Tema livre Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral A editora ática e os critérios de seleção: o estudo de um catálogo Eliane Santana Dias Debus Professora Doutora Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO: O presente artigo focaliza os critérios de seleção utilizados para selecionar os livros infantis e a sua relação específica com o mercado editorial. Para isso realizamos uma análise do catálogo da editora Ática referente aos anos de 2000, 2005 e 2008, apontando os avanços e os recuos dessa editora ao pensar as indicações de leitura. Este texto, por fim, se não apresenta soluções, demarca as fragilidades nas orientações de escolha dos livros infantis. Palavras-chave: critérios de seleção, livros infantis, editora Ática. ABSTRACT: The present paper focuses on the selection criteria adopted in selecting children’s books and the relationship between these criteria and the editorial market. In this context, an analysis of Ática’s catalogue – a publishing house – was carried out, regarding the years 2000, 2005, and 2008. The advancements and drawbacks concerning the reading recommendations are pointed out. This paper then presents, if not solutions, weaknesses in the orientations in selecting children’s books. Key-words: selection criteria; children’s books; Ática publishing house. 97 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Textos livres Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral A editora ática e os critérios de seleção: o estudo de um catálogo INTRODUÇÃO Para refletir sobre os critérios de seleção de livros para crianças se faz necessário deslocar o olhar para as instâncias de mediação desse produto cultural. Entre as muitas instâncias, internas e externas ao ambiente escolar, selecionamos para esse momento o mercado editorial, mais especificamente o catálogo da editora Ática (2000, 2005 e 2008) para verificarmos os avanços e os recuos quanto à questão dos critérios de escolhas e de indicação de seus títulos para o leitor dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A opção pela editora Ática deve-se a vários fatores, entre eles: 1) porque já foi objeto de análise em outras pesquisas (DEBUS, 2006, 2007); 2) por ser uma das editoras brasileiras que está a quase 50 anos no mercado editorial e 3) por ser uma das editoras que mais tem títulos publicados para o público infantil, além de uma atuação efetiva na escola. DESENVOLVIMENTO Fundada em 1965, por Anderson Fernando Dias, na cidade de São Paulo, tendo como gérmen inicial a confecção de apostilas para um cursinho de madureza, a editora Ática, nesses últimos 50 anos, tem distribuído e comercializado livros vinculados diretamente à esfera escolar, consolidando a sua marca neste setor. Suas façanhas mercadológicas superam muitas das suas concorrentes: criou no Brasil o seguimento do livro didático padronizado para o professor (denominado como Livro do Professor) com orientações didático-pedagógicas; desenvolveu um marketing acirrado de corpo a corpo, com vendedores que circulam no espaço da escola, divulgando e distribuindo aos professores os lançamentos para conhecimento e possível posterior adoção. O gráfico demonstrativo do total dos títu- 98 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta los da editora ilustra, de forma categórica, o seu público alvo. Fonte: www.ática.com.br Assunto: Dados correspondentes a janeiro de 2005 Verifica-se que 79% dos livros, que compõem o catálogo da editora, estão umbilicalmente ligados ao espaço escolar. Segundo informações da editora (www. atica.com.br), os livros didáticos de 5ª. a 8a série, por exemplo, receberam aprovação, quase total, de especialistas nomeados pelo MEC para participarem do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) entre os anos de 2002 (91%), 2004 (98%) e 2005 (100%). A editora também elenca sua participação no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) com livros literários direcionados aos alunos das escolas públicas da 4ª e 5ª séries do Ensino Fundamental. O ������������������������������ ano de referência para apresentação dos dados é anterior a 2005, levando a crer que são os títulos que fizeram parte do Projeto Literatura em Minha Casa, que tinha por objetivo levar o livro até as casa dos alunos por meio de coletâneas. A editora Ática, como as demais editoras brasileiras, adapta-se às exigências do mercado consumidor e, no caso dos livros para crianças e jovens, visa cumprir as demandas da Textos livres Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral Eliane Santana Dias Debus escola. Esse ajustamento pode ser explicitado com a inserção dos Temas Transversais, incluso a partir de 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e com as exigências da Lei 10.639, que institui a obrigatoriedade do ensino de História de Cultura Afro-brasileira e africana em todo currículo escolar, com ênfase nas áreas de Educação Artística e de Literatura e histórias Brasileiras. O catálogo de Literatura Infantil da editora Ática, correspondente ao público da Educação Infantil e dos Anos iniciais do Ensino Fundamental, segue o padrão das suas concorrentes ao divulgar o livro: imagem em tamanho reduzido da capa; nome do(s) escritor(es) e ilustrador(es) do título em questão; tamanho do livro e número de páginas; síntese da narrativa, relacionando-a com os temas transversais anunciados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Como “emblema da necessária racionalização do processo de produção” (LAJOLO, 1994, p.31), os títulos e autores são inseridos em coleções. No catálogo de 2008, especificamente, encontramos, para leitores a partir de 6/7 anos (Ensino Fundamental 1º. e 2º. Ano), 13 coleções que reúnem “Histórias contemporâneas de autores brasileiros”. Os títulos que não se enquadram nas características ficam reservados no que a editora denomina de “Diversos”. A mesma estrutura se repete ao longo do catálogo para as demais faixas etárias. Vejamos o número de títulos relativos aos catálogos que nos propusemos analisar. No ano de 2000, 598 títulos faziam parte do catálogo; no ano de 2005, 565 títulos e no ano de 2008, 577. Num primeiro momento, pode soar estranha a diminuição de títulos, mas isso, provavelmente, resulta de término de contratos editoriais ou de ações mercadológicas. Os títulos de Joel Rufino dos Santos, por exemplo, A botija de ouro, Dudu Calunga e Rainha Quixibim estavam presentes no catálogo de 2000 e 2005 e estão ausentes no de 2008. No ano de 2000, o catálogo apresentava os títulos orientando-se, explicitamente, pelos documentos oficiais de referência para Educação Infantil e Ensino Fundamental, (RCNEI e PCNS). Em página explicativa era esclarecido que os livros eram classificados de acordo com as seguintes categorias: brincando com o livro (iniciação ao mundo da leitura); lendo para aprender a ler (fase de pré-alfabetização e alfabetização); aprendendo a ler o mundo e a se conhecer (estímulo à observação e à autoexpressão); lendo e ouvindo poesia (fruição lúdica); lendo e ouvindo histórias (experiência com a língua escrita); lendo e pensando sobre a vida (reflexões); narrativas tradicionais I e narrativas tradicionais II; lendo para se divertir: o humor; lendo para se divertir: a aventura; e trabalhando com os temas transversais. Ao apresentar os títulos por categorias, surgiam outras duas divisões, a de faixa escolar que aparece de forma destacada (letras grandes e coloridas), e a de faixa etária, que aparece de forma indicativa, abaixo do título de cada coleção. Como exemplo, vejamos os livros que abarcam a fruição lúdica (Lendo e ouvindo poesia): são apresentados 11 títulos, que obedecem a duas orientações – uma em destaque, que recomenda livros para crianças a partir da 1a série, e outra menor, que indica as obras para crianças a partir de quatro anos. As duas informações aparecem durante todo o catálogo, e, do total dos 598 títulos, somente 26 estão no campo exclusivo de leitores a partir de sete anos de idade. Constatamos no catálogo uma contradição, pois ao mesmo tempo em que categorizava o título por série escolar, apresentava a possibilidade de acesso à faixa etária que não correspondia à série indicada. 99 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Textos livres Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral A editora ática e os critérios de seleção: o estudo de um catálogo No catálogo de 2005 essa contradição é parcialmente resolvida, pois a faixa escolar e a faixa etária, embora apareçam, perdem a sua força com duas novas denominações: “leitura compartilhada” e “leitura individual”. Desse modo, os títulos, ao serem apresentados, são remetidos a duas possibilidades: para o leitor que decodifica o código gráfico e que poderá se adonar do livro sozinho, desenvolvendo uma leitura individual, e para aquele leitor que ainda não decodifica o código gráfico, mas pode vivenciar práticas sociais de leitura por meio da “leitura compartilhada”. dos livros segue a sugestão de faixa etária em cinco grandes grupos, que são identificados também por cores: Essas duas denominações introduzem, a nosso ver, um passo na compreensão da importância da mediação da leitura literária, já que compromete o adulto a realizar a leitura para a criança, validando a importância dessa atividade. Percival Leme Britto (2005) afirma que no espaço da Educação Infantil mais importante do que escrever com as mãos e ler com os olhos é “ler com os ouvidos e escrever com a boca”. Observa, ainda, que: No corpo do catálogo, quando somos apresentados às coleções (por exemplo, Série Lagarta Pintada) dirigidas a leitores de 6/7 anos surge logo abaixo a sugestão de “leitura acompanhada”. Ler implica, acima de tudo, interagir intelectualmente com um discurso escrito, produzido em uma sintaxe própria, com léxico e ritmo específico. Assim, quando alguém estuda um texto escrito enunciado em voz alta, ele está lendo o texto, mesmo que para isso utilize outro sentido (a audição). (BRITTO, 2005, p.18) Poderíamos acrescentar e dizer que em todos os níveis de ensino a leitura compartilhada entre o mediador e o leitor se constitui numa aproximação efetiva e afetiva com o texto literário. O leitor se apropria da prática social da leitura pela voz desse mediador que o leva ao mundo do imaginar. Curiosamente, no catálogo de 2008, de forma sucinta, sem se reportar a documentos de referências, a exposição sobre a classificação 100 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Retomando a abertura do catálogo, temos abaixo da indicação de faixa etária a palavra importante com letras garrafais, seguida da observação: IMPORTANTE Para gostar de ler a criança deve ter acesso a livros adequados ao seu grau de desenvolvimento. A indicação da faixa etária serve apenas como orientação: é importante considerar também o nível de maturidade e o grau de domínio da leitura. Só o professor pode decidir qual o livro mais adequado para seus alunos. Nos catálogos anteriores o vocábulo desenvolvimento não era mencionado, dando ênfase somente à palavra maturidade, como segue: Textos livres Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral Eliane Santana Dias Debus Catálogo de 2000 Catálogo de 2005 Catálogo 2008 “A indicação da faixa etária é mera sugestão nossa. A maturidade de cada criança é que deve determinar a escolha dos livros que lhe são adequados”. “A sugestão de faixa etária serve apenas como orientação. É importante considerar o nível de maturidade e o grau de domínio de leitura” Para gostar de ler a criança deve ter acesso a livros adequados ao seu grau de desenvolvimento. A indicação da faixa etária serve apenas como orientação: é importante considerar também o nível de maturidade e o grau de domínio da leitura. Só o professor pode decidir qual o livro mais adequado para seus alunos. A primeira constatação após a leitura dos três catálogos é a de que a indicação/sugestão dos títulos por faixa etária é uma sugestão/ orientação, que não precisa necessariamente ser seguida à risca. Essa também é uma referência comum nos discursos teóricos dos estudiosos. Ao levantarmos, em trabalho anterior (DEBUS, 2006), os posicionamentos de Nelly Novaes Coelho (1981), Betty Coelho Silva (1991), Lúcia Pimentel Góes (1991), Glória Pondé (1985) e Maria Antonieta Antunes Cunha (1994), constatamos a recorrência aos estudos pontuados por Richard Bamberger (1991) e às fases de leitura. Vale ressaltar que todos os títulos foram publicados na década de 1980, com frequentes reedições, e circulam ainda hoje no mercado editorial como referência para pesquisas na área da leitura, literatura e infância. As fases/idades vinculadas aos interesses de leitura são pontos comuns nesses textos, sugerindo uma maturação para que haja a possibilidade de desenvolvimento leitor, sem excluir outros fatores, que ficam em segundo plano, como destaca Coelho (1981): a “idade cronológica, nível de amadurecimento biopsíquico-afetivo-intelectual e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura” (p.28), ou a ênfase de Betty Coelho Silva (1991, p.28) de que as histórias, como “alimento da imaginação”, precisam respeitar a “estrutura cerebral” dos seus ouvintes-leitores. No catálogo referente ao ano de 2000, a maturidade da criança é o grau de aferição de escolha, mas não há indicação sobre a quem compete a escolha dos livros. No ano de 2005, a maturidade é elemento indicador, precedido da palavra nível e acrescido aparece a expressão “grau de domínio de leitura”. O catálogo de 2008 amplia as informações do catálogo de 2005 e nomeia a quem compete conhecer “o nível de maturidade e o grau de domínio da leitura”: o professor. Estando os catálogos comerciais direcionados ao profissional que atua no ambiente escolar, a figura do mediador, antes implícita, aparece agora evidenciada. No entanto, descompromete a figura do bibliotecário ou do auxiliar de biblioteca, já que é nomeado o professor e não todos aqueles responsáveis pela leitura. Embora num primeiro momento possamos crer que o professor de sala é quem estará mais apto para avaliar o grupo e verificar quais livros lhe interessam, caso haja um trabalho 101 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Textos livres Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral A editora ática e os critérios de seleção: o estudo de um catálogo integrador entre o professor e o espaço da biblioteca, aquele que lá atua deverá também se compromissar com o acesso ao livro pelos leitores. CONSIDERAÇÕES FINAIS No campo do provisório As considerações desenvolvidas, mesmo que provisórias, apontam para a necessidade de revisitarmos os critérios adotados para a escolha do livro literário nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e, quiçá, reorganizá-los dentro de uma ótica que considerem seus protagonistas: o professor e os alunos e, por isso, a situação concreta de mediação e o contexto histórico em que estão situados. Critérios de escolhas que levem em conta a categoria de desenvolvimento como prerrogativa para a aprendizagem, não menosprezariam as experiências antecipadas com o texto literário? A permanência de discursos teóricos que demarcam a faixa etária ou a idade escolar como prescrição para a sua efetivação positiva resulta em escolhas que contemplem o leitor contemporâneo? Deve-se considerar, na escolha do texto literário, o conhecimento do professor em relação à produção literária disponível no mercado, bem como a sua mediação e, sem sombra de dúvidas, a recepção do leitor, o que provavelmente resultará no entendimento de que o texto bem mediado tem grandes chances de ser aceito positivamente. Para tanto, é preciso que o professor tenha mais contato com os lançamentos editorias, que tenha acesso a eventos literários como feiras de livros, congressos e outros, além de ter, já na sua formação, disciplinas que contemplem a literatura. Seria produtivo levantar até que ponto os catálogos editoriais desenvolvem estratégias de persuasão na escolha dos livros, a partir do perfil de seus colaboradores, isto é, investigar como os distribuidores chegam às escolas e aos mediadores de leituras, e como expõem seus catálogos - a venda de produtos por catálogos exige um revendedor que desenvolva estratégias de sedução para a compra daquele produto. O mesmo aconteceria com o livro comercializado na estante de uma livraria? Fugindo do espaço da escola, os livreiros e seus funcionários usariam quais critérios para indicar o livro para o comprador que chega buscando um livro para criança? Cremos que tais pesquisas contribuiriam para o entendimento da negação recorrente aos textos mais complexos para crianças pequenas; às adaptações dos clássicos para os alunos do 6º. ao 9º. ano; e, por que não, nos levariam aos critérios de escolhas dos livros do Ensino Médio, envoltos na sombra do vestibular. REFERÊNCIAS BAMBERGER, Richard. Como Incentivar o Hábito da Leitura. trad. Octávio M. Cajado. 5.ed. São Paulo: Ática, 1991. BRITTO, Luiz Percival L. Letramento e alfabetização: implicações para a Educação Infantil. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; MELLO, Suely Amaral Mello (Orgs.). O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. 102 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral Textos livres Eliane Santana Dias Debus COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise. Quiron: São Paulo, 1981. CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: Teoria e Prática. 13.ed. São Paulo: Ática, 1994. DEBUS, Eliane. Festaria de brincança: a leitura literária na Educação Infantil. São Paulo: Paulus, 2006. DEBUS, Eliane. A literatura infantil contemporânea e a temática étnico-racial: mapeando a produção. No mundo há muitas armadilhas: Anais 16º COLE. São Paulo: Campinas, 2007. GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à Literatura Infantil e Juvenil. 2.ed., São Paulo: Pioneira, 1991. http://www.atica.com.br. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994. PONDÉ, Glória Maria Fialho. A arte de fazer artes: como escrever para crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985. SILVA, Maria Betty Coelho. Contar histórias: uma arte sem idade. 4.ed. São Paulo, Ática, 1991. (Artigo recebido em 28 de janeiro de 2011 e aprovado para publicação em 10 de fevereiro de 2011.) 103 UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta