejava conversar comigo no Instituto. No dia seguinte, 29 de janeiro, numa bela manhã de verão, com a Cidade Universitária meio vazia por conta das férias, Darcy surgiu sorridente em minha sala. Estava acompanhado de Antonio Candido, outro notável estudioso da América Latina. Manhã de emoção, pois Darcy fora paraninfo de minha turma de formatura na Faculdade de Filosofia da USP em 1964, mas não pôde comparecer, pois já estava no exílio. Candido, um dos participantes de primeira hora da criação do IEA-USP, era uma forte referência em minha trajetória, como se pode constatar em meu livro Ideologia da Cultura Brasileira. 36 Darcy e Antonio Candido vinham falar, com enorme entusisamo, de um projeto de criação de um Centro de Estudos de América Latina em São Paulo. Sorrimos com alguma ironia, pois São Paulo nunca se pensou muito latino-americana…mas Darcy convencera o então governador Quércia a deixar uma marca cultural e política mais nítida em seu governo, de molde a ficar na História. Seu espírito fazedor e entusiasta permanecia o de sempre. Ambos me propunham que nosso novo Instituto da USP abrigasse as reuniões para a criação do tal centro de estudos. E que eu coordenasse no Instituto um projeto de criação do “recheio” do centro da Barra Funda, para o qual a “casca” já estava sendo encomendada ao arquiteto, amigo de Darcy: nada menos que Oscar Niemeyer. Não precisou de muito tempo para que eu aceitasse o desafio, até porque ambos me davam carta-branca. Eu já andava sobrecarregado com a criação, havia apenas dois anos, do IEA; mas o convite era sedutor, e a problemática da América Latina me fascinava desde o colégio Roosevelt, no fim dos anos 50. Meses antes, nesse sentido, houvera um esboço de criação de um centro dessa natureza. Meu amigo Paulo Mendes da Rocha chegou a ser convidado a pensar um edifício a ser construído no alto da Serra do Mar, em terras do Estado. Um espaço cultural voltado para o Atlântico, para o qual fez uns debuxos e chegou a conversar comigo. Mas agora a idéia do Darcy vinha com toda força, já considerando ele, naquele estilo impulsivo, o Centro como um fato consumado, “pois o governador batera o martelo”. No dia 29 de janeiro de 1988 tivemos a primeira reunião no campus da USP e, no dia 4 de fevereiro, um almoço-reunião com o então reitor Goldemberg. Curioso é que eu discutira com Goldemberg, no ano anterior, projeto de criação de um Centro de Estudos do Terceiro Mundo, que não prosperou (a USP olhava pouco para o Terceiro Mundo…). Embora no ar, acertada idéia geral com Darcy, faltava agora a equipe que iria pensar o conteúdo e as atividades do tal Centro latino-americano: cursos? cátedras? biblioteca? atividades de extensão? bolsas para pesquisadores? Tudo isso Darcy deixou por minha conta. Apenas disse que o projeto arquitetônico já estaria sendo pensado por Niemeyer, e que Caribé já estaria fazendo uns murais etc. Que ficasse em nossas mãos a definição do conteúdo. “Não inventem muitos cursos, pois não será uma Faculdade”; e, insistia, “que haja um belo salão de atos, para protocolos com autoridades de outros países latino-americanos”. Consegui reunir alguns colegas de alto nível, não muito entusiasmados pela idéia, dada a resistência ao Foto: paulo whitaker / folha imagem 37 Darcy: estilo impulsivo e aglutinador. Foto: fernando quevedo / agência o globo Sempre sorridente, sempre entusiasta. governo Quércia, e passamos vários dias discutindo caminhos e objetivos para o hipotético Centro. Dentre os participantes, Alfredo Bosi (que depois se tornou editor da revista Nossa América), Aracy Amaral, Carlos Vogt, Octávio Ianni, padre Oscar Beozzo, Enrique Amayo-Zevallos, Paulo Sérgio Pinheiro, Nestor Goulart Reis, além do próprio Paulo Mendes da Rocha. Darcy fora para a Alemanha e desaparecera com sua amada de então; só vim a reencontrá-lo no dia 20 de julho de 1988 num jantar no Hotel Ca D’Oro, quando, saboreando uma vodca muito especial, discutimos o Centro, agora batizado de Memorial. Foram discussões muito vivas, as desse grupo brilhante, com insistência na criação de uma biblioteca latino-americana de excelência (o que não ocorreu até hoje), cátedras (só implementadas em 2007…), de uma boa revista, de um centro de estudos latino-americanos, de um núcleo de atividades culturais abertas para o público, de bolsas para pesquisadores criteriosamente selecionados etc. Darcy e eu imaginávamos implantar, naquele espaço imenso, um panteão com as estátuas dos libertadores da América Latina (não chegamos a selecionar quais seriam, mas me re- 38 cordo, dentre os brasileiros, dos nomes de Tiradentes, José Bonifácio e Frei Caneca). Nunca tivemos, entretanto, uma reunião sequer com o arquiteto Niemeyer, sempre solicitada por nós a Darcy, que monitorava à distância o projeto, sobretudo em suas reuniões com o governador Quércia, em São Paulo, e no Rio com Niemeyer. Com o governador, estive apenas uma vez, e ele me atendeu polidamente, sob um retrato a óleo da figura estamental de Armando de Salles Oliveira… Deixei a coordenação do “miolo” do projeto quando o Secretário de Segurança Fleury pôs a polícia a cavalo em cima dos professores do Estado, que reivindicavam melhores salários. “Como podemos falar em ‘Libertadores da América Latina’ quando o governo reprime e agride professores?”, disse a Darcy, e saí do projeto, em protesto. Depois, escreveria para o Jornal do Brasil um artigo contra o governo, que transformara o Memorial em cabide de empregos: o título do artigo era “Pedestal sem monumento”. Ao lado do Memorial, em contraste chocante, o Parlatino nunca preencheu a função para a qual foi criado, tranformando-se numa agência de turismo político de uma falsa idéia de América Latina. Quem sabe um dia mude. INTELECTUAL INDEPENDENTE Lux Vidal Darcy Ribeiro era uma pessoa diferenciada entre os antropólogos. Ele se interessava pelo processo civilizatório como um todo e escreveu sobre isso de uma maneira evolucionista. Ele pode ser criticado por isso, mas essa visão da evolução do mundo mostra como, dentro dessa humanidade, há diferenças, especialmente no Brasil, com povos diferentes, índios, negros, imigrantes, reponsáveis pela formação do País. Seu pensamento era amplo e abrangia a história do Brasil, assim como a cultura indígena, dentro de um contexto muito amplo, que incluía toda e qualquer diversidade. Acreditava que pela arte os índios se redimiam, e ele tinha razão. A arte, o artesanato, os rituais, estão ligados à cosmovisão dos índios. Esta parte da cosmologia da arte foi muito importante, como núcleo central da resistência e da permanência desses povos. Mais tarde essa perspectiva se mostrou acentuada com as sucessivas lutas na Constituição e pelo reconhecimento mundial. Os antropólogos da geração de Darcy Ribeiro se interessavam especificamente por sua tribo de estudo, eram trabalhos mais aprofundados. Ele se interessava pelos povos indígenas como um todo, como uma questão que fizesse Estado assumir e a reconhecer o Brasil como pluriétnico. No livro Os Índios e a Civilização, diz que a transfiguração étnica, que seria promovida pela sociedade nacional dominante, tornaria os índios pessoas integradas, um índio genérico. Darcy acreditava que eles índios, pelo contato com uma sociedade nacional homogênea, teriam também uma reação homogênea. Por um lado, isso é verdade, mas por outro, vemos que as culturas específicas também se reforçaram. Isso é uma coisa que ele não previa. No entanto, no livro da Suma Etnológica Brasileira, feito por Berta Ribeiro e colaboradores, ele diz que havia uma reação da arte popular e da arte indígena e um pouco da contracultura da época. Darcy que assina o livro começa a ver como o Estado estava se apropriando da cultura indígena para fazer dela emblema nacional. Darcy e Berta Ribeiro fizeram um trabalho maravilhoso sobre a plumária, com os kadiweu, enfatizando a força e a beleza da pintura, corporal e facial. Eles tinham sensibilidade para isso. Darcy era também um escritor, e isso ele demonstra no livro sobre Os Urubu-Kaapor publicado somente 40 anos depois de escrito. Em vez de falar diretamente sobre a tribo ele começa descrevendo todo o trajeto percorrido. Sua passagem pelo Pará, pelo Maranhão, conversas com autoridades e políticos da região, com a população ribeirinha até chegar à aldeia dos urubu-kaapor. Para ele o contexto era importante porque acreditava que os índios faziam parte dele. Para ele as pessoas eram tão importantes quanto os índios. Hoje é diferente, mas naquela época, se você como antropólogo trabalhava com uma tribo, deveria ir diretamente à aldeia. O contato com o exterior era visto como uma ameaça. Como político, Darcy atuava também por meio da antropologia, passando no senado toda a preocupação que tinha com o povo brasileiro. Na área da educação foi polêmico, es- 39 pecialmente em relação às escolas que fez com o Brizola. Ele não era um homem que trabalhava em equipe, não se misturava com os outros antropólogos, fazia a sua própria trajetória. Era um homem muito polivalente. O livro Uirá à procura de Maíra é um clássico. E ali ele transmite com emoções o que num tratado antropológico tem dificuldade de transmitir Os Diários Índios também tem perfil de romance. O diário da pesquisa sobre os Urubu-kaapor foi feito sob a forma de cartas escritas a Berta, que ficou no Rio de Janeiro. Um trabalho realmente admirável, que só saiu da gaveta 40 anos depois. Foi uma espécie de Tristes Trópicos à maneira dele, sem dúvida nenhuma. Este livro é uma contribuição importante, com algumas restrições antropológicas, mas enquanto trajetória, descrição, seu relacionamento tanto com os índios quanto com o resto da população e o contexto em torno, é um livro importante, muito importante. Hoje há muitas ONGS, os próprios índios têm sua representação política, suas organizações, fóruns nacionais, internacionais, mas anteriormente os índios dependiam das instituições e dos trabalhos dos antropólogos. Daí a grande contribuição de Darcy Ribeiro. Foto: paulo moreira / agência o globo Homem de absoluta franqueza. PRESENÇA VITAL MAUREEN BISILLIAT Darcy Ribeiro entrou na nossa vida há anos atrás de forma muito interessante. Antes da criação do Memorial, ele vivia mencionando a idéia de implantar o Museu do Homem aqui no Brasil. Significa que ela já tinha uma idéia hipoteticamente voltada para o futuro. Acho que eram os anos 70. Mas ele vislumbrava um museu em que se pudesse acompanhar a história do homem por meio de documentação e, se 40 não me engano, de peças moldadas a partir dos originais. Foi uma das idéias dele. Mas acho que o Niemeyer tinha feito um projeto arquitetônico que representava um lótus, cujas pétalas seriam as civilizações. E eu, naquela época, achava muito interessante, mas de difícil manutenção. Acho que ele foi brilhante executor, inspirador, mas ao mesmo tempo assustava um pouco as pessoas. Eu acho que o Memorial foi um sonho, um projeto muito amplo, mas penso também que ele passava a impressão de ter saído como se não fosse o sonho que escolheu. Ele era convidado para as reuniões como consultor-mor. Vinha a várias delas. Mas não se colocava como interlocutor, você o tinha como um Mercúrio. Esse metal. Era uma pessoa cujas idéias estavam além das palavras, uma presença vital, que atraía as pessoas, mas ao mesmo tempo inibia porque elas não sabiam como participar. Então acho que eu tinha, não diria uma certa impertinência, mas, como a gente foi seguindo um caminho, depois de mui- o que dizer, e ele observou: - Já engoli muito sapo na minha vida, agora você vai engolir. Ele era realista assim. Não era um homem de meia palavra. Não iria cortejar ninguém. Falava tudo na cara mas era brilhante, extraordinário. Mas eu não o conhecia dentro dos moldes clássicos de um estudioso, porque ele não se enquadrava nesse perfil. Era muito interessante verificar como ele navegava neste mundo. Darcy tinha uma franqueza que atingia a alma da pessoa, mas que também limpava a alma. Recordo de uma vez , em um dos muitos contatos que Darcy interessava-se pelo processo civilizatório como um todo. Foto: niels andreas / floha imagem tos anos, eu o interrompia. E ele escutava, e até replicava. Mas ele era uma pessoa que trabalhava no conjunto, porém, portava-se mais como um ser único. Assim, você tinha que aceitá-lo, e aproveitá-lo tal como ele era. Não se podia dizer: - Olha, Darcy, vamos sentar a esta mesa, etc. Não. Era o Darcy. Mas, uma vez que as pessoas sabiam que ele era assim e o aceitavam do modo que era, aproveitavam isso e era extremamente enriquecedor. Ele também impunha sua sabedoria política. Lembro-me de que certa vez eu estava um pouco amargurada, não sabia bem ele mantinha com Lévi Strauss, ele disse o seguinte: - Mas o que vai ficar da sua obra é o Tristes Trópicos. E Lévi Strauss respondia: - É. Então eu acredito que a percepção dele era cristalina. Curioso porque a energia dele não era cristalina. Era impulsiva. E quase desorientadora. Havia algo de mediúnico. Então, quando ele tinha idéia clara, ele era como uma faca que atravessava o coração, mas deixando mais do que você tinha antes de ouvi-lo. Muitas vezes acho que ele, a palavra não é incomodar, mas acho que ele às vezes, sem querer desconcertava. Na verdade, as pessoas 41 não sabiam como participar. Ou escutavam, e cresciam, ou então não agüentavam bem a presença dele. Não sei quem falou uma vez: as pessoas com idéias nos enlouquecem. É exatamente isso. É, de fato, a figura do Mercúrio. Ele tinha medo de estar enveredando pela irreverência. Mas ele mesmo era uma personalidade altamente irreverente. E, além disso, tinha a espontaneidade e a irreverência peculiares do povo brasileiro, e de muitos outros povos também, não posso dizer que se trata de uma característica somente daqui. E tinha uma sintonia popular fantástica, sacava tudo bem rápido. Por exemplo, no Rio de Janeiro, onde ele teve muita atuação, ele retirava das raízes várias origens. Acho que, diferentemente de Sérgio Buarque, Darcy trabalhou com isso, e eu o vejo também como uma pessoa muito brasileira. Quanto à maneira de ser, ele tinha muita experiência de vida, uma vez que viveu com intensidade e transmitia essa energia. E não era um antropólogo de gabinete. Curioso é que ele já esteve em muitos gabinetes, mas ele tinha a força de converter os gabinetes ao jeito dele. Ele teve intensa atuação na área educacional. Não sei detalhes, mas acho que deve ter sido um contraponto e um ponto importante. Para ele, o ensino não devia ser nunca uma coisa amorfa, digamos um conhecimento adquirido, mas um processo em permanente movimento. E aí de novo menciono essa característica de Mercúrio, essa movimentação de idéias... Sabe, ele sumiu do hospital, fugiu, para terminar projetos que achava importantes. Estava morrendo, mas eu acredito no seguinte: por exemplo, nós éramos muito ligados a um pai-de-santo, e Darcy dizia sobre ele: nos dias em que está concentrado e centrado, ele é admirável e surpreendente. Acho o mesmo do 42 Darcy. São essas pessoas que têm algo mais que faz com que toda a energia convirja em determinados momentos levando-as a produzir coisas que os outros jamais vão esquecer. Darcy era um homem de muitos amores, em todos os sentidos. Amores que faziam parte da sua vida. Acho que nada podia ser duradouro, a não ser a totalidade de sua trajetória. Os acontecimentos amorosos, e os não amorosos, eu acredito que eram episódicos. Eu fiz certa vez uma curta gravação, ele falando; é admiravelmente lindo. A maneira de ele falar mostra que era verdadeiramente um educador. Tinha paixão por fazer o indivíduo crescer, desde as crianças. Em uma gravação é muito difícil de definir exatamente como ele era. Porque ele era multifacetado, era múltiplo. Então hoje eu acho que ele era um verdadeiro performer, tudo nele era visceral. E quando eu digo que ele era um grande educador, é porque com sua energia ele ajudava a organizar o potencial dos outros. Ele via a criança com a liberdade da criança que ele poderia moldar, sem, contudo, impor. Tinha capacidade de otimizar a individualidade de cada pessoa por meio da canalização e do não desperdício. Alguém poderia pensar: o Darcy é uma pessoa tão solta que desperdiça energia. Mas era o jeito dele. Ele se atrapalhava às vezes ao falar, porque suas idéias surgiam rápido. Eu acho que a gente se dava bem talvez porque ele sentisse em mim um certo nervosismo energético, mas, de todo modo, ele tinha um domínio que eu não atropelava. Era preciso saber entrar na dança: escutar, e em determinados apresentar seu raciocínio. Às vezes ele aceitava, outras não, mas era uma música muito especial falar com o Darcy. Então eu digo que Darcy era o protagonista. Mas Foto: alcyr cavalcanri / agência o globo era generoso, sabendo como captar essa generosidade dele. Porque você sempre seria coadjuvante, mas um coadjuvante que receberia dele uma energia que talvez anos depois você ainda poderia aproveitar. Então eu acho que ele formou, não formalmente, muitas pessoas, transmitindo essa energia. Como deus e como metal. Ele voava, ele brilhava. Quando vejo mercúrio, eu sempre tenho vontade, de pôr a mão dentro, mas ele escapa, no entanto você quer. E, ao mesmo tempo, é algo altamente venenoso. Então, lidava-se com uma figura alquímica, propriamente falando. E de tantas facetas! Quem somos nós para criticar, para dizer como ele deveria ser? Não? Ele é assim. Convertia sempre a busca do ouro, mas não era um ouro duro, de valor econômico. Era aquele ouro que vem do ser humano. Darcy era um mensageiro fabuloso que elevava o nível, trazia informações de outras áreas. Parece um pouco aquela história do autor e da obra, como Salvador Dalí, como Picasso, que era uma torrente. A obra se mistura com o autor. Não no mesmo sentido, porque na minha opinião Dalí parecia bem mais calculista. Picasso sim, ele tinha essa coisa latina. Como Darcy. Acho que foi o que tentei falar. Essa diversidade, essa riqueza, que eu tentei expor, essa riqueza que provocava até uma certa irritação, mas, sabendo como aproveitar acrescentava muito, dando, digamos, informação de vida que anos depois você ainda estaria organizando. 43 Vitimado por um câncer, desapareceu do hospital para tocar seu projeto. HOMENAGEM ARIANO SUASSUNA ARTISTA DO BRASIL PROFUNDO CARLOS NEWTON JÚNIOR BRÁULIO TAVARES P oeta, dramaturgo, escritor e artista plástico, Ariano Suassuna completou 80 anos em 2007. Nascido na cidade de Paraíba (16 de junho de 1927), hoje João Pessoa, foi no sertão onde cresceu que ele apreendeu, para depois revelar ao mundo, um Brasil que nem brasileiros conheciam. Ícone da língua portuguesa, Suassuna tem sido homenageado em todo o país. No Memorial da América Latina encontrou-se com seu público e com alguns estudiosos de sua obra ao abrir o programa comemorativo de seu aniversário. A revista Nossa América colheu e reproduz os depoimentos de dois especialistas, Carlos Newton Júnior e Bráulio Tavares, que fazem um apanhado de alguns aspectos do trabalho do mestre. 44 Foto: divulgaÇÃO Suassuna: dramaturgo, escritor, poeta e artista plástico 45 Vida e obra do mestre sertanejo Carlos Newton Júnior A obra de Ariano Suassuna revela um Brasil verdadeiro e profundo, que muitos brasileiros, infelizmente, ainda não conhecem. O Brasil não se esgota no eixo Rio-São Paulo e nas grandes cidades do litoral, que por sua condição cosmopolita são muito influenciadas pelos modismos que chegam do exterior. O Brasil profundo está um pouco mais para dentro. Ariano gosta muito de uma frase de Machado de Assis que menciona a existência de dois Brasis, o Brasil real e o Brasil oficial. Pois bem: creio que o Brasil oficial identifica-se mais com a Europa e principalmente com os Estados Unidos, enquanto que o Brasil real encontra-se plenamen- 46 te identificado com a América Latina e a África. Ariano é um sertanejo de coração. De estirpe sertaneja, nasceu no litoral, mas com um ano de idade foi para o sertão, onde viveu boa parte de sua infância. É lá que ele entra em contato com todo o universo do romanceiro popular nordestino, fundamental para a realização de sua obra futura, nos campos da poesia, do teatro e do romance. Pode-se dizer que Suassuna é um artista completo. É poeta, dramaturgo, romancista e artista plástico. É algo fora do comum, pois ele, a meu ver, não só domina com mestria o ofício de todos esses gêneros como consegue atingir, em suas obras, a mes- Foto: andre dusek / agência estado Suassuna é criador do chamado “teatro do Nordeste”. ma qualidade artística. Quando eu leio uma peça de teatro do grande poeta inglês T.S. Eliot, por exemplo, sinto que o poeta se impõe e é superior ao dramaturgo. As falas dos personagens, mesmo quando deveriam ser prosaicas, possuem a sonoridade do verso. Isso não ocorre no teatro de Suassuna, nem mesmo numa peça como Farsa da Boa Preguiça, que é escrita em versos e cujos diálogos soam como prosa. Ariano domina a técnica do diálogo teatral, a técnica do romance, a técnica da poesia, de modo que ele é tão bom poeta quanto dramaturgo, e tão bom dramaturgo quanto romancista. Ariano começa a sua vida literária como poeta. Seu primeiro poema, publicado em 1945, intitula-se “Noturno”. As pessoas acham que ele produziu poesia esporadicamente. Na verdade, ele escreve poemas até hoje. Acontece que ele nunca se preocupou em editar. O único livro que reúne a obra poética de Ariano foi uma edição universitária que organizei em 1999, intitulada Poemas, reunindo parte de sua produção em quatro décadas de poesia. Em 1947, Suassuna estréia no teatro. Em 1955, antes dos 30 anos de idade, escreve o Auto da Compadecida, sua peça mais famosa. Quando a peça chega ao Rio de Janeiro, em 57, Suassuna é alçado à condição de um dos nossos maiores dramaturgos. Grandes companhias do Rio de Janeiro e de São Paulo pediam suas peças para encenar. Nos anos 70, ele cria o Movimento Armorial para congregar artistas de vários campos da arte. Quer dizer, ele sempre atuou paralelamente como uma espécie de incentivador cultural, apoiando artistas jovens, inclusive aceitando cargos públicos relacionados à área da cultura 47 para exercer esse lado de sua personalidade generosa. Também foi professor de Estética e História da Arte na Universidade Federal de Pernambuco. Suassuna é criador do chamado “teatro do Nordeste”, título que lhe é atribuído por Hermilo Borba Filho quando Ariano escreve a peça Auto de João da Cruz, em 1950. Como romancista, a primeira experiência de Suassuna foi um romance curto, que escreveu em 1956, chamado A História do Amor de Fernando e Isaura, publicado pela primeira vez em 1994. A partir de 1958 ele começa a se dedicar ao grande romance de sua vida, o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, que leva 12 anos para escrever, considerado uma das obras máximas da literatura não apenas brasileira, mas de língua portuguesa. É um livro grandioso, um marco, mas pouco conhecido no mundo, porque teve apenas duas traduções, uma para o alemão, outra para o francês. É um romance difícil, hermético, talvez por isso tenha sido pouco traduzido. Por outro lado, Ariano nunca foi um escritor preocupado em promover a sua obra, pois ele acredita que o trabalho do escritor termina quando ele termina o livro. A obra de Ariano no campo das artes plásticas ainda é praticamente desconhecida do público. As pessoas vêem um quadro ou uma tapeçaria dele e acham que se trata de um trabalho esporádico. Mas não é. É um trabalho que ele vem desenvolvendo sistematicamente pelo menos desde 1970. O Romance d’A Pedra do Reino é todo ilustrado por ele mesmo, e quem lê nota que aqueles desenhos do livro não são simples ilustrações, são imagens que também narram, complementam o texto. Passados dez anos da publicação do romance, Ariano Suassuna começa a fazer as suas iluminogravuras, um trabalho admirável, em que a poesia se integra à pintura. Além disso, os desenhos de Ariano começaram a influenciar outros artistas, que passaram a desenvolvê-los em tapeçarias e mosaicos. Carlos Newton Júnior é arquiteto, historiador e doutor em literatura. o sertão e o mar Bráulio Tavares Na obra de Ariano Suassuna, e em sua vida pessoal, há aspectos muito importantes do Brasil de ontem, de hoje e de amanhã. Como poeta, dramaturgo, romancista e artista plástico é a trajetória de um brasileiro em busca do Brasil. De um brasileiro que acredita num conceito de Brasil que para algumas pessoas é considerado ultrapassado, mas para outras se trata da busca de um Brasil verdadeiro, autêntico, da medula de um Brasil que só se sustentará enquanto nação e povo caso mantenha dentro de si algumas dessas características culturais. 48 Eu sou natural de Campina Grande, uma cidade da Paraíba que não sei quantos conhecem. Campina Grande está situada no alto da Serra da Borborema, a 120 km de João Pessoa, a meio caminho da capital João Pessoa, em uma região que a gente chama de Alto Sertão, embora não seja. A cidade, localizada no topo de uma serra é uma cidade parecida com São Paulo. Pela situação geográfica, é uma cidade fria e sendo uma cidade fria não se identifica culturalmente com praia, nem com o sertão. Nós ficamos na posição de ob- Foto: leonardo aversa / agência o globo servadores privilegiados dessas duas civilizações que existem na Paraíba e no Nordeste inteiro, assim como no Brasil todo. São duas culturas que vêm se contrapondo há séculos, disputando poder econômico e político, e estão, pouco a pouco, misturando-se uma à outra. O que nos leva a Glauber Rocha, a Deus e o Diabo na Terra do Sol, e à voz do profeta dizendo: “O sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. É exatamente isso o que está acontecendo: a civilização urbana, nordestina e de outras regiões também, está sendo cada vez mais contaminada, influenciada por uma mentalidade rural por causa desse êxodo do campo para as metrópoles. Vamos falar um pouco do sertão. O primeiro grande cronista literário do sertão foi Euclides da Cunha, com Os Sertões, seu livro sobre Canudos. A certa altura da obra, Euclides traça um retrato muito interessante do que ele chama a civilização dos paulistas. Paulistas entre aspas, aqueles indivíduos que a partir do século 17, 18 saíram desbravando o Brasil a partir de São Paulo, subindo por dentro de Minas Gerais e, ao chegar às serras do interior, descobriram o Rio São Francisco, que é o chamado Rio da Integração Nacional. Eles são chamados de paulistas, mas nem todos eram paulistas, muitos eram portugueses, outros paulistas de fato. Havia goianos, mineiros, fluminenses, mas enfim, era toda uma massa heterogênea de desbravadores que, sempre subindo rumo ao norte, na direção do Oceano Atlântico chegaram ao ponto em que o São Francisco faz uma inflexão na direção do mar, onde deságua. Nesse ponto de inflexão, o Rio São Francisco foi a estrada, o caminho que anda, cujas bordas foram sendo civilizadas ao longo de Minas Gerais, da Bahia, até chegar ao sertão, onde se encontram o extremo oeste de Pernam- Instalado na cidade, voltou os olhos para o sertão. buco, o extremo oeste da Paraíba, o sul do Ceará, o sul do Piauí e um bico do sertão da Bahia. O interior do Nordeste, os Estados que nos interessam por causa de Ariano Suassuna, Pernambuco e Paraíba, foi colonizado pelo interior, por esse pessoal que criava gado, plantava algodão e fundava uma verdadeira civilização de faroeste dentro deste oeste remoto do Brasil. Ao mesmo tempo, havia a civilização litorânea, dos portugueses, a civilização da Coroa, dos tempos de colônia, depois do império e da república, uma civilização que chegava de navio, fundando capitais, todas portos, cidades litorâneas. Eram sedes do poder português, e foi por meio dessas capitais, dessa civilização que vinha de fora, que o País começou a se estruturar. 49 Então temos essa civilização por dentro, dos desbravadores e colonizadores e a civilização de fora, dos governos sucessivos, que vieram transformando o Brasil no Brasil que nós conhecemos. Essa confrontação pode ilustrar o que aconteceu em todo o Nordeste. Uma civilização criada na marra, por iniciativa privada de aventureiros e desbravadores, cujos descendentes se transformaram em fazendeiros, e um governo que aparece e diz: “Essas terras são do governo, e vocês vão ter de pagar imposto.” Esse confronto político se deu a partir do final do século 19, entrou pelo século 20 , e acabou redundando nisso que a gente chama hoje de Revolução de 30, quando Getúlio Vargas subiu ao poder. Ariano Suassuna ficou profundamente marcado por essa revolução. Foi nessa época que o pai dele foi governador do Estado na Paraíba, e defensor dos interesses desses líderes sertanejos, dessa aristocracia rural, uma vez que João Suassuna era um sertanejo. Depois ele passou o governo para João Pessoa, que quis modernizar o Estado, outra questão interessante, já que lendo os depoimentos de um e de outro, percebe-se que os dois tinham razão. Para uns era uma civilização que criaram, sem pedir nada a Portugal; a coroa portuguesa e a brasileira não ajudaram em nada, a República brasileira também não. Então, por que se curvariam a essas forças, e a uma constituição que não expressava seus interesses? Por que pagar impostos sobre uma riqueza que eles haviam construído?” João Suassuna, pai de Ariano, foi assassinado com um tiro pelas costas, no Rio de Janeiro, acusado de ter contribuído, indiretamente, para o assassinato do governador João Pessoa, que foi assassinado por João Dantas, um advogado sertanejo, primo 50 da mãe de Ariano Suassuna. As raízes deste fato estão no acirramento das rivalidades políticas entre João Pessoa e João Dantas e no fato de que a polícia do governador João Pessoa expôs as cartas íntimas dele e de sua namorada, e isso foi considerado por um sertanejo uma grande ofensa. É como se hoje em dia, um indivíduo importante pegasse as cartas, e-mails e a correspondência íntima do adversário e jogasse na Internet para que todo mundo pudesse ver. Quando o pai foi morto, Ariano tinha três anos. Houve uma série de perseguições à família, que foi obrigada a se esconder em várias cidades. Eles moraram uns tempos em Itaperoá e depois a mãe de Ariano levou os filhos para Recife. Por isso, Ariano é um indivíduo dividido entre o sertão e o mar. Muitos críticos, estudiosos, professores, dizem: - “A obra de Ariano Suasssuna expressa 100% o sertão.” E eu discordo um pouco disso. Para mim, Ariano expressa sim o sertão, mas um sertão visto com os olhos da cidade, porque ele é um homem da cidade. Ariano completou 80 anos agora, em 2007, desses 80 anos, viveu 15 no sertão e 65 em Recife, onde foi estudar aos15 anos. Lá ele terminou seus estudos secundários, fez a faculdade de Direito, participou dos mais importantes movimentos culturais daquelas décadas de 40, 50, 60. Ariano se politizou em Recife, criou em Recife, dentro da Faculdade de Direito, o movimento Armorial, que o consagrou no Brasil todo. Então, ele é um indivíduo formado culturalmente na cidade grande. O sertão é para ele a medula de tudo, à qual o indivíduo recorre quando precisa de inspiração. Para mim, Ariano representa, em partes iguais, o sertão e o mar: Itaperoá e o Recife. Sem entender isso, a gente não pode entender profundamente o Ro- mance d`A Pedra do Reino, que é uma composição recifense em suas discussões políticas, ideológicas, e assim por diante. Essa junção do sertão e do mar parece o destino dos grandes criadores dos movimentos culturais do Nordeste. Eles saem do sertão com uma infância totalmente impregnada, encharcada de sertão, mas é fora de lá, na cidade grande, que vão criar. E o mais bonito é que o sertão de Guimarães Rosa é um, o de Glauber Rocha é outro, o de Leandro Gomes de não fosse tão essencialmente quanto é sertaneja uma obra recifense, feita por um professor universitário que saiu do sertão e que teve de se adaptar à vida na cidade grande. O sertanejo vê a si próprio como uma encarnação de todos os valores positivos, e a civilização litorânea como a de todos os valores negativos. E vice-versa. Então, prestando atenção às entrevistas e depoimentos de Suassuna, nota-se que ele detesta a palavra moderno. Eu ouvi, num debate, alNesta página e na página seguinte: a forte influência popular no grafismo de Suassuna. Foto: divulgação Barros é outro, o de Ariano Suassuna é outro. São muitos sertões superpostos e que se enriquecem e se complementam mutuamente. Então, uma obra como a de Ariano Suassuna jamais poderia existir, nos termos literários em que existe, se ele fosse um velhinho de 80 anos nascido, criado e vivendo até hoje em Itaperoá. Essa obra, com a dimensão e as implicações, as leituras paralelas que admite, jamais poderia existir se guém dizer: “O senhor acha que hoje, no mundo moderno, a sua obra subsiste?” E ele responde: “Esse negócio de moderno não ficou muito para mim não. Lá no Nordeste essa modernidade ainda não chegou.” Mas em seus escritos, ele reconhece que deveu muito à Semana de Arte Moderna de 22, aqui de São Paulo, aos modernistas como Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. E também ao lado moder- 51 nista do Nordeste. Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, é um livro que Suassuna sempre aconselhou como leitura obrigatória para conhecer o Brasil. Uma vez ele disse: “É claro que o mundo evolui, é claro que as coisas mudam. Eu gosto da tradição, mas eu acho que coisas novas têm que surgir, porque eu também sou uma coisa nova que um dia apareceu no mundo, então eu estou trazendo a minha obra como uma coisa nova, embora ligada à tradição. O problema é que quando houve a Revolução de 30, a aristocracia rural à qual minha família pertencia foi derrotada em nome da modernização. Depois que perdemos a batalha, passei a infância e a adolescência inteira ouvindo dizer que nós proprietários rurais éramos o símbolo do atraso, do conservadorismo, da violência.” Então por osmose, já fiquei com raiva. Em outro depoimento ele diz: “Eu sou símbolo de um grupo social, a aristocracia rural sertaneja, que foi derrotada em três momentos decisivos da história do Brasil. Primeiro em 15 de novembro de 1889, com a Proclamação da República. Depois, em outubro de 1930, com a Revolução de 30 e a subida ao poder da burguesia por meio de Getúlio Vargas. E em 31 de março de 1964, com a instalação da ditadura militar no Brasil, foi o terceiro golpe que os sertanejos sofreram porque começou ali a americanização do Brasil.” São os três momentos em que aquele sertão que era a vida, a memória, a infância de Ariano Suassuna, foi sendo enxotado para um lugar mais remoto da vida brasileira. E Ariano se ressente, e tem razão, como um dos indivíduos a quem cabe preservar as coisas boas que havia naquela civilização extinta. Tenho a impressão de que os descendentes do sertanejo nordestino 52 vão ser, daqui a 100 anos, quando o Nordeste se transformar numa imensa Miami, um povo que só se reconhece por seus pares, pelo jeito de falar, pelas histórias, pelos rituais que celebra quando está junto. Os nordestinos do futuro serão um povo que trabalhará em gigantescos shopping centers, e as pessoas vão morar na periferia, numa favela. Taperoá vai ser o Shopping Center Taperoá, vai vender artesanato ‘industrial’, ou vai ser o que Ariano disse que viu no Recife: - “Eu estava andando por Recife, quando vi um prédio em que estava escrito no letreiro: Macambira’s Center. Aí veja só que desaforo! A macambira é um vegetal de respeito, não merece uma humilhação dessa”. Mas é o futuro, e os tataranetos dos taperoaenses de hoje estarão lendo o Romance d’A Pedra do Reino, reverenciando a literatura de Ariano Suassuna e a arte de outros sertanejos ilustres, transformando o Nordeste e o sertão em mito. O sertão de Ariano está sendo destruído pelas cidades em expansão, já que economias fortes conquistam o resto. Então, está ocorrendo um embate entre mar sertão, e que está acontecendo entre pessoas que não se odeiam, apenas se desconhecem, defendem interesses opostos. E Ariano Suassuna é um dos grandes cronistas dessa guerra, dessa imensa tragédia em câmera lenta que vem acontecendo no Brasil desde 1930. Existem valores que o sertão antigo defende e que horroriza a cidade. Por outro lado, no sertão, você dá a sua palavra e o outro aceita. A assinatura no sertão se dá com o fio do bigode. O sertanejo não quer viver num mundo em que pessoas não cumpram a palavra dada. E esse sertão remoto, que é o sertão da infância de Ariano Suassuna, tem muita coisa ética a ensinar ao Brasil moderno, atulhado de mecanis- Foto: divulgação mos e recursos jurídicos, milhões de leis, artigos, alíneas, letras, etc., e hoje você não confia na palavra de ninguém. Esse sertão remoto, que Ariano conta, é atrasado, rudimentar e superado em muitos aspectos, precisa, de fato, modernizar-se. Por outro lado, tem uma medula de verdade, de compreensão de como devem ser as relações das pessoas dentro de uma comunidade. Esse sertão remoto de Ariano, não é um sertão composto somente de paisagens exóticas. É uma civilização criada na marra, onde muitas vezes os conflitos foram resolvidos a mão armada – isso é mais uma das coisas que precisariam mudar -, mas que tinha e tem muitos exemplos éticos para dar à nossa sociedade de hoje. E a obra de Ariano é exatamente isso. O Romance d’A Pedra do Reino é uma história em que se mistura esse mundo sertanejo, que é representado por D. Pedro Diniz Ferreira Quaderna, figura falastrona, mas que já é moderno o suficiente para não resolver nenhum problema a mão armada, resolve tudo na conversa, enrolando, na evasiva. É como ele se liberta e enfrenta o juiz corregedor que desembarca em Taperoá como representante do país, da lei e da modernidade. Então esse choque entre o sertão e a lei é descrito por um escritor que ele próprio já é metade sertão metade capital. Sertão e mar, a busca da síntese entre as duas civilizações, têm sido toda a carreira de Ariano Suassuna, principalmente sua obra em prosa, que é o Romance d’A Pedra do Reino. O sertão está virando mar, está sendo recriado à imagem e semelhança das nossas capitais litorâneas. Mas em compensação, o mar também está virando sertão, porque é para essas capitais, para a civilização do viaduto e do shopping center que estão indo milhares de pessoas do mundo rural, levando suas crenças e seus valores. E um dos grandes imortalizadores desses mitos do sertão dentro da civilização do mar se chama Ariano Suassuna. Bráulio Tavares é escritor, compositor e um conceituado conhecedor da cultura nordestina. 53 CINEMA ROTEIROS? HISTÓRIA CONTADA EM IMAGENS MARCELO LYRA E m sua recente estada no Brasil, durante a Festa Literária Internacional de Parati (Flip), em julho deste ano, o escritor e roteirista mexicano Guillermo Arriaga, conhecido pelos roteiros de filmes como Amores Brutos e Babel, bem como por livros como O Búfalo da Noite e O Doce Aroma da Morte, repetiu diversas vezes que prefere ser chamado de escritor do que roteirista. “A palavra guión (roteiro em espanhol), também significa guia, e eu não guio ninguém”, repetia na maioria das entrevistas. Segundo ele, quando as pessoas ouvem a palavra guionista (roteirista), pensam tratar-se de um guia turístico. Não por acaso, em Hollywood já faz algum tempo que os roteiristas são chamados de writers (escritores). 54 O premiado Cabra Cega, do roteirista Di Moretti. FotoS: divulgação O mesmo ocorre no Brasil. Di Moretti, roteirista dos premiados Cabra Cega e Latitude Zero e presidente da recém-criada Associação de Roteiristas denominada Autores de Cinema, admite que poucas pessoas sabem definir com precisão o trabalho de um roteirista. “Quando chego a um hotel e escrevo ‘roteirista’ no espaço destinado à profissão, na ficha de inscrição, o recepcionista me olha com cara de estranhamento”. Por conta disso, muitos roteiristas brasileiros querem que, nos créditos do filme, em vez de roteirista, apareça “escrito por”. Mas afinal, o que faz um roteirista? Para Moretti, escrever um roteiro é pensar uma história em imagens. Muita gente confunde e acredita que escrever literatura e roteiro é a mesma coisa. Quem afirmar isso perto de um roteirista comete um erro. “Escrevo tanto romances quanto roteiros exclusivos para cinema, e acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra”, afirma Marçal Aquino, roteirista dos premiados O Invasor e Cão Sem Dono, ambos dirigidos por Beto Brant. Para ele, a literatura é um território de incertezas: “Nunca sei muito bem o que estou criando quando escrevo”. Já o roteiro normalmente tem rumo certo. “Sei direitinho o que estou fazendo e para onde vou, até por uma questão de ritmo”, explica Marçal, que acha muito mais fácil e rápido escrever um roteiro que um romance. 55 FotoS: divulgação Convocado por Hollywood, Fernando Meirelles dirige O Jardineiro Fiel. Para Beto Brant, de Cão Sem Dono (ao lado), “roteiro tem rumo certo”. A questão do ritmo se explica por uma questão de espaço. No cinema há um tempo definido, já que um filme costuma durar algo em torno de duas horas. Como em média uma página de roteiro resulta em um minuto de filme, o tamanho do roteiro oscila em torno de 120 páginas. Diante das adaptações de livros famosos para o cinema, sempre acompanhadas de reclamações dos fãs dos livros, é o caso de se perguntar: um roteiro baseado em um livro deve ser fiel à obra? “Não necessariamente, já que são linguagens diferentes”, explica Di Moretti. Segundo ele, é preciso ter um desrespeito saudável, pensan- do nos conceitos de uma obra audiovisual, caso contrário teremos apenas um livro ilustrado. “Da mesma forma que, ao adaptar uma peça teatral sem levar em conta aspectos da linguagem cinematográfica, o resultado será teatro filmado”, afirma. Marçal Aquino lembra que o cineasta italiano Federico Fellini dizia que a melhor forma de adaptar um livro para o cinema é ler, jogar fora e escrever o roteiro com o que ficou na memória. “É uma boa definição do processo, pois o que importa é buscar contrapartidas imagéticas que estabeleçam um diálogo à altura do texto que se está adaptando”. DE OLHO EM HOLLYWOOD Hollywood vive uma crise de roteiros sem precedentes. Nunca se viu tantas continuações ou remakes. Só este ano, Homem Aranha, Shrek e Piratas do Caribe já chegaram à terceira parte, Duro de Matar à quarta, Harry Potter à quinta (deve ir no mínimo até a sétima) e até o aposentado Rocky, o Lutador foi ressucitado, sem falar nas eternas reciclagens de Super Homem, James Bond e dos heróis Marvel. Para tentar injetar sangue novo, roteiristas latino-americanos, como Bráulio Mantovani (Cidade 56 de Deus) e Arriaga, têm sido chamados por estúdios de Hollywood. Trilham os passos da argentina Aída Bortnik, que em 89 foi convidada a escrever o roteiro de Gringo Velho nos EUA, depois que o filme A História Oficial, dirigido em 1986 por Luis Puenzo e com roteiro de sua autoria, ganhou o único Oscar de filme estrangeiro da América do Sul. Indicado ao Oscar por Cidade de Deus, Mantovani recebeu inúmeros convites para fazer roteiros em Hollywood. Acabou aceitando um convite do ator Brad Pitt para escrever uma história sobre contrabandistas de diamantes na África . Depois de tudo pronto veio a má notícia: o projeto foi arquivado quando se soube das filmagens de Diamante de Sangue, exibido no ano passado, com Leonardo Di Caprio, que tinha tema muito parecido. Guillermo Arriaga, por seu turno, depois de fazer o roteiro do hollywoodiano Babel, prepara-se para um passo ainda mais ousado: vai estrear em no- havia dirigido dois curtas-metragens. Ele lembra que a frustração acontece apenas nos casos de adaptação de seus livros. Babel, cujo roteiro foi criado à partir de uma idéia sua e do diretor Iñarritu, lhe valeu uma indicação ao Oscar de melhor roteiro, mas terminou com uma briga com o diretor, desfazendo uma parceria de muitos anos. Novamente por conta da questão da autoralidade e do que deve ou não ir às telas. Na falta de roteiros, Hollywood apela para as continuações: Rocky, o Lutador, 007 Cassino Royale, Duro de Matar e Harry Potter. FotoS: divulgação vembro como diretor na produção americana The Burning Plain. O desejo de dirigir surgiu em parte por sua frustração com o que os diretores faziam com os roteiros de seus livros. O Doce Aroma da Morte, lançado recentemente no Brasil, deixou-o insatisfeito com a versão dirigida em 1999 por Gabriel Retes. Ele reclamou ainda mais da transposição de O Búfalo da Noite para os cinemas, dirigida em agosto deste ano pelo também mexicano Jorge Hernandez Aldana. O resultado, ainda inédito, do roteiro de sua autoria foi a gota d’água para Arriaga, que já Pelo mesmo motivo, diretores latinos tem sido convidados por produtores americanos para fazer filmes no primeiro mundo. O mais bem-sucedido foi sem dúvida o mexicano Alfonso Cuarón (E Tu Mamá También), que dirigiu Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, terceiro episódio da milionária franquia baseada nos livros da inglesa J. K. Rowling, mas os brasileiros Walter Salles (Água Negra) e Fernando Meireles (O Jardineiro Fiel) também já filmaram por lá. Marcelo Lyra é crítico da revista IstoÉ Gente, do jornal Valor Econômico e editor do site Cine Qua Non. 57 CÁTEDRA NATUREZA EM RISCO A Terra corre perigo? Corre sim. Palavra do professor José Goldemberg, coordenador do módulo Meio Ambiente da Cátedra Memorial da América Latina em curso até dezembro. Implantada em 2006, numa parceria com as três instituições públicas de ensino paulistas – Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Estado de São Paulo e Universidade de Campinas - o primeiro módulo da Cátedra, realizado entre janeiro e julho deste ano focalizou um tema correlato, energia. Da preservação do meio ambiente dependem as mudanças climáticas. A questão é atual, controvertida, e inquietante. Daí sua presença cada vez mais freqüente na pauta de cientistas, órgãos de comunicação e cidadãos comuns. Dada a relevância do assunto, o Memorial da América Latina não poderia deixar de trazê-lo à reflexão em seu programa de pesquisa e docência. Para tanto, convidou Goldemberg, físico de projeção internacional, com uma vida de pesquisa dedicada à área. Baseandose em relatório concluído recentemente, o professor resume a situação mundial: a temperatura média da superfície terrestre aumentou desde fins do século XIX, o nível dos oceanos está subindo, a precipitação das chuvas também está aumentando em algumas regiões, a cobertura de neve e gelo decresce continuamente e há mudanças no padrão de circulação da atmosfera, assim como um aumento do número de eventos climáticos extremos. 58 Autor de obras referenciais como Energy for a Sustainable World e Energy and Environment in Developing Countries, Goldemberg detalha o impacto das mudanças climáticas no Brasil. A elevação em 40 cm do nível do mar em pontos da zona costeira já é fato, segundo ele. O fenômeno é gerado pelo aumento da massa de água provocado pelo calor e pelo degelo de calotas polares. Caso prossiga, os resultados seriam o colapso do sistema de esgotos que por pressão das águas não conseguiria manter o nível adequado de inclinação para vazão e a destruição de portos e construções à beira mar. O país também pode perder sua floresta amazônica para a savana, se providências não forem tomadas. Prevê-se a extinção de 30 por cento de sua cobertura vegetal até 2050. Um dos reflexos mais dramáticos seria o agravamento da seca num Nordeste, já penalizado pelas condições climáticas. Os recursos hídricos também não seriam poupados. Devido à evaporação, exceto no Sul haveria uma diminuição da vazão dos rios. A região Sul, por sua vez, registraria um aumento de chuvas e de temperatura. Os desdobramentos dessas condições envolvem desde inundações nas grandes cidades onde aumentassem os índices de precipitação pluviométrica, ao alastramento de doenças infecciosas transmissíveis, migrações de culturas e de contingentes populacionais para áreas não afetadas. Mas o que, enfim, está causando o superaquecimento global? O professor Goldemberg explica. Lembra que há um século a população da terra era de 1,5 bilhão de pessoas que consumiam, cada uma, menos duas toneladas de recursos minerais por ano. Hoje, são seis bilhões de habitantes, cujo consumo médio gira em torno de oito toneladas per capita. O impacto total, portanto, é 16 vezes maior: 48 bilhões de toneladas. “O homem se tornou uma força de proporções geológicas”, disse ele, já que as forças naturais, como o vento, a erosão, as chuvas e erupções vulcânicas movimentam cerca de 50 bilhões de toneladas por ano. A questão central é que das oito toneladas que cada um consome, uma é carbono lançado na atmosfera na forma de dióxido de carbono, o CO2, resultado da combustão de combustíveis fósseis. Ocorre que o dióxido de carbono não é transparente à radiação térmica e atua como um cobertor ao redor da Terra, evitando a dispersão do calor. Sua concentração, há 200 anos quando começou a Revolução Industrial, era de 0,028, hoje está em 0,036. Se essa concentração dobrar, a temperatura média da superfície terrestre deve aumentar de 1,5 a 4,5 C. O Brasil é o quinto contribuinte mundial às emissões de gazes de efeito estufa. Mas como explica o professor José Goldemberg, a contribuição do Brasil origina-se no desmatamento da Amazônia, aqui três vezes maior que a da queima de combustíveis, que é pequena no País. “Antes eram os grandes produtores agrícolas; hoje são os 20 milhões de assentados.” No processo de aquecimento global, o desmatamento tem participação significativa, 10%, embora menor que os processos industriais, que entram com 16,8%, a geração de eletricidade com 21,3% e o transporte com 14%. A produção e distribuição de combustíveis fósseis; o uso residencial, comercial e de serviços; a agricultura e o tratamento e disposição de resíduos ingressam com 11,3%, 10,3%, 12,5%, 3,4%. O Intergovernamental Panel on Climate Change, órgão das Nações Unidas responsável por produzir informações científicas sobre o assunto, além de identificar as causas do superaquecimento também faz recomendações. Algumas são controvertidas, como o emprego da energia nuclear, com a qual os ambientalistas não concordam, já que o lixo radioativo dura milhares de anos. Além disso, como lembra Goldemberg, trata-se de uma alternativa cara por causa da segurança. Outra solução apontada, cita o professor, seria a captura e o enterro do carbono em reservatórios vedados, também controvertida tendo em vista a complexidade do processo. No Brasil, menciona, há opções melhores de substitutivos energéticos, como o etanol, derivado da cana-de-açúcar, que tem sido apontado como secundário, mas na sua opinião não é. As polêmicas que tem suscitado, também não se justificam, diz ele. Ele argumenta que em se tratando de um produto vegetal, não contém particulados nem compostos de enxofre e, além disso, não é como se supõe, que o aumento da produção de cana causaria o desmatamento: “A expansão do etanol do Estado de São Paulo está ocorrendo em áreas degradadas. Mesmo porque a Secretaria do Meio Ambiente não dará licença a quem afete o meio ambiente. Há preocupações com outros estados, como Mato Grosso, por exemplo. De todo modo, o mercado internacional exige certificação quanto à origem e processos de produção, para evitar, por exemplo, o trabalho escravo.” Concluindo: “Há previsões pessimistas, previsões otimistas, posturas alarmistas quanto ao superaquecimento. Mas, de qualquer maneira, medidas têm de ser tomadas.” É sobre isso e questões ambientais correlatas que a Cátedra está tratando de abordar com um grupo de estudantes latino-americanos. Ana Candida Vespucci 59 Brasil poderá perder suas florestas. LIVROS Conhecimento pela imaginação “O romance morreu?” A frase interrogativa dá título ao primeiro ensaio de Geografia do romance, livro de Carlos Fuentes sobre a arte da qual ele mesmo é um artífice. Autor de narrativas como A morte de Artemio Cruz e Cristovão Nonato, o escritor mexicano é um dos últimos remanescentes, ao lado de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, do boom da literatura latino-americana dos anos 60 – uma plêiade composta por nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Lezama Lima. O volume reúne textos originalmente apresentados em conferências ou publicados na forma de prefácios e resenhas em jornais e revistas. Lidos em conjunto, adquirem unidade e revelam enorme consciência crítica. Melhor dizendo, os ensaios confirmam aquilo que o próprio Fuentes defende ao tratar de autores contemporâneos como Italo Calvino, Augusto Roa Bastos, Milan Kundera, Salman Rushdie, Julian Barnes e Juan Goytisolo: o romance é indissociável da atitude autoreflexiva que confere caráter singular a esse gênero literário caracterizado pela permeabilidade a discursos extra-literários e a uma meditação sobre seu lugar na história da literatura. 60 Trata-se de uma tautologia que é preciso levar em conta antes de abordar os textos de Fuentes: a indefinição do romance como gênero (o que há em comum entre o naturalismo de Zola, os fluxos da consciência de Joyce e as alegorias de Kafka?) lhe confere uma plasticidade que se deve à circunstâncias históricas de seu nascimento e posterior desenvolvimento; ao mesmo tempo, o romance faz do curso da história sua matéria-prima, amplificando tal plasticidade com a anexação de territórios da filosofia, da lingüística, da antropologia, da psicanálise etc. Tendo como pano de fundo um sistema artístico herdeiro da Antigüidade clássica, que prescreve formas de exposição (lírica, drama, épica) e campos temáticos (epopéia, tragédia, comédia, elegia etc.), o novo gênero surge, entre os séculos XVII (com Cervantes) e XVIII (Swift, Richardson, Sterne), justamente quando tais regras e princípios entram em crise: exemplo claro são as “tragédias” de Marlowe e Shakespeare, que mesclam elementos da comédia, como na passagem dos coveiros em Hamlet. Caberá ao romance acolher de modo mais intenso uma nova realidade, mais dinâmica e mutável do que aquela LIVROS das sociedades greco-romana e medieval. Nestas, vicejam gêneros relativamente estanques, em que cabe ao poeta “emular” modelos, dentro da cadeia repetitiva de um mundo de fundamentos estáveis; com a eclosão da modernidade, a “imitação dos antigos” dá lugar a formas de expressão conseqüentes com um tipo de indivíduo que, ao menos imaginariamente, constrói sua história – pois a própria idéia de “história” se contrapõe agora a uma concepção substancialista, essencialista, em que coisas e seres têm seu “lugar natural”. Inicialmente expressão de uma nova classe (a burguesia que vê suas vivências representadas nos romances de folhetim), o romance jamais se confinou a um formato fixo – pois a própria classe social à qual deve seu surgimento prima pela capacidade de se metamorfosear, imprimindo à realidade uma dinâmica que contrasta com as lentas transformações ocorridas nos períodos anteriores. O livro de Fuentes explora sob diferentes ângulos, e numa perspectiva contemporânea, a ambigüidade que atravessa a recepção do gênero romanesco: de um lado, a injunção da realidade, o compromisso do romance em relação ao contexto do qual brota; de outro, sua vocação proteiforme, sua porosidade aos acasos de uma história sujeita a guinadas bruscas. Para ele, essa capacidade romanesca de renovação responde de saída à pergunta “O romance morreu?” – sendo substituída por uma questão mais espinhosa: “Que pode dizer o romance que não se possa dizer de nenhuma outra maneira?” Os ensaios de Geografia do romance serão reflexos dessa pergunta, tentativas de estabelecer a positividade do romance – ou seja, o conjunto de artifícios, vozes narrativas e armações lingüísticas pelas quais cada escritor aborda a realidade e a transtorna. “No México e, não sei até que grau, na América hispânica, nossas respostas a esta pergunta passavam por três exigências simplistas, três dicotomias desnecessárias que, não obstante, se tinham erigido em obstáculo dogmático contra a potencialidade mesma do romance: 1. Realismo versus fantasia e, ademais, versus imaginação; 2. Nacionalismo versus cosmopolitismo; 3. Compromisso versus formalismo, artepurismo e outras formas da irresponsabilidade literária.” Desnecessário dizer que o quadro descrito por Fuentes diz respeito 61 LIVROS não apenas ao México e à América hispânica, mas também ao Brasil, às polêmicas que, desde o Machado de Assis de Instinto de nacionalidade e dos grandes ensaios de interpretação do Brasil (Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda), atravessam uma cultura preocupada em afirmar sua autonomia e a discutir uma suposta “identidade nacional”. “É separável o conteúdo de um romance da forma como responde à pergunta acerca de como traduzir a experiência da realidade em formas específicas?” – indaga Fuentes. Seu paradigma é Kafka, o autor cujas alegorias metafísicas fincam raízes nos traumas concretos da história (cancelando assim aquelas “dicotomias desnecessárias”), “o escritor mais realista do século XX, aquele que com maior imaginação, compromisso e verdade descreveu a universalidade da violência como passaporte sem fotografia do nosso tempo”. Pontuado por uma série de fórmulas cintilantes, Geografia do romance poderia ser resumido nas idéias de que “a imaginação é o nome do conhecimento na literatura e na arte” e de que “o romance não mostra nem demonstra o mundo, senão que acrescenta algo ao mundo”. A cifra de seu engajamento na realidade, portanto, está na forma como formula os problemas – e que por sua vez corresponde a um compromisso com a imaginação (esse valor inalienável), a uma ética da escrita: “A ausência de uma militância política não subtrai o 62 valor social ou político de uma obra narrativa, pois esta, quanto mais valores literários reúna, melhor cumpre a função generosa que Milan Kundera lhe atribui: redefinir perpetuamente os seres humanos como problemas, em vez de entregá-los, mudos e de pés e mãos atados, às repostas pré-fabricadas da ideologia”. Sintomaticamente, as análises de Fuentes começam pela obra de Borges, autor que jamais escreveu um romance! Mas essa aparente contradição se explica: o romance é um emblema de uma literatura que – a partir da era moderna e independentemente dos gêneros – passa a estar em litígio com seu tempo: “A literatura tornou-se excêntrica em relação às verdades centrais da sociedade moderna porque a literatura é o rito em chamas que introduz Deus com o diabo e o diabo com Deus”. Geografia do romance Carlos Fuentes tradução de Carlos Nougué Editora Rocco – R$ 29,00, 186 páginas. Manuel da Costa Pinto é jornalista, coordenador editorial do Instituto Moreira Salles, colunista da Folha de S.Paulo, autor de Literatura brasileira hoje (Publifolha) e apresentador do programa Letra Livre (TV Cultura). Escritos pela paz Em algumas frases de horripilante atualidade, se pensarmos no conflito inumano travado hoje no Iraque ou no confronto fratricida e non sense entre partidários do Hamas e do Fatah, na faixa de Gaza, o escritor paraguaio LIVROS Augusto Roa Bastos (1917-2005) expressa o conceito irretocável que tinha das guerras: “As guerras – diz ele, tendo como foco aquela que trucidou seu país entre 1865 e 1870, sob a Tríplice Aliança – são ofícios bárbaros onde sempre se sacrificam mais vítimas inocentes, enquanto os ministros observam, a partir da frieza dos cálculos e das estratégias – a logística sem lógica –, as mortes convertidas em baixas e as baixas conversas da morte rezando o obtuário diário”. O Livro da Grande Guerra – Quatro Escritores Latino-Americanos e a Guerra do Paraguai, que contém esse grito pungente de Roa Bastos, junto aos do argentino Alejandro Maciel, do uruguaio Omar Prego Gadea e do brasileiro Eric Nepomuceno, não está entre os lançamentos deste ano. Já tem cinco anos, na verdade, mas o que são cinco anos quando vamos perdendo a capacidade da reflexão e o gosto pelo conhecimento? Cada devoto oficia fatalmente a cerimônia do extermínio como que em sonhos, obedecendo a sinais cegos, instintos desconhecidos, confundindo razões com paixões ocultas. Quase sempre se compara a guerra ao inferno, mas Roa Bastos vai às últimas conseqüências no primeiro de seus dois textos nesse livro, ao fazer a analogia da Guerra do Paraguai com o Inferno da Divina Comédia, e, ainda mais, ao utilizar o recurso metalinguístico do general argentino Bartolomeu Mitre com veleidades de tradutor da obra máxima de Dante, em plena campanha. Propositadamente, o escritor mergulha nas semelhanças entre a carnificina real e a obra funda- dora da língua italiana e, do confronto, chega ao asco. Ao perpassar os círculos infernais em um diálogo com o pintor paraguaio Cándido López, seu lugar-tenente que havia perdido uma das mãos e sofria para reproduzir numa tela a batalha de Curupayti, Mitre fica entre o cinismo e o peso da culpa. Lopez, ao contrário, pode até nem retratar bem aquilo que vê, mas sabe do que se trata e por quê se desencadeou. O livro ainda contém o último período de resistência do marechal Solano López e sua esposa, Madame Lynch, resgatado a partir da releitura das cartas de sir Richard Francis Burton, cônsul itinerante do Império Britânico, à rainha (segundo texto de Roa Bastos); a deserção do capitão argentino Francisco Paunero e a fundação, apogeu e queda do Quilombo do Gran Chaco, a mítica comunidade pacifista formada por desertores das quatro nações (por Alejandro Maciel); os arquivos secretos do general uruguaio Rocha Delipiane (por Omar Prego Gadea) e a suposta existência do VII Barão de Ramalho, descendente de um dos conjurados del quilombo del Gran Chaco (por Eric Nepomuceno). O Livro da Guerra Grande – Quatro Escritores Latino-Americanos e a Guerra do Paraguai Augusto Roa Bastos, Alejandro Maciel, Omar Prego Gadea e Eric Nepomuceno Editora Record – R$35.00, 238 páginas. Ana Maria Cicaccio, jornalista da Associação Viva o Centro, especialista em literatura e música erudita. 63 AGENDA FESTIVAL LATINO-AMERICANO Retrospectiva DE CORDERO Se há ou não um cinema latinoamericano com acento comum é uma questão que demanda reflexões. É certo, contudo, que a produção realizada na região, por sua riqueza estética e temática, merece ser difundida. É esse o propósito do Festival de Cinema Latino-Americano, que o Memorial realizou, em fins de julho, já em segunda edição de muito sucesso. A parceria com a Secretaria de Estado da Cultura e a Associação do Audiovisual, além da Secretaria de Ensino Superior, trouxe dezenas de filmes, muitos deles inéditos, e alguns precursores da cinematografia do Continente. Este ano realizado em homenagem ao México, especificamente a duas figuras de absoluta relevância para a cultura desse país, o premiado diretor Paul Leduc e a artista plástica Frida Kahlo, o festival, como no ano passado, contou com uma série de debates que reuniu especialistas de diversas procedências do Continente. Opere 1960 – 2006, cartaz de setembro da Galeria Marta Traba, trouxe ao Brasil uma antologia dos 45 anos de carreira de Riccardo Cordero, desenhista, gravador e escultor que já representou duas vezes seu país, a Itália, na consagrada Bienal de Arte de Veneza. A mostra que já havia sido exibida em outras importantes instituições européias, como o Museo de la Universidad de Alicante, reuniu 56 peças representativas da evolução estética do artista piemontês, cujas obras monumentais estão presentes em grandes cidades do mundo. Etnias NA OBRA DE BONOMI Inaugurada a primeira fase dos painéis e totens de argila, bronze e alumínio, criados por Maria Bonomi para a galeria subterrânea da entrada principal do Memorial, que é o acesso para o metrô Barra Funda. São representações de personagens, moradias, instrumentos, utensílios, armas, símbolos, rituais, padrões e vestimentas que contam a vida dos índios, da pré-história até os dias de hoje. 64 NOVAS LIDERANÇAS POLÍTICAS O século XXI está desenhando um cenário ao mesmo tempo rico e difícil para a América Latina. Com o esgotamento do modelo econômico liberal, o surgimento de novas forças políticas e de movimentos sociais, há governos preocupados em revalorizar o protagonismo do Estado. Para compreender esse novo panorama, o Memorial promoveu o curso de extensão sobre Novas Lideranças Políticas, Movimentos Sociais e Alternativas de Governo na América Latina, com a participação de professores norte-americanos, brasileiros, cubanos e argentinos. Organizado pelo Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL), foi coordenado pelo professor Luís Fernando Ayerbe, da Universidade Estadual Paulista. AGENDA Legado DE FRANCO MONTORO O seminário O Legado de Franco Montoro reuniu autoridades, políticos e velhos companheiros do ex-governador para marcar os oito anos de sua morte. Montoro foi apontado pelos participantes como uma importante liderança para sua geração, homem democrático, descentralizador e sensível às necessidades do povo. O evento que foi aberto em 16 de julho, dia exato de sua morte, apresentou também uma exposição biográfica e a projeção de um documentário produzido especialmente para a ocasião. O projeto começou em maio com a gravação de 100 entrevistas sobre o ex-governador, que dá origem ao livro de mesmo nome. Conexão Latina Absoluto sucesso de público, fez o espetáculo da série Conexão Latina que juntou o grupo chileno Illapu à dupla Kleiton e Kledir no Auditório Simón Bolívar em fins de setembro. Foram quatro dias com as duas platéias lotadas, todos os ingressos esgotados. Kleiton e Kledir, bastante conhecidos pelas composições Deu pra ti e Tri legal, integraram à MPB nova música gaúcha. O Illapu tinha uma proposta parecida, quando foi criado nos anos 70: difundir a música andina chilena com uma nova roupagem. Homenagem à Bolívia Tem sido grande o comparecimento do público à programação dedicada aos países latino-americanos, que foi instituída na data de aniversário de cada um com o intuito de difundir suas culturas. A Semana da Bolívia é um bom exemplo. Trouxe 45 mil pessoas ao Memorial da América Latina. Música, dança, culinária e artesanato de um dos países do Continente que mais preservam suas tradições fizeram uma verdadeira festa de manifestações típicas. Anima Mundi O Festival de cinema de animação já se tornou um dos mais concorridos programas do Memorial da América Latina. Realizado em julho, e comemorando este ano seu 15º aniversário, o Anima Mundi exibiu para uma platéia de aficionados quase 400 realizações de 41 países do mundo todo. O Anima Mundi tornou-se um dos mais importantes do gênero e desta histórica edição concorreram mais de mil títulos. A edição deste ano homenageou Norman Mc Laren (1914-1987), escocês radicado no Canadá e um dos realizadores que revolucionaram a técnica da animação. Mirada histórica Mirada – Latino-Americanos do MAC/USP, em cartaz em outubro, foi um dos destaques da Galeria Marta Traba. Realização antológica, apresentou uma seleção de 31 obras dos mais importantes artistas latino-americanos do acervo do Acervo de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, entre eles o cubano Wifredo Lam. 65 AGENDA PUBLICAÇÕES DO MEMORIAL Depois da publicação de Mercosul 15 Anos, resultado do simpósio de mesmo nome, o Memorial da América Latina ao editar Mercosul Revisitado atualiza as discussões sobre o Continente e dá inicio à coleção Cadernos da América Latina. A partir de seu conhecimento em artes plásticas, Einsenstein, o famoso cineasta russo, formula complexas propostas visuais e estéticas de seu inacabado filme mexicano. REVISTA 25 Número totalmente dedicado a Oscar Niemeyer, autor do projeto do Memorial, e que completa 100 anos em dezembro de 2007. O livro reúne depoimentos de ex-presidentes latino-americanos, como Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Eduardo Duahalde (Argentina) e César Gaviria (Colômbia). A publicação é uma realização do Memorial da América Latina em parceria com a Imprensa Oficial e com a coordenação de Celso Lafer. 66 Resultado da programação inaugural da Cátedra Memorial da América Latina, o livro de autoria de Luiz Augusto Horta Nogueira nos dá a dimensão da questão dos biocombustíveis na América Latina. Quatorze títulos da Coleção Memo completam a centena que reúne os mais destacados nomes das áreas de literatura, cinema, política, sociologia, artes plásticas... REVISTA 26 O Estado Laico, a Bienal do Fim do Mundo de Ushuaia, a vida enigmática de Hemingway em Cuba, são alguns temas abordados nesta edição da Revista Nossa América. Resultado de um curso internacional, aprofunda a discussão e complementa algumas idéias debatidas. Acima de tudo, contribui para a reflexão do avanço conquistado pelos países do Continente e do Caribe.