Capa (concepção e desenho): Nagai Santos
1ª Edição: Janeiro de 2008
Reservados direitos de cópia. Toda a reprodução da publicação por meios
electrónicos carece de autorização por parte autor.
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Conteúdo
Apresentação – A oficina.................................................5
Tema 1 - Livre.................................................................11
Não existe mulher inteligente....................................13
Não confie nos jornais................................................27
Cotó descobre a liberdade.........................................29
Missão de extermínio.................................................31
Tema 2- O dia em que morri..........................................37
Meu sepulcro.............................................................39
O dilema do morto-vivo.............................................45
O quarto.....................................................................49
Tema 3 – O homem de branco.......................................51
Seda branca................................................................53
A fenda.......................................................................57
A roupa branca...........................................................63
Todas as cores............................................................67
Tema 4 – A contista........................................................75
Poeira.........................................................................77
O trouxa.....................................................................81
Imperfeição................................................................91
O duelo.......................................................................99
De repente...............................................................103
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Tema 5 – o velho guitarrista de Picasso/O prisioneiro. 105
O velho guitarrista....................................................107
O preso.....................................................................113
Destino.....................................................................131
No tempo das maçãs................................................137
Das armas e das artes..............................................143
Tema 6 – O beijo..........................................................151
O beijo......................................................................153
O corruptor..............................................................159
Beijo fatal.................................................................175
Tema 7 – Ano 2099......................................................183
Ilusões......................................................................185
Anno 2099................................................................195
Quem guarda os guardiões......................................205
Terra de ninguém.....................................................215
Tema 8 – O toque.........................................................219
O sino.......................................................................221
A mão.......................................................................223
Duas caras................................................................231
O toque....................................................................245
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Apresentação – A oficina
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Lembro-me dos rumores, quando a internet começou a se
popularizar, de que a era digital afastaria as pessoas.
O universo virtual era um monstro desconhecido, que
fascinava alguns e aterrorizava a maioria, um vasto espaço ainda
a ser desbravado.
Por um lado, parte dos rumores estava correto, a
proximidade física deixou de ser necessária, as pessoas podiam
conhecer o mundo sem a necessidade de sair da frente dum
computador. Mas isto não significou afastamento, mas sim
proximidade. Pessoas que sob hipótese alguma se conheceriam,
distanciadas por estados, países, continentes, puderam se
conhecer e trocar experiências. Com o mundo digital, adveio
também a informação desenfreada, saber sobre tudo no
instante em que isto ocorre.
Para o panorama literário, nada mais estimulante do que a
possibilidade, talvez única na contemporaneidade, de
ultrapassar todas as barreiras existentes entre o autor e leitor.
Pela primeira vez desde a difusão da imprensa, o autor tinha
domínio pleno sobre o que queria dizer e como dizer, sem
intermédio de gráficas, de editores, de livrarias, dos ditos
“formadores de opinião” — o espaço quase zero entre escrita e
leitura proporcionou o surgimento, ou a saída das sombras, de
milhares de escritores, todos desesperados por um lugarzinho
ao sol.
Esta saída do anonimato instalou um segundo nível de
anonimato: eram tantos os escritores, que mal havia condições
de discernir aquele dotado de potencial dum mero
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escrevinhador de fim-de-semana. E, ao contrário das
expectativas, uma legião de autores sem leitores passou a
mendigar atenção na internet, nos fóruns, nos sites de
relacionamentos, em blogs.
Foi por causa destas circunstâncias que a idéia de criar um
fórum destinado apenas a debates sobre o fazer literário se
originou, onde não se poderia postar textos autorais, pois não
bastava escrever; paralelamente, era necessário compreender a
escrita, conhecer as técnicas literárias, conquistar o domínio
sobre as palavras. Este fórum foi batizado de “Escritores – Teoria
Literária”, ou apenas E-TL.
A proposta de uma oficina literária foi o passo seguinte e,
para tanto, era primordial reunir um grupo de escritores
engajados com o auto-aperfeiçoamento, capazes de dedicar
algumas horas por semana para ler e analisar obras de colegas, e
periodicamente redigir contos. Para isto, não bastava ter
talento, não era suficiente saber escrever; sem compromisso e
engajamento não se constrói uma obra duradoura.
Quantos não desistem no meio do caminho por causa das
dificuldades?
Mas sem sangue, sem garra, um escritor não sobrevive à
árdua carreira que tem adiante. Não é fácil viver de arte, se esta
não vive no artista.
Os contos presentes nesta Antologia são resultado de pouco
mais de três meses de atividade da Oficina. A cada quinze dias,
um tema era proposto e participantes deveriam se apressar para
entregarem uma obra curta neste prazo. Uma avaliação era
realizada pelos próprios participantes e aquele que obtivesse a
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maior nota da quinzena, propunha o tema seguinte. O nível de
qualidade foi muito superior ao que poderíamos esperar, dado
ao curto prazo estipulado.
A competência e a dedicação dos autores participantes não
poderia redundar em algo diferente: a publicação é a
certificação deste esforço, é a prova deste envolvimento com a
Literatura.
Toda vez que publico uma obra minha, seja na internet, seja
impressa, vem a minha mente um trecho do primeiro parágrafo
de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:
QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros
para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro
não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte,
e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.
Quando escreve, um autor tem diante de si um leitor ideal,
em grande parte inspirado em si mesmo; alguém que escreve
considerando apenas o aplauso dos outros trilha uma vereda
tortuosa: sem saber a quem agradar, acaba agradando ninguém.
Mas também me recordo da simplicidade de Alberto Caeiro,
despedindo-se da sua obra:
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
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Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
(...)
Assim, despedimo-nos destas tramas que tecemos, para que,
levadas como que pelo vento, elas possam ser saudadas por
você.
Henry Alfred Bugalho
Nova York - 2007
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Tema 1 - Livre
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Não existe mulher inteligente
Denis Clebson da Cruz
Patrício, no auge de seus trinta e dois anos de solteirismo
mantinha com orgulho um blog onde descrevia teorias do
machismo, muitas delas de sua própria autoria.
Dedicava pelo menos uma hora e meia por dia pra atualizar
o blog e responder aos insultos das feministas e demais
mulheres ofendidas e, acredite, não era nada difícil uma mulher
se ofender com o teor de seu sítio. Elas odiavam, especialmente,
os artigos onde ele surrava a falta de inteligência das mulheres.
Aliás, eis a parte que ele mais adorava: espancar o que ele
chamava de falta de cérebro feminino.
Deleitava-se escrevendo frases do tipo: “mulher inteligente é
aquela que consegue controlar o painel do microondas”;
“mulher não precisa de inteligência pra gemer”; “mulher
inteligente é aquela que sabe, de cabeça, pelo menos duas
receitas de pratos salgados e uma de sobremesa. Exigir mais que
isto é pedir o impossível.”
Estas e outras pérolas da mente machista faziam seu blog
alvo de feministas – que Patrício chamava de “suvacudas”,
fazendo alusão ao que ele alegava ser falta de depilação das
axilas.
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Na manhã fresca de uma segunda-feira, Patrício vestiu uma
camiseta branca e um jeans surrado. Era seu dia de folga e
pretendia estrear um “gol bolinha” que havia comprado no
sábado. Uma verdadeira bagatela. Mal acreditava que havia
economizado cerca de uns cinco mil reais na compra daquele
carro.
A princípio chegou até a desconfiar sobre a origem do tal
veículo, mas o vendedor apresentou uma série de extratos do
DETRAN atestando a regularidade do veículo. Não perdeu
chance, comprou o carro com suas economias. Até uma mulher
teria achado aquilo uma ótima oportunidade de negócio, não
podia perdê-lo.
Claro, antes de fechar o negócio, fez toda a conferencia
mecânica do carro e, estando tudo perfeito, selou o trato.
Com recibo assinado na mão, meteu-se no gol bolinha, de
cor branca, e saiu pela cidade. Abriu bem a janela e sentiu o
vento bater no rosto. O carrinho chegava cheirar a novo. Que
maravilha.
Ali pelo centro, o trânsito afunilou um pouco, ficando mais
lento. Percebeu, então, que estava indo para uma “batida
policial”. Que mal tinha? Nenhum. Pois a documentação de seu
carro novo e sua pessoal estava toda em ordem.
Obra do acaso – ou não – seu carro foi um dos barrados.
- Documento pessoal e do veículo, por favor – Disse o policial
com a etiqueta “Almeida” colada na farda azulada.
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Patrício atendeu sorridente. Mesmo tudo regular ficou
nervoso olhando a expressão impassível do Policial que foi até a
traseira do golzinho e conferiu os dados com a placa.
- Tudo certo seu guarda? – perguntou Patrício quando o
policial voltou para a janela aberta do seu carro.
- Sim. Tudo em perfeita ordem – disse o policial sem dar o
mínimo sorriso.
- Pode seguir.
- Obrigado seu guarda – respondeu Patrício relaxando.
Aquilo apenas confirmava que havia feito um negócio da china.
Não havia nada de errado com seu carro novo.
- EI ESPERE! – gritou uma voz feminina quando Patrício já
havia ligado o motor.
Uma policial de cabelos negros presos em baixo da boina
parou no vidro do carro, do lado do carona. Patrício abaixou o
vidro para atender a tal policial etiquetada como Jalinsk.
“Aff, uma mulher.” Pensou ele enquanto sorria
amareladamente e ainda com o motor ligado. “Deve ser
sapatão, pois uma que seja 100% mulher não conseguiria passar
num concurso público. Acho que ela tá na corporação por ter
neurônios suficientes para não se perder no caminho da cozinha
quando vai buscar cafezinho para os policiais de verdade.” Riu
consigo mesmo enquanto curtia seus pensamentos machistas.
- Desligue o motor, por favor – ordenou a policial e Patrício
obedeceu sem tirar o sorriso disfarçado da sua cara lavada. –
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Quero só verificar um detalhe, se o senhor não se importar –
disse ela educadamente.
- Claro, claro. Sem problema – respondeu saindo do carro.
Quando fechou a porta, viu que a policial Jalinsk estava
abaixada perto da placa traseira do carro e ouviu quando ela
disse com tom autoritário para o policial Almeida:
- Você não conferiu o lacre?
- Não capitã – respondeu o homem.
“Bunda mole”, pensou Patrício parando ao lado deles.
“Baixando as bolas pra uma mulher. Ela só deve entender o que
é lacre de tape ware, vai lá entender de lacre de placas.”
- Abre o capô pra gente, por favor – disse a oficial se
levantando.
Patrício obedeceu prestativo como uma puta. “Tinha que ser
mulher.” Pensou ele observando a policial debruçada sobre o
motor. “A anta me faz perder tempo aqui, fingindo para os
colegas que entende de alguma merda.”
- O Senhor comprou onde este carro? – perguntou ela.
- Na pedra – respondeu o homem sem perder a compostura.
- Pagou quanto? – continuou o questionário e Patrício
respondeu. – Mas isso não é bem abaixo do valor desse carro?
- Sim senhora. Uns cinco mil – respondeu Patrício e ousou
um tom mais desafiador. – Agora é crime fazer um bom
negócio?
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- Agora não. Sempre foi – disse ela. – O senhor está preso
por receptação culposa. Esse veículo está com o chassis
adulterado e documentos frios. É um carro clonado.
Patrício ficou branco, azul, verde e amarelo, não
necessariamente nessa ordem. Não conseguiu responder nada
enquanto xingava mentalmente aquela policial burra à sua
frente. “Clonado é o pau que vou socar na tua bunda, sua
vadia.” Era a coisa mais amena que ele conseguia pensar.
- Clonado? Como assim? – conseguiu finalmente dizer.
- Clonado quer dizer clonado. Tem por ai um carro igualzinho
ao seu, só que legal, legítimo. Ai algum espertinho rouba este
carro, duplica os documentos, placas, etc, e põe o carro roubado
pra rodar.
O Policial Almeida chegou com um extrato não mão, tirado a
partir de um número que a capitã lhe forneceu.
Ela analisou bem o documento e disse:
- Passei para o soldado Almeida o chassis original que achei
gravado ali.
“Este carro é produto de roubo ocorrido a sete dias atrás –
Levantou os olhos para Patrício. – Como eu disse, o senhor está
preso.”
Almeida já foi algemando o pobre coitado, virando suas
mãos para trás. Não conseguiu esboçar qualquer reação, mas
sua vontade era chutar a cara da policial que ele só conseguia
xingar de burra em sua mente.
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“Sem problema”, pensou, já sacolejando atrás do camburão
que partia em retirada. “Na delegacia eu explico pro delegado o
que essa anta não consegue entender.”
Chegaram na 13ªDP. Puxaram Patrício pelos fundinhos e
foram levando o pobre diabo algemado pelo corredor gelado.
Sentaram-no num banco duro, ao lado dum bêbado que fedia
qualquer coisa que só podia ser denominada como carniça, uma
mistura de pinga com arroz azedo.
O bêbado dormia recostado na parede, roncando de boca
aberta e babando pela barba preta e rala.
- A Dra. Mirian vai atende-los – disse um escrivão civil saindo
de um dos gabinetes da Delegacia.
- Doutora? – disse Patrício num sobressalto. – Doutora?
- É, Doutora – respondeu o escrivão enquanto a capitã
Jalinsk entrava na sala.
“Puta que o pariu. Eu devo ter cagado na bacia de pão da
ceia...” pensou Patrício sendo puxado pela algema e jogado
numa cadeira em frente à delegada de cabelos loiros. Ela ouvia
as explicações da Policial Militar. “A delegada deve ser uma
sadomasoquista, que se veste de gata selvagem e entra pra
chicotear os presos. Como que uma mulher passa num concurso
pra delegado?”
A Dra. Mirian virou-se para Patrício e ele explicou sua
versão.
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- E onde estão os tais documentos que o vendedor
apresentou para o senhor demonstrando que o veículo era
legal?
“Enfiei na bunda”, pensou ele, mas preferiu dizer a verdade:
- Joguei no lixo depois de ver que estava tudo perfeito e
fechar o negócio – sequer conseguiu olhar para os olhos da
Delegada, que torcia o nariz diante de uma versão tão estúpida.
- O senhor acha que sou burra? Que sou uma palhaça? –
perguntou a delegada num tom de voz mais que calmo.
“Sim. Burra, anta, idiota, etc, etc, etc.”
- Claro que não. Mas eu juro que é verdade – disse ele
preferindo não insultar a delegada.
- O senhor jura? Acho que o senhor está confundindo. Isso
aqui é uma delegacia, não uma igreja. Eu sou uma delegada, não
um padre.
Patrício queria esganar a delegada que falava com uma voz
quase melodiosa de tão educada.
- Eu sei – disse ele contendo um turbilhão de xingamentos.
- Então o senhor tinha plena ciência da origem ilícita do
veículo? – ela perguntou.
- Claro que não – disse ele fazendo cara de coitado.
- Mas pelo menos suspeitava disso, por causa do preço que
foi oferecido?
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- Sim, tanto que pedi os documentos pra provar que o
veículo era quente.
- Ah sim – a delegada recostou-se na cadeira – e onde estão
os tais documentos do DETRAN que o vendedor mostrou ao
senhor.
“Queria tê-los aqui, pra enfiar na tua bunda”, pensou ele.
- Joguei. Eu já disse – Patrício parecia um pinto molhado
encolhido na sua cadeira de couro rasgado.
- Claro, claro. O senhor está preso. Vamos fazer o flagrante.
O senhor tem advogado?
- Tenho um amigo que é advogado.
O escrivão o levou para uma sala e Patrício ligou para o
colega.
- Tibúrcio – disse ele no telefone. – Comprei a porra dum
carro roubado. Tô preso, vem me soltar.
- Que merda hein, Patrício – disse a voz do outro lado da
linha. – Olha, eu só mexo com direito tributário, não entendo
patavina de penal. Mas mando um dos melhores colegas que
tenho nessa área. Só esperar.
E esperaram. Meia hora depois uma mulher de cabelos
negros, vestida com uma saia e terno marrons, muito discreta e
de pasta na mão, entrou na sala onde estava Patrício.
- Sr. Patrício? – disse ela estendendo a mão.
“Bosta, me mandaram a secretária do tal advogado.”
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- Sim – levantou-se algemado.
- Sou a Dra. Liana.
- Doutora? – olhou desesperado.
- Sim. Conte-me o que aconteceu – sentou-se em frente ao
cliente.
Patrício sentiu vontade de peidar, cagar, mijar, vomitar tudo
ao mesmo tempo. Estava novamente nas mãos de uma mulher
burra e ignorante.
Desconhecedora do universo “homano” e de como
funcionava a Pedra onde se vende os veículos.
Sem ter outra saída, contou sua versão para a advogada.
- Você foi um idiota jogando os documentos do DETRAN e
mais idiota ainda tendo falado quanto pagou pelo carro – disse
ela enquanto abria o código penal em seu colo e leu: - Parágrafo
terceiro do artigo cento e oitenta, adquirir coisa que por sua
natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço deve
presumir-se obtida por meio criminoso.
- Não entendi bosta nenhuma – resmungou Patrício
encolhendo-se no banco surrado.
- Significa que quando alguém oferece uma coisa muito
abaixo do que realmente vale é porque tem alguma coisa
estranha. A pessoa que presume isso e mesmo assim compra a
coisa, comete o crime de receptação culposa. Ela não tem
certeza que é produto de crime, mesmo assim se arrisca.
- Porra, mas eu pedi os documentos do DETRAN pro cara.
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- E cadê os documentos? – Perguntou a Dra. Liana,
sapateando o salto bico fino no chão.
- Enfiei na bunda – desabafou Patrício.
- Pois é. E querem socar mais coisa no teu rabo agora – falou
a advogada sem rodeios. – A delegada acha que você sabia da
origem ilícita, por isso está detendo você até agora. Ela tem a
esperança de você dedurar os outros membros da quadrilha.
- Quadrilha? – Patrício sentiu novamente a vontade de cagar
ali mesmo no banco. – Que quadrilha doutora, sou homem
honesto, trabalhador, pagador de imposto.
- Eu sei... eu sei... – acalmou ela. – Vou convencer a delegada
disso. O crime de receptação culposa é de menor potencial
ofensivo...
- Menor o que?
- Esqueça os detalhes técnicos, Patrício – cortou-lhe a
advogada. – Deixe isso pra quem conhece, ou seja pra mim.
Patrício queria dar um soco no olho da advogada. Era
inadmissível estar nas mãos de uma mulher que se julgava
inteligente.
- Então – continuou ela – crimes desse tipo nem precisam de
flagrante. Faz-se um Termo Circunstanciado de Ocorrência e
você sai livre agora.
O moribundo só entendeu a parte do “sai livre agora”, o
resto era receita de yakissoba escrito em japonês.
- Eu saio agora?
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- Sim. Vou tentar – fechou o código em seu colo. – Vou
conversar com a delegada. Se eu não conseguir convencê-la ai
vou ter que pedir liberdade provisória ou relaxamento da prisão
pra Juíza. Aí a Promotora dá o parecer e você está na rua.
- JUÍZA? PROMOTORA? – exaltou-se Patrício.
- Sim... algum problema?
“Isso aqui é o inferno.” Pensou enquanto murchava no
banco. “Ou é a ilha de Lesbos, sei lá. É um complô, uma armação
das suvacudas peludas feministas que frequentam meu blog.
Não pode uma mulher passar num concurso pra Promotor ou
Juiz. Agora os Desembargadores e Procuradores tão
apadrinhando as filhas, sobrinhas, enteadas, seja lá o que for,...”
- Não – respondeu patrício com a voz afinando. – Não sabia
que era Promotora e Juíza que atendiam essa DP.
- É sim. Muito boas por sinal. As melhores que já passaram
pela Vara criminal nos últimos anos.
“Vou dar outra vara pra elas”, pensou com um sorriso
pequeno pra sua inteligentíssima advogada.
A Dra. Liana deu o preço de seus serviços para Patrício, que
sentiu novamente o ventre remexer e, fechado o negócio – onde
via ir para o ralo os cinco mil reais economizados na compra do
veículo e descobria que havia perdido o mesmo, sem chance de
recuperar algo que era produto de roubo e não lhe pertencia. A
advogada levantou-se e foi para a sala da Delegada. Devem ter
tricotado os primeiros quinze minutos e depois discutido o
mérito da questão.
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Meia hora depois, voltou para a sala do pobre diabo que
recitava em sua mente frases de desdém à raça “mulherana”.
Ela disse:
- Você está livre. A Dra. Mirian vai elaborar um termo
Circunstanciado e você vai responder a acusação só no Juizado
Especial de Pequenas Causas Criminais. Ali, rapidinho, provamos
sua inocência e você não corre nenhum risco de ser preso,
mesmo se, numa remota possibilidade, for condenado.
O alivio de Patrício foi tão grande que ele quase se borrou ali
mesmo.
- Ai doutora, que bom que o Tibúrcio mandou a senhora –
quando se deu por conta já tinha reconhecido a capacidade da
advogada e estava quase chorando na frente dela.
Recompôs-se e fez uma cara séria – não sem antes enxugar
uma lágrima maldita que escapou de sua cara de macho
imaculado. Homem não chora.
- Obrigado, doutora – parecia um general, tanto na voz como
na postura.
Depois de encerrado todo o procedimento policial, voltou
pra casa de carona com a advogada e deixou com ela três
cheques como pagamento por seus serviços, que cobriam tanto
a liberação como futura atuação perante o Juizado Criminal que
viria a seguir.
Tomou um bom banho, descansou a mente e depois foi
atualizar seu blog. Olhava a tela do computador pensando o que
escrever. Pensou por alguns minutos e finalmente sorriu.
24
Escreveu o título para seu novo artigo: “Não existem
mulheres inteligentes, porém elas são muito bem relacionadas,
apadrinhadas e conseguem se comunicar entre si. Se não
cuidarmos, elas vão dominar o mundo.” Desceu a lenha na
mulherada, sem contar os detalhes de sua aventura naquele dia.
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26
Não confie nos jornais
Rafael de Leon
Patrício, no Manhã de segunda-feira. O frio castigava
muito, mas seu João, aposentado por invalidez, não tinha
escolha: teria que se levantar, agasalhar-se bem, fazer uma
longa marcha até a Caixa Econômica Federal e, depois de uma
longa fila, receber sua pensão tão magra, porém essencial para a
sua sobrevivência.
Para que você se compadeça do seu João, não que isso seja
necessário, saiba que ele é cego. Não era cego de nascença, pois
enxergou muito bem mais da metade de sua vida. Entretanto,
certo dia, quando foi ao posto de saúde fazer uma consulta para
reclamar de um vermelhão que apareceu no canto dos seus
olhos, uma enfermeira, que não julgou necessário o
atendimento de um médico, forneceu a ele, distraidamente
enquanto pintava as unhas, um colírio vencido que provocou o
trágico desfecho de uma cegueira total e um processo na justiça
que tramita há anos.
Voltando a tal fria manhã, seu João saiu cedo de sua casa,
armado de sua bengalinha para cego, em direção ao centro da
cidade. Muito bem, nosso protagonista estava próximo a um
cruzamento perigosíssimo – a única rua que tinha medo de
atravessar sozinho. O barulho da manhã era grande. Pessoas
iam, em seus carros, para o trabalho com muita pressa e,
conseqüentemente, incapazes de prestar atenção no trânsito.
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O pobre cego ao alcançar a perigosa rua procurou usar uma
de suas táticas preferidas: esperar até que outro pedestre tenha
que cruzá-la também e então pedir ajuda para que ganhe o
outro lado a salvo. Mas desta vez algo interessante aconteceu.
Havia outro cego parado à beira do cruzamento a espera de
uma alma piedosa que também o ajudasse. Esse, ao sentir o
cheiro de outro indivíduo chegando mais perto, uma vez que o
som de passos era impossível de se ouvir naquela barulheira
infernal, disse: – Atravessaria a rua comigo?
Seu João, que era com quem ele falava, e que não sabia
que quem lhe fez a pergunta também era um cego, pensou na
grande sorte que teve por achar uma pessoa de bom coração a
postos para lhe ajudar e respondeu que sim.
Os dois cegos, muito felizes por terem conseguido
companhia para atravessar a rua, levantaram suas bengalinhas e
estenderam os braços um para o outro. Puseram-se a andar em
direção ao meio da rua sem preocupações, já que a confiança
era mútua.
O final não poderia ser outro. Um carro, dirigido por uma
mulher que falava ao telefone celular, acertou-os em cheio.
Venho agora, não com a tentativa de comover você com
esse trágico desfecho, mas sim com o objetivo de expressar
minha indignação contra o jornal local que não apurou
devidamente os fatos e publicou esta mensagem em sua
primeira página no dia seguinte:
“Casal de cegos gays se suicida no centro da cidade”.
28
Cotó descobre a liberdade
Henry Alfred Bugalho
Num canto esquecido no quintal da minha vó, atrás das
bananeiras, agitava-se Cotó. Amarrado com uma corda de varal
no chiqueiro, ele latia desesperado, suplicando atenção, uma
mão para afagá-lo.
Mas nós não chegávamos perto, e nem era por causa das
sarnas e carrapatos, ou da baba constante a escorrer, ou das
demais perebas que não víamos, era apenas para não sujar a
roupa limpinha, que Cotó insistia em macular com suas patas
avermelhadas de terra.
Eu até gostaria de brincar com ele, desatar-lhe o nó que feria
sua garganta e vê-lo correndo livre pelo quintal, latindo de
felicidade, não a mendigar carinho, mas vovó não deixava. Nossa
obrigação era apenas jogar a vasilha com angu diante de Cotó e
voltar pra casa.
À noite, Cotó chorava. Eu não podia vê-lo pela janela, mas
escutá-lo era uma dor no coração. Revoltei-me, deixei a casa de
pijamas, no escuro, e fui até o cativeiro de Cotó, ousei me
aproximar e recebi patadas na altura do peito e lambidas na
cara, acarinhei-lhe o pescoço e o desprendi da amarra. Cotó
ficou como que paralisado, nunca havia sido livre antes, não
entendia o significado disto; a ausência de laço o amedrontava.
— Vai, Cotó, vai embora!
Mas o burro do cachorro apenas me olhava, pedindo
carinho.
29
Foi quando tive a brilhante idéia, apanhei um pedaço de pau
e mostrei a Cotó:
— Pega, Cotó! — e arremessei o pau, o mais longe que pude.
Instintivamente, Cotó se precipitou atrás do brinquedo.
Segundos depois, retornava, objeto na boca, toco de rabo
abanando.
— Vai, Cotó, pega! — e, com mais força, lancei a madeira,
que desapareceu na escuridão. Esperei alguns minutos, mas
Cotó não voltava. Finalmente, ele havia sentido o gosto da
liberdade e fugira pelo mundo afora, descobrindo coisas que
nunca havia imaginado.
Na manhã seguinte, ouvi minha vó conversando com alguém
na cozinha:
— Era um cachorro desgramado mesmo!
Foi quando descobri que Cotó, na noite anterior, ao encalçar
o pau, havia corrido para a rua e acabou atropelado por um
Fusca.
De libertador, passei assassino. Daquele dia em diante,
comecei a entender Robespierres, Napoleões, Che Guevaras e
Cristos; o fardo da liberdade é grande.
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Missão de extermínio
Ana Cristina Rodrigues
No topo de uma colina, os dois, envoltos nos mais modernos
trajes anti-radiação, olhavam a terra devastada.
-Ainda não acredito que tenhamos feito isso.
Ela mediu os níveis de radiação e fez mais algumas leituras
procurando formas de vida antes de responder.
-Pode acreditar, querido. Não foi para isso que nos
contrataram?
Estranho... Estou captando alguns sinais biológicos vindos do
norte.
Bax ergueu a cabeça.
-Como assim, Nelora?
A mulher ruiva deu de ombros.
-Não sei. Eles não tem tecnologia suficiente para construir
abrigos anti-nucleares. Ou melhor, não tinham.
Desviando o olhar do rosto de sua esposa, que parecia não
se importar com o que acabaram de fazer, o ex-soldado e atual
mercenário virou-se para a direção onde ela detectara vida.
-Não tinham nada... Mal chegaram a obter eletricidade. Não
poderiam resistir a um ataque atômico massivo.
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Nelora guardou o equipamento. Antes de entrar no ramo de
finalização definitiva de conflitos fora uma brilhante cientista do
Exército. Passara três anos em alojamentos minúsculos,
comendo ração de soldado e ganhando um soldo ridículo. A vida
por conta própria valia muito mais a pena. Sabia que o marido
também concordava, mas ele sempre ficava muito sensível
depois do serviço feito.
-Também não eram uns pobres coitados inocentes, amor. A
guerra já estava durando cinco anos. O número de baixas no
Exército da Confederação Planetária foi três vezes maior do que
o permitido. Eles mataram os embaixadores, não admitiram
sequer ouvir falar em um tratado...
-Este era o planeta deles! Tinham o direito de não quererem
falar com ninguém. Afinal, o que a Confederação ganha?
Pegou uma arma laser e jogou uma para Nelora.
-Bax, eu não faço a menor idéia. Nem quero saber. A
Confederação tinha o dinheiro, nós tínhamos o poder de fogo.
Recusar um contrato desses ia nos ferrar para sempre, aceitar
nos fez milionários.
Um último olhar pela imensidão da planície devastada.
-Tanto poder para destruir. E nenhum para criar.
-A vida é dura, amor. Vamos, temos que verificar esse sinal.
Provavelmente é uma barata, mas prometi entregar o planeta
morto e é isso que vamos fazer.
O local indicado era uma mina, que os sensores diziam ter,
entre outros minerais, galena. A concentração de chumbo
32
permitiria que formas de vida sobrevivessem à devastação
externa.
-Se não for uma barata, é um morcego...
Ela continuou observando as medidas.
-Só se for um grupo. Os sinais vitais correspondem a pelo
menos três seres de porte médio...
Bax empunhou a arma.
-Ursos?
-Sim, pelo que levantei, podem ser um tipo de predador,
equivalente aos ursos de Sol III. Nos dados da Confederação
sobre a fauna daqui, há a descrição de três espécies
equivalentes...
-E que nós extinguimos.
Nelora revirou os olhos.
-Pela Nebulosa! Você sempre é mais sensível, porém dessa
vez está exagerando. Vamos combinar uma coisa. Se forem
mesmo esses bichos, a gente os seda e leva para um zoológico.
Assim, vamos ter salvo alguma coisa, sem quebrar o contrato.
Ele não teve tempo de responder. Algo zuniu no espaço
entre eles, com um estampido.
-Um tiro! – ambos empunharam as armas. – Quem está aí?
A resposta, obviamente, foi outro tiro. Tudo o que os
sentidos apurados de Bax precisavam. Em questão de segundos,
localizou e desarmou o atacante. Era um velho, vestido da
33
estranha maneira daquele planeta, com roupas amorfas e
acinzentadas, e coberto por um capa de tecido marrom
grosseiro. Ele começou a xingá-los na língua padrão.
-Miseráveis! Assassinos! Destruíram tudo!
Nelora, sem paciência, ergueu sua arma. Seu marido a
impediu.
-Calma, amor. Você detectou três seres... ele deve saber
onde estão os outros.
O velho esperneou.
-Não adianta, eu não vou contar nada!
-Coroa, como você aprendeu a nossa língua?
Ele arfava e os olhou como se quisesse cuspir na cara deles.
-Fui um dos embaixadores que recebeu as suas equipes
mentirosas. Prometeram a paz e trouxeram a guerra.
Nelora interveio.
-Peraí, velho, até onde eu sei vocês recusaram as ofertas e...
-Aceitamos todas! Sem impor nada, além da garantia que
nossa cultura seria preservada! Quando mesmo essa pequena
clausula foi negada, alguns ainda confiaram que as diretrizes da
Confederação, proibindo um ataque massivo, nos dariam
alguma chance! Mas eu sabia o que vocês eram! Mentirosos!
Bax estava perplexo.
-Como assim...
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Foi interrompido por sua esposa.
-Olha, cara, lamento. Mas as diretrizes da Confederação não
foram quebradas. Nós somos mercenários e fomos contratados
para dar uma solução definitiva. Fizemos do nosso jeito e
pronto. Assunto encerrado.
- Nelora, eles nos enganaram!
-E daí, amor? Eu estou nessa pelo dinheiro! Vamos poder
nos aposentar com todas as regalias – apontou a arma para o
velho. – Diz tchau, vovô.
Um grito agudo na língua nativa veio do interior da caverna.
Uma adolescente, vestida da mesma forma estranha, jogou-se
entre a arma e o ancião. Isso não abalou a mercenária, que ia
atirar mesmo assim, não fosse impedida por Bax.
-Você ficou louca? A garota está grávida...
-E qual o problema? Olha, eu vou matar eles. Precisamos
acabar o contrato, você gostando ou não! Se não quer ajudar,
então volta para a nave. Eu resolvo tudo.
Bax deu de ombros, desistindo de argumentar com ela.
Encaminhou-se até a porta, e Nelora preparou-se para encerrar
o assunto. Não contava que o marido lhe desse um tiro certeiro
na cabeça.
Aproximou-se do corpo, entristecido.
-Chega, amor. Não podemos continuar a fazer isso.
Olhou para os
responsabilidade sua.
dois
nativos.
35
Eles
agora
eram
-Esperem... o sensor disse que eram três.
O mais velho gritou algo e um rapaz, da mesma idade da
moça, surgiu. O ancião explicou para Bax.
-Desconfiei das intenções de seu povo. Trouxe mantimentos
para esta caverna, e consegui trazer minha neta e o marido
ontem a noite. Sabia que não ia demorar muito...
O mercenário sentia-se culpado. A única coisa que podia
fazer para reparar o erro que ele e Nelora cometeram era cuidar
daqueles três, os últimos remanescentes de toda uma cultura.
-Vocês não podem ficar no planeta. A radiação iria matá-los,
se não morressem de fome antes.
O velho apenas o olhou, sem responder. E ele descobriu o
que faria. Sabia dos riscos. Podia ser acusado de traição. Mas
lembrava-se do contrato. O planeta deveria ser entregue morto.
Não especificava nada sobre como fazer isso. Retirar os
sobreviventes era uma maneira de tirar toda a vida daquele
mundo.
Voltou a nave e trouxe mais dois trajes anti-radiação. A
menina vestiu o de Nelora. O corpo de sua ex-mulher foi deixado
ali, no planeta que ela exterminara.
Para Bax, sobrara o encargo mais difícil, o da sobrevivência.
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Tema 2- O dia em que morri
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38
Meu sepulcro
Denis Clebson da Cruz
A morte como uma escolha. Nunca pensei em me entregar
assim, de vontade própria.
Respiro fundo e um cheiro doce parece tomar todo o ar que
me envolve. Ouço música ao fundo. Boa música. Um coral,
quase celeste.
Meus pés descalços tocam o fundo gelado, enquanto meu
corpo quase flutua na água que bate à altura do peito. Não me
oponho à força que me impulsiona para trás e, de olhos abertos,
deixo a água me cobrir por completo. Eis o sepulcro da minha
carne.
Não há luta; não resisto. Mesmo assim, sem resistência,
sobem inúmeras bolhas, prismando a luz que reflete na
transparente água.
Param as bolhas. Um arco-íris se desdobra estático à frente
dos meus olhos. O tempo já não existe, permitindo minha mente
viajar ao passado.
Eu queria ter uma história fascinante para contar. Queria
dizer que fui um assaltante, um assassino, um alcoólatra; que
usava drogas ou que me prostituía. Nada disso. Nada de
excitante, nada de espetacular.
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Um cara normal, de quarenta e dois anos; um eterno
engravatado enfiado atrás de sua mesa empresarial de sucesso.
Dois filhos adolescentes, uma bela esposa e uma conta bancária
confortável.
Estranho é dizer que, apesar de tudo, sempre me senti vazio.
Não era ganância, mas algo me faltava. A vida não podia ser
aquele mundinho coberto pela minha rotina. Aliás, eis algo em
que eu era campeão: manter a inabalável organização dos meus
dias. Minha vida era regida por princípios de eficiência no
trabalho, pelos cinco S’s, por métodos de organização e essas
coisas que se aprende em palestras motivacionais.
Enfim, minha história não daria um bom livro ou sequer um
bom micro conto. O leitor torceria o nariz nas primeiras linhas e
abandonaria o conto da minha vida.
Mas por que morrer, se tudo estava tão perfeito, tão
controlado, tão previsível, tão certo? Só posso dar uma resposta:
a angústia.
Algo terrível me oprimia, me apertava o peito. Flagrava-me,
vez ou outra, com um nó na garganta ou olhos cheios de
lágrimas. Algumas vezes não suportei e, sozinho, chorei. Meu
pranto sempre foi longe da família, não queria expressar
qualquer fraqueza diante dela.
Cheguei a comentar por alto com amigos próximos. A
sentença foi unânime: depressão.
Pois bem, me tratei. Fui medicado. Alguns dos remédios me
deixaram meio abobado, menos produtivo, sonolento. Nenhum
deles sarou minha inquietude, minha falta de perspectiva para a
vida.
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Deixei de lado aquela porcaria toda. Preferia ser um doido
produtivo a um maluco movido por antidepressivos.
Definitivamente, não era de remédios que eu precisava. Pode
até funcionar para algumas pessoas, mas para mim não surtiu
qualquer efeito.
Lembro-me de certa reunião com um cliente, ocorrida há um
ano atrás. Após nossa conversa, ele saiu da minha sala e deixou
sobre a poltrona um pequeno folheto. Não sei se houve
qualquer intenção na deixa daquele pequeno escrito, mas o fato
é que ele me atraiu a atenção.
Sentado em minha poltrona, observei de longe parte das
letras que anunciavam: “A Solução Para Seus Problemas.” Gireime na cadeira; para um lado e para o outro. Era demais querer
me enganar que aquele papelote teria a solução para minha
angustia.
Livrei-me de qualquer esperança e busquei o folheto. Li o
cabeçalho da frase que me era, até então, invisível do outro lado
da mesa: Jesus.
- Crentes! – a palavra saiu com desdém dos meus lábios. –
Eles acham que é tão simples. Pensam que esse tal Jesus resolve
tudo.
Sentei-me de volta em minha poltrona. O papel em minhas
mãos ainda me convidava à leitura. De fato, meus olhos
percorreram as letras, uma a uma, formando palavras e frases
completas.
Não suportei. Chorei. Não sei dizer exatamente por que um
artigo tão simples me tocou daquela forma intensa. Recordo de
uma frase: Jesus tem o exato tamanho do vazio de sua vida.
41
Impossível. Não podia ser tão simples. Não podia o tal Cristo
ser a solução, ser o preenchimento para minha existência.
Peguei o telefone e limpei a garganta enquanto ligava para o
celular do meu cliente.
- Antunes – eu disse na linha. – Sou eu, o Pedro. Você deixou
cair um folheto aqui na minha sala.
- Ah, não se preocupe com isso, Pedro – disse a voz do outro
lado. – Tenho vários aqui. Pode ficar com esse e, se tiver um
tempinho, dê uma lida.
- Eu li – saiu minha voz um pouco embargada.
- Que bom. Espero que você tenha gostado.
- É verdade isso tudo que está escrito? Esse tal Jesus pode
preencher o que falta em minha vida? Como eu faço?
Um breve silêncio ante veio à resposta. Creio que Antunes,
naquele momento, não estava preparado para perguntas
daquele tipo. Com certeza, ele sequer imaginasse a dor que me
afligia.
- Pedro, o que você conhece sobre Jesus? Você quer
conhecê-lo de verdade?
- Não conheço praticamente nada. E sim, se ele tem uma
solução para mim, eu quero conhecê-lo.
Antunes me disse o que fazer e cumpri à risca. Desliguei o
telefone e tranquei a porta do escritório. Ali, no meio da minha
sala, um pouco acanhando com a situação, me ajoelhei e, pela
primeira vez na minha vida, falei com Deus:
42
- Deus, eu tenho um vazio em meu coração. Entrego minha
vida em Suas mãos, me faça um novo homem, molde-me à Sua
imagem, preenche meu coração. Mate o velho homem eu quero
receber Jesus em minha vida.
Senti minha mente voltar ao presente. Meu corpo foi
puxado das águas batismais, o simbólico sepulcro do velho
homem; da minha carne. Ressuscitei como nova criatura, um
filho de Deus renovado pelo poder de transformação do
prometido Messias, Jesus. Enfim, batizado em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo.
O coral da igreja pareceu entoar mais forte a música que
cantava. Enquanto o pastor me abraçava dentro do tanque
batismal, situado no alto, atrás do púlpito da igreja, me lembrei
que há um ano atrás eu me levantava daquela singela oração.
Havia aberto as portas da minha alma para aceitar o Cristo e o
vazio em meu peito era preenchido por uma paz sobrenatural.
Olhei para baixo e vi os demais fiéis cantando com o coral.
Reconheci muitos rostos que me ajudaram na longa caminhada
de estudos para chegar à completa convicção, pela Palavra de
Deus, de qual era o ideal para minha existência. Mais que ser
convencido, senti a mão operante de um Deus renovando meu
ser.
Um cristianismo simples, de amor e respeito ao Criador, às
suas Leis e à Sua criatura, preencheu as lacunas da minha vida.
Entreguei o velho homem, sepultei-o nas águas. Agora posso
dizer: Já não sou eu quem vive, Cristo vive em mim... e, claro,
que venham os desafios desta nova vida, pois eu sei de onde virá
meu socorro, ele virá do Senhor que fez os céus e a terra.
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44
O dilema do morto-vivo
Henry Alfred Bugalho
— Sinto muito, senhor Jorge, mas não podemos liberar o seu
auxílio-doença. Consta em nossos bancos de dados que o senhor
está morto — a funcionária do INSS fitava a tela do computador.
— Mas, minha filha, eu ‘tô vivo! Bem aqui na tua frente!
— Não há nada que eu possa fazer, seu Jorge.
Desorientado, Jorge deixou o posto do INSS e foi para casa.
— Maria, você não sabe da última — Jorge resmungou.
— Fala, meu véio... — Maria lavava roupa no tanque.
— Não vou recebeu o dinheiro da licença-médica. ‘Tão
falando que estou morto.
— Como assim, Jorge?
— Não sei, só disseram que eu havia morrido.
— Amanhã, você volta lá e confirma esta história — e foi o
que Jorge fez, na manhã seguinte, retornou ao INSS, porém,
obteve a mesma resposta.
— Estranho, não? — Maria coçava a cabeça.
45
No entanto, Jorge não respondeu, absorto em pensamentos.
Passou o dia calado, não quis assistir à novela, foi dormir cedo.
Mas o sono não veio, Jorge rolava na cama, atormentando com
a idéia de que eles estivessem certo.
— E se eu estiver morto, Maria? — ele perguntou.
— Deixa disto, Jorge, você ‘tá vivo! — Maria retrucou,
dormitando.
— Você tem que ir a um cartório, Jorge. Lá eles podem dizer
se você está morto ou vivo. Se estiver morto, eles vão ter um
atestado de óbito, com seu nome e data de falecimento —
Luizão do boteco assegurou.
Jorge seguiu o conselho. Foi ao cartório e perguntou ao
notário se havia um documento atestando sua morte.
— Que disparate, senhor! Se você está vivo, como espera
que eu encontre algo provando seu falecimento?
— É o que dizem por aí! Só quero confirmar.
O tabelião se conformou, procurou e encontro a prova que
Jorge ansiava.
— Em que dia morri? — Jorge indagou, curioso.
— 15 de Setembro de 1980.
— Quando eu tinha vinte anos — Jorge concluiu.
Em 15 de Setembro de 1980, Jorge voltava de viagem com
seu pai, sua mãe e a irmã caçula. O pai, caminhoneiro, os havia
levado a Aparecida do Norte, cumprir uma promessa. Na
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contramão, um motorista de ônibus bêbado perdeu a direção e
atingiu o caminhão onde Jorge e sua família estavam.
Todos morreram.
Jorge cuidava os túmulos onde ele e seus parentes estavam
sepultados. Inequivocamente, estava escrito “Jorge de Lima”,
data de nascimento e morte. Não havia dúvidas.
Algo macabro havia ocorrido para que Jorge estivesse
andando por aí, houvesse se casado com Maria, tido filhos,
arranjado emprego. Se ele estivesse morto, como tudo indicava,
qual explicação haveria?
Coisa do diabo? Ou um milagre de Jesus?
— Maria, tomei uma decisão... — Jorge estava triste — Não
gosto nada desta situação. Um defunto não pode ficar
perambulando pelas ruas. Vocês vão ter que me enterrar.
Contrataram os serviços duma funerária e organizaram o
velório. Jorge se deitou no caixão e, quando chegava algum dos
seus amigos para ver o finado, ele lhes dava uma piscadela.
O padre fez um sermão, mas os rapazes não queriam fechar
o esquife.
— Vai pessoal, estou morto há quase trinta anos, só falta
completar o serviço!
Levaram o caixão para o cemitério, Maria chorava, os
coveiros cobriram de terra o ataúde. Um dia muito triste pra
todos.
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— Dona Maria, não podemos liberar a pensão do seu marido
— disse a funcionária do INSS. Nossos bancos de dados indicam
que seu marido está vivo.
— Não, moça, ele ‘tá morto. Morreu trinta anos atrás.
— Há um Jorge de Lima falecido aqui, mas é outra pessoa.
Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer.
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O quarto
Rafael de Leon
Abri os olhos e dei conta de minha existência. Um quarto na
penumbra que nunca havia visto antes. Um lugar muito
estranho para se acordar. Estava deitado de barriga para cima,
no chão. Sobre mim, repousava uma tesoura de jardinagem.
Coloquei a tesoura de lado e levantei com certa dificuldade;
sentia-se um pouco tonto. O único facho de luz que tinha força
suficiente para furar a escuridão do local e me permitir visualizar
o arredor com pouca precisão vinha de uma imperfeição no
canto da parede. Parecia não haver portas ou janelas ali.
Principiei um giro de 360º graus para precisar melhor onde
estava, mas parei de súbito; na minha frente, suspenso pela
gravata amarrada em uma viga no teto, jazia alguém. O sangue
gelou nas minhas veias. Estar trancando num quarto com um
enforcado era a última coisa que queria. Fui capaz apenas de
caminhar dois passos cambaleantes para trás, na ingênua
esperança de remover aquela imagem da minha mente. Mas
não. Foi um erro se afastar, talvez até mais do que se
permanecesse paralisado no lugar. Algo duro tocou na minha
perna. Virei-me assustado, em posição de defesa, mas aquilo era
ainda mais assustador. Fui tocado por uma mão, ou o que
parecia ser uma, que fazia parte de um corpo carbonizado. Mais
um morto.
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Eu seria o próximo ali? Tudo indicava que sim. O medo da
morte impregnou na minha pele e tudo o que pensei era que
precisava me esconder. Foi então que vi uma mesa, no canto do
quarto. Corri até lá e me joguei em baixo dela. Mas não. Bati em
algo, ou melhor, alguém. Alguém que teve a mesma idéia que
eu. A mesma idéia e um pouco menos de sorte, pois quem
estava lá, já estava morto. Seu rosto era irreconhecível. A cabeça
foi estourada. Um tiro era o que parecia a mim. Com a mesma
velocidade que fui me esconder, fugi do esconderijo. Voltei ao
meio do quarto, rezando agora para não encontrar outro
cadáver. Neste momento me lembrei da tesoura de jardinagem.
Era uma arma. Peguei-a. Por algum tempo consegui controlar
meu medo. Todo mundo fica corajoso quando armado. Com a
mente um pouco menos agitada, olhei ao redor com mais calma.
Entendi tudo. O tênis do enforcado era o meu. O relógio no
braço do baleado, pertencia a mim. Na mão do carbonizado, o
meu anel de casamento. Eu era o próximo a morrer, de novo.
Olhei para a arma na minha mão e respirei fundo. Coloquei o
pescoço entre as lâminas da grande tesoura e a fechei. Abri os
olhos e dei conta de minha existência. Um quarto na penumbra
que nunca havia visto antes. Um lugar muito estranho para se
acordar...
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Tema 3 – O homem de branco
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Seda branca
Henry Alfred Bugalho
Exausto, larguei armas e chapéu e meti a cara no rio.
Caminhava há dias, após haver sido destacado para as fronteiras
do Norte. O Imperador Qinzong temia os revoltosos que se
proliferavam na região e conclamara guerreiros de todos os
rincões do mundo.
Ouvi som de flauta e me pus em alerta, espalhava-se o
rumor de que bandos de ladrões e assassinos se escondiam na
floresta, mas avistei um senhor, cabelos agrisalhados, descendo
em direção ao rio.
Saudei-o e recebi a resposta de que vinha em paz. O viajante
se sentou ao meu lado e acendeu uma fogueira. Anoitecia e
compartilhamos um jantar improvisado.
Decorridas horas de silêncio, o senhor falou:
Estou cansado, vivi muitas dificuldades nestes últimos meses
e não encontro pouso em lugar algum. Já ouviu algo a respeito
do “Homem de Branco”?
Neguei.
O nome de nascimento dele era Bai Hong-nu, filho duma
família humilde, educado para ser soldado, assim como vejo que
você é. Lutou em muitas guerras e caiu nas graças do Imperador.
Foi promovido a general, senhor de muitos guerreiros, e venceu
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todas as batalhas na quais pelejou. Porém, numa noite, quando
o Imperador adentrou o alojamento da concubina favorita,
encontrou Hong-nu adormecido nos braços dela.
Enfurecido, o Imperador conclamou a guarda, com ordens
para executar Hong-nu, porém, este, com experiência de anos a
serviço do Imperador, conhecia bem o castelo e suas incontáveis
passagens secretas; neste labirinto, Hong-nu se embrenhou e
escapou da sanha inclemente do Imperador. Fugiu para o Norte
e apagou seu passado. Vestia-se apenas de branco, na ausência
dum nome, nos povoados onde passava, alcunharam-no Wán, o
homem da seda branca.
Wán olvidou seu passado de guerra e, de vila em vila,
evitando as grandes cidades, pregava uma inusitada mensagem
de paz e perdão. Arrebanhou discípulos, que ouviam
fervorosamente seus ensinamentos. E eram tantos, que
fundaram um povoado.
Pessoas vinham de todas as partes para escutarem as lições
de Wán e sua reputação alcançou o grande Céu. Guerreiros
baixavam armas e se uniam aos acólitos de Wán, esposas
abandonavam seus lares para acompanharem o sábio.
Porém, sutil e imperceptivelmente, o conteúdo da doutrina
de Wán começou a mudar. Da paz, abnegação e perdão
incondicionais, Wán instruía que para tudo neste mundo há
exceção, de que não há claridade sem sombras, e que o mal e a
guerra eram contrapartes do bem e da paz. Aos seus discípulos,
propagava que o tempo de paz estava por terminar e que, em
breve, quem o amava teria de brandir armas contra um
poderoso oponente.
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Assim, no início da primavera, Wán e um exército de cem mil
combatentes se dirigiram ao Sul, com a missão de matar e
destronar o Imperador Qinzong. Wán era um dissimulado,
durante todo este período, ele apenas buscava uma
oportunidade para se vingar do Imperador que o degradou e lhe
retirou a mulher amada, à qual, diziam, Qinzong havia mandado
decapitar.
Inevitavelmente, o Imperador designou tropas para deter o
exército de Wán. Durante três meses, Wán desbaratou o
contingente imperial, porém, a escassez de suprimentos, o
cansaço e as chuvas incessantes do verão foram responsáveis
pelos primeiros revezes. Recuaram para as montanhas.
Vendo a grande oportunidade para derrotar o oponente, o
Imperador enviou um grande exército, que cercou Wán e seus
guerreiros. Emboscados nas montanhas, o fim era evidente.
O exército de Wán tinha duas escolhas, lutar até a morte e
os que fossem capturados sofreriam torturas e ultrajes
inimagináveis, ou desistirem e privarem-se de suas próprias
vidas.
Wán deliberou com seus capitães e concluíram que, por ser
a morte inadiável, todos se matariam ao nascer do sol.
Quando os tambores do Imperador soaram e as tropas
iniciaram a marcha rumo ao bastião de Wán, trinta mil
sobreviventes, punhais mirados para o coração, sangraram até a
morte.
As tropas imperiais não encontraram sobrevivente algum.
55
E você estava entre os soldados do imperador, para saber
tudo isto? perguntei.
O senhor acendeu um cigarro e, com um sorriso iluminado
pela claridade da fogueira, respondeu.
Não. Estive com o punhal afiado no peito, mas, no último
instante, refleti: Somos muitos, não conseguiremos escapar, mas
um só homem facilmente se envereda nas montanhas e some.
Sou Bai Hong-nu, conhecido como Wán, o homem da seda
branca. O punhal não entrou no meu coração. Vivo e congrego
um novo exército. E você será meu primeiro guerreiro.
Com que forças eu poderia resistir àquele homem, que trazia
no olhar a energia do Céu, da Terra, do Fogo e dos Ventos?
A minha espada é sua, Wán. Respondi. Até a morte.
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A fenda
Denis Clebson da Cruz
A cabeça de Rujanm parecia girar enquanto tentava se
levantar. Retirou o elmo, amassado profundamente onde fora
atingido por um golpe de bastão. Um simples bastão. Jogou a
inútil peça da armadura no chão de pedras.
Havia se preparado praticamente a vida toda para aquela
busca. Desde que ouvira falar da Lenda da Armadura Negra,
cada um de seus dias na Ordem Templária de Samiel tinha um
único objetivo: vestir a indestrutível indumentária do Cavaleiro
D’Ardon.
A lenda era muito clara. Contava de um Cavaleiro Templário
que, lutando e vencendo o dragão negro Tabuloon, conquistou o
direito de vestir uma armadura forjada pelo Ferreiro Nai No
Kami, o grande Mestre da Forja. Além disso, o Cavaleiro passou
a ter o domínio sobre o dragão vencido.
Grandes foram os feitos de D’Ardon sob o uso da Armadura
Negra e, antes de sua morte, a escondeu na floresta ao sopé do
Templo do Sol. Segundo a lenda, Tabuloon passou a ser o
guardião da armadura. Aquele que o derrotasse em batalha,
conquistaria o direito de vestir a indumentária.
Mas algo estava errado nesta lenda. Em todos os
pergaminhos que estudou sobre seu objeto de desejo, não havia
qualquer menção à estranha figura à sua frente. Um velho
homem de branco impedia a passagem em uma fenda rochosa,
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onde Rujanm tinha plena certeza de que estava escondida a
Armadura Negra.
Bastava atravessar a Fenda, lutar e vencer Tabuloon. Feito
isto, o conjunto de guerra do Cavaleiro D’Ardon seria seu.
Ofegante, Rujanm levantou os olhos e observou o homem
de branco. Uma aura sobrenatural parecia circundá-lo por
inteiro, como se tivesse uma estrela d’alva escondida por baixo
das longas barbas claras. O cabelo, igualmente longo, caia em
uma trança única nas costas do guardião da Fenda.
Enquanto Rujanm trajava uma armadura Templária
completa, incluindo a capa branca com a cruz vermelha de
quatro pontas iguais, o velho vestia unicamente uma alva túnica.
- Vá embora – disse o homem de branco. – Não há nada para
você além da Fenda.
- Não vim de tão longe para voltar sem luta – respondeu o
Templário.
- Se você não percebeu, nós já lutamos – sorriu com
sarcasmo. – E você perdeu.
Era difícil reconhecer a derrota, mas o fato é que, a princípio,
Rujanm tentou argumentar com o velho que lhe impedia a
passagem. Porém, depois de alguns insultos da insignificante
criatura de branco, decidiu dar-lhe o merecido corretivo. Não
utilizou arma, pois acreditou que daria cabo do inconveniente
com as mãos limpas. Enganou-se. Foi recepcionado por
saraivadas de golpes com o bastão que sustentava o velho.
Numa agilidade incompatível com sua idade, o homem de
branco surrou o Cavaleiro que tentava forçar a passagem.
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O último golpe atingiu a cabeça de Rujanm, jogando-o para
fora da estreita Fenda.
- Fui complacente com você, velho – disse puxando a
espada. – Não tenho tempo para brincadeiras. Saia do meu
caminho ou vou trespassá-lo agora.
- Tenho certeza de que sua língua é mais hábil que sua
esgrima – sorriu o velho. – Se você preferir, lutarei sem o bastão
e poderei dar umas palmadas nesse seu traseiro de criança
insolente.
O insulto impulsionou Rujanm para dentro da Fenda. Antes
que ele desferisse o golpe frontal, recebeu a ponta do bastão no
queixo. Sua cabeça inclinou-se para trás e foi golpeada mais
duas vezes.
O Templário tentou contra-atacar, mas a estreita parede
rochosa não permitia o giro completo da espada. A lâmina
faiscava nas pedras enquanto o guardião da Fenda surrava-lhe
novamente.
Fixando o bastão nas paredes, o homem de branco apoiouse nele e encheu o peito de Rujanm com um chute que o
expulsou novamente da passagem.
Enquanto ofegava, o Templário tentou retomar a postura.
Cambaleou, mas permaneceu em pé, contemplando o
sorridente homem que não havia cedido um único centímetro
para dentro do caminho.
O orgulho do Templário estava mais ferido que sua carne,
latejante em dor em várias partes do corpo.
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- Eu não quero te machucar de verdade – disse Rujanm. Sua
condição não dava qualquer credibilidade às palavras.
- A questão é: você consegue me machucar?
Um Templário treinado nas Artes de Samiel poderia
machucar qualquer criatura viva. Vários ritos de defesa e ataque
eram ensinados e Rujanm era um mestre na Arte do Fogo.
- Sim, eu consigo – disse o Cavaleiro enquanto chamas
subiam pelo fio de sua espada. – Deixe-me passar, agora – o
fogo inflamou até punho e tomou conta do braço que segurava
o ferrão metálico.
- Prepare-se para ser machucado, Cavaleiro Templário –
desafiou o guardião.
Rujanm cruzou a espada por três vezes no ar e projéteis na
forma de lâminas incandescentes foram lançadas contra o
oponente.
O trio de lâminas de fogo explodiu na palma da mão direita
do homem de branco. O Cavaleiro Templário o fitou enquanto as
alvas madeixas acentavam após o impacto dos projéteis.
Como que impulsionado por uma forte rajada de vento, o
Guardião voou na direção de Rujanm. Raios crepitavam ao redor
de seu corpo e faiscavam em toda a extensão do bastão que
empunhava fortemente, dando-lhe a aparência de um deus do
trovão.
Em campo aberto, Rujanm conjurou uma barreira vermelha,
mas ela foi quebrada com o primeiro golpe do velho. A cada
60
golpe que o atingia, seu corpo sofria espasmos de violenta dor,
como se uma onda de choque intenso contraísse seus músculos.
Finalmente, o Templário se viu deitado com o bastão
apoiado no queixo. O homem de branco lhe pisava na altura do
peito.
- Vá embora e diga que não encontrou o que procurava. Ou
diga que um velho o derrotou. Não conte qualquer detalhe da
batalha.
Rujanm não disse palavra e sentiu o bastão ser enfiado mais
forte na garganta. A voz do homem tornou-se ameaçadora:
- Faça um juramento Templário, ou morra agora.
- Com meu sangue – raspou a mão esquerda na lâmina da
espada que estava deitada ao seu lado – e pelo sangue de
Samiel, eu juro. Farei o que você ordena.
Selado o juramento pelo rito, Rujanm levantou com
dificuldade.
- Quem é você? – perguntou.
- Sou o homem que te venceu em batalha – sorriu-lhe o
velho.
Sabendo que não teria melhor resposta que aquela, o
Cavaleiro Templário desceu pela floresta e voltou para seu
Templo, na distante cidade de Nova Tahyma.
Depois de contemplar a partida do guerreiro, o homem de
branco atravessou a fenda. Uma baforada quente soprou-lhe os
cabelos e ele acariciou o focinho de um grande dragão negro.
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- Não será hoje, meu amigo Tabuloon, que você encontrará
seu novo Mestre. Apenas aquele que derrotar o único que te
venceu em batalha conseguirá suportar o que virá depois da
Fenda.
Esta era a estranha maneira de D’Ardon, o Lendário
Templário, proteger a vida dos incautos Cavaleiros da Ordem de
Samiel que desejavam sua Armadura Negra, a qual jazia mais
adiante, descansada num altar de pedra, fitando inconsciente
com sua carranca de dragão a alva luz que provinha daquele
homem de branco.
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A roupa branca
Rafael de Leon
Malditas roupas brancas. João as odiava. Como podia
insignificantes peças brancas interferir em tantas partes da sua
vida?
Era seu enjoativo uniforme de trabalho, o motivo da
discórdia com sua mulher que não as lavava corretamente, o
instrumento que o fazia se sentir um alienígena perto das outras
pessoas na rua... Não era o fim do mundo também; João
exagerava nas coisas. Sempre foi assim.
Não podia olhar para nada sem se debruçar sobre uma
grossa lupa: tudo para ele era de proporções gigantescas.
Naquela manhã, saiu de casa mais cedo. Não agüentaria ficar
perto da esposa mais um único segundo depois que descobriu
que a manga da sua camisa branca tinha um tom amarelado.
– O que é isso? – disse ele com uma voz estridente,
chacoalhando a roupa em frente aos olhos da mulher.
– É a camisa branca que separei para você trabalhar hoje.
– Veja bem: existe azul marinho, rosa choque, verde limão,
mas não existe branco topázio ou branco ouro! Branco é branco.
E isso aqui – disse cuspindo um pouco de saliva em meio às
palavras – não é branco!
Não houve resposta da outra parte. A mulher já sabia o que
viria depois: João bufou, jogou a camisa em algum canto da sala,
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vestiu outra que achou adequada para seus padrões, pegou sua
maletinha e foi para o trabalho.
Como ia sempre a pé, entre uma passada e outra ruminava a
peleja ocorrida logo pela manhã. Seguindo o conselho de um
amigo, costumava tratar a raiva como caroço de milho, mastigar
até perder o gosto; ora ou outra colocaria outro assunto entre
os dentes. E assim se deu.
Algumas quadras depois, deparou-se com o inesperado: no
meio da calçada, uma solitária moto completamente
estraçalhada.
Metros além, na rua, uma aglomeração de gente. A famosa
turba da desgraça. Um grupo de pessoas que se teletransportam
no local de algum acidente segundos após o ocorrido.
Sem notar o estado da moto e contando apenas o número
de curiosos, João já iria atribuir alta gravidade à tragédia, mas
sabendo que a moto ficou pior do que a arte de um neófito
origamista, foi tomado pela urgência da situação. Correu em
direção à multidão.
É nessas horas que João agradece a exigência do branco em
sua profissão. A resistência contra sua passagem foi quase nula.
Em meio àquele mar de perfumes, sapatos e vozes, ele foi
deslizando quase em linha reta até o corpo do acidentado.
Parecia até que algumas pessoas o tentavam empurrar com
mãos e Aleluias para que chegasse mais rápido.
Foi até ao pé do corpo e lá encontrou o que poderia ser
comparado à arte de um aprendiz do neófito origamista
mencionado há pouco.
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O ar em torno do corpo estava carregado de perguntas e
hipóteses. Era impossível ser ouvido no meio daquela confusão
toda, mas mesmo assim João arriscou:
– Há quanto tempo aconteceu o acidente?
Quem estava em volta, prestou-lhe atenção e fez silêncio, na
tentativa de colaborar para que ele recebesse a resposta. Um ou
outro respondeu sua pergunta.
– Alguém aqui já ligou para a emergência? – João inquiriu
novamente.
Um “sim” apareceu do bolo de gente, que agora estava
numa espécie de expectativa, olhando-o.
João parecia estar submerso em pensamentos e
permaneceu mirando o corpo, como que se estivesse
contemplando possibilidades.
Quase um minuto se passou e uma nova sensação de
agitação começou a crescer na turba. No meio do burburinho de
vozes, uma delas veio acompanhada de um toque no braço de
João, que o trouxe de volta para o local do acidente:
– Doutor, você não vai fazer nada?
–Ahn? Eu? Fazer o quê? – respondeu ele, atônito – sou
apenas um cabeleireiro.
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Todas as cores
José Espírito Santo
VERDE (ESPERANÇA)
Serra de Sintra. O calor faz-se sentir intenso enquanto o fim
de tarde espera calmo e tranquilo ao fundo do bloco de
apartamentos. O FIAT azul emerge de rompante da curva, pneus
chiando e devorando metro a metro, em esforço desesperado o
pouco espaço que falta.
Colado ao volante o homem pequeno, entroncado e
impecavelmente vestido estica o pé direito gordo, carregando a
fundo com toda a força, peso e pressão martirizando juntos o
pedal. Ao seu lado no banco do pendura jaz imóvel o envelope
castanho amarrotado e mal acondicionado. Num ápice a
aceleração dá lugar a uma travagem violenta, brusca embora
perfeitamente programada, prevista, agendada para aquele
momento em que deixa as marcas no alcatrão. O bólide
estacionou e imobilizou-se deixando escapar a massa balofa que
após sair sobe agora correndo o lance de escadas. A uma porta
se bate, uma porta se abre.
- Senhor Adelino? - diz o gordo, a voz ofegante.
- Sim. Sou eu. Quem és e que me trazes? - retorque Adelino
Cruz, fitando fixamente, olhos nos olhos, o seu interlocutor.
- Queira fazer o favor... - e entrega-lhe o pequeno envelope.
A atenção voltou-se momentaneamente para o envelope
cheio, fazendo a análise rápida, avaliando o risco. Quando
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levantou o olhar o homem tinha desaparecido. Olhou para um e
outro lado, fechou a porta e ficou alguns segundos parado,
observando o objecto, sem saber bem o que fazer. Após aquele
momento de indecisão a curiosidade foi mais forte. E dá por si
sentado na cama abrindo o invólucro para encontrar lá dentro
um pequeno livro e aquela carta estranha. Começou a ler.
“Decerto estranhará a recepção desta missiva, linhas que a
muito custo minha mão trémula faz sair. Nunca tive o privilégio
de o encontrar pessoalmente e peço encarecidamente que me
perdoe a ousadia da intromissão em sua vida particular. Mas o
tempo urge e tem todo o interesse em saber. Meu nome é
Adriano e o que tenho para lhe propor vale dez milhões de
euros. Sim, leu bem. Dez milhões.”
Vinte e cinco minutos para ler e reler são uma eternidade se
considerarmos que o texto se espalha por apenas três páginas.
Mas foi o que gastou. No fim a semana de férias evaporou-se
para o nada dando lugar a actividades mais necessárias aos
novos objectivos. Que prometem e chamam e pedem atenção.
Adelino era um sujeito peculiar. Conciliava a disciplina e
espírito prático herdados dos vários anos passados em Benfica
entre os muros do colégio militar com uma capacidade de
abstracção que lhe abria porta para outros voos e lhe conferia
outra sensibilidade. Fisicamente a cara e óculos redondos, o
bigode negro e cabelo encaracolado no topo de seus cento e
sessenta e oito centímetros não impressionavam por aí além.
Escondiam no entanto o corpo treinado, que sabia ser lutador e
amante de forma terrivelmente eficiente. Alguns minutos após a
leitura da missiva e sua capacidade de adaptação e raciocínio
rápido já tinham delineado o plano de actuação. E isso era bom,
uma vez que o tempo de que dispunha não era muito. Para já o
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banho que se impõe. Depois sair, fazer uns quilómetros e entrar
na confusão cosmopolita do bairro mais visitado da cidade – o
Bairro Alto.
Entretanto no horizonte o sol já vai descendo lentamente
para o seu leito. Ao longe o cimo de serra transformado em
palácio da Pena descansa de mais um dia atribulado - a servir
turistas, espalhando o romantismo. À volta dele apenas um
imenso mar de verde. Pejado de esperança.
VERMELHO (PAIXÃO)
Mais que candeeiros e ruas estreitas e casas um bairro típico
é um ser estranho com manias e temperamento próprio, tão sua
a forma como se veste e reveste das mais variadas pessoas. No
caso do bairro alto a personalidade é marcada pelo ambiente
cosmopolita, tributo à variedade onde coabitam em convivência
diária espécies tão diferentes como a estudantada imberbe,
artistas, malandragem e camones. Onde se encontra a
mercearia ao lado da casa de fado ao lado da galeria de arte ao
lado do restaurante fino ao lado do bar onde entramos e
ouvimos estupefactos o mais inesperado jazz.
Esta é apenas mais uma noite em que se fará justiça ao
currículo do lugar. No pequeno W.C, Maria X encara o espelho
com satisfação e verifica cuidadosamente a aparência. Os olhos
negros rasgados, orientais estão esculpidos na face morena que
serve de base ao longo cabelo frisado e conferem-lhe o ar
exótico que a torna tão pouco resistível. À face interessante
juntam-se ainda uns lábios carnudos, herança da mãe caboverdiana e aquele corpo bem cuidado que trata de guarnecer
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com vestuário requintado, de marca e que suporta a ocupação
que adora. Em que não tem horário fixo ou relógio de ponto mas
onde sempre se impõe o satisfazer dos desejos mais exigentes.
Naquele recanto do restaurante "sabores de baco", olha em
frente e ama tudo o que vê. Mais uns segundos e a porta vai
abrir e todos desviarão a atenção do jornal da noite que relata
como sempre o mesmo de sempre, para ver a morena que sai
gostosa para a rua.
Adelino emerge apressado da escadaria do metro "BaixaChiado" observando à sua frente a célebre esplanada da
"Brasileira" onde reside ancorada, pensativa a estátua do poeta
maior. Um pouco à esquerda o largo de Camões espera servindo
de entrada aos quarteirões onde tudo acontece. Deambula pelas
ruas até chegar à da Rosa, rua de eleição onde fica o seu
restaurante favorito. O "petisco dos deuses" é um sítio peculiar
com apenas meia dúzia de mesas e uma carta de vinhos de fazer
inveja aos melhores. Felizmente tivera o cuidado de marcar!
Senta-se e pede a ementa enquanto espia um casal de meiaidade que sem fulgor e sem chama conversa banalidades,
mantendo-se entre ambos apenas função fáctica. Ao fundo o par
de namorados troca carícias apaixonadas enquanto a outra
comida não chega. De repente a mão toca-lhe no ombro.
- Señor, una rosa solamente dos euros - gesticulava,
tentando fazer-se compreender.
Preparava-se para recusar. Marroquinos vendendo flores
eram o prato do dia de qualquer frequentador daquelas
paragens. Além disso o gajo não via que ele estava só? Estava
nisto quando a voz se ouve, suave, a seu lado
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- Senor Adelino... rsrsrs, não me diga que vai recusar uma
rosa a uma senhora...
Levantou os olhos e viu-a. Pele morena um pouco mais clara
que o vestido negro. Olhos fundos negros, riso provocante.
- Vejo que o deixei sem palavras – continua ela, trocista,
senhora da situação. Posso sentar-me ou espera alguém?
O que se seguiu foi um daqueles jantares magníficos onde a
gastronomia, portuguesa por sinal, foi regada por um magnífico
"Duas Quintas" de reserva e tudo isto completado por uma
daquelas conversas onde a intimidade se vai insinuando de
fininho, como quem não quer a coisa. Uma vez satisfeitos
começaram por um bar banal com música ambiente e jogo de
setas. Beberam umas e outras – sempre conversando e rindo,
rindo muito. Seguiu-se o bar mexicano, ruidoso e animado onde
até deu para um pé de dança. E terminaram no bar do Zé Negro
– lindíssimo. Com a pianola ao fundo e a música ambiente - John
Coltrane e outros que tais e ainda o grupo de Jazz que
finalmente deu as caras e fez "show".
Algumas horas depois ela guiou os corpos cansados até ao
apartamento luxuoso nas traseiras do Príncipe Real e
conheceram-se por fim.
AZUL (REFLEXÃO)
Às vezes tudo nos parece um sonho. Neste momento, nem
sombra da morena. Ele jaz amordaçado e preso a uma cama na
pensão rasca perto da praça da alegria. À sua frente um papel
exibe a mensagem que diz
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Tens cinco minutos para descobrir a combinação do
cadeado. Senão já eras.
A inteligência fá-lo à conseguir. Para isso usará a mensagem
cifrada em páginas do livro, sendo suficientemente perspicaz
para perceber que a alusão ao versículo de Lucas nada tem de
bíblico e não é mais que referência à sucessão "números de
Lucas", caso particular dos números de Leornardo de Pisa
(Fibonacci).
Conseguirá entrar no site e ficar na posse da quantia
prometida. Na semana seguinte comprará duas passagens só de
ida para as Caraíbas. E irão. Ele e ela.
BRANCO (TODAS AS SENSAÇÕES)
O grupo formara-se por geração espontânea, do nada. Em
apenas dois anos crescera rapidamente para a multidão dispersa
de milhares de constituintes de todos os credos, países e raças.
Aqueles seres anónimos que planeiam, discutem e articulam o
jogo.
As regras são simples. Criar um desafio, escolher
cuidadosamente uma "vítima" e estipular uma recompensa
choruda. Durante quarenta e oito horas o escolhido é seguido e
vigiado e são lhe colocadas as mais variadas provas.
Finalmente, se ele triunfar e se tornar o "homem de todas as
cores", "homem de branco" a história é colocada na Web de
duas maneiras: Uma é através de um pequeno conto publicado
de preferência primeiro em círculos restritos como o são as
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comunidades de escritores que se apoiam uns aos outros em
tentativas de melhorar a escrita.
A outra é através de vídeos. Em site secreto. Que conheço.
Mas não revelo.
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Tema 4 – A contista
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Poeira
Denis Clebson da Cruz
Ellen foi jogada no calabouço por dois guardas truculentos.
Um deles olhou lascivo para suas pernas morenas, por entre o
vão da saia surrada. Mesmo após ter sofrido três dias de
torturas, seu corpo sinuoso ainda era um convite à luxúria.
O som das trancas de ferro ressoou pelas paredes de pedra,
se misturando aos gemidos e gritos dos moribundos e aos
guinchos dos ratos que infestavam a prisão.
Enquanto os guardas voltavam pelo corredor, Ellen
continuava a ouvir os insultos que a acompanharam desde o
momento em que foi ali jogada: “Bruxa! Queimem! Filha do
Demônio!”
Não. Ela não se considerava uma bruxa. Era uma contista;
uma trovadora; enfim, uma artista. Mas os malditos daquela vila
não compreendiam sua Arte. Acusada de bruxaria, foi julgada
pelos aldeões e condenada à fogueira. Assim que o sol nascesse,
teria seu corpo queimado.
Prostrou-se ao chão de terra batida e empoeirada. Passou as
mãos no solo vermelho, alisando-o como se estendesse um
pergaminho encardido. Seus olhos brilhavam na escuridão
enquanto a unha enegrecida do indicador direito escrevia um
conto na terra.
Apresentou seu herói: um guerreiro de armadura negra,
montado num corcel prateado. Narrou cada detalhe do
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cavaleiro, descrevendo sua cavalgava por entre os imensos
carvalhos da Floresta Proibida. Chamou-o de Heidan.
Em seu conto, Ellen narrava a entrada silenciosa de Heidan
naquela maldita aldeia. O trote calmo do cavalo não despertou
nenhum dos aldeões de seus nebulosos sonhos.
Parado na entrada da prisão, o guerreiro desembainhou a
pesada espada, ferroando dois guardas que dormiram no turno.
A unha longa da contista se enchia com a vermelhidão da
terra, enquanto ela contava o avanço de Heidan pela entrada
principal e, num embate heróico, vencia outros três guardiões.
Entrando pelo corredor da masmorra, o cavaleiro duelou
com os dois guardas que, há pouco, jogaram a contista em sua
cela. Na unha de Ellen, não havia outro desfecho para o conto,
senão a morte violenta daqueles carrascos. O primeiro teve a
cabeça decepada e o segundo sofreu um corte profundo no
abdome, assistindo as vísceras escorregarem para fora enquanto
a alma lhe fugia do corpo.
Ellen respirou em cima da sua narrativa empoeirada.
- Malditos – murmurou ela. – Como podem confundir minha
Arte como uma simples bruxaria?
Escreveu as últimas linhas: Heidan atravessava o vasto
corredor e o silêncio de todos os presos parecia embalar a dança
sinuosa das chamas nas tochas. Com um único chute, o
guerreiro arrombava a porta do cárcere da contista,
arrebentando até mesmo as travas de ferro.
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O som de um trovão estrondeou a porta. Ellen levantou-se e,
à sua frente, estava o guerreiro de armadura negra. De dentro
do elmo, a escuridão lhe fitava.
Ela sorriu e novamente debruçou na terra. Soprou forte as
letras de seu conto, empoeirando o ambiente e vendo seu herói
esvair-se em um redemoinho de poeira vermelha.
Ellen, a contista, caminhou calmamente por toda a prisão,
passando por sobre os corpos dilacerados dos guardas. Sumiu na
neblina da noite e afundou-se na Floresta Proibida, onde,
segundo a lenda, até hoje narra os suplícios para os condenados
ao Inferno.
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O trouxa
Henry Alfred Bugalho
Minhas mãos tremiam ao digitar a senha no caixa eletrônico.
Nunca antes a impressão dum extrato bancário pareceu ter
demorado tanto (talvez apenas daquela vez em que estourei o
limite do cheque especial) e, quando a máquina cuspiu o
papelzinho, a minha reação foi um resmungo engasgado:
— Aquela vaca me roubou!
A vaca havia se apresentado como Elisa Sampaio.
Conhecemo-nos numa sala de bate-papo na Internet, ela
morava no interior, eu na capital. Elisa tinha uma conversa
interessante, versava sobre quase tudo com fluência e logo
deixei de dialogar com outras pretendentes, destinando
exclusividade a Elisa.
Trocamos fotos por e-mail, ela não era linda, mas, como eu
já estava apaixonado, fiquei radiante. Mal podia agüentar
minhas férias chegarem para eu embarcar num ônibus e
conhecer pessoalmente Elisa.
Porém, antes disto, recebi a maravilhosa notícia. Ela havia
pedido as contas no serviço e estava se mudando para cá, seria a
oportunidade para nos encontrarmos.
Na TV, notícias de crimes cometidos pela Internet:
seqüestros, estupros, assassinatos. Temerosa, Elisa sugeriu para
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nosso primeiro encontro um local público, para segurança de
ambos.
Estava ocorrendo uma feira na cidade, com parque de
diversões e tudo mais. Comemos maçã do amor, andamos na
roda-gigante e demos nosso primeiro beijo no trem-fantasma,
tudo na maior melação amorosa. Afinal, estávamos
apaixonados!
Elisa foi dura na queda, sucessivas vezes insistiu que não
fazia sexo no primeiro encontro, mas, no segundo, cedeu. Quem
resiste a um jantar romântico, a dois, luz de velas e um bom
vinho?
Porém, nos dias seguintes, Elisa se comportou de maneira
estranha. Perguntei-lhe o porquê:
— As coisas não andam fáceis, Robson, vim para cá, mas não
estou conseguindo emprego. Na pensãozinha onde estou, a
semana vence amanhã, e não tenho dinheiro nem para onde ir.
Na minha mente, a resposta era única e óbvia.
— Venha para minha casa!
Na mesma noite, Elisa se mudou para meu apartamento,
trazendo mala e cuia.
Eu não cabia em mim de tamanha felicidade. Após tantos
anos procurando uma companheira, uma mulher que sabia
cozinhar e insaciável na cama era muito mais do que poderia
imaginar.
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Como um casalzinho novo, todo dia eu voltava com um
presente para Elisa, ou um buquê de flores, beijávamo-nos
ardentemente e acabávamos sob os lençóis.
Meu salário era razoável, mas, ao perceber que Elisa não
estava procurando emprego, senti de deveria tomar uma
providência.
— Amor, abriu uma vaga para secretária na minha empresa.
Você não quer mandar um currículo pra lá?
— Ah, Robie, a nossa vida não está boa deste jeito? Tenho
medo de que, se eu começar a trabalhar, nosso relacionamento
mude. Sabe como é: vou chegar cansada, sem pique. Sempre
sonhei em ser dona-de-casa. Poderíamos até nos casar...
Esta evolução súbita, de sexo a casamento, me assustou.
— É melhor não nos apressarmos — titubeei — Você
poderia arranjar um emprego, talvez alugar um lugar aqui perto.
Poderíamos aproveitar nosso namoro, casamento é um passo
muito importante.
Porém Elisa chorou, soluçando, reclamando que eu não a
amava, o que estava bem longe de ser verdade. Reconciliamonos, e eu prometi que pensaria na proposta dela.
Creio que foi nesta semana que percebi algo estranho:
dinheiro miúdo estava desaparecendo da minha carteira, às
vezes eram três reais, outras, cinco, mas, diariamente, havia
menos dinheiro do que no dia anterior.
— Você está precisando de algo? — perguntei a Elisa — Se
você não se incomodar, eu posso até lhe dar uma mesada. Não
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sou rico, mas uns cem ou duzentos reais por mês posso separar
para você.
— Nunca pensei em encontrar um homem tão maravilhoso!
— Elisa me abraçava e beijava, mas, mesmo assim, os trocados
continuaram sumindo.
Depois, foram pequenos itens de casa: alguns talheres de
prata, herança da minha vó; um candelabro de cristal, que Elisa
alegou ter quebrado durante a faxina e, por fim, até meu relógio
de pulso, que sempre deixava na cabeceira da cama antes de
dormir, que valia umas quinhentas pratas.
Quando perguntei a Elisa se ela havia reparado nestes
estranhos desaparecimentos, ela respondeu:
— Você é muito distraído, Robie. Está sempre perdendo
tudo!
Só que antes de conhecê-la nada disto ocorria, e este fato
me incomodava.
— Não passou por sua cabeça que ela possa ser uma
vigarista, uma contista? — um amigo me advertiu — Já ouvi
histórias semelhantes. Daqui a pouco, você volta pra casa e esta
mulher levou tudo.
Que boca maldita! Foi nesta mesma tarde que descobri que
limparam minha conta no banco, e, ao chegar em casa, só o
vazio, nem um único móvel, nem uma única peça de roupa havia
restado. A desgraçada me deixou com a roupa do corpo e um
apartamento onde até meu choro ecoava pelos cômodos nus.
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Elisa Sampaio não deixou rastros, na polícia, informaram-me
que mesmo o nome dela deveria ser falso, que caí num bem
articulado conto-do-vigário e que não deveria me penitenciar
por causa disto, muita gente bem mais inteligente do que eu
(esta sentença feriu meus brios) também já havia dado uma de
pato.
Mas decidi virar o jogo.
Voltei à Internet, mas quem ostentava agora um nome falso
era eu. Vaguei pelas salas de bate-papo, conversando com
dezenas de mulheres, tentando reencontrar Elisa. Suspeitei de
duas, depois descobri que não eram ela. E meu peito doía de
desespero, sentindo-me o mais trouxa dos trouxas.
Não a descobri na rede e acabei desistindo. Desistindo, mas
não esquecendo, principalmente quando, ao chegar em casa à
noite, eu era obrigado a me recolher ao meu quarto, onde havia
apenas um colchonete. Porém consolava-me a mim mesmo,
com aquele mesmo argumento das velhas beatas:
— “Se não há justiça dos homens, haverá pelo menos de
Deus”.
O que me fazia sentir um tolo, ao recorrer a um Deus que há
anos não mais acreditava.
No entanto, numa manhã de sábado, ao ir à compra de
roupas novas, de relance, vi uma mulher, cheia de jóias, vestido
justíssimo, desfilando para dentro dum carro com motorista.
A voz ficou presa, eu queria berrar, xingá-la com todos os
palavrões que eu conhecia, mas só arrotei um:
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— Elisa?
Alucinado, corri até meu automóvel, estacionado do outro
lado da rua, e segui aquele onde estava Elisa.
Chegaram a um bairro de alta classe e cruzaram os portões
duma mansão. Anotei o endereço e prometi a mim mesmo que
desmascaria esta vadia.
O que se sucedeu nos dias seguintes é confuso na minha
mente: fiquei de tocaia diante do casarão, segui-a até um
shopping center, abordei-a quando ela foi ao toalete, pronto
para me vingar dela, porém, a antiga flama dum amor pretérito
se reacendeu, quando Elisa me suplicou para acreditar nela,
alegando que tudo que ela fez contra mim foi sob coação, que
ela ainda me amava, que nunca havia me esquecido. Transamos
no banheiro no shopping, eu mais feliz do que nunca por tê-la
reencontrado e descobrir que meu amor era correspondido.
O verdadeiro canalha era o dono daquela mansão, pelo que
Elisa me contou. Pablo era um extorsionário profissional. Havia
praticado golpes ao redor do mundo, desde Santa Fé de Bogotá,
donde ele provinha, passando por Mônaco até chegar ao Brasil,
reconhecidamente a pátria da impunidade.
Elisa me pediu ajuda para se livrar deste pústula, que a
mantinha sob vigilância constante, utilizando-a para realizar seus
trambiques. Juntos, maquinamos um plano infalível,
roubaríamos a fortuna dele e fugiríamos do país. Mais simples,
impossível.
Num quarto de hotel, poucas horas antes de perpetrarmos
nosso projeto, fizemos sexo selvagem, Elisa me pedindo para
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estapear-lhe a cara, arranhando-me a costas, como se fôssemos
animais.
A minha comparsa facilitou-me o acesso à mansão e, à noite,
entrei na casa adormecida. Elisa me encontrou ao rés-do-chão e,
aos sussurros, me instruiu:
— Fique aqui em baixo vigiando, que eu vou subir para abrir
o cofre. Se alguém aparecer, você sobe e me avisa.
E, para minha surpresa, me entregou uma pistola, à qual eu
não sabia nem como empunhar.
Elisa subiu ao primeiro andar. Eu estava tão ansioso que
andava dum lado ao outro, consultando o relógio a cada cinco
segundos. Elisa estava demorando uma eternidade para voltar.
Haveria acontecido algo?
Mas eu me continha.
Porém, após meia hora, achei mais prudente verificar se
tudo estava bem. Vaguei pelos cômodos do primeiro andar, mas
não a encontrei. Passei pelo escritório de Pablo, todo revirado,
cofre aberto, mas lá Elisa também não estava. Por fim, cheguei a
um quarto, porta entreaberta.
Empurrei-a um pouco e adentrei o aposento na penumbra.
Alguém estava deitado na cama, supus ser Pablo, e o medo me
paralisou. Temia que ele despertasse e eu tivesse de usar a
arma; temia que ele acordasse, gritasse, e uma merda
acontecesse. No entanto, algo estava esquisito. Assim que meus
olhos se acostumaram com a escuridão, percebi que ele estava
deitado de bruços, mãos atadas nas costas, um capuz na cabeça.
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Aterrorizado, afastei-me e acendi a luz. Foi quando descobri que
Pablo estava morto, havia levado um tiro nos miolos.
Sem saber o que fazer, deixei a pistola cair e corri pelos
cômodos, procurando Elisa novamente, chamando-a em
sussurros. Eu tremia, minhas pernas estavam fracas, entrei num
lavabo e comecei a chorar. Ouvi som de sirenes, a polícia havia
sido chamada.
Fui preso, interrogado, queriam saber onde eu havia
escondido o dinheiro de Pablo, o honesto e dedicado dono
duma rede de panificadoras. Recusei-me a responder as
perguntas, enquanto aguardava meu advogado.
Mas minha maior surpresa foi quando me puseram numa
saleta envidraçada. Policiais apareceram, escoltando uma
mulher. Era Elisa.
Os policiais perguntaram a ela:
— Foi este homem que invadiu sua casa e a violentou?
Soluçando, Elisa respondeu:
— Sim, sim, foi ele! — e desviou o olhar de mim.
Descontrolei-me e amaldiçoei até a quinta geração da
desgraçada, mas os policiais me contiveram e ainda tive de ouvir
do delegado:
— Se acalme aí, mocinha, pois, na penitenciária eles vão se
fartar com estupradores como você!
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Fui julgado por júri popular, condenado a quarenta anos de
prisão por homicídio doloso, estupro, lesão corporal, roubo, e
outras acusações menores. Fui enviado a uma penitenciária
estadual, feito de mulherzinha, contraí HIV e quase fui morto na
última rebelião.
Na semana passada, no dia da visita, chamaram-me, dizendo
que alguém havia vindo me ver. Evento extraordinário, já que
todos meus amigos e parentes desapareceram após a
condenação.
Cheguei ao pátio e vi uma mulher sentada, absorta em
pensamentos. Foi difícil reconhecê-la, após tantos meses, ela
havia tingido e cortados os cabelos. Elisa me olhou e sorriu.
Primeiro, pensei em saltar sobre ela e matá-la com o canivete
que escondia nas calças. Seria a vingança que tanto almejei.
Entretanto, não tive coragem, sentei-me ao lado dela e
perguntei o que ela estava fazendo aqui.
— Pensei muito em você nestes últimos tempos — ela me
disse.
Conversamos e eu a perdoei. Uma vez por semana, ela vem
me visitar.
Por incrível que pareça, Elisa (se este for realmente o nome
dela) é, e sempre será, meu grande amor.
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Imperfeição
José Espírito Santo
I. Na livraria
Nunca gostara de contos de terror. Sua aversão era devida à
imaginação forte que o tornava vulnerável, gerando mal-estar
físico bem para lá da insónia que aflige o comum dos mortais.
Por isso é com alguma surpresa que entra na livraria e dá por si
espreitando por cima do ombro do homem que folheia. Antes
de fixar o olhar ainda pensa que poderia ter arranjado melhor
forma de “matar” o tempo enquanto Margarida não chega.
O homem que espreita, André, é mais um daqueles aviões
de voo de rota falhada, está pagando caro o rigor desleixado
com que sempre encarara os outros na vida profissional e
relações familiares. Nunca fora de “engolir sapos” e calar. Mas
também jamais conseguira entender o valor de respeitar as
devidas hierarquias e proporções. Daí o mal entendido com o
chefe do chefe, originando chamada repentina ao gabinete do
subordinado deste. O discurso, cheio de palavras bem escolhidas
incluía as frases que não deixavam margem para dúvidas Lamento muito mas não existem condições para continuares.
Seria mau para nós e ainda pior para ti – dissera o “chefinho”
com ar preocupado, pleno de comiseração.
Em casa a sorte não fora melhor. Depois do início fulgurante
a relação com Matilde foi arrefecendo, resistindo como podia à
erosão do tempo e ao seu muito mau feitio e excessos
ocasionais. Aconteceu o mesmo de muitas vezes - os dois lados
seguram a corda e vão puxando, puxando. Julgam que dará
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sempre para mais um pouco. Até que quebra de forma mais ou
menos inesperada. Naquele dia, chegado ao apartamento deu
com o nada, o vazio. Mais tarde um SMS informou lacónico da
“ida para casa dos meus pais”. Não te preocupes, levei a
Margarida, depois o meu advogado contactar-te-á – disseram de
forma aparentemente despreocupada as letras pequeninas,
redondas, do aparelho.
Entretanto aproveita e vai lendo, de boleia. O companheiro
não deu pela sua presença e avança interessado para a uma das
histórias – Perseguição implacável. Vem-lhe à lembrança algo.
Em silêncio volta atrás no tempo e conta a si mesmo tudo.
Desde o início.
II. Dos incríveis acontecimentos da semana passada
Talvez fosse a solidão, talvez a utilidade do “algum dinheiro
extra”. Só sabe que dá por si folheando os anúncios do
vespertino, a vista percorrendo linhas em ziguezague, os olhos
atentos a qualquer oportunidade. Foi assim que encontrou o
insólito que se lhe cabia e assentava como uma luva. Rezava o
texto “O candidato deverá ser homem de meia-idade, bemparecido, desempregado e livre. São quinhentos euros para um
'casting' ”. Ligou, nervoso e seguiu à risca as indicações, a coisa
ficava lá para o bairro da Lapa, bem perto da Rua das Trinas.
O apartamento era direito de terceiro andar e a campainha,
de tão ineficiente por certo seria muda ou cansada. Estava quase
a voltar para trás quando aconteceu
“André Valadares?” perguntou a voz
92
“Sim, sou eu” atirou, ao que o outro som retorquiu “Olhe,
não nos conhecemos mas existe algo que lhe quero propor. Vale
bem quinhentos euros. Ah... pode chamar-me Ana.”
Virou-se e viu-a. Alta loira e elegante, óculos escuros da
moda, devia andar pelos seus trinta e cinco. Vestia de forma
prática, impecável a combinação das cores.
Seguiram em silêncio por duas ou três ruas até encontrarem
a porta do apartamento pequeno, quase quarto e sala. No meio,
a mesa posta e o ambiente romântico sugerido pelo par de velas
não causavam estranheza ao homem baixo, um tailandês
entroncado que vestido a rigor se preparava para servir “Quinta
da Bacalhoa” com todos os requisitos de cerimonial.
“Faça o favor de sentar, disse outra vez a voz” e anuiu e
sentaram e a conversa iniciou.
A curiosidade da anfitriã era enorme e avançava e alcançava,
casava bem com a sua solidão. De tal modo que ficou a ver com
espanto o desfilar despudorado da sua vida, ao ritmo e toque
das palavras que eram lançadas e deixadas à sorte - umas atrás
das outras. Passaram os anos da infância feliz e despreocupada,
os tempos de Universidade de borgas e amores e professores
austeros. Passou a morena tímida que se chamava Matilde e
estudava biologia e a festa onde proferiram ambos os votos
solenes e cortaram o bolo e beberam champanhe cruzado após
inaugurarem a pista de dança com uma valsa. Passou uma
barriga linda em crescendo que, chegado dia do parto se
esvaziou na felicidade de pegar o rebento rosado e chorão.
Chamar-lhe-iam Margarida – nome da avó materna. E chegaram
depois, enfim os tempos maus. As dificuldades, as discussões, o
acomodar mútuo, a incompreensão partilhada. Chegou o dia
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que tinha marcado os sentimentos da sua vida mais recente. E
quando atingiu este ponto, subitamente, olhos húmidos, a voz
perdeu a força, calou-se. Tinha passado uma hora cheia, ele ali a
falar, falar, falar. À sua frente a mulher escutava atenta. De vez
em quando parava e baixava o olhar para tirar anotações no
caderno.
“Senhor, obrigado pelo seu tempo, aqui tem” estendeu-lhe
o envelope com dez notas de cinquenta.
Tinha tirado de si e lançado para a frente todos aqueles
guardados de baú de ser. E agora sentia-se mal, desconfortável,
triste. Bem, pelo menos tinha ganho algum dinheiro! Se fossem
necessárias mais histórias... – pensou. Estava neste diálogo
interno, consigo mesmo quando foi invadido pelo torpor e seu
corpo cedeu aos truques de um vinho bom mas adulterado.
São seis da madrugada quando acorda e ergue o olhar. À sua
volta, o grupo de adolescentes com ar rufia segura os dois “Pit
Bull”. O que parece mais velho avança e diz
“Ouve lá, cota. Aqui é tudo gente boa, do melhor. Por isso
vamos fazer um trato contigo.”
“Hum... que trato, onde estou?” em frente via o
descampado da lezíria. Ao fundo, a uns bons quatrocentos
metros. A cerca de arame era interrompida por um portão.
“A gente quer ver como corres, se és como o Obiquelo. Por
isso vais fazer uma corrida aqui com os meus dois primos” os
primos olhavam ansiosamente, expectantes, dente afiado,
língua de fora.
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O magricelas de óculos saiu do meio do grupo. Encarou-o,
mirando-o de baixo a cima e disse.
“Hei, assim não vale. O gajo está em tão boa forma que os
animais não terão a menor hipótese. Vamos ter de desgasta-lo
um pouco.”
Formaram um círculo de onde choveram pontapés e murros,
transformando-o ao fim de uns minutos naquela massa física
desgraçada que implorava descanso. Olhou para cima mesmo a
tempo de ver o “caixa de óculos” sorrir e dizer
“Agora sim, o avozinho já está em pé de igualdade.” sorriu
trocista “Mas se ele for bom desportista damos-lhe uma
pequena vantagem. Façam-lhe a pergunta.”
A mente confusa começou a imaginar testes possíveis à
memória – Quem eram os “cinco violinos”, qual foi o ano em
que o Boavista ganhou o seu primeiro campeonato, qual era o
nome do recordista mundial do triplo salto, todas estas questões
surgiram se candidatando. Mas quando soube ao que vinham,
descobriu como se tinha enganado e avaliado mal os
interlocutores. Os putos estavam para o desporto como para a
história aquele aluno que em visita ao Museu do Azulejo,
perante o painel magnífico da Lisboa pré-terramoto de 1755
pergunta à “sotora” onde estava pintado o estádio do
Belenenses. Agora a pergunta era simples: Qual dos três grandes
era o melhor?
Foi fácil acertar na resposta. Premiaram-no com uma
vantagem de duzentos metros, foi lançado para a frente. E
correu como um louco, não se atrevendo a olhar para trás. E
chegou a pensar que ia conseguir. O portão estava já tão perto,
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quase ao seu alcance quando algo agarra e puxa a perna
esquerda. Decorre uma fracção de segundo após a qual sente o
osso a partir como se fosse mero bambu de um qualquer
canavial. Mas não se preocupa com isso nem com o sangue que
jorra livre e desgovernado dos vasos sanguíneos dilacerados.
Preocupa-se sim com o segundo primo, o qual o alcança
também, atacando num ápice. Ainda coloca as mãos,
protegendo a face de investidas sucessivas das mandíbulas que
abrem e fecham e puxam e rasgam. Mas a dor aumenta e é
impotente para resistir mais tempo aquela vaga violenta que
avança e não recua, que encontra finalmente o ponto vital,
partindo o pescoço, separando-o em duas metades, finando-o
nesse divórcio físico. Antes de se ir ainda consegue ouvir ao
longe a voz da loira a dizer – Muito bem, rapaziada, aqui está a
vossa parte. Agora é comigo. Isto nunca aconteceu. Nem um pio.
III. De volta ao livro
Continua a ler. Para descobrir o quanto o personagem
principal lhe é familiar. Alto lá - a boca abre-se de espanto. É ele,
elezinho ali escarrapachado, pregado palavra a palavra em
página de papel. Com todos os detalhes. Horrorizado observa o
sorriso satisfeito do leitor que fecha o volume e se dirige
decidido para o balcão. O livro é excelente, o conto tão verosímil
e cheio de sensações. Ah... e aquela personagem tão bem
descrita, tão real... vai comprar. Tem de comprar.
Então o homem chamado André passa de surpresa grande a
tristeza maior, convencendo-se finalmente sobre o seu estado
actual. Sabe agora que a Guidinha não virá pois o ele físico
também já não é. E sente a dor imensa dos que são e ao mesmo
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tempo não são, que ainda recordam a vida que foi mas já nada
podem fazer.
Ainda grita desalmado um “é pá, não gastes o dinheiro em
porcarias, essa gaja é um embuste, é uma vampira, uma
assassina”. Sem qualquer sucesso. Afinal de contas ele é ainda
fantasma principiante. E não será certamente para principiantes
a capacidade de causar manifestações físicas perceptíveis,
chamando a atenção dos vivos.
IV. Prólogo (prólogo?)
A mulher loira que não se chama Ana está à varanda de seu
apartamento de luxo na zona nova da cidade – o Parque das
Nações. Bebe um vodka a golos espaçados enquanto enche o
olhar com a actividade bela e caótica dos que chegam e que vão
junto aos jardins na margem do Tejo. É uma “contista” das boas,
os seus contos prendem a atenção do leitor desde o primeiro
momento. Mas como qualquer autor, não é perfeita. O seu
calcanhar de Aquiles é a criação de personagens adequadas,
verosímeis. Porém, com o método engenhoso que encontrara a
imperfeição era eliminada de forma eficaz fazendo com que o
problema nunca aparecesse aos olhos do leitor. Ao que parece,
o seu livro mais recente, uma colectânea de histórias de terror e
acção onde podemos encontrar títulos como “Tortura fatal”, “A
morte dos gémeos inocentes”, “Acidente premeditado” e
“Perseguição implacável” está fazendo muito sucesso.
Liliana, contista possuidora de imperfeição fatal sorri de
sorriso triunfante. Observa o sol que se põe vagaroso, ao longe 97
por detrás da colina e tenta imaginar como serão os próximos
textos. Sabe que não serão contos de amor.
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O duelo
Rafael de Leon
No meio da selva amazônica, vivia a Contista. Não era sua
residência fixa, pois, alheia dos valores mundanos, mudava-se
sempre que holofotes recaiam sobre ela.
Apesar de estar em completa desconexão com a cultura do
Homem, continuava a ser um ser desta espécie e, sendo assim,
carregava junto de si a contradição humana. Digo isso porque a
ela possuía aversão aos seus semelhantes, mas, mesmo assim,
usava do seu dom de contista para ajudar aqueles que
precisavam.
Sabia que dar mostras de sua genialidade faria com que
todos fossem a seu encontro, atrás de entrevistas,
ensinamentos, discussões, autógrafos... mas mesmo assim a
Contista, piedosa, corria sempre em auxílio dos que a procura.
Entretanto agora achava que seria diferente. O lugar da nova
morada era de difícil acesso e os únicos que iam ter com ela
eram os índios e os animais. Possivelmente, seria o seu último
pouso nesta terra.
Mas não.
Como queimada em mata seca, os boatos correram de galho
em galho e pararam na cidade grande. Mais precisamente,
chegaram a um invejoso colega de ofício da Contista. Pablo
Conejo – esse era o seu nome – não esperou nenhum segundo
antes de arrumar suas malas e viajar ao encontro da mulher.
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Iria acontecer um duelo entre os contistas.
A viajem durou dias, mas finalmente teve seu fim. PC chegou
ao local indicado pelo guia e não precisou perguntar pela
Contista; reconheceu-a como sendo a mulher de cabeça baixa,
sentada ao chão, que riscava algo na terra com um graveto.
–Eu já o esperava – disse ela sem tirar os olhos da poeira.
Conejo não deu importância ao tom oracular, em sua
opinião, era bem possível que ela dizia isso a todos que ali
chegavam, afinal de contas, não havia muito o que se fazer no
meio daquela mata se não fosse procurá-la.
– Guarde seus misticismos, mulher. Vim para um duelo.
A Contista meneou positiva a cabeça e limpou com a mão os
rabiscos feitos na terra. O duelo estava aceito.
– Uma mãe é 21 anos mais velha que o filho. Daqui a seis
anos a mãe terá uma idade 5 vezes maior que o filho. Pergunta:
Onde está o pai agora?
Sem ao menos ter visto o rosto da Contista, PC jurou que um
largo sorriso se avizinhou ali. Havia perdido o duelo. Armada do
graveto, a mulher erguia a poeira nos seus traçados rápidos e
firmes no solo. Um minuto depois, ela se levantou, olhou Conejo
pela primeira e última vez e caminhou para dentro da mata.
PC se aproximou do local onde a Contista estava sentada e
eis o que encontrou:
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A mãe tem hoje Y anos
O menino tem hoje X anos
Se a mãe é 21 anos mais velha, tem-se: Y
= X + 21
Daqui a 6 anos: (Y + 6) e (X + 6)
Portanto com a mãe 5 vezes mais velha que
filho, tem-se: Y + 6 = 5 (X + 6)
Y + 6 = 5 X + 30
Y = 5X + 24
Substituindo em Y = X + 21, tem-se : 5X + 24 =
X + 21
Logo: - 4X = 3
X = -3/4
O menino tem hoje -3/4 anos, ou seja, menos nove meses.
Sendo assim, a resposta lógica é: ele nascerá daqui a nove
meses. Conclusão do problema: o pai está agora transando com
a mãe.
Pablo Conejo voltou triste para a cidade carregando junto de
si a derrota. Perdera para a Contista, a mulher que calculava.
101
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De repente
Victor Berigo
Sai da sala de aula para beber um pouco do vento azul.
Enquanto anda lá no pátio da escola, sem querer, ela tropeça, só
se via umas nuvenzinhas e a imensa cor azul, o céu invadia teus
olhos cansados, ela subia até o céu como se fosse sólido. A
garotinha loira de franjas retas, queria viver o "faz de conta" das
histórias e desenhos animados, vivia o calor momentâneo da sua
vida naquela manhã; vinha ao mundo o brilho, nascia luz, nascia
esperança. Seu nome era esperança.
Que lugar lindo é o céu, não havia sombras, o chão e as
paredes eram todas azuis, bexigas coloridas subiam
deliciosamente pelo ar, algumas alucinadas, as nuvens pareciam
ser de algodão doce, havia também uns anjos fazendo músicas
com arpas e trompetes, crianças fazendo sons com a batida da
palma, outras pintavam diversos arco-íris, todos coloridos, e
uma única e enorme lâmpada que aquecia e pingava gotas doces
e amarelas, sabor mel; o raio do sol alcançava o horizonte do
seu olhar.
Deslumbrada com tudo aquilo, ela sai correndo
irresistivelmente, como os destemidos pássaros que não sabem
aonde pousar. Ela senta no conforto das nuvens e atirava
pétalas coloridas ao céu.
Ela pula, dança, brinca com tudo aquilo, o sentimento é
como sentir o momento, e logo, se lambuzava de guloseimas, e
uma espécie de biscoito que brotavam por lá. Como dizia sua
mãe, "amarga já basta à vida"; ela se lambuza, lambuzava seu
103
rostinho que parecia transfigurar com o apetite insaciável do
tempo, e nasciam sombras que um vento forte soprou por lá.
Brotava uma ligeira sombra sob teus pés, ela não entendia, a
sombra crescia, e estendeu-se pela amplitude do dia, até o pôr
do sol, e sumia.
A esperança sentia que o movimento da sombra significava
existência, a sua realidade, e agora só havia uma imensa sombra
escura pousada no céu, a noite era à sombra do dia, e ela era só
solidão e vazio.
Já aqui em baixo, só haviam pontas de cigarros mortas pela
cidade, só a luz do poste fingia ser lua, tudo era uma mentira,
ela queria entender porquê chamavam por toda a vida pelo seu
nome, mas foi se acostumando, ela nunca teve nome...
E o sonho acordou pelo desconforto do sono, a contista
acorda a noite, debruçada sobre a escrivaninha, seu papel e
caneta vermelha, na sala, sua mãe gritava brava pelo seu nome
com ritmo, melodia, e sentimento, como os belos poemas que
ainda não escreveu. Sozinha e com um sentimento estranho,
como às vezes acordamos, Esperança faz um cafezinho, acende
um cigarrinho e retoma ao texto, seu principal recreio era
brincar de escrever, escrevia sobre o tempo, que um dia,
envelheceu, de repente.
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Tema 5 – o velho guitarrista de
Picasso/O prisioneiro
105
106
O velho guitarrista
José Espírito Santo
Bairro Alto. Varanda de direito de quarto andar. Estava
trabalhando a técnica com o segundo volume do “escuela
razonada de la guitarra”; os olhos desviavam-se mais uma vez
para a partitura quando, em refazer de repetição, retomava
fôlego e o ânimo.
Apesar da postura e posição correcta das mãos, sabia
jamais poder vir a ser “Baden” ou “Williams”, dificilmente
conseguiria evoluir de forma a tocar bem peças como “el colibri”
de Sagreras, “sunburst” de York ou “la catedral” de Barrios
Mangoré. Mesmo assim, continuávamos lutando, eu e o
exercício pouco melódico. Entretanto ouço a voz baixa e
educada. Que opina.
“Jorge, é impressão minha ou você está fazendo bons
progressos?”
Francisco era sempre encorajador e tinha paciência de
santo para ficar me ouvindo. Consegui retorquir com um tímido
“achas mesmo?”.
“Sim. A prática leva à perfeição” disse ele - enfaticamente,
de modo a não deixar margem para dúvidas.
Ficou observando e escutando mais um pouco após o que
saiu em silêncio, sem mais aviso. Voltaria uns quinze minutos
mais tarde para arrastar-me até ao sítio do costume – a
cervejaria da Trindade. Onde fomos entrando e sentando.
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“Duas canecas, por favor” Pedimos, cheios de sede.
“Sabes, é interessante como a história se faz! Muitas vezes o
que conhecemos dos factos pouco tem a ver com o que se
passou na realidade.”
“Sim” disse eu, anuindo e recostando-me. Já estava
acostumado a estes inícios mansos. Quase sempre precediam
uma longa conversa.
“Por exemplo, conheces aquele quadro famoso, o tal que se
encontra no Instituto de Artes de Chicago – O velho guitarrista?”
“Conheço. Que tem ele?”
“Sabes o que se diz não é? Foi pintado na fase azul. Chegam
a afirmar que o quadro é uma representação do próprio artista,
do acto de criação de arte e sua relação com a burguesia. Tudo
disparates! “
“Hum... como assim?”
“Vou contar-te... e começou”
Nessa altura, o pintor ainda não era muito conhecido e
tinha uma vida nocturna intensa. Efectuou várias viagens a Paris,
onde acabaria por fixar-se definitivamente. Tinha a mania de sair
e ficar acordado até altas horas da noite. E foi numa dessas
saídas nocturnas que o encontrou.
“Encontrou? A quem?”
“O guitarrista, homem! O motivo do quadro.”
“Então quer dizer que o velho existiu mesmo?“
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“Claro! Mas não era assim tão velho. Deixa-me continuar...”
Encontraram-no junto ao passeio, numa esquina em fundo
de rua. Pernas cruzadas, face inclinada para baixo, olhos meio
fechados, a posição desafiava todas as regras que qualquer boa
escola de guitarra ensinaria. A técnica, longe de ser perfeita,
paria aqueles sons, maravilhosos.
Encantados com o que ouviam, entabularam conversa –
“Hei hombre, vine tomar una copa con nosotros”. O grupo
sentou-se e depressa surgiram as perguntas. Queriam saber
tudo sobre o estranho personagem. E ele contou em flor de
noite tudo o que o tempo permitiu.
Nunca tinha tido aulas de música; era apenas um pobre de
Cristo, funcionário público cinzentão. Naquele dia de Outono a
mulher tinha saído bem cedo, deixando o catraio na ama. Como
tantas vezes, vestiu o sobretudo, bateu com a porta e preparouse para fazer a pé os dois quilómetros, distância que o separava
da repartição. Meteu caminho pela rua e foi andando em passo
rápido, estugado. Foi então que o viu. Barba branca mal cuidada
em rosto onde as rugas disputavam espaço, vorazes. A guitarra.
O som imperfeito. A interpelação.
“Amigo, dê-me algo para comer por favor. Tenho fome.”
Olhou para aquele cimo de barba cujos olhos cintilavam.
Aquilo irritava-o profundamente. Como se não bastasse o
trabalho chato, a rotina dos dias sem fim, ainda tinha que levar
com esses cães vadios. O pé fez voar a taça com as poucas
moedas “Vai trabalhar pá. Deixa-te de histórias. Ainda se
tocasses alguma coisa de jeito...”
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A tigela voou para o espaço onde o homem já não estava.
Então algo lhe bateu por detrás violentamente. Uma dor sem
nome entrou de fininho e instalou-se autoritária.
Acordou algumas horas mais tarde. A luz da lâmpada do
hospital deixou perceber esboços de uma face com máscara
branca. Pouco a pouco os contornos foram-se tornando nítidos
de nitidez estranha – que o feria. Fechou os olhos. A melodia
surgia em sua cabeça.
“É pá. Quer isso dizer que o gajo ficou com problemas na
cachimónia?”
“Isso mesmo amigo. Ficou a bater mal. Foi se lhe o juízo,
veio-lhe o jeito para a música. Perdeu o emprego, a mulher
fartou-se e pô-lo a andar. Passou a deambular pelas ruas – ele e
a sua amiga.”
“Amiga de seis cordas não é?”
“Exacto. A velha guitarra. Sabes o que tocava o gajo quando
o encontraram? Tocava ‘la ultima cancion’ do Barrios Mangoré.
Uma peça cujo trémulo faz corar de vergonha o “recuerdos de la
alhambra” do Tárrega. “
“Olha lá pá” ainda disse eu.
Pensei contar-lhe o que sabia. Em 1903, data da pintura do
célebre quadro, Barrios tinha apenas quinze anos e só mais
tarde, por volta de 1905 começaria a compor “a sério”. Além
disso, “la ultima cancion”, última composição do génio, fora
criada bastante tempo depois. Conhecendo o meu amigo, sei
que não o atrapalharia minimamente. Provavelmente ele diria:
Pois! Mas sabes o mais incrível? É que a história de “la ultima
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cancion” está igualmente mal contada. Ela diz que Barrios se
inspirou no som efectuado por um mendigo a bater à porta. O
que não diz é que o mendigo entrou mesmo e trazia com ele
uma guitarra. Ah! Já se está mesmo a ver quem era esse
mendigo não é...
O ditado diz “apanha-se mais depressa um mentiroso que
um coxo”. Mas como há mentirosos que correm muito,
reconsiderei. Limitei-me a continuar o “olha lá pá” com um “não
achas que ainda bebíamos mais duas?”
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O preso
Jurandir Menezes
Aconteceu num mês de Julho quando eu e minha banda
saímos em viagem e aportamos no estado do Paraná para
fazermos alguns shows. Havíamos tocado por três noites
seguidas, em três cidades diferentes e estávamos todos os três
esgotados.
No dia anterior, depois de nossa apresentação num
inferninho roqueiro, eu havia bebido até alcançar o nirvana
etílico e não era capaz nem ao menos de lembrar o meu nome.
Pelo que consta nos autos e no depoimento do meus
companheiros de grupo, fui abordado por uma garota que, se
não era linda, também não era das mais recatadas e me levou,
sem possibilidade de resistência da minha parte, para a sua casa
que ficava pelos arredores.
Fui acordado em torno das sete da manhã por Marcelo,
baterista da minha banda, que sabia onde eu passara a noite e,
suspeito, até melhor que eu. Sentia-me um lixo. Como já disse,
havia bebido demais; tinha a cabeça vazia e um gosto horrível na
boca. Meu parceiro de banda, que sabe o diabo como brotara
naquele quarto, sem muito carinho, me arrancou da cama sem
se importar com a garota nua adormecida ao meu lado. Tive
ímpetos de acordá-la e me apresentar formalmente, Marcelo
achou desnecessário e desnecessário também eu me vestir e,
então, jogando um cobertor sobre a minha nudez, arrastou-me
até a Pampa, nosso pouco confiável meio de transporte nessa
época de vacas esqueléticas.
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Maurício, o guitarrista, dormia com a cara prensada contra o
vidro da porta do carro. Empurrei seu corpo para o centro do
banco e me ajeitei como pude. Era hora de voltarmos para a
nossa cidade. Havíamos todos dormido naquela casa onde, além
da garota que me fez companhia, moravam ainda outras duas da
mesma espécie. Isso me fez rir um tanto e, num sentimento
pueril de alívio, pensar que seria terrível acordar com os meus
companheiros de banda e mais uma garota da qual o nome eu
nem sabia, todos nus numa mesma cama.
Dentro do carro, nos espremíamos sofrivelmente os três na
cabine apertada, mesmo assim, apesar do desconforto, mal me
pus dentro da Pampa, adormeci, acordando somente às nove da
manhã. O sol estava alto no céu, fazia arder minhas vistas,
minha cabeça doía como se dentro dela uma manada de
elefantes dançasse uma animada rumba, minha boca estava
seca e a pouca saliva que eu conseguia engolir tinha gosto de fel.
Senti um peso sobre mim. Maurício, com a cabeça pendida
sobre o meu ombro, babava rios de um líquido branco e viscoso.
Enojado, afastei-o e gemi num fio de voz:
-Preciso de café...
-Precisamos é de combustível. Logo paramos num posto de
gasolina. - disse Marcelo, sem tirar os olhos da estrada.
Um parágrafo para Marcelo. Esse nosso baterista, Marcelo,
era policial. Tirara férias unicamente para que pudéssemos
viajar e fazer alguns shows fora de nosso estado. Estava longe de
ser o mais sério e responsável dentre nós, mas tinha a admirável
qualidade de poder beber feito um marinheiro e ainda assumir
com firmeza o volante do carro. No momento, parecia sóbrio.
Sob seus óculos, de armação grossa e escura, tinha os olhos bem
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abertos, falava com clareza, mas não me engano em afirmar que
estava tão lesado quanto eu, ou pior. No entanto, era ele que
nos guiava e esse tipo de pensamento negativo não era boa
coisa naquela rodovia tão movimentada.
Paramos dois quilômetros à frente, num posto de gasolina.
Reconheci a espécie de estabelecimento pelas três bombas de
combustível. Sem essas, o lugar se assemelharia mais a um
galpão abandonado de pós-guerra. Estava todo em ruínas, caía
aos pedaços. Pneus amontoados, frascos de óleos jogados por
todos os cantos, um cheiro azedo de mofo misturado a forte
odor de gasolina. Num canto do curto pátio, uma Belina de cor
azul claro jazia triste em sua decrepitude metálica. Com um
rápido correr de olhos, avistei, a um canto, algo que adivinhei
ser um boteco. Na falta de uma loja de conveniência com
convenientes máquinas de bebidas expressas, resolvi ali mesmo
beber algum café.
Ainda estava nu, apenas enrolado num cobertor, então,
estiquei um braço até a parte de trás do carro e enfiei a mão na
primeira bolsa que tateei. De dentro dela, tirei uma bermuda,
colorida, estampada com flores, muito em moda na época. Não
era minha; eu jamais usaria algo tão cafona, mas, naquela
cidadezinha de interior perdida no mundo, sem nome ou café
expresso, por que me importar? Revesti minhas coxas magras
com flores primaveris. Debaixo do banco havia uma blusa de
agasalho rosa, desbotada, no peito um enorme desenho do
rosto de Minnie, aquela da Walt Disney, putinha do Mickey.
Blusa de mulher. Da mulher de Marcelo, decerto. Estava ali
apenas para que limpássemos os pára-brisas que se embaçavam
a toda hora com a umidade. Achei-a confortável. Apropriei-me
de algumas moedas que estavam esquecidas no console do
115
painel do carro, peguei um único cigarro, um isqueiro, pus nos
pés um par de chinelos de dedo e saí do veículo.
Fazia um frio de congelar cachoeiras e um vento enfezado
bagunçava a minha longa cabeleira, embaraçando os fios
ensebados. Notei olhares sobre mim. Há alguns passos, um
velhinho de longa barba mal cuidada e um garoto com cara de
bobo, a esfregar as mãos com um pedaço de estopa imunda de
graxa, me fitavam aparvalhados. Presenteei-os com um jovial
“bom dia” e, na falta de uma resposta, me dirigi ao botequim.
Entrei. O boteco tinha também o indefectível fedor de mofo
que tomava os ares lá fora; só que, dentro, era mais intenso e,
misturado ao cheiro de fumo de cigarro, parecia sufocar.
Pregados nas paredes, diversos cartazes de procurados pela
Justiça exibiam fotos de sujeitos mal-encarados, de aparência
rústica e hostil. Achei graça disso: pareceu-me coisa de velhooeste americano. As poucas mesas eram ocupadas por homens
vestidos com trajes de roceiros, quase todos ostentando bigodes
enormes que lhes cobriam grande parte do rosto. Taciturnos,
fumavam e bebiam, olhando para o nada. Atrás do balcão, uma
mulher muito gorda e com cara ranzinza me olhava curiosa e se
impacientava visivelmente à espera de meu pedido. “Café.” O
líquido preto, fumegante, foi depositado diante de mim num
copo engordurado que já ocupava o balcão. Apesar de péssimo
o café, o sabor amargo dos goles escaldantes descendo pela
minha garganta fizeram com que me sentisse melhor.
Os nativos sentados às mesas não me descolavam os olhos,
cutucavam-se uns aos outros, cochichavam e me indicavam com
a ponta do queixo. Imaginei estarem impressionados pela minha
aparência, tão estranha àquele mundo, e minhas roupas
desalinhadas e coloridas. Pensei em lhes dizer “sou artista”, mas,
116
numa segunda reflexão, achei bem pouco possível que
compreendessem o alcance desse termo e, então, para lhes
mostrar alguma amistosidade, disse:
-Que frio, hein, rapaz?
Nada responderam. Voltei, portanto, a engolir em silêncio a
minha detestável bebida. Acendi meu cigarro e fiquei a ler os
rótulos das garrafas empoeiradas na prateleira à minha frente.
Estava nisso quando, pelo canto dos olhos, percebi
movimentos por trás de minhas costas. Alguns deles se
levantaram de manso e pareciam já bem próximos a mim. Tive
um mau pressentimento. Quando tentei me virar, um braço se
enrolou em torno do meu pescoço e me estrangulava. Tentei me
livrar, mas um outro pegou meus braços e os torceu para detrás
de minhas costas, um terceiro imobilizou as minhas pernas e,
próximo ao meu rosto, um hálito recendendo a cachaça berrou:
“Pegamo o desgraçado!”
Tudo aconteceu muito rápido. Tendo-me sem possibilidade
de movimento, me arrastaram para fora do bar. Gritavam e riam
alto. Um milhar de pensamentos confusos me passou pela
cabeça; todos apontavam uma única certeza: iriam me matar
feito um bicho. Por quê? O braço que me estrangulava impediame de perguntar a algum deles, o estrondo das gargalhadas
turvava o curso de minhas idéias e não as deixava esclarecer a
mim mesmo a razão de tudo aquilo. Mal podia respirar.
Ao me transporem pela porta do estabelecimento, dirigi
vistas ao lugar onde fora estacionada a nossa Pampa, mas nem o
carro nem meus companheiros lá estavam. No lugar, o que vi foi
o velhinho barbado e o garoto, que ainda esfregava as mãos
117
com o pedaço de estopa, assistindo a cena com o mesmo olhar
parvo. Ensaiei em direção a eles um grito de socorro, mas de
minha garganta comprimida o que brotou foi um som abafado e
quase inaudível. Sem me soltarem, me depositaram sobre o
banco traseiro de uma Brasília. Dois entraram comigo, sem em
um único instante afrouxarem os braços que me prendiam;
outros dois ocuparam os bancos da frente do carro, que logo se
pôs em movimento.
Rodamos por tempo de minutos longos como horas. Quando
eu tentava um movimento mais enérgico, tencionando me livrar
das garras de meus raptores, um deles me dava um soco seco e
forte no meio de uma das coxas, fazendo meus nervos se
repuxarem e paralisando todo o meu corpo numa dor
agonizante. Não havia como fugir.
Chegamos enfim ao nosso destino. O que numa primeira
olhada imaginei ser uma casa abandonada, na verdade, era uma
delegacia de polícia. Reconheci pelo símbolo da instituição
quase apagado na fachada do lugar. Senti certo alívio ao me
saber encaminhado para o meio de policiais, porém esta
sensação logo se desvaneceu. Não sabia até que ponto podia
esperar justiça de tal órgão. Não era capaz nem de longe de
adivinhar as leis que regiam tal cidade onde os habitantes
recepcionavam seus visitantes com socos e violentos abraços.
Dentro da delegacia, fui trocado de mãos, estava agora em
poder de profissionais devidamente uniformizados que, após
trocarem umas breves palavras com os que me trouxeram ali
(das quais não fui capaz de apreender uma sequer) e revirarem
os meus bolsos, passaram a me dar socos, pontapés e a me
espancar as costelas com cacetetes enquanto me dirigiam
ofensas.
118
Quando eu já estava prestes a desfalecer sob tantos golpes,
uma voz autoritária se sobressaiu entre todas as outras e fez
cessar a tortura, ao que me ergueram e me acomodaram com
violência numa cadeira, diante de uma mesa, da qual, atrás, um
velho, também em uniforme de polícia, brincava fazendo girar
entre os dedos uma esferográfica. Compreendi ser esse o
delegado do distrito. O oficial ouvia o que diziam seus
subordinados sem deixar de me fitar. Logo, de uma gaveta de
arquivos, tirou uma grossa resma de papéis e a deitou diante de
si, sobre a mesa. Folheou-a por algum tempo, parava em uma
página ou outra, retesava as sobrancelhas e torcia o canto da
boca. Balançava a cabeça em movimentos lentos e, por vezes,
emitia um “é...”, como quem muito filosoficamente se conforma
com uma inevitável fatalidade. Alisou uma página com a palma
da mão, num gesto manso, e, por fim, falou:
-Está em maus lençóis, seu Raimundo.
Raimundo? Raimundo!
Erraram o alvo!
Uma onda de bem-estar me invadiu a alma. Haviam me
confundido. Tudo não passara de um equívoco. Eu, além de não
ser essezinho, desconhecia a existência de tal personagem, mas
já imaginava o crápula e não duvidei de que fosse bem sim
merecedor de agressões por parte dos cidadãos daquela cidade
e sua força policial, o desgraçado. No momento até riria não
fosse a dor aguda que cutucava meu estômago e fazia meu rosto
se distorcer numa careta. Respirei profundamente, engoli a
saliva salgada com gosto de sangue e me reclinei um pouco à
frente espalmando uma das mãos sobre a mesa. Ia já explicar de
forma sucinta o absurdo da situação ao venerável agente da lei,
119
quando um dos policiais prostrados ao meu lado, me agraciou
com um violentíssimo golpe de cacetete nos dedos. Ao invés de
coerente esclarecimento dos fatos, o que emiti foi um uivo que
meus ouvidos se negaram a reconhecer como meu. Apertei
minhas mãos contra o colo, senti meus ossos esmigalhados; a
dor era lancinante. No mesmo momento, lágrimas brotaram de
meus olhos. Do outro lado da mesa, o delegado mantinha-se
imóvel e me olhava de sobrecenho vazio. Voltou a se deter nos
papéis.
- Assaltos à mão armada, tráfico de drogas, homicídios...
Teve uma vidinha bem agitada, filho. -sua voz era de uma calma
assombrosa - Tão jovem e já vai se aposentar.
Balbuciei qualquer coisa. O delegado não me ouvia, tinha o
telefone junto ao rosto e fazia ligações atrás de ligações.
Comunicava que havia finalmente capturado o foragido
Raimundo e dava ordens para que entrasse em funcionamento a
maquinaria burocrática legislativa.
Lentamente, fui recuperando a calma. Era preciso mostrar
ao homem da lei o quão se enganava e estender diante de sua
compreensão o absurdo desse mal entendido. Disse-lhe então
que era músico numa banda de rock e que viera ao seu estado
para realizar alguns shows em bares e clubes de algumas cidades
dessa região, que um dos membros de meu grupo era policial,
citei o seu nome, o meu nome, o nome da cidade onde residia,
de meus pais, citei nomes e mais nomes que eu bem via não
serem em nada necessários para a elucidação do caso. À medida
que frases se me afloravam na boca, percebi que se
entrecruzavam, eu as cortava pela metade e recomeçava uma
nova, gaguejava. Meus ouvidos distinguiam em meio do meu
120
trôpego discurso alguns choramingas “por favor” e “pelo amor
de Deus”. Eu me afogava em soluços. Estava apavorado.
O delegado, sem denotar qualquer sinal de comiseração,
hostilidade ou desprezo, mas antes, enfado, pôs diante da
minha cara convulsionada pelo pranto medroso a ficha criminal,
repleta de números que acusavam faltas à lei, e, no canto
superior direito do documento, a foto de um homem de
aparência grosseira e carrancuda.
Meus olhos me traíam? Como podia ser possível? Dentro
dos limites de uma 3x4, o que eu via era o meu rosto! De traços
rudes, uma boca franzida que acusava despeito, olhos frios;
todas essas características, que absolutamente não me
pertenciam, numa escarninha conspiração se juntavam e
curiosamente se moldavam em meu rosto. Todos esses detalhes
reunidos davam ao conjunto um não sei que de maligno e
sinistro, no entanto, eu me reconhecia. Imaginei-me mirando
um espelho após ter cometido a série de atrocidades de que o
familiar estranho da foto era feitor e concluí que meu
semblante, em tal caso, não poderia ser outro.
-Tem muita imaginação, filho - e, sem erguer o rosto dos
papéis que agora rabiscava - Leva pra cela.
Os brutamontes me ergueram pelos braços e se meteram
comigo por curtos corredores sem que eu dissesse palavra.
Estava completamente aturdido, abobalhado. Abriram grades
pesadas de uma cela, me empurraram para dentro e a fecharam
novamente. O clique da tranca sendo fechada às minhas costas
soou como uma explosão dentro da minha cabeça. Avaliei as
últimas cenas ocorridas, passei a classificar todas as dores que
me judiavam o corpo, alisei o peito do agasalho rosa que usava,
121
o rosto de Minnie, e apalpei o absurdo do fato de eu estar ali,
trancafiado numa cela de delegacia de uma cidade rural por
crimes que eu nunca me imaginei capaz de cometer e que, com
efeito, nunca havia cometido. Nem sabia dizer se me sentia
desesperado naquele momento. Queria me reconhecer apenas
uma vítima de uma piada sem graça e de mau gosto, mas o fio
de minhas idéias se perdia, pensamentos se abortavam em
minha mente e eu era incapaz de dar a esse quadro qualquer cor
de racionalidade e coerência.
Eu não estava sozinho na cela. A um canto do pequeno
quadrado, dois detentos me olhavam zombeteiros. Um deles, de
pé, com uma perna apoiada no estrado de um catre e cotovelo
escorado no parapeito de uma reduzida janela gradeada,
fumava um cigarro, fedido, de palha, e sorria uma ironia
articulada ao outro que, sentado sobre um colchão em
frangalhos, arrancava lascas de um nó de fumo preto usando um
canivete.
Fiquei alguns instantes olhando a pequena faca e me
perguntando sobre a estranheza do fato do sujeito estar
portando tal arma mesmo se achando preso numa cadeia. Esse,
o da faquinha, me endereçava um riso cínico. Pareciam os dois
contentes com a minha presença. Sentei-me num catre
instalado a um canto da cela. Pus minha cabeça entre as mãos e
mergulhei em meus pensamentos desordenados. Embora
absorto em minhas idéias, podia ouvir meus companheiros
trocarem entre si algumas palavras. Não conseguia entendê-las,
mas percebi que falavam uma mistura de português com
espanhol, completamente ininteligível pra mim. O de pé dizia
qualquer coisa nesse dialeto estranho e ria num chiado baixinho.
122
Ria o outro também e os ruídos e as palavras que saíam de suas
bocas pareciam preencher toda a cela.
Mirei-os um tanto. Eram brasiguaios, gente nascida na
fronteira entre o Paraguai e o Brasil. Já havia encontrado alguns
em restaurantes à beira da estrada nesses últimos dias.
Andavam em grupos de três ou quatro sem nunca deixarem
adivinhar o que faziam, com o que trabalhavam, que intenções
guardavam seus gestos contidos, seus olhares desconfiados e
seu linguajar mal articulado e confuso. Pareciam-me uma
mistura indecisa de camponês e cigano, seres sem mundo
próprio. Melhor ignorá-los.
De súbito, uma coisa me ocorreu: eu tinha direito a uma
ligação. Poderia chamar um advogado. A lei me permitia uma
defesa, evidentemente. Levantei-me e gritei por um policial.
Expus-lhe, sem muita convicção, o meu desejo. Este foi ter com
o seu superior, voltou e destrancou as grades para levar-me até
um telefone, fixo numa parede de um corredor subjacente ao
das celas. Lembrava-me de um primo advogado com o qual eu
trocara duas ou três palavras em furtivos e raros encontros
familiares, mas... e o número de seu telefone? Não o sabia.
Talvez devesse então ligar para a minha família, explicar a
situação e pedir para que entrassem em contato com o primo;
no entanto, não achei boa coisa preocupá-los. Melhor ligar para
a minha namorada e pedir pra que ela falasse diretamente ao
meu parente advogado. Assim fiz.
Quando Fernanda atendeu ao telefone, antes mesmo que
eu dissesse palavra, ela me despejou uma descarga de
perguntas: “Onde você está?”, “Por que não chegou ainda?” “O
que anda aprontando?” “Já devia ter voltado.” Pedi para que ela
me ouvisse por um segundo e disse pausadamente: “Fui
123
preso...” , e que estava detido numa delegacia, precisava que ela
contatasse Carlos, o advogado.
-Preso por quê? O que você fez?
-Assalto à mão armada, tráfico de drogas... - e não pude
terminar de enumerar-lhe todos os itens que perfaziam a minha
ficha criminal. Já ali pelo segundo atentado a lei, ela emitiu um
sonzinho colérico e bateu o fone na minha cara.
Devia saber que não poderia contar com a Fernanda.
Virei-me para o policial que me vigiava prostado ao meu
lado e lhe disse com doçura que a linha havia caído. Como
resposta ele me pegou pela gola da blusa e me arrastou de volta
à cela, indiferente aos meus protestos gagos e chorosos. Novo
clique da tranca sendo fechada, quatro metros quadrados de
cela imunda e meus brasiguaios sorridentes. Esses mais
sorridentes do que antes. Nem por isso mais simpáticos.
Sentei-me novamente sobre o catre. Pensei nos meus
companheiros de banda que haviam sumido. Ao darem por
minha falta, poderiam muito bem inquirir as pessoas do bar do
posto de gasolina e, assim, facilmente se interarem sobre o que
foi feito de mim. Já deveriam estar aqui. Trariam meus
documentos, explicariam a polícia que haviam me confundido,
que eu era apenas um pobre rapazote que estava fatalmente no
lugar e hora errados e que meu único crime fora ter nascido com
a infame cara de um bandido caçado em todos os estados
brasileiros. Tão simples.
“Cadê aqueles putos?”, gritei. Os brasiguaios gargalhavam.
124
Devia ser mais ou menos onze da manhã. Uma fome
descarada me judiava o estômago. Pensei em pedir almoço aos
policiais, contudo declinei desse desejo. Fazer refeição ali não
seria como me conformar com a minha condição de presidiário?
Eu podia muito bem resistir mais um pouco à fome e esperar
com paciência meus amigos que não deviam se tardar em
aparecer e me tirar dali. Não havia dúvida de que viriam,
obviamente. Não iriam embora daquela maldita cidade situada
em lugar algum sem mim. Esse pensamento me deixou mais
calmo e me tornei mais senhor de mim mesmo. Já nem me senti
muito incomodado com os cochichos sibilantes dos meus
companheiros de cela. Sabia que no futuro eu riria de tudo isso
e acariciaria contente o pensamento de que esses malditos
certamente ainda estariam apodrecendo nessa cela, fumando os
seus cigarros fedorentos e, sem a companhia de um injustiçado
pela Justiça para que os divertisse, tendo só um ao outro, suas
trocas cúmplices de olhares e sua estúpida língua sem pátria.
Pedi um cigarro, mesmo com certa arrogância, ao que estava
de pé, escorado na janelinha gradeada (eles não se moviam de
suas posições). Este levou aos lábios a pontinha que tinha entre
os dedos, puxou um longo trago e jogou aos meus pés a bituca
fedorenta.
-Tome lá, cabron.- foi o que acompanhou o seu movimento.
Olhei por um segundo o toco de fumo deitado sobre o chão
da cela e, num gesto enfezado, esfarelei-o sob a sola de meu
chinelo. Não me deixaria ser humilhado. O brasiguaio, vendo
isso, arreganhou dentes podres e explodiu numa gargalhada que
ecoou por toda a galeria de celas da delegacia.
125
Não me agastei por isso. Ou, antes, só um bocadinho. Minha
mente era tomada por outras coisas. Confortava-me o
pensamento de eu não ser Raimundo, o fora-da-lei. Uma
bobagem, admito. Mas a certeza de não ser tal sujeito fazia-me
pleno de regozijo moral. Às vezes. Na maior parte do tempo fui
acometido de um saber-me incontestavelmente réprobo; uma
culpa kafkiana que fugia de toda e qualquer razão. Devaneios
como esses desenhavam estonteantes parábolas diante de meu
espírito, por demais impressionável e de natureza tão sensível.
Logo, peguei-me afagando lembranças de dias de liberdade:
companhia prazerosa de amigos, mimado aconchego familiar,
noites de festa regadas a rock n’ roll, sorriso de namorada...
Despertava de súbito e dava com as paredes de tom ocre de
meu féretro e meus surreais companheiros de reclusão, que não
deixavam um segundo sequer de me fitar. O contraste entre
esses dois mundos era aterrador e triste; trazia-me uma
melancolia exagerada em suas razões de não-ser e me tocar e eu
me encolhia indefeso em meu interior sentindo doloridas
ferroadas de um inexplicável remorso do qual me via incapaz de
medir a extensão, delinear margens e saber onde começava e
findava.
No momento, não conseguia muito bem avaliar o ridículo do
querer, ao sair do cárcere, me tornar uma melhor pessoa. Nem
por isso deixava de arquitetar em minha alma as mais variadas
empresas, que teriam por fim fazer de minha vida, lá fora, uma
irrepreensível coleção de bons atos e gestos. Beatifiquei-me
nessa dor sem procedência que me trouxe o conhecimento de
minha própria vileza; canonizei ,eu mesmo, em meus
sofrimentos, o meu ser agora todo chagado pelos flagelos
inclementes do destino; abençoei de todo o coração os meus
algozes, perdoando-lhes pela falta de ciência de seus atos contra
126
mim praticados; ungi-me dos mais nobres desígnios e tomei
para mim a firme decisão de me tornar, assim que descobrisse
por quais vias, uma pessoa melhor.
Eu delirava. Se meditasse com mais tato sobre a coisa, me
reconheceria incapaz de atinar bem pelo que seria uma melhor
pessoa, uma vez que, nunca sendo um exemplo dos mais
positivos para a humanidade, também não fui dos mais dignos
de censura ou desaprovação (muito severa). Condenação
jurídica e encarceramento, ao menos, jamais. Entretanto, por
menos sentido que houvesse em tudo isso, era a minha
liberdade que se acabrunhava inconformada do lado de fora das
grades.
Um dos brasiguaios emitiu um sonoro peido, o outro
manejava ruidosamente o canivete no incessante ritual de picar
seu nó de fumo, um alarido de vozes vindo de outras celas
passeava pelo corredor. Meio deitado no catre e encostado à
parede, eu balbuciava, bem sabia, monossílabos sem sentido
enquanto em minha cabeça se agitava um turbilhão de idéias e
imagens disformes que se misturavam entre si e compunham
estranhas cenas onde eu me via trajando pardo, dedos em riste
me apontando num tribunal, rostos enojados de desprezo,
minha mãe que chorava, sonhos fulgurantes enterrados a sete
palmos de toda e qualquer esperança de realização, uma luz que
se distanciava até virar um pontinho minúsculo e sumia por fim
me trancando em trevas imperscrutáveis...
Uma voz familiar me trouxe de volta à terra firme. Levanteime de um pulo e aferrei minhas mãos às grades.
Eu estava salvo!
127
Pelo corredor, vinha Marcelo com um policial e o delegado.
Mas não tinham pressa. Não captei em nenhum de seus
movimentos qualquer sinal que denotasse urgência. Pelo
contrário: apalpavam-se ombros, uns dos outros, riam
expansivos e palestravam animadamente sobre pertinências do
trabalho que os três tinham em comum.
Até que se lembraram de mim.
-Confundido com um foragido da justiça! Que embrulhada,
hein, rapaz? Só você mesmo para se meter nessas coisas. Marcelo dizia quase a se sufocar de tanto rir.
Não iriam me tirar dali? Travei entre os dentes um “por
favor”...
-Em mais de trinta anos de profissão, nunca vi algo tão
hilário - o Delegado se sentia deliciado, levava as mãos ao
estômago e dobrava o tronco numa convulsão histérica de
gargalhadas. - Abra a cela, Moura! Quem disse pra ti que ser
sósia de um traficante homicida dá cadeia? - berrou, fanfarrão,
ao policial. Esse também cheio de dentes na cara.
Ria Marcelo, ria o delegado, o soldado. Os brasiguaios às
minhas costas chegavam a esmurrar as paredes no frenesi de
seu divertimento. Eu não ria. De boca ensangüentada,
escoriações por todo o corpo, roupas em farrapos, sentia-me de
uma pobre coitadice sem tamanho. Da cela em que foi
trancafiado um alegre e jovial rapaz saiu um ser
institucionalmente traumatizado que agora ganhava tapinhas
nas costas, ditos espirituosos e gracejos sem conta.
128
-Se apavorou à-toa, filho. – dizia o delegado à guisa de
consolo, e me apontava para o deleite dos demais - Olha esse
garoto! Treme feito filhote de anu.
A comitiva risonha e eu íamos deixando a galeria de celas. O
soldado, que se empoleirava em meus ombros, se desmanchava
em lágrimas extasiadas de júbilo cômico. Ao passar pelo saguão
da delegacia, novas risadas, dessa vez do resto do batalhão
policial. Naquele arrebatamento coletivo de alegria, imaginei
que tirariam fotos comigo, todos eles.
Desci mancando a escadinha na fachada daquele covil de
hienas. Tinha uma perna inchada e sentia fraturadas algumas
costelas. O delegado em pessoa, muito gentil e prestativo, me
auxiliou a transpor os poucos degraus. Na Pampa, Maurício
ainda dormia de cara colada ao vidro da porta. Joguei o seu
corpo mole para um lado e ajeitei o meu, dolorido e machucado,
sobre o assento. Às portas da delegacia, todo o efetivo policial
acenava em despedida aos seus novos amigos paulistas. Marcelo
me ofereceu um cigarro e passou a me explicar, intercalando
frases a risinhos, como foi que nos desencontramos no posto de
gasolina, o que lhes contou os nativos do boteco me
descobrindo, então, preso no distrito policial da cidade. No rádio
tocava “Paloma” e os acordes obscenamente melancólicos dessa
música paraguaia soavam ainda mais tristes.
-Por um momento fiquei preocupado contigo. – Marcelo
enxugou do canto dos olhos suas últimas lágrimas e girou a
chave na ignição. Partimos dali.
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130
Destino
Denis Clebson da Cruz
- Finalmente – disse Neitran quebrando ossos humanos sob
seus pés – O Machado de Shin irá salvar minha vida.
O bárbaro caminhou pelo vale e alcançou a arma recostada
na rocha.
- Dez anos de busca e agora posso mudar meu destino.
Fechou os dois punhos no cabo do machado de guerra e
impôs sua força para puxá-lo.
Uma década havia se passado de sua iniciação à idade
adulta. Naquele distante dia, o jovem Neitran, príncipe bárbaro
da Aldeia de Gri, entrou na tenda de Jargiel, pronto para o rito
de passagem.
Jargiel era o mestre Shaitan da tribo, uma classe de
feiticeiros responsáveis pelos ritos espirituais do povo bárbaro.
Fumaça verde inundava o ambiente com um cheiro acre,
tomando todos os sentidos de Neitran.
- Preparado? – perguntou o feiticeiro aproximando-se do
iniciante que, sentado em um círculo cavado na terra, assentiu
com a cabeça.
Colocou a mão de unhas encardidas na fronte de Neitran e
soprou um pó escuro em suas narinas. O bárbaro se contorceu e
seu corpo começou a sofrer espasmos. Parou e abriu os olhos
com a íris totalmente acinzentada.
131
Entrou em transe e o destino se descortinou diante dele.
Viu-se um pouco mais velho, gritando enquanto um monstro
rasgava-lhe ventre. Pôde sentir as garras da imensa criatura
albina abrindo-lhe uma ferida mortal. Acordou suado, segurando
o próprio ventre.
- Uma visão de morte – disse Jargiel.
- Não – meneou a cabeça. – Eu não posso morrer assim. Sou
um príncipe bárbaro.
- É seu destino. Você é prisioneiro dele.
- Não pode ser – Neitran levantou-se furioso e segurou o
shaitan pelo pescoço. – Faça alguma coisa.
- Não posso fazer nada – respondeu engasgado. – Me solte.
O bárbaro andou de um lado para o outro na tenda
enfumaçada.
- Quero outra visão – gritou Neitran. – AGORA!
Sentou bufando no círculo; ainda podia sentir seus sentidos
aturdidos pela última infusão. Jargiel, mesmo a contragosto, o
atendeu, realizando novamente o rito.
Mais uma vez, Neitran entrou em transe. Viu sangue, mas
não era seu. A lâmina esverdeada de um machado de guerra
cortava o couro do imenso Urroah, tingindo de vermelho seus
pelos brancos. Viu com clareza o símbolo de Shin gravado no
cabo da arma.
Despertou arfando.
132
- O Machado de Shin. Ele pode me salvar do meu destino.
Com ele matarei o Urroah albino.
- Você jamais o encontrará – disse o shaitan. – Há três
séculos que esta arma maldita não é vista. É uma busca em vão;
ela não pode livrá-lo do seu destino. E você conhece a história
do Machado de Shin.
- Sim, conheço. O rei Hakrum encomendou um machado
para Shin, a criatura elemental além da fronteira. Ela exigiu a
alma de mil guerreiros bárbaros para fundir a arma e foi
atendida.
“Hakrum levou mil de seus soldados para além fronteira,
onde, desarmados, foram emboscados e assassinados pelas
criaturas de Shin. Com as mil almas, forjou o machado,
incorporando os espíritos na lâmina esverdeada. Porém, o
machado voltou-se contra o rei. As mil almas do machado
possuíram Hakrum e o levaram ao suicídio.”
“Alguns shaitans perceberam que o Machado de Shin estava
amaldiçoado e o esconderam.”
- Não só um Urroah albino é um mau agouro, mas a arma
que você deseja pode ser uma maldição ainda maior.
- Não sou prisioneiro do meu destino. Vou mudá-lo com o
Machado de Shin.
Saiu da tenda com uma missão que iria tomar dez anos de
sua vida adulta. Uma década de guerra e de destruição em busca
do objeto que salvaria sua vida.
133
Expandiu os limites da tribo de Gri, sempre buscando e
interrogando shaitans e descendentes do Rei Hakrum. Chacinas
e torturas tornaram-no o príncipe bárbaro mais temido de todas
as tribos do país.
Depois de quase uma década seguindo pistas, muito delas
falsas, localizou um shaitan recluso no Abismo do Corvo; Franor,
era o guardião do segredo que buscava e, a princípio, não
pretendia revelar a localização do machado.
Porém, Neitran sabia ser persuasivo. Arrancou-lhe três
dedos e as duas orelhas. Cavou-lhe buracos na carne e cobriu-os
com óleo fervente; cozinhou-lhe uma das mãos e ameaçou assar
um de seus pés; Franor desmaiava e, tão logo recobrava a
consciência, o príncipe bárbaro reiniciava as torturas.
Depois de três dias de mutilações, implorando por uma
morte rápida, Franor traiu toda a tradição de sua Ordem e
revelou onde estava o Machado de Shin: além da manancial do
principal rio do país, havia uma passagem por entre as rochas.
Depois dela, um vale onde se achava a chave para a libertação
de Neitran.
Finalmente Franor teve seu desejo realizado. Foi morto com
um único golpe.
Sozinho, o bárbaro continuou a jornada. Não queria correr o
risco de ser roubado quando estava tão perto de se ver liberto
de seu destino.
Alcançou a nascente do rio, localizou as rochas e atravessou
a passagem. Ali estava Neitran. Ossos humanos e de animais
forravam o chão e estalavam por baixo de seus pés.
134
Quantos já estiveram ali antes dele? Quantos buscaram
alcançar o Machado de Shin e morreram no vale? Nada disto
importava. Tinha plena convicção de que não morreria no vale;
sabia que seu destino era possuir aquela arma e com ela
derrotar o urroah albino, livrando-se do seu destino.
Empunhou o imenso machado; sua lâmina irradiando luz
esverdeada. Estremeceu com seu poder, sentiu-se invadido por
muitas almas. Os ossos pareciam separar de sua carne e a pele
ardia como fogo. Sentia que nada poderia detê-lo.
Um som trepidou os ossos no chão. O urro ensurdecedor
ecoou pelo vale e Neitran viu-se diante de seu destino. Mais à
frente, um Urroah albino atravessava a passagem rochosa. Três
vezes maior que um bárbaro, sustentado pelas patas traseiras,
transformava em pó os ossos em que pisava.
Urrou novamente, revelando mandíbulas com fileiras de
dentes afiados e caninos capazes de perfurar um homem de um
lado ao outro.
Neitran não esperava que seu encontro com a morte fosse
tão logo encontrasse a arma. Aliás, não esperava desafiá-la
justamente por ter partido em busca do Machado de Shin.
Assim como em seu transe no rito da passagem, lutou com o
Urroah albino. Desviou das garras afiadas da criatura que
parecia um urso gigante. Sentindo o poder da arma, atacou.
Feriu a espessa carne do animal tirando-lhe não apenas sangue,
mas uma ira ainda maior.
O urroah avançou e atingiu o ventre do bárbaro, rasgandolhe a vida. A mente de Neitran fundiu-se com o transe de dez
anos atrás. Viu-se diante do seu destino, um prisioneiro que
135
pensava estar fugindo, mas, na verdade, caminhava em busca
dele.
Quando sua alma se desprendia do corpo, lembrou-se das
palavras de Jargiel: “É seu destino. Você é prisioneiro dele.”
136
No tempo das maçãs
Danilo Reis
Inverno 2007
Os dedos esguios seguravam um papel sujo e comido pelo
tempo. O menino que por ali estava, brincando com suas
fantasias de criança, observava-o com a curiosidade que os mais
velhos costumam despertar naqueles que ainda estão
começando a viver.
O homem tomou mais um gole da sua xícara de café,
degustando com sabedoria cada gota sorvida. A doçura do
açúcar e as linhas no papel remeteram-lhe ao passado. Um
passado tão distante quanto as nuvens daquele imenso céu azul
que os observava pela janela.
Divagou por deliciosos minutos em um mundo que não mais
existia. Encontrou rostos que desapareciam no ar, saboreou
momentos sublimes, sofreu por amores que um dia julgou
eternos. Na volta, chamou o menino para perto de si. Iria contarlhe uma história.
Durante a sua longa viagem, não desviara um instante os
olhos do papel amarelecido. Aquelas palavras, escritas por um
velho que encontrara na rua, há muitos anos, marcaram sua vida
profundamente.
137
Primavera 1953
O mundo parecia ser feito de brincadeiras e maçãs já
descascadas, cortadas cuidadosamente pelas mãos dedicadas de
minha mãe. Maçãs, nunca mais elas teriam o mesmo gosto.
Mesmo cortadas daquela maneira peculiar, pelas mesmas mãos,
com o mesmo carinho de outrora. Não. As maçãs perdem o
sabor com o correr dos anos.
Nós também. Só somos plenos, verdadeiramente plenos,
quando criança. Correndo nos campos e descobrindo as
borboletas, que teimam em fugir da gente em direção a algum
lugar encantado.
Tudo o que acontece depois da nossa infância não passa de
repetição.
Tinha eu 11 anos na primavera de 1953, estação que
entraria para a história do nosso país devido à beleza das suas
flores. Belas e doces flores, que apareciam feito milagre nos
mais tristes pátios da cidade, e enfeitavam os amores dos mais
distintos casais.
Como morasse perto do colégio, seguia a pé, todos os dias,
entre as vielas e quelhas, acompanhado pela empregada da
nossa casa. As ruas que cruzávamos tornaram-se palco de
muitas descobertas. Lembro-me bem do barulho que meus
sapatos faziam ao tocar as pedras, um som abafado e oco.
Fermina, a empregada, dava-me tapinhas de leve sempre que
apressava ou atrasava meus passos, de propósito.
138
Foi ali, na poeira da rua, que conheci muitos personagens do
meu carnaval infantil. A vendedora de trufas, meu primeiro
amor; o jornaleiro, sempre sisudo e balofo; o negrinho, que nos
seguia e foi um dos meus melhores amigos até sua morte
prematura, aos 13 anos; as senhoras que conversavam nas
calçadas, inteirando-se das últimas novidades do bairro; os cães
e gatos que levei para casa, sob o olhar cúmplice de Fermina.
A própria vida andava por aquelas ruas de pedra, sob a
forma de um triste senhor, com sua guitarra espanhola em
punho. Sentava-se em frente à pequena lojinha de frutas, do
lado oposto ao meu caminho matinal. Colocava a velha guitarra
em seu colo, como um filho recém-nascido necessitando de
todos os cuidados imagináveis. Tocava de leve em cada uma das
cordas para verificar a afinação do instrumento, e só então
começava a entoar suas canções. Algumas muito populares na
época. Os dedos eram longos e magros, de uma cor pálida. O
velho tinha aquele ar dos que amaram com uma intensidade
absurda e envelheceram depressa demais.
Um dia, naquela primavera, Fermina adoecera e eu fui
sozinho para o colégio. Senti-me senhor dos meus passos,
porém, a aula não me pareceu mais interessante que de
costume. Na volta, o velho estava sentado perto das maçãs,
como sempre, acompanhado das mais tristes melodias da
estação. Era uma cena tocante, inesquecível. As notas que saíam
do instrumento pareciam os últimos suspiros de um homem
maltratado intensamente. Sangrava canções.
Fui para o outro lado da rua, onde não costumava passar,
para observá-lo mais de perto. O velho guitarrista pareceu notar
essa mudança e me olhou com ternura. Talvez me considerasse
um grande amigo, como só as crianças sabem ser. À moeda que
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lhe entreguei, ele respondeu com um sorriso e uma melodia.
Esta, mais bonita que a outra.
Nesse exato momento, uma viatura policial apareceu na
esquina. O velho manteve-se firme, apesar de entrever o seu
destino. A viatura parou em frente à loja de frutas e dois
homens desceram. Um deles segurou o velho com a sua
guitarra, e a música calou-se. Enquanto isso, o outro explicava
aos curiosos que aquele senhor, há muito tempo, havia matado
dois homens e que fugira em seguida, para não ser preso. Desde
então, levava essa vida de vagabundo. Um parente de uma das
vítimas o tinha reconhecido, apesar das rugas, tocando violão
naquele lugar e o denunciou às autoridades.
Com a bagunça, ninguém percebeu o papel que caíra no
chão, perto de onde o velho havia sentado durante tantas
canções. Peguei-o disfarçadamente, e fui para casa sem
entender direito o que havia acontecido. Ao ler aquelas linhas,
senti uma estranha sensação. Entretanto, esqueci-me e fui
brincar com os amigos que haviam voltado da escola.
Hoje, ao relembrar aquele dia, tenho a sensação de que o
velho guitarrista sou eu mesmo.
Inverno 2007
Quando terminou a história, o menino dormia o mais
inocente dos sonos. Sonhava, com certeza. O velho leu em meia
voz, mais uma vez, o que estava escrito naquele papel, guardado
por todos esses anos:
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O tempo nos rouba o verão. Cedo, não somos mais que
árvores sem folhas, indiferentes aos encantos dos que outrora,
vinham cortejar nossos frutos.
Viver é outra coisa.
141
142
Das armas e das artes
Henry Alfred Bugalho
O violeiro será o primeiro a morrer amanhã. Talvez, por isto,
concederam-lhe o último prazer de manter sua viola.
Creio que aos próprios carcereiros aprazem o dedilhar e a
cantoria do velho. Mas, desta vez, suas canções são tristes.
Nossas histórias se entrelaçam, datam de longínquos anos,
duma época tão calma e ultrapassada que a memória dela quase
se ofusca e se mistura com outras recordações minhas e
histórias fantasiosas que ouvi pelo mundo afora.
Eu era criança quando o violeiro cego surgiu na minha vila,
quase um mendicante. Comia o que lhe davam, dormia onde o
abrigavam, caso carecesse de ambos, arranjava uma cabana sob
o feno das alimárias e dividia a ração dos porcos. Isto apenas no
começo, quando não o conhecíamos, pois, aos poucos, a voz
rouca e os dedos hábeis nos cativaram. Na praça, chapéu no
chão, viola na mão e na boca uma canção, o violeiro cantava os
cantos da nossa raça, narrava os épicos do nosso povo. E não era
apenas mais mendigo; era uma honra recebê-lo em casa e ouvir
sua sabedoria em música; o suserano queria tê-lo à mesa,
custeando-lhe luxo e banquetes.
Impressionava-me que um cego pudesse cantar tantas coisas
que não havia visto, falar daquilo que não sabia. Meu pai
reputou-lhe como um mentiroso:
— Não creias nestas baboseiras. O violeiro é apenas um
bufão.
143
Mas o violeiro me encantava, e comumente eu negligenciava
minhas tarefas domésticas para ficar ao pé do músico,
apreciando suas histórias.
Uma em especial eu aprendi de cor, e apanhei muito por
causa dela quando meu pai me flagrava recitando-a, um graveto
a tiracolo simulando uma viola.
Se não me falha a memória, o primeiro verso era mais ou
menos assim:
Alatiel trazia no peito as efígies
Do leão, da águia e do touro sem doma.
Na lâmina da espada a fama assoma:
“Aço, da Morte inglória me proteges.”
No entanto, para incompreensão de todos os vilões, o
músico cego foi expulso pelo suserano, fato que apenas serviu
para corroborar as afirmações de meu pai, de que o violeiro não
passava dum patife.
Isto não diminuiu meu fascínio por aquela figura, tanto que
tomei a resolução de seguir, se possível, uma das duas carreiras
no futuro: cavaleiro, e cruzar o mundo como Alatiel, matando
dragões e assediando bastiões; ou violeiro, vagamundeando a
contar histórias.
144
Papai jamais permitiria que me tornasse músico, por isto, no
intuito de me libertar de tais estapafúrdias elucubrações, ele me
enviou para ser treinado por um aristocrata. Como pajem,
alimentei as montarias do cavaleiro, carregava suas armas, polia
sua armadura, acompanhando-o em torneios.
E foi num destes eventos que me encontrei, pela segunda
vez, com o violeiro. Disputando a atenção, entre muitos outros
artistas, saltimbancos, flautistas e trovadores, poucos se
compadeciam do violeiro cego. Apenas eu lhe prestava alguma
reverência.
Uma atroz guerra assolou, então, nossos territórios. Meu
senhor, conclamado pelo suserano, se pôs a seu serviço e fomos
nós, unidos a outros nobres e campesinos, para o campo de
batalha. Atrás das defesas, eu e demais rapazolas nos
apressávamos para munir os arqueiros de frechas e os cavaleiros
de armas.
Vencemos as batalhas, mas oprimidos por devastadoras
baixas.
Ao retornar a meu vilarejo, desgraça. Toda a vila havia sido
devastada pela carnificina, meus pais mortos, meus irmãos se
dispersaram pelo mundo. Sem rumo, fugi para outras vilas e
burgos. Roubei, enganei, mendiguei, tudo para não morrer de
fome. Só não matei porque não tive oportunidade nem
necessidade, mas tudo de baixo e vil realizei durante esta minha
queda na vida.
Numa destas peregrinações, avistei o violeiro num mercado,
cantando por miúdas moedas. Aproximei-me dele e me
apresentei, relatando-o a alegria de ver um rosto conhecido
145
após tanta desdita. O violeiro dividiu comigo um pão endurecido
e me levou até o celeiro onde lhe permitiram dormir.
Despedi-me com tristeza do músico e retornei à estrada.
Pouco tempo depois, uni-me a um grupo de mercenários.
Aprendi o manejo da espada, da lança e do arco. Ensinaram-me
a montar e a me defender com escudo.
Quando não assaltávamos mercadores nas estradas,
lutávamos guerras alheias por preço justo. Se víamos que
estávamos em desvantagem, abandonávamos o campo de
guerra. Porém, se percebêssemos que tínhamos a vantagem,
permanecíamos até o desfecho, para partilharmos dos despojos.
Não lutávamos por honra, glória, ou até a morte, fazíamo-lo por
dinheiro, e dinheiro obtivemos.
Na época devida, comprei um título nobiliário e uma quinta.
Já não era mais um rapaz, desposei uma virgem e aguardava
meu primogênito, quando uma nova guerra se instaurou.
Cansado de tamanha carnificina, abstive-me de integrá-la,
apesar de sucessivas e insistentes convocações do suserano.
Mas um viajante me trouxe a alarmante notícia de que os
exércitos inimigos estavam a poucos dias da minha propriedade.
Temendo que os meus caros tivessem o mesmo fim de meus
pais e irmãos, reuni meus servos, minhas alimárias e
equipamento de guerra, e engrossei o exército do meu senhor.
As batalhas foram encarniçadas e, no decorrer de algumas
semanas, recuamos inúmeras vezes, buscando abrigo em
bastiões, que caíram diante do exército adversário.
146
Por fim, abrigamo-nos num burgo e fomos assediados por
meses. Os que não morriam nas batalhas, pereciam de fome e
peste. Nossos comandantes tombaram em combate e, para
minha surpresa, designaram-me como o capitão dos nossos
soldados.
Eu não era nenhum principiante nas artes da guerra, assim,
conquistamos algumas fugazes vitórias, mas nada que dirimisse
nossa derrota. Tudo estava perdido; para nós, restavam apenas
a vergonha e a cova.
No entanto, certa noite, alguém pediu admissão ao castelo.
Conduziram o viajante até a tenda do suserano. Da minha
barraca, pude avistar o velho violeiro cego. Meus pensamentos
foram dominados por questionamentos.
O que ele fazia ali? O violeiro e o suserano não haviam
cortado relações, muitos anos atrás? Que tipo de importância
ele poderia ter para nossa guerra?
Mas não obtive tais respostas.
Na manhã seguinte, descobrimos que o suserano havia nos
abandonado; fugido como um covarde.
O desespero se instalou entre os nossos. Se o próprio
interessado nesta guerra havia evacuado, era porque não havia
realmente salvação. O moral estava baixo, mas, mesmo assim,
ainda agüentamos o assédio às muralhas por mais um dia.
Reuni um grupo de valorosos combatentes e preparamos um
plano de fuga. À noite, desertaríamos a cidade, levando conosco
todos que pudéssemos. Mandei trazer até mim o violeiro,
indagando-o qual a mensagem que portava:
147
— Não há mensagem. Sou apenas um cantador, meu
capitão, vou de vila em vila a trovar.
Só que ele mentia, e isto me doía mais, pois ele dividiu
comigo seu pão, mas não dividia algo que poderia nos salvar a
vida.
Tentamos realizar nosso projeto, mas fomos interceptados
por tropas inimigas. Uma horrível batalha ocorreu na escuridão
da noite. Às cegas, amigos cravavam suas espadas em amigos,
flechas flamejantes atingiam a todos indiscriminadamente.
Levei um golpe na cabeça e tombei inconsciente.
Eu ouvia música. Desorientado, indaguei:
— Estou morto? Esta é a música dos anjos?
Uma gostosa risada ecoou pelo recinto. Abri os olhos e me
encontrava numa cela, cercado por grades de ferro. Na cela ao
lado, estava o violeiro, rindo, viola a melodiar.
— Ainda não morreste, capitão, mas, amanhã, nós dois
seremos decapitados.
Aquela sentença de morte, vinda de maneira tão abrupta e
natural, trouxe-me à mente minha esposa e o bebê que crescia
no ventre dela. Tentei chorar, mas os calos no coração não
deixaram.
— Que mensagem trazias ao suserano? — repeti a pergunta,
agora que não havia por que ocultá-la.
Mas o violeiro respondeu com evasivas.
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— Condenaram-me à morte alegando ser eu um espião, que
trazia informações dos reinos inimigos ao nosso senhor, e que
indiquei o modo como ele poderia fugir ao cerco.
Tal resposta meu bastou, e tudo ficou claro como o dia. As
canções do violeiro eram mensagens cifradas, revelando mais do
que pareciam.
— E como podes cantar sobre coisas que não viste? —
surgiu-me esta questão que, desde o primeiro encontro, estava
cravada em mim.
— Nem sempre fui cego, capitão, já vi e estive em muitas
batalhas. Foi numa delas que me tiraram a visão e, sem ofício,
encontrei amparo nesta viola.
Levantei-me e enfiei a cabeça na pequena janela quadrada.
Lá embaixo, o patíbulo para nossa execução estava sendo
preparado.
— Fico feliz que, dentre todos que já conheci nesta vida —
eu disse —, seja ao teu lado que eu tenha de deixá-la. Tu foste,
um dia, o que eu sou; e, ao mesmo tempo, és o que eu poderia
me tornar. Somos da mesma têmpera; somos do mesmo
mundo.
O cego libertou outra gargalhada.
— E tem certeza, capitão, de que, um dia, um outro
contador de história se lembrará de nós, e ambos ainda
estaremos vivos, rindo juntos nesta mesma cela. Será mentira,
mas será bem contada.
149
150
Tema 6 – O beijo
151
152
O beijo
Denis Clebson da Cruz
Interessante como algumas coisas são tão importantes em
nossa vida. Aqui, escondido na penumbra desta noite, sinto a
tensão do meu desejo.
Estranho reconhecer que minha vida sempre girou em torno
de algo aparentemente simples: o beijo.
Quanto tempo faz? Não sei. Minha memória fez questão de
expulsar várias coisas por quais passei. Mas desta história me
lembro de cada momento.
Allice. Este era seu nome.
- Tom – disse ela naquele passado tão distante. – Meus pais
estão muito doentes.
Os cabelos loiros cobriam-lhe o rosto bonito que não ousava
erguer-se para mim.
- Mas...
- Por favor, me perdoe – continuou ela. – Eu sei que prometi
um beijo. Mas não posso; não agora.
Não me conformei, mas acredito que meu rosto mostrava
compreensão. Aquele encontro às escondidas era o momento
perfeito para selar a corte que há muito eu vinha fazendo à
Allice. Porém, nada saiu como meu coração desejava.
153
- Você sabe que sou prometida, Tom – finalmente levantou o
semblante. Seus olhos azuis mostravam certa súplica – Não
posso contrariar meus pais neste momento difícil. Dê-me mais
um tempo.
Ela estava certa. Eu era um mero órfão, aprendiz de ferreiro.
Não tinha nada para oferecer. Se quiséssemos ficar juntos,
teríamos que fugir.
Allice tirou do pescoço uma corrente dourada. Entregou-me
com um pingente na forma de um coração.
- Há coisas mais importantes que um simples beijo.
Deu um breve sorriso. Seus lábios vermelhos, tão desejados,
afinaram de uma forma que a deixou ainda mais linda. Virou-se
ao ouvir o trote distante de um cavalo e saiu do nosso reduto.
Foi-se o meu beijo, ficou em meu coração o ardente desejo.
Por alguns meses, nos comunicamos por pequenos bilhetes.
Os pais de Allice não retrocediam na doença e Joe, seu irmão,
era nosso pombo-correio. Garoto incrível, sempre alegre; fazia
votos para que nosso relacionamento desse certo. O conquistei
tempos antes, dando-lhe uma pequena adaga que fiz na forja de
meu senhor, usando sobras de metal. A partir daquele dia, Joe
foi um fiel escudeiro.
Por mais que o tempo tenha passado, não consigo me livrar
das imagens da pior das minhas noites; a escuridão engoliu
meus sonhos e levou consigo meu beijo.
Lembro-me bem. Acordei com um som fraco arranhando a
janela da ferraria. Vivíamos num povoado pacato, não havia
154
razões para medo. Abri e me deparei com Joe; suas roupas
encharcadas de sangue.
Puxei-o para dentro enquanto olhava para a imensidão
escura.
- Ele vai levar Allice – disse fracamente. Parecia haver sangue
até mesmo dentro das órbitas de seus olhos. – Ele vai matar a
todos.
Pude assistir a vida fugindo do corpo de Joe. Eu não sabia do
que se tratava, mas se Allice fosse morrer, eu morreria com ela.
Peguei um florete e me apropriei do cavalo do meu senhor.
A escuridão me abraçava enquanto meu coração apontava a
direção.
As sombras debruçavam pesadas em toda a pequena
propriedade da minha amada. Parecia haver movimento apenas
no silo. Cavalguei e forcei o cavalo a arrombar as portas com as
patas dianteiras.
Queria que o tempo curasse as feridas da mente. Mas não
cura. Rasgados no chão do silo, estavam os corpos dos pais e de
dois irmãos mais velhos de Allice. Ela estava pouco mais ao
fundo; ajoelhada e de vestes brancas, manchadas com o próprio
sangue, olhava para mim e para o nada.
Atrás dela um homem lhe segurava pelos cabelos. Sorriu
desdenhoso enquanto eu descia do cavalo com o florete
empunhado firmemente.
“Ainda posso salvá-la”, lembro-me de ter pensado.
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- Tom? – disse o homem sorrindo ainda mais. – Ela me
contou sobre você. O garoto que quer um beijo – gargalhou.
- Solte-a! – tentei gritar, mas só consegui que a frase saísse
gaguejante.
- Ah, o amor, o beijo; o beijo, o amor – soltou Allice e veio
em minha direção.
Meu corpo parecia ter petrificado. Não conseguia tirar meus
olhos daquela figura hipnotizante que se fundia as robustas
sombras do ambiente.
- Isto é tão lindo. Um rapazote apaixonado que vem para
salvar sua amada – seu rosto estava frente ao meu; seus olhos
pareciam ordenar que eu não me mexesse. – Ela vai morrer,
Tom. Vai morrer agora e levará com ela o que você mais deseja:
o beijo.
E assim foi. Aquele maldito virou-se e rasgou com as mãos a
garganta de Allice. A vi arfar o próprio sangue e se debruçar
sobre a poça vermelha.
A cena me tirou do transe e avancei. Cravei a espada nas
costas do assassino. Vingança. Pelo menos isto eu teria.
Ele virou-se sorridente; o florete atravessando seu ventre.
Finalmente percebi o que estava diante de mim. Aquela criatura
gargalhou enquanto tirava a espada do corpo e pude ver suas
imensas presas.
Ergueu-me do chão, grudando em meu pescoço.
156
- Patético. Mas vou te presentear com algo pior que a morte.
Viva, garoto, para sempre, sentindo a perda da sua querida
Allice.
Grudou as presas em minha garganta e pude sentir as veias
ferverem. Parecia que fogo circulava pelo meu corpo e que
minha alma estava sendo sugada para dentro da boca daquele
monstro.
Quando minha vida se foi, me senti invadido por sombras.
Meus olhos se abriram. Eu sugava o punho do assassino de Allice
enquanto ele sorria. O gosto ferroso saciava uma fome sem
limites.
- Chega! – disse ele puxando o braço. – Bem vindo às trevas.
Deixou-me ali, entre os cadáveres, e embrenhou-se na noite.
A fome ainda era intensa e sorvi o que restou do sangue de
Allice e de seus familiares.
Fui transformado numa besta assassina. Escondia-me
durante o dia, caçava durante a noite. Por onde eu passava,
deixava uma trilha de corpos e procurava aquele que me
amaldiçoou. Jamais irei esquecer seu rosto. Por muito tempo, a
única coisa que me fazia lembrar que eu era humano, era o
coração dourado com que Allice me presenteou.
Finalmente encontrei um igual a mim, Dimitre. Ensinou a me
alimentar sem matar e a descobrir muitos dos meus dons das
trevas. Contou-me que, provavelmente, a doença dos pais de
Allice era causada pela criatura que, depois de muito brincar,
matou a todos.
157
Dimitre foi um grande mestre, porém não colaborou em
nada na minha busca por vingança. Dizia que isto não devia ser a
motivação nem para a mais vil das criaturas. Mas ainda hei de
encontrar aquele monstro e cobrar a dívida de morte que tem
comigo.
Interessante como algumas coisas são tão importantes em
nossa vida. Depois de quase de dois séculos daquela maldita
noite, estou aqui novamente escondido na penumbra,
esperando ansiosamente por aquilo que nutre minha vida.
Uma mulher vem em minha direção.
Lembro-me de ter sorrido quando Dimitre me contou alguns
termos usados por nós, os vampiros. O que mais me chamou
atenção foi quando ele explicou como chamamos o ato de
mordermos uma pessoa para nos alimentar.
Ela está próxima. Já está sob meu domínio.
- Não resista – digo saindo das sombras. – É apenas o Beijo.
O Beijo de um vampiro.
158
O corruptor
Henry Alfred Bugalho
Eu escovava os dentes quando minha mulher escancarou a
porta do banheiro, puxou-me pelo braço e me estapeou a cara
com um jornal enrolado.
— Que isto, ‘tá louca? — encolhido, eu me defendia das
investidas.
— Seu canalha, desgraçado! — e, desenrolando o periódico,
esfregou-o na minha testa — estou indo para a casa da minha
mãe.
Trêmulo, perplexo, apanhei o jornal e li a manchete da
primeira página.
Professor depravado abusa de aluna.
E havia uma foto, não muito definida, onde eu aparecia
beijando uma menina. Eu poderia correr atrás de Júlia e
resmungar a afirmação mais utilizada por quem foi pego no
flagra: “Não é nada disto que você está pensando!”
Poderia, mas não fiz. A surpresa de ver-me tornado
celebridade de maneira tão inusitada privou-me de qualquer
reação. Sentei-me no piso do banheiro, chorando e rindo de
raiva.
159
As coisas não eram tão simples de serem explicadas.
Cagadas nunca possuem lógica, sempre ocorrem numa sucessão
sem explanação racional, e foi deste modo que me enredei
nisto.
Eu lecionava na rede pública, recebendo aquele salário de
miséria notório para todos nós, estava frustrado, necessitando
dar um passo além. Ganhava menos da metade do ordenado de
Júlia e, apesar de nunca ter sido adepto daqueles velhos
preconceitos machistas, este fato me diminuía diante dela,
mesmo que este apoucamento nunca fosse verbalizado.
Recebi com egoísta alegria a notícia da demissão de Júlia.
Estávamos fodidos, privados da maior parte da nossa renda,
minha esposa deprimida, contas atrasadas, a filha tendo de ser
transferida dum ótimo colégio particular para um colégio
estadual, mas fui assolado por uma satisfação incomum, enfim,
eu estava por cima da carne-seca em minha própria casa.
Também vislumbrei a oportunidade de, a longo prazo,
contornarmos a situação e termos, tanto Júlia quanto eu, uma
vida muito melhor.
Um e-mail dum amigo me convenceu a tentar a vida noutra
cidade. Há três anos, ele ensinava num colégio interiorano e
dizia-me estar satisfeito, bom salário e vida pacata. Contava-me
também ter aberto uma vaga para professor da minha área e
que, se eu desejasse, ele poderia entregar meu currículo nas
mãos do diretor.
Conversei com Júlia e nos entusiasmamos com a idéia.
Rafaela, minha filha, desaprovou a mudança, temia perder
contato com as amigas, mas quando expusemo-la nossa real
160
situação, ela compreendeu que era isto ou a bola de neve das
dívidas que se acumulariam.
Mudam-nos em janeiro e, dois meses depois, assumi meu
cargo na escola. As condições eram diametralmente opostas às
quais eu estava acostumado na rede pública. Por ser a única
instituição de ensino privado da cidade, a maioria dos alunos
pertencia ao mais alto estrato social daquele fim-de-mundo. A
infra-estrutura surpreendia, contudo, a arrogância da molecada
também não ficava muito atrás. Mas ao pesar prós e contras, na
minha concepção, ainda valia a pena termos nos arriscado.
Adianto que não sou nenhum homem bonito — passei dos
trinta e cinco, mechas grisalhas nas têmporas e um pneuzinho
incômodo —, mas também não sou de se jogar fora. Tive dias
melhores, mas anos de casamento, um emprego estressante e
uma filha adolescente põem qualquer um pra baixo. Digo isto
porque bem sei do fetiche, se é que posso definir assim,
existente em relação a professores. Talvez seja parte da posição
de autoridade e saber, duma figura sapiencial, provedor de
conhecimento, em oposição à burrice do mundo cotidiano.
Assim, atire a primeira pedra quem nunca foi apaixonada por
um professor!
E comigo não era exceção: mesmo na rede pública, eu
estava habituado a receber bilhetinhos, comentários jocosos das
menininhas, coraçõezinhos no canto do quadro-negro ao chegar
em sala-de-aula. Nunca, mas nunca mesmo, levei a sério tais
investidas. Ética profissional acima de tudo, mesmo que algumas
das alunas possuíssem atributos suficientes para porem à prova
esta ética.
161
Não me lembro exatamente quando passei a reparar em
Talita. Ela era aluna do terceiro ano, Ensino Médio, não se
destacava pela inteligência, mas também não compunha o
grupo dos bagunceiros. Meu único problema com ela era a
incapacidade da menina em ficar quieta e, por isto, logo
memorizei seu nome:
— Por favor, Talita, dá para parar de conversar? — e ela me
fitava melindrada, mascando chiclete em desafio.
As provas bimestrais chegaram. Ao aplicar a avaliação na
turma dela, alunos todos concentrados, meus olhos buscavam
qualquer movimento suspeito (não que eu fosse muito rigoroso
com alunos colando) e, acidentalmente, pousaram em Talita.
Ela, cabisbaixa, cabelos loiros ocultando parcialmente seu rosto,
maxilar movimentando-se no mascar do chiclete, caneta BIC
oscilando nos dedos nervosos. Então, avistei a outra mão sobre
a coxa, pele lisinha, e, obscurecida pela saia, na vão das pernas
entreabertas, a calcinha branca.
Contemplei a descoberta por dois ou três segundos, mas
refugiei-me no meu livro de chamada. Porém, as faltas, notas e
nomes de alunos não me detiveram, assim, voltei a buscar as
coxas adolescentes e o tesouro de algodão entre elas. Três
meses de abstinência de sexo possuem este poder de tornar
algo tolo, infantil, no maior dos estimulantes eróticos. Faz-nos
imaginar o que estaria por debaixo da peça íntima, imaginar
carícias, faz o coração bater mais depressa e a respiração se
acelerar. Das pernas, ascendi a vista ao rosto de Talita e
encontrei os olhos azuis dela me encarando, marotos, talvez
lendo meus pensamentos, pois a mão que repousava sobre a
perna começou a brincar com a barra da saia, subindo-a uns
162
poucos centímetros, e ela passou abrir e fechar os joelhos,
revelando e escondendo o que atraía minha atenção.
Fingi indiferença, apanhei um livro e simulei estar absorto na
leitura, mas, vez ou outra, não resistia e meu olhar era atraído
por este jogo de Talita. Às vezes, ela estava concentrada na
prova, sorrisinho safado; noutras, cuidando-me, como se
dissesse: “eu sei de tudo”.
O tempo da prova acabou. Os alunos vieram e empilharam
os papéis sobre minha mesa. Percebi que a prova de Talita
estava quase toda em branco:
— Estava difícil? — perguntei.
— Acho que não — ela respondeu — Mas eu estava
pensando em outras coisas... — e sorriu para mim.
Fiquei sem reação, reduzido ao jovem que um dia eu fora,
sem traquejo para conversar com garotas, nem sabia como me
aproximar delas.
— Hum — resmunguei.
— E você, professor, em que pensava?
— Em nada, Talita — respondi sem graça.
Eu não conseguiria mensurar como aquilo me afetou. À
noite, sonhava com as pernas de Talita; de dia, mal me
concentrava nas minhas atividades. As manhãs que se seguiram
foram angustiantes, ter de entrar na sala da garota e engolir a
vergonha de me achar um tarado. No entanto, a reação da
menina me tranqüilizou, simplesmente me ignorava, o que,
163
apesar de doloroso para as expectativas por mim alimentadas,
era a melhor atitude possível por parte dela.
Estava quase me esquecendo de tudo, mas, no final duma
aula, Talita surgiu na minha sala e me disse:
— Professor, posso conversar com você?
Os alunos já haviam se retirado e, enquanto eu recolhia meu
material, aquiesci:
— Estou com um sério problema, professor, e não sei o que
devo fazer.
Pensei que poderia ser algo relacionado às notas dela, pois o
desempenho dela era de regular para baixo.
— Eu sei como é, Talita, a fase pela qual você está passando
é barra, mas vai passar. Acredite em mim, também fui
adolescente e também não gostava de estudar.
— Não tem nada a ver com estudo, professor — ela molhou
os lábios com a língua. Um péssimo sinal, pensei. Ela se
aproximou, mas recuei um passo.
— Tive medo de vir até aqui... — ela acrescentou,
achegando-se ainda mais. Eu até continuaria recuando, porém
fui prensado entre Talita e minha mesa. Os pequenos seios dela
se encostaram em meu tórax — Tive medo da sua reação.
Eu queria que ela se calasse, quer dizer, estava morrendo de
curiosidade para ouvir o resto, mas tinha certeza de que nada
bom sairia dali.
164
— Acho que estou apaixonada por você, professor — e, ao
terminar esta sentença, os lábios delas quase tocavam o meu.
Ela fechou os olhos e aguardou um beijo meu como resposta.
Esquivei-me lateralmente, apanhei minha pasta e retruquei:
— Isto vai passar! Eu também já me apaixonei por
professores — ri, trêmulo do pé à cabeça, e sumi da sala de aula,
sob o olhar incendiado de Talita, dedo indicador acariciando o
lábio inferior.
Depois disto, minha vida se tornou um inferno (no melhor
sentido da palavra). Onde quer que eu fosse, deparava-me com
Talita; simplesmente, não havia mais lugar seguro para mim. E
eu perdia o fôlego, a voz, o rebolado. Nunca antes uma mulher
me desmontou como ela, e nem mulher de fato ela ainda era,
apenas uma garota, somente um ano mais velha do que minha
filha Rafaela, fato que levantava uma série de questões morais
às quais eu me recusava a confrontar. No intervalo das aulas,
com a imagem de Talita na mente, eu corria ao banheiro para
me masturbar, tentar me livrar daqueles pensamentos que me
consumiam.
E como os bilhetinhos, as piscadelas, as declarações de amor
de Talita não cessaram, resolvi que deveria criar coragem e fazer
aquilo que a natureza, aquele nosso resquício animal nos
impele.
— Encontre-me no estacionamento depois da aula —
sussurrei no ouvido dela.
Os instantes que aguardei no meu carro, tenso,
tamborilando com os dedos no volante, me devastavam.
Nenhum sinal dela. Concluí que Talita era idêntica à maioria das
165
mulheres: elas lançam a isca, mas, na hora da fisgada, puxam o
anzol pra fora d’água, deixando-nos boquiabertos, chupando
dedo. Elas querem se sentir desejadas, e fim de papo.
Mas eu estava enganado, pois, cuidando o seu redor para se
certificar de que ninguém a via, Talita apareceu e pulou para
dentro do meu carro. Ria de emoção.
Mal trocamos palavras no trajeto até chegarmos num local
ermo, a alguns quilômetros da cidade, na beira dum riacho,
onde poderíamos ter alguma privacidade.
Assim que desliguei o motor, Talita saltou do banco do
passageiro e se sentou no meu colo, beijando-me
desesperadamente, deslizando as mãos por meu torso,
desafivelando meu cinto e lutando para me livrar das calças. Eu
respondia na mesma altura, apesar de um pouco atônito com a
agilidade da moça:
— Se esta for sua primeira vez, pode deixar que eu vou com
calma... — comentei, querendo parecer gentil.
— Minha primeira vez? Você só pode estar brincando, né,
professor! — Talita quase gargalhou na minha cara, sem deixar,
no entanto, de prosseguir na tarefa de nos libertar das roupas.
Transamos durante o dia inteiro e, apesar de um pouco
decepcionado, talvez ferido na minha hombridade e na ilusão de
querer ser o primeiro na vida duma mulher, não podia reclamar
da experiência. Após tantos anos acostumado com uma mesma
mulher, um mesmo corpo, que já não tinha a mesma forma de
antes, tomado por estrias por causa da gravidez, flácido, sem a
mesma agilidade e vigor, deparar-me com uma garota no auge
físico, tudo no lugar, pele irretocável, cheiro de frescor, que fazia
166
de tudo em todos os lugares, era rejuvenescedor, fazia-me sentir
mais homem.
Menti para minha esposa, afirmando que, à tarde, eu
realizaria trabalho voluntário no colégio, alfabetizando jovens e
adultos. As esposas são um bicho esperto, farejam de longe uma
mentira, mas acatam-na para preservarem um relacionamento
estável. Nada me tiraria da cabeça que Júlia, desde este primeiro
instante, percebeu a minha mudança, a presença no meu corpo
do odor de outra pessoa e que, ao contrário de antigamente,
quando eu quase suplicava por uma trepadinha no chuveiro ou
antes de dormirmos, agora eu nem me aproximava mais dela,
mesmo quando era dela a iniciativa. As mulheres percebem;
Júlia fingiu ter acreditado em mim, e eu fingi ter acreditado que
ela havia acreditado.
Logo, oficialmente, eu dava uma de bom samaritano,
porém, na realidade, eu gastava as tardes com Talita num motel.
Mas as escapadas para motéis começaram a nos entediar,
passamos a nos encontrar em locais mais arriscados, em público,
transando em banheiros de restaurante e provadores de loja. A
excitação era tamanha que atingimos o ápice ao fazermos sexo
no banheiro do colégio. Quanto mais perigoso, melhor.
Não sei onde estava com a cabeça quando deixei a situação
sair de controle. O modo de conduzirmos nosso relacionamento
apontava para o desfecho que estava por vir. Qualquer boçal
perceberia o tipo de envolvimento existente entre Talita e eu,
mas ninguém tinha coragem para nos desmascarar, até aquela
maldita foto aparecer no jornal.
A sociedade na qual vivemos é regida por normas e leis
hipócritas: tudo é permitido enquanto não for a descoberto.
167
Bastou uma foto para pôr tudo a perder. Primeiro, a cena da
Júlia, quando ela esfregou o jornal nas minhas fuças. Depois,
uma ligação do diretor da escola, manifestando a insólita
declaração:
— Porra, professor, se você quer comer uma aluna, tudo
bem, mas seja discreto, professor. Esta não é a primeira vez que
isto ocorre, mas um escândalo deste não podia cair nas minhas
mãos. Agora quem terá de tomar uma providência para
solucionar este pepino será eu. Você já deve imaginar que serei
obrigado a demiti-lo. Os filhos-da-puta dos pais de alunos vão
comer meu fígado!
Quer dizer, eu recebia uma confirmação de que sexo entre
professores e alunos era costumaz, desde que não caísse na
boca do povo. Talvez, até este diretor já tivesse a sua cota de
menininhas nas costas. Foi neste instante que parei e refleti
sobre o que eu havia feito de errado, e percebi que seria
crucificado por puro falso moralismo. A própria Talita havia me
confidenciado que, antes de mim, ela já havia transado com
cinco rapazes diferentes e com uma moça, ou seja, aos dezesseis
anos ela havia tido mais parceiros do que eu com quase
quarenta; minha avó se casou aos quatorze anos e pariu uma
dúzia de filhos; Charles Chaplin só traçava ninfetas; dizem até
que Maria, a mãe de Jesus, quando se casou com José, contava
com apenas doze anos. Exemplos não me faltariam e eu já tinha
até uma solução para este escândalo: em poucos anos, Talita
seria maior de idade, nós nos casaríamos e tudo se resolveria.
Não posso dizer que eu a amava, mas certamente estava
apaixonado e era dominado por um desejo incontrolável. Não
poderíamos exigir mais do que isto.
168
Mesmo estando proibido de entrar no colégio, aguardei na
saída, à espera de Talita, mas não a vi. Dirigi, então, até a casa
dela, mas jornalistas a cercavam, todos querendo uma nesga da
manchete.
Liguei no celular da menina, mas fui atendido secamente:
— Não posso falar com você, professor. Ainda não viu a
merda que aconteceu?
Entendi a reação dela, afinal de contas, estávamos todos sob
pressão. Júlia saiu de casa, levando consigo Rafaela. Não posso
dizer que isto me abalou, nosso casamento já estava com os dias
contados há anos e, se não fosse este escândalo, seria outra
razão, talvez mais frívola, talvez mais grave.
Após alguns dias, os repórteres debandaram da casa de
Talita e foi aí que encontrei uma oportunidade para conversar
com ela, numa noite em que os pais dela saíram para ir à missa.
Supus que Talita deveria estar de castigo em casa, punida pelos
transtornos causados.
Bati à porta e foi ela quem a abriu. Ao me ver, assustou-se:
— Vai embora, professor. Não posso conversar com você.
No entanto, não obedeci. Entrei e tranquei a porta.
— Serei breve, Talita. Vim pedir para você fugir comigo,
podemos nos casar e apagar tudo de errado que aconteceu.
— Casar com você? — ela riu, mãos na cintura — Não seja
ridículo! Até parece que eu me casaria com um velho!
169
Isto foi uma tremenda duma contradição, ela não se casaria
com um velho, mas transava com um. Expus-lhe este meu
pensamento.
— São duas coisas diferentes, professor. Tudo não passou
duma aposta com minhas amigas.
— Como assim? — fiquei sem rumo.
— Eu contei para minhas colegas que você estava espiando
por debaixo da minha saia. Elas duvidaram. Falei que você
estava louquinho por mim e que me comeria se eu quisesse. Elas
duvidaram. E aí fizemos uma aposta.
— Mas por que ficou comigo tanto tempo? — eu suava,
minhas mãos tremiam e era como se um torno espremesse meu
cérebro.
— Porque era legal. Todas elas ficaram babando quando
descobriram. Não era ruim, professor, mas agora acabou. Já
estou até saindo com outro rapaz, um surfista, pelo menos ele
agüenta o tranco mais do que você. Só ontem trepamos seis
vezes...
Sempre me considerei um indivíduo racional, com
comportamentos sensatos, com objetivos bem definidos. Nunca
havia tipo um colapso emocional, nem arroubos de paixão, nem
nada que me tirasse do meu casulo de racionalidade. Contudo,
não existe nada mais ofensivo para um homem do que ter seu
desempenho sexual menosprezado — “filho-da-puta”,
“desgraçado”, “retardado” são ofensivos, mas “brocha”, “viado”,
“corno” não são somente ofensas, são capazes de fazer um
homem questionar toda sua existência.
170
— Cale sua boca, sua vadia! — eu segurei Talita pelo braço.
— Você quer que eu minta, professor? Então, eu minto: você
é o gostosão, o machão, o pau mais duro do planeta! — e o tom
de ironia dela era tão doloroso que eu tinha vontade de me
jogar no chão e chorar. Mas não fiz isto, a ação que tomei foi
imprevisível para mim; segurei os cabelos dela e a arremessei
contra a parede, abrindo-lhe um talho na testa. Surpresa,
aterrorizada, ela, mãos apoiadas na parede, olhou-me de
esguelha, sangue lhe escorria pelo sobrolho, descendia pelo
nariz.
Seria fácil eu me virar e sair dali, deixando-lhe uma cicatriz
como recordação minha, mas não, eu precisava de mais, minha
vingança não seria completa assim. Avancei contra ela, socando
mais uma vez a cabeça dela contra a parede. Ela ameaçou gritar,
mas suprimi os ganidos com uma das mãos, enquanto a
sufocava com a outra. Talita reagia, arranhando-me o rosto e o
pescoço, mas eu era mais forte e a subjuguei. Ela não tentava
mais gritar, por isto, só me dediquei a estrangulá-la. Demorou
um minuto ou dois até ela deixar de se mover, os olhos voltados
para cima, boca arreganhada.
Não posso, nem devo, esconder que senti prazer neste ato,
acaso mais do que quando transava com ela. Uma impressão de
superioridade, de poder, de força me consumia, quase uma
identificação com o divino. A Deus era reputado o poder de criar
e destruir; naquele momento, eu me igualava a Ele, destruindo o
Universo em menor escala, privando da vida uma de suas
criações (talvez a mais imperfeita delas) pelo mero capricho de
conservar a supremacia. Manifestou-se a verdade que
Raskolnikov entreviu: alguns nascem ordinários e, para eles, as
171
regras valem; outros são extraordinários, e estão para além do
bem e do mal.
Levantei-me e me preparei para partir, mas refletindo um
pouco, percebi que pela cena do crime facilmente chegariam até
mim. Na verdade, quase nada eu poderia fazer para ocultar
minha autoria no assassinato: impressões digitais por todos os
lados, na porta, na parede, e sabe mais lá onde; fibras das
minhas roupas, pegadas, meu sangue e pele nas unhas de Talita,
talvez testemunhas, e um motivo, eu tinha um motivo e nenhum
álibi. Mas, numa única e incongruente reação, eu apanhei o
cadáver pelas pernas e o arrastei para fora, jogando-o no portamalas do meu carro. Pouco me importei se alguém estava
vendo.
Dirigi para oeste, lancei o corpo de Talita num rio, amarrado
a um pedregulho. Creio que chegarei na fronteira em umas sete
ou oito horas. Dirigirei durante a noite, a notícia do assassinato
somente se espalhará pela manhã, nos telejornais, só então me
tornarei realmente um procurado. Quando meu nome estiver na
boca de todos, escandalizados com o crime bárbaro, com o
pedófilo, corruptor de adolescentes, depravado, assassino, eu
terei desaparecido no Paraguay. Arranjarei um emprego,
tentarei me virar com meu parco espanhol, conhecerei uma
chinoca e terei filhos com ela.
E, um dia, quem sabe, eu volto para esta cidade desgraçada
e mate também o escroto que me fotografou com Talita, e o
repórter sem caráter que arruinou minha vida. Não por causa da
foto do beijo, pois era apenas um mero beijo, igual e
insignificante a todos os demais dados em Talita. Só os perdoaria
se a foto minha fosse do instante em que espiei a calcinha da
menina; este sim foi o momento crucial, responsável por tudo.
172
Se eu tivesse de ser acusado de algo, a única acusação plausível
seria esta: ter encontrado as pernas dela aberta, convidandome.
De nada mais sou responsável.
173
174
Beijo fatal
José Espírito Santo
Retiro o visor e elevo o olhar observando a imensidão sobre
o horizonte pejado de vermelho claro, cibernético. Já me
falaram em tempos da lenda das terras de Uhr, aquelas que se
estendem para lá do vale. Já fui advertido mas a minha função
de expedidor de documentação confidencial urgente – deverei
dizer correio - não deixa espaço para hesitações ou grandes
confabulações. Restam apenas dois dias no ambiente virtual e
não me é permitido falhar.
Estou bem equipado e habituado aos perigos usuais. A fibra
do fato escuro protege-me e o laser que carrego no coldre já fez
cair toda a espécie de bestas, até os temíveis cães bicéfalos...
Por isso não será uma lenda estúpida que me atrasará, decido
avançar e penetrar as paragens malditas antes que a noite caia.
O meu transporte, um híbrido entre prancha e “skate”
evolui sobre o terreno flutuando a baixa altitude e fazendo-me
avançar com eficácia. Prossigo por cerca de duas horas após o
que procuro uma clareira onde montar equipamento. Imobilizome, pouso a mochila e estabeleço o perímetro de detecção de
intrusos.
Retiro do saco um cubo-casa e primo o botão que inicia a
leitura da codificação de info-matéria. Apenas mais cinco
minutos e as duas assoalhadas estarão prontas, poderei
pernoitar com todo o conforto. É nesse momento que ouço um
barulho fraco vindo de lá, da orla. A mão direita baixa em gesto
instintivo e no próximo segundo tenho a arma apontada.
175
“Por favor, ajude-me” diz a voz de mulher.
O traje dela, parecido com o meu, inclui as botas justas, o
cinturão e o impermeável de fibra negra que se ajustam a cada
milímetro do corpo e salientam as curvas das ancas e os seios
bem torneados. Não tem o visor colocado e cambaleia, a mão
esquerda apoiando a coxa. Rosto longo de olhos fundos e lábios
carnudos, cabelo negro comprido, a morena é dona de beleza
incrível! Uma beleza cansada.
“Fique onde está. Mãos na nuca.” ordena o meu instinto de
defesa
Aproximo-me e desarmo-a com facilidade ficando dono
temporário do par de pistolas laser. Apoio o corpo no ombro e
levo-o comigo. Irei passar os próximos quinze minutos tratando
feridas e mazelas da desconhecida.
“Escapou por pouco. Quem lhe fez isto? A mulher de algum
amigo seu?” pergunto à flor da ironia.
Os olhos negros fixam-me com aquela altivez de mulher
inteligente encarando um idiota.
“Não brinque comigo Mr.” Posso saber o seu nome?
“Zlatis. Mas por estas paragens também sou conhecido por
mensageiro do vento. Deve ser uma alusão à importância dos
conteúdos que entrego” a piada estúpida tem função fáctica
mas não obtenho qualquer reacção.
“O meu nome é Lakshmi. Igual ao da deusa. Sou como você,
o mesmo tipo de trabalho. Foram os Tork que me deixaram
neste estado.”
176
Ao ouvir a palavra dou um salto atrás, colocando-me alerta.
Praticantes exímios da arte marcial, esses filhos de meretriz
mercenários actuam em grupo e são adversários temíveis.
Aparecem e desaparecem num ápice semeando a morte e o
terror.
“Eles vêm aí? Conseguiu despistá-los?”
“Por enquanto não. Deixei-lhes um sombra. Mas o mais
tardar amanhã por volta do meio-dia irão descobrir tudo. Virão
novamente no meu encalço.”
Então ela usa sombras - penso, espantado. Um sombra é
uma réplica perfeita mas de duração limitada que deixamos no
ciberespaço e só um pequeno grupo – que me incluí – tem
acesso à tecnologia. A minha curiosidade aumenta.
“Onde está? Conte me tudo. Quero saber de si.”
“Bem... a história é longa, está disposto a ouvir?” sem
esperar a resposta, continua “fisicamente encontro-me num
pequeno apartamento nos arredores de Mumbai, capital do
estado de Maharashtra. Mas a tecnologia faz com que esteja
aqui consigo em partilha de vivência virtual.”
“Como chegou a isto, como se tornou correio?”
“Não sou oriunda de família de parcos recursos. Meu pai era
engenheiro informático e trabalhando para multi-nacionais
estrangeiras conseguiu garantir-me um bom nível de vida e
acesso às melhores escolas. Foi sem surpresa que lhe segui as
pisadas e podia até ter trilhado o caminho mais fácil, um
daqueles que terminam nos grandes empregadores. Mas minha
rebeldia fez com que saísse de casa cedo para partilhar
177
apartamento com um colega de faculdade, formávamos um
casal jovem e cheio de ideais. Depois... veio a desilusão! Um dia
descobri que ele me traía e, contragosto, fiz o que era
necessário para salvaguardar a dignidade e amor-próprio, pu-lo
a andar. Aceitei todo o tipo de biscates para sobreviver,
sujeitava-me ao que ia aparecendo. Não podia apelar para a
ajuda paterna – entre mim e meu pai estendia-se a barreira do
orgulho mútuo. Finalmente chegou o tempo bom em que
alguém reparou em mim e me propôs projectos mais
ambiciosos. Então num desses trabalhos...”
O silvo de um detector do perímetro interrompe
subitamente a conversa. Passo-lhe a arma.
“Fique aqui. Use-a sem hesitação caso veja gajos mais feios
que eu” dou por mim num piscar de olho inevitável, sem obter
qualquer resultado. A tipa não deve ter sentido de humor.
Saio com cuidado e, como temia não vislumbro ninguém.
Agacho-me e lanço o sombra no sentido do detector. O outro eu
inicia a corrida em ziguezague, chega em poucos segundos e
agacha-se examinando-o dispositivo. É então que os dois vultos
surgem do nada quase em simultâneo e preparam-se para a
investida. Aponto, disparo e acerto. Uma e outra vez. Menos
dois a chatear! Saio correndo, procurando novo abrigo. Estou
quase a chegar quando sinto o impacto acima do tornozelo da
perna esquerda. Surge dor e perco a força. Caio e a arma saltame da mão. Virando-me, vejo ao longe o visor do filho da mãe
que se aproxima sorridente.
178
Como sei que desarmado serei presa fácil, rolo e tento
chegar à pistola. Um raio antecipa-se cortando-me caminho e
acerta-lhe em cheio transformando-a em pó. As coisas não
estão nada boas, sei que não restam muitas possibilidades. Olho
para o meu oponente e em acção desesperada de instinto de
sobrevivência levanto-me, apoiando o corpo na perna sã. Tento
fugir. Outro raio. Dor! Lá se foi a segunda perna. Caio
novamente e fico a olhar atónito para a ferida profunda.
O adversário está quase sobre mim, os olhos vermelhos de
ódio, ostenta um ar triunfante. Não vai usar o raio letal, prefere
o sabre. Provavelmente não irá acabar comigo com uma única
estocada. Fecho os olhos e preparo-me para deixar de ser.
Nada. Não acontece nada. Apenas silêncio. Estará à espera
de quê? Abro os olhos novamente e volto a olhar, receoso. O
corpo jaz prostrado sem vida a meus pés. Ao fundo a morena
empunha a arma. Antes de desfalecer ainda agradeço aos céus a
sua boa pontaria.
É de dia e estou deitado. A mão dela está na minha testa. O
par de olhos negros observa-me com meiguice.
“Hei, que horas são?” não podia fracassar.
“Quase meio-dia querido. Não se preocupe, vou cuidar bem
de si.”
“Mas... não entende. Tenho uma entrega para efectuar, o
tempo urge.”
Ela não respondeu. Ao invés, avança agora sobre mim
encostando, pele na pele. Posso sentir o seu calor aconchegante.
Mão nos meus cabelos, a boca avança pedindo, fremente. Fecho
179
os olhos e recebo o beijo com suavidade, sentindo o sabor de
lábios húmidos se colando nos meus. Depois... depois não me
contenho, avanço com tudo e minha mente recua subitamente
no tempo. Recordo minha infância, o tempo de escola, como me
fiz homem e cheguei a esta profissão. Mergulho em mar de ser
onde vejo espalhadas à volta todas as memórias. Que vêm e
vão, que fogem quando chamo. Pouco a pouco perco a noção e
o sentido de tudo e o tempo e espaço dão as mãos rodopiando
sobre mim em ciranda alegre. De repente vejo o meu ser, ao
longe, situação estranha, impossível - eu fora de mim. Sou
simultaneamente o que faz e o que observa, o leitor crítico e o
escritor.
Caminho nu pela praia vazia. As ondas vão e vêm enquanto o
luar ilumina a areia sem pegadas. Ao longe a montanha tem
forma de topo de face de mulher morena com cabelo longo e
olhos negros fundos. Que me observa. Deparo com o objecto
metálico que é um cilindro alto e deve ter uns bons dois metros
de altura. No exterior estão escritas em relevo as palavras
Corporação da águia vermelha. Confidencial.
Contornando chego até à abertura de onde espreita a folha
de papel, gigantesca. Puxo-a para fora usando ambas as mãos e
começo a ler em voz alta. Vou avançando linha a linha,
perdendo de imediato a memória do que visualizo. Até chegar
ao fim onde me espera a única frase que não desaparecerá, que
permanecerá para sempre na minha mente.
Foste apanhado, cabeça de vento. Um beijo desta tua
amiga
180
Emerjo da realidade virtual. À minha frente, o programa de
computador “mensageiro do vento” parece doente tão cheio
que está de ícones alarmistas, pintados a vermelho. Por todo o
lado a frase “Alerta. Intrusão. Segurança comprometida”. Mais
um pouco e entendo tudo. Aquela vaca da indiana! Fora
apanhado e deixaria de ser útil para passar a ser incómodo. Na
melhor das hipóteses terei cinco minutos até à chegada da
equipa de limpeza que vem para me erradicar!
Nada a fazer. Impõe-se o plano B. Reúno alguns pertences,
guitarra incluída, corro, abro a escotilha e entro de rompante no
cilindro de transporte. Os dedos tremem quando dou as
coordenadas da periferia da metrópole. Serei um proscrito
condenado a viver fora dos registos do mundo cibernético, não
poderei voltar mas... sobreviverei! Carrego no botão e espero
pelo sono induzido durante o qual serei levado a grande
velocidade.
O tempo passa e eu passo por ele, não dou por nada. Trinta
e poucos minutos depois...
Acordo tarde, quase noite em zona periférica. Saio da
escotilha mochila às costas e guitarra no ombro, corro para a
floresta. Continuo avançando rapidamente e sem olhar para trás
durante mais uns quatro ou cinco quilómetros, não sei bem. Ao
fim dessa jornada sento-me para descansar um pouco. Tenho
sede, a minha mão desce e sobe levando o cantil à boca, que
bom, que gostosa a água fresca! Ouço a voz ao meu lado que
aparece do nada, num repente.
“Bem-vindo, forasteiro! Aqui não fazemos perguntas, por
isso não vou inquirir quem és ou ao que vens. Vejo que trazes
uma guitarra, isso é bom! Pode ser que consigas animar as
181
nossas noites de comunidade e quem sabe, talvez até o pintor
espanhol, o Pablo, goste tanto que um dia resolva imortalizar-te
em óleo de tela. Aqui todos ganham nova identidade e acho que
iremos chamar-te ‘o guitarrista’. Que pensas disso?”
E enquanto fala, ela inclina-se e dá-me um beijo fraterno na
bochecha esquerda. E eu lembro-me do beijo. Do outro. Beijo
fatal.
182
Tema 7 – Ano 2099
183
184
Ilusões
Denis Clebson da Cruz
- Você conseguiu? – pergunta-me Jaila.
Meus olhos, por mais que tento, não conseguem se desviar
do fascínio imposto por sua beleza. Não faço idéia do que existe
por baixo daquela camada perfeita de proto-ilusão que a deixa
deslumbrante. Cabelos negros e cintilantes, olhos verdes, curvas
esculturais vestidas em roupas mínimas e traços que lembravam
algo como os elfos das velhas histórias de Tolkien.
- Eu já falhei alguma vez? – pergunto tentando não denotar
qualquer entusiasmo com sua beleza.
- Não. Mas para tudo há uma primeira vez.
Estendo a mão e entrego-lhe uma minúscula esfera
transparente. Jaila a escaneia com seus olhos que avermelham.
Sorri.
- Você conseguiu! O nanochip agora é nosso. Vamos inserir
os créditos em seu DNA agora mesmo, Samyanm.
- Prefiro outro implante - digo sem rodeios – Quero a
tecnologia do nanochip em meu braço.
- Isto custará mais que os créditos que você tem. Mas é algo
que podemos resolver, se é que você se dispõe a fazer outro
serviço.
- O que preciso roubar desta vez?
185
- A memória de um ID. Você faria isto? – seu tom é de
desafio.
- Claro – não titubeio, mesmo sabendo que isto significava
reduzir um ID a um ser totalmente sem memória, a um
imprestável vegetal.
Jaila sorri novamente, um sorriso que eu conheço bem. Algo
que, antes mesmo de iniciar minha missão, lhe dava uma certa
vitória. Já faz algum tempo que sou uma espécie de escravo da
Corporação Satan, sempre migrando de missão a missão, sendo
pago ora com Créditos, ora com implantes ou melhorias dos que
já tenho; um eterno ciclo vicioso que não me permite a
libertação das ordens deles.
Meu corpo tem um potente braço cibernético, um olho
embutido com leitura e decodificação virtual, o pulmão
modificado e, em minha corrente sanguínea, há quase um litro
de substância prata, recheada com nanotecs, capaz de reparar
quase instantaneamente cortes profundos.
- Você precisa caçar o ID G21G7714. Não sabemos se nosso
alvo veste uma proto-ilusão, mas já localizamos onde ele está
neste exato momento. E, Sam, ele tem um de nossos andróides
como guarda costas, um Med500.
- Vocês não podem reprogramá-lo remotamente para
retornar?
- Não. Ele escolheu estar com o ID G21.
“Escolheu”, penso. A velha história sobre inteligência
artificial, tão comum neste último século. Eu ia perguntar como
o ID conseguiu um dos dróids da Satan, mas seria perda de
186
tempo; Jaila não me responderia. Sei exatamente o que fazer:
caçar, esterilizar a mente do alvo e trazer as informações para a
Corporação. O Med500 seria um simples obstáculo a ser
vaporizado pelo meu potente braço direito.
Recebo as instruções sobre a localização do alvo e vou para
o topo do imenso edifício da Corporação Satan. Meu transporte
flutua pelas vias abarrotadas de outros veículos, uns cruzando a
poucos metros dos outros, perdidos na imensidão de prédios
por todos os lados e no abismo abaixo e acima. Numa espécie de
transe ocorrido pelo vai e vem de veículos, não posso evitar que
meus pensamentos viajem para a causa desta guerra invisível.
No começo da década de 30 (2030) começou aquilo que
chamam de Corrida pela Inteligência Artificial (IA). Grandes
empresas iniciaram pesquisas avançadas sobre a IA. Tiveram
vários resultados, mas nenhum como ao dos criadores da
Messias; uma “mente” cibernética capaz de, realmente, pensar.
Mais que isto, pensar com eficácia de uma máquina.
A Messias ajudou a desenvolver a segunda grande IA,
batizada como Lúcifer. Em algum ponto, por volta de 2045,
iniciou a guerra. Lúcifer se rebelou contra a raça humana e
tentou destruí-la mediante a ativação de armas químicas e
pragas virtuais que infectavam os implantes - que ainda não
eram tão avançados naquela época.
Em 2060, Messias proveu “a cura” contra Lúcifer.
Disseminou sua própria essência virtual na rede, como se fosse
um vírus, e, num ato de auto-sacrifício, destruiu a si e todas as
Inteligências Artificiais que existiam.
187
Três dias depois, Messias ressurgiu na matriz da corporação
que a gerou. Foi impossível não traçar um paralelo com o
cristianismo, mas, para a grande maioria, tudo não passava de
mera coincidência, já que a religião havia caído na descrença
desde o início da Corrida.
Depois disto, iniciou uma nova era. Novas IAs surgiram, mas
todas muito inferiores à Messias e sempre tentando roubar
alguma tecnologia que a ela pertencia. Um novo tipo de guerra,
quase invisível, onde a Corporação Satan se põe apenas como
mais uma das simples detentoras de Inteligência Artificial,
alimentando-se de qualquer migalha de tecnologia.
Estamos quase virando um novo século; devo muito a Satan
e não me importo em servir a Corporação usando todos os
métodos possíveis, embora nunca tenha sido necessário
exterminar um ID.
Meu transporte começa a voar mais baixo, ali pelo nível três;
para numa das entradas do edifício onde meu sensor acusa estar
o alvo. Olho para o pequeno espelho e confiro se meus cabelos
negros estão bem espetados; gosto deles assim, sem qualquer
camada de proto-ilusão, verdadeiro vício entre as pessoas
atualmente. Algumas delas só sabem o que é a imagem real de
um humano quando desativam sua fachada de mentira e
conferem a própria imagem no espelho.
Um homem com feições reptelianas – uma capa de ilusão,
claro – me recepciona enquanto desço do veículo. Caminho para
o tubo e sou sugado uns sessenta andares para cima.
Finalmente, meu andar. Enquanto caminho pelo estreito
corredor de paredes brancas, desligo meu sensor, pois ele pode
me denunciar.
188
Entro em um salão, tentando não deixar muito evidente que
estou caçando alguém entre as vinte e duas pessoas que meus
olhos escaneiam instantaneamente. Ao fundo, uma autêntica
jukebox, onde toca uma música antiga, com o refrão que diz
“love me tender”. É um dos inúmeros bares que ambientam
antigos cenários. Este retrata os anos 70 do século XX.
- Um energético, por favor – peço sentando ao balcão
enquanto minha mente analisa os dados escaneados.
A maioria tem traços bem humanos, provavelmente na
tentativa de se mesclar ao ambiente do bar. Alguém põe outra
música na jukebox. Ouço o estalar mecânico da máquina antes
de iniciar a música. Help, esta eu conheço de algum lugar.
Bastaria um simples toque em meu sensor e ele apontaria o
ID G21; tempo suficiente para que eu também fosse detectado
pelo Med500. Antes que eu consiga organizar os pensamentos,
sinto um golpe covarde de um punho atingindo minha cabeça.
Sou lançado para trás do balcão, estilhaçando garrafas
enquanto sinto o mover dos nanotecs curando meu crânio
rachado e alguns cortes nas costas.
Antes de me levantar, ouço o som pesado de alguém
pulando para trás do balcão. Dois chutes no abdome me
empurram contra a parede oposta. Ossos estalam por todo o
corpo; mais alguns golpes e meus nanotecs não irão curar nem
mesmo um aranhão.
Pela força dos golpes, só posso deduzir que meu oponente é
o Med500. E de fato é. Consigo levantar os olhos e o vejo
correndo em minha direção. Ele veste a pele de uma mulher
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bonita, magra e com roupa rosa que lhe agarra o corpo inteiro.
Sua imagem jamais denunciaria ser ele um andróide.
Levanto defendendo três chutes e a energia flui em meu
braço. Pessoas correm por todo o bar e consigo entrar um soco
na fuça da dróid. A camada de pele e carne do meu punho e do
rosto da máquina dá lugar para a centelha de faísca que brilha
no impacto metálico.
O Med500 cambaleia três passos para trás, o espaço que
preciso para fulminar uma rajada de e3nergia azulada que sai
com toda potência do meu braço cibernético. O raio atravessa a
carne artificial do dróid e destrói seus componentes eletrônicos,
deixando um enorme buraco em seu peito.
Aciono imediatamente o localizador e ele aponta o alvo: um
homem de pele negra, careca, que acaba de estilhaçar o vidro
do prédio com o próprio corpo. Ele se joga na imensidão do
abismo de prédios e pulo logo atrás.
Um mergulho entre paredes cristalizadas dos edifícios;
veículos passando no estreito espaço, zunindo a centímetros de
nossa queda. Não irão nos acertar, pois o radar de cada um
deles impede qualquer impacto.
Segundos depois, vejo o ID ser coletado no meio da queda.
Ele teve a mesma idéia que eu, acionando remotamente seu
veículo. Da mesma forma sou colhido por meu transporte e
inicio a perseguição.
Vamos descendo os níveis, desviando dos inúmeros
obstáculos. Já posso até sentir o cheiro acre do solo que se
aproxima. A escuridão nos envolve aos poucos, com poucas
luzes de néon piscando em alguns cantos.
190
Rente ao solo, disparo alguns raios de meu veículo,
explodindo em espeluncas do nível zero. Somente IDs da pior
categoria vivem por aqui. Finalmente acerto um disparo,
destruindo a turbina do alvo. O veículo raspa no chão até colidir
numa parede, base de um dos inúmeros prédios lá em cima.
Paro imediatamente meu transporte e pulo no tampão do
imóvel veículo abatido, onde a poeira ainda assenta. Um golpe o
abre por dentro, lançando-me para trás e vejo o ID saindo. Vem
em minha direção e iniciamos uma luta corpo a corpo.
Ele é forte, porém lento. Acerto alguns socos e finalmente
arrebento a camada proto-ilusória, lançando-o violentamente
para trás em meio a lâminas cintilantes de energia fragmentada.
Este é o momento. Debruço-me sobre o ID G21 e pressiono
uma espécie de arma entre seus olhos. Estou pronto para sugar
toda a memória quando algo me impede de acionar o
equipamento.
O ID é uma mulher. Há tempos que não vejo beleza igual.
Algo natural, totalmente humana, sem os vestígios da capa
ilusória. Há um certo pedido de clemência em seus olhos e ela
percebe minha renitência.
- Não faça isto – ela diz – Sou a última chance da
humanidade.
Não presto muita atenção em suas palavras, mas aquelas
belas feições humanas, tão incomuns nos dias de hoje, me
prendem numa espécie de transe.
- A Corporação Satan precisa do que você sabe – consigo
dizer; minhas mãos afrouxando no gatilho.
191
- A Corporação só quer apagar o que eu sei.
Ela me convence, não com as palavras, mas com a expressão
em seu rosto – como se eu conhecesse muito além de uma
proto-ilusão.
- Eu compartilho com você – dizendo isto, ela toca entre
meus olhos e sou engolido por uma visão.
Há uma tela translúcida à minha frente. Códigos e mais
códigos passam por ela e consigo distinguir uma palavra: Lúcifer.
Sinto até mesmo as emoções daquela memória. Surpresa, medo,
repulsa.
Lúcifer não foi destruído. Ele vem sendo reconstruído pela
corporação Satan, aliás, este é seu novo nome. Quando Messias
disseminou-se na rede, Lúcifer fragmentou sua IA em
incontáveis partículas e, agora, a vem recuperando aos poucos.
Em pouco mais de dois anos estará completo e não deixará que
cruzemos o século sem uma violenta guerra. Não chegaremos a
2099.
Ele já tem uma nova estratégia. Desta vez usará as próteses
de forma mais eficaz, controlando-as e voltando-as contra seus
usuários. Uma nova revolução das máquinas.
Consigo pensar em meus implantes e nos nanotecs em meu
sangue. Uma revolução e eles me comeriam como um câncer
instantâneo.
- Eles sabem – diz a ID G21 – Todos da Corporação Satan
estão trabalhando para trazer Lúcifer de volta – Meus braços
afrouxam e ela sai debaixo de mim – Preciso levar esta
informação até a Messias.
192
- Não posso deixar você fazer isto.
- Você precisa deixar. A Messias precisa saber. Já nos salvou
uma vez, poderá salvar mais uma.
Não são os argumentos que me convencem. Talvez seja
aquela forma humana de se expressar. Cabelos negros e lisos,
que não passam dos ombros, emoldurando um semblante de
convincente súplica e algo que, a meu ver, parece esperança.
Ela se levanta de vagar. Não me oponho. Vira-se e vai
sumindo pelo beco escuro. Não me oponho.
Duas horas mais tarde, na sala da direção da Corporação
Satan, ouço os gritos de Jaila:
- Você não conseguiu? Você jamais falhou, Samyanm.
- Para tudo há uma primeira vez.
Viro-me sem dar muitas explicações. Só consigo pensar que
a humanidade realmente precisa de um salvador. Não que lhe
garanta a simples existência, mas que ative em seu coração um
desejo que talvez tenha esquecido: o de ser realmente um ser
humano.
193
194
Anno 2099
José Espírito Santo
Bruxas não são bonitas. Por definição, elas são mulheres de
nariz comprido e arrebitado, de cabelo negro e chapéu em
forma de cone, de cara cheia de rugas e olhos esbugalhados.
Estes seres odiosos fazem-se transportar de um lado para o
outro a cavalo de vassouras voadoras e preparam poções
colocando patas e asas de morcego em grandes caldeirões.
No entanto, aquela era diferente. Conheceram-se era ele
ainda menino pois, com curiosidade imprudente, não resistiu à
chamada da porta entreaberta e ao ar acolhedor da casa de
cuja chaminé saíam espirais de fumo. Entrou de forma sorrateira
e com cuidado, olhando para todos os lados, os sentidos alerta,
ouvidos atentos ao menor som. A sala estava impecavelmente
arrumada e ao canto, a lareira e um pote de ferro com água
fervendo ao lume serviam de causa última ao vapor que
ascendia – nada que se parecesse de verdade com um cenário
de bruxas e bruxaria.
“Que fazeis aqui menino?” A voz era doce mas segura.
Faltaram-lhe as palavras certas para responder. Em vez disso
rodou e voltou-se. Preparava-se para fugir com a rapidez de uma
raposa quando a viu com o aspecto jovem, exibindo uma beleza
incrível. Na cara longa e sem rugas, as pupilas dos olhos
rasgados tinham o tom raro de azul claro. Os cabelos, esses
eram grandes e lisos, de cor estranha, avermelhados. Calçava
sandálias e vestia uma túnica branca que firmava a cintura
através do cinto de linho de igual cor. Ficou hipnotizado,
195
petrificado, sem saber bem o que fazer!.. já não foi a lugar
algum.
“Como vos chamais?”, prosseguiu a voz
“Daniel, um seu servo minha senhora” balbuciou em
resposta
Os olhos olharam-no fixamente, esperando reacção. “Vinde
cá Daniel, quereis um pão? Sabeis o que tenho aqui?” Aquilo era
algo que ele nunca tinha visto. O formato da coisa era
rectangular, na superfície estavam gravados símbolos estranhos.
“Isto vai ser o nosso segredo. Psiu… não contes a ninguém!”
Voltou outra vez e muitas outras vezes. A um canto da sala o
tapete escondia a abertura estreita que dava para uma
escadaria que desembocava nos corredores subterrâneos. Eles
conduziam a espaço mágico, a lugar onde existiam muitos mais
blocos rectangulares de papel e onde a senhora da casa de
pedra lhe ensinou com dedicação e paciência a magia da palavra
escrita.
A relação dela com a aldeia era assaz interessante, existindo
uma tolerância mútua que lhe permitia levar a vida que queria e
bem entendia. Alguns diziam que não era nenhuma santa, que
tivera em tempos homem e família e abandonara tudo, que não
haveria provavelmente rapaz jovem bem dotado que
desconhecesse o toque e ardor daquele corpo alvo, o sabor de
seu leito. Por outro lado, os aldeões tinham-se habituado a
recorrer às suas habilidades e saber sempre que se impunha
curar toda a espécie de males físicos ou do espírito.
196
Tudo corria bem. Todos viviam mais ou menos felizes e
ocupados com os seus afazeres, regras e preocupações até à
chegada do dia fatídico.
Já tinham ouvido falar deles, de suas colunas aterrorizantes,
dos interrogatórios e vários métodos de tortura. Mas não
imaginavam que fosse como foi. Chegaram num ápice, a figura
encapuçada com ar sinistro à frente dos outros. Convocaram as
pessoas para a missa. A população obedeceu, compareceram
todos. Tendo lido o “édito”, ergueram um crucifixo e fizeramnos levantar a mão direita em juramento de apoio à “santa
inquisição”. Então, proclamaram os nomes dos culpados de
“heresia”. Aterrorizados, os desgraçados gesticulavam e
bradavam frases desarticuladas, ininteligíveis. Reviravam o
olhar, como que pedindo auxílio aos céus - nem queriam
acreditar!
Um pobre coitado, ferreiro de profissão, por certo
aterrorizado com a visão das máquinas de tortura, resolveu
confessar e cumprir a penitência que obrigava à denúncia de
terceiros. E má sorte - lembrou-se dela, a mulher estranha da
casa de pedra da orla da floresta.”A jovem tinha-lhe salvo o
coiro e o filho de morte certa por mais de um vez mas… por
outro lado não seria por causa dela e de outros como ela que os
todos eram colocados perante aquelas torturas e aquela fúria
inquisidora?” Optou por denunciar.
A notícia espalhou-se facilmente, chegando assim aos
ouvidos de Daniel. Ele ficou sabendo que a operação de captura
decorreria durante essa mesma noite. Correu como um doido e
só parou para encostar-se, ofegante à porta da casa. Bateu e ela
surgiu.
197
“Daniel, por aqui a esta hora? Que se passa?”
As palavras saíam-lhe desordenadamente, anárquicas. “A
senhora tem de, de… eles, eles vêm aí. Tem de fugir e já”.
Olhou-o com ar sereno e disse.”Isso não interessa muito
agora. Sei bem o destino que tenho de cumprir. Mas esperavate. Tens vindo a ser preparado ao longo de todo este tempo;
existe uma tarefa importante para ti”
Levou-o através do subterrâneo e desembocaram na sala
grande, a dos livros. Foi buscar a pequena caixa, colocou-a nas
mãos do rapaz e disse “Leva-a e lê. Compreenderás a
importância e o que tens de fazer. Deverás destruir o manuscrito
imediatamente após o usares. É muito importante. Agora vai!”
Ele olhou-a uma última vez, o semblante sereno traído pela
pequena lágrima que surgia, teimosa, nascendo um pouco
abaixo da pupila azul clara do olho esquerdo. Depois não olhou
mais. Guardou o manuscrito e saiu dali o mais depressa que
pode.
Nos dias seguintes acompanhou com horror todo o processo
de interrogatório e tortura, o qual culminou na decisão de
execução pública por auto de fé. “Bruxa, bruxa, para a fogueira”
disseram as vozes do povo concordando.
O dia chegou e instalaram os mecanismos necessários. Seria
queimada com requintes de crueldade – tinham providenciado
para que não asfixiasse, encharcando-a previamente em
enxofre. Ele não foi, jamais suportaria assistir ao acto cruel de
matar no fogo a pessoa que lhe era tão querida. Assim, saiu da
povoação e foi até à orla do bosque onde se recostou ao tronco
198
da árvore, chorando. Lembrou-se então do manuscrito. Abriu a
caixinha que ainda guardava consigo e começou a ler
“Minha querida
Sei que o que te vou contar vai ser uma surpresa. Esta
história não morrerá certamente entre nós duas e é necessário
que assim seja, pois o mundo tem de seguir o seu rumo,
encontrar os seus caminhos. Durante anos a fio comunicámos
através deste meio e fui-te instruindo nas maravilhosas
aquisições de nossa ciência e tecnologia. Mas nunca te falei
sobre o meu estado actual e estado actual de nossa civilização.
Encontramo-nos á entrada do século XXII num período
obscurantista que designo por Nova Idade Média. Estamos à
beira do fim, da destruição do património cultural, científico e
tecnológico que levou séculos a aprender e construir. Tudo
parecia correr bem, tínhamos obtido respostas para quase todas
as questões científicas de relevo, a fusão a frio tinha sido
conseguida, o problema energético finalmente ultrapassado. A
manipulação genética e os avanços da medicina conseguiam
prolongar a vida bem para lá do que era expectável. Mas
contrariamente ao que alguns tinham profetizado, os avanços
não resultaram em distribuição de riqueza e numa melhor
qualidade de vida das populações. Ao invés, os meios para
controlar a informação e explorá-la escravizando os muitos em
prol dos poucos tornaram-se muito mais eficazes e foram usados
como tal – com eficácia.
Tornaram-nos escravos que nasciam, viviam e morriam de
forma pré-determinada e cuidadosamente planeada. Os meios
199
tecnológicos foram usados para em vez de aumentar o tempo de
vida, nos permitir produzir mais durante um pique que durava
entre quinze e vinte anos. Pique esse que era exigido. Após esse
tempo, completamente esgotados, nossos órgãos pouco mais
resistiam. A esperança de vida diminuiu e, enquanto no final do
século XX, em países avançados ela se situava acima dos setenta
anos, hoje ela não ultrapassará os cinquenta. Para os nossos
senhores, donos de feudos imensos e da tecnologia as coisas
eram bem diferentes. Podiam esperar viver facilmente duzentos
a trezentos anos de uma vida de vício e luxúria, praticando com
impunidade todas as asneiras possíveis e imaginárias.
O mais inexplicável em tudo isso era que os meios
tecnológicos permitiriam facilmente prescindir do trabalho
humano e conferir boas condições para todos. Tal possibilidade
não era explorada pois a nossa escravatura não tinha motivo
numa necessidade produtiva mas sim em necessidades
psicológicas e sociais.
Durante décadas tudo seguiu de acordo com a ordem feudal.
Comemorava-se sem surpresa a passagem para o último ano do
século – o ano 2099, quando eles atacaram. Não foi aqui nem
ali. Todas as grandes cidades – Nova York, Tóquio, Pequim,
Xangai, São Paulo, Londres, Paris , Moscovo, todas foram
atacadas em simultâneo.
Quem eram eles? Bem… ninguém sabia precisamente de
onde tinham surgido. Durante anos tinham construído aquela
estrutura reticular de centenas de milhares de pequenas células
armadas, capazes e ferozes. Intitulavam-se “A ordem de PI” e
pretendiam de facto estabelecer uma nova ordem, mais justa,
com distribuição de meios por todos. Estabeleceram governo
central em Pequim e subdividiram o mundo em vários blocos:
200
EuroRussia, Nova África, Eixo Sul-Americano, Eixo NorteAmericano, Nova Índia, Nova China e por aí em diante. Cada
bloco tinha o seu próprio governo, reportando todos ao poder
central em Nova Pequim.
As coisas até funcionaram bem de início e 2099 foi visto por
muitos como o número mágico – o número da libertação. Surgiu
então um problema, uma questão de pormenor: Ao viver, os
nossos hábitos, preocupações e sentimentos formam um campo
de gravitação que vai crescendo e crescendo ficando cada vez
mais forte, atraindo-nos para o mesmo em todos os gestos e
actos. Até que chegamos a um ponto em que não conseguimos
fugir nem manter-nos em órbita estacionária. Começamos a cair
subtilmente para dentro de nós mesmos. Já não nos adaptamos.
O problema, minha querida, meu amor, explica-se facilmente – a
populaça não estava preparada para viver melhor.
Os tumultos começaram e foi o caos. Os governos regionais
caíram um por um e em seu lugar deixaram lutas e disputas por
poder entre milícias. A guerra civil – globalizada. Nestas disputas
costumam ganhar não só os mais fortes mas os que têm menos
escrúpulos. E foi assim que aconteceu. Os líderes dos grupos
bárbaros eram homem terríveis, não davam tréguas a ninguém.
O poder que surgiu era um autoritário, ditatorial e fraco.
Declararam guerra à ciência, ao conhecimento e a todos os
meios tecnológicos. Seguindo as pisadas de Torquemada,
mandaram reduzir a cinzas as bibliotecas, arquivos históricos e
museus. Os detentores de conhecimento tecnológico e científico
foram perseguidos e executados. Alguns poucos esconderam-se
e sobrevivem movidos por uma última esperança que lhes dá
alento – temos um projecto. Através dele - Nova Arca de Noé,
procuramos criar um repositório que permita a alguém que o
201
encontre no futuro, restabelecer as bases do conhecimento.
Num nível inicial, com recurso a uma linguagem universal – a
matemática e a explicações pictóricas, ensinam-se as
linguagens. Após essa fase, uma vez detentor da linguagem,
bastará ao interlocutor estudar os conteúdos para efectuar a
aquisição de conhecimentos. Vamos colocar sete réplicas em
sítios previamente escolhidos. A primeira será em Paris, bem
próximo das ruínas do Louvre, a segunda será em…
Querida, vou ter de terminar repentinamente. Os detectores
de presença dispararam, temo ter sido descoberta por
estranhos. De qualquer forma já sabes tudo o que te queria
transmitir. Ou quase tudo. É necessário estabelecer as sementes
da procura destes repositórios. Pensei nas várias possibilidades e
nada melhor que esconder essas sementes no tempo, no
passado. As localizações precisas que planeamos vão junto, na
página seguinte. Deves passar instruções exactamente a uma
pessoa, a qual escolherá e nomeará sete, exactamente sete
outras pessoas. O documento original deverá ser destruído e
cada uma das localizações transmitida oralmente através de rito
iniciático. Para maior segurança, a maior parte deles só saberá o
necessário para procurar. Toda esta história deverá ser
conhecida apenas por uma pessoa em cada geração. Boa sorte
na tua tarefa. Ah… proponho que a organização secreta se
chame Anno 2099. Em referência ao ano da desgraça. O ano em
que desabámos sob a nossa podridão.
Um beijo, Larissa II, tua
descendente querida em enésimo grau
202
“
Ao terminar, Daniel - o primeiro grão-mestre da ordem,
inutilizou a mensagem de forma a que ninguém mais pudesse ler
o que tinha lido. Jurou ali mesmo cumprir - escolher sete e
iniciar um grupo que chegaria até ao futuro para resgatar o
conhecimento. Tinha nascido nesse instante um grupo secreto e
iniciático – a organização “Anno 2099”.
A mulher escondia-se há algumas semanas num local
próximo do antigo aquartelamento das forças do “A ordem de
PI”. O subterrâneo estava bem camuflado por entre os
destroços, a pequena entrada mal se notava entre a amálgama
de metal ferrugento das carcaças de veículos e outros
equipamentos agora inúteis. Como quase sempre acontece, no
meio de tanta precaução e cuidado tinha sido detectada por um
descuido estúpido.
Ao ouvir o disparo do detector de presenças, sentiu-se
impotente, sabia bem o que isso significava. Deveriam estar já
bem próximos, talvez até algures nos corredores cortando-lhe a
retirada. Não existiam grandes possibilidades de fuga.
Num relance, o sobressalto fez a memória disparar e reviu
alguns dos acontecimentos mais importantes dos últimos
tempos. Lembrou-se da passagem de ano e de como a festejara
com o marido, Jaqques, seu colaborador no laboratório de
pesquisas de portais de comunicação inter-temporal. Como
estavam empolgados com o projecto no qual mantinham
contacto periódico com a sua antepassada remota. Lembrou-se
da rapidez com que todo o seu mundo tinha desmoronado
subitamente, do dia em que o seu querido foi levado para
execução sumária, da fuga e início da vida sem pouso certo.
203
Lembrou-se por fim, que acabara de escrever e enviar a
mensagem através do portal. E isso era o que mais importava.
O grupo vestia camuflados e empunhava armas brancas.
Entraram subitamente e viram-na, cabelos revoltos, expressão
determinada, os livros espalhados à volta, pelo chão. Não
tiveram quaisquer dúvidas.
“Cientista, danada, serva do demónio” gritaram as vozes
quase em uníssono.
Foi julgada em julgamento “à antiga” - sem direito a defesa
ou advogado de defesa. O chefe da turba, empunhava na mão
esquerda uma cópia do manuscrito obscuro “O martelo das
bruxas”. A sua cara disforme e cheia de dentes podres deixou
escapar um sorriso rasgado quando proferiu “Para a fogueira!”
204
Quem guarda os guardiões
Pedro faria
- “E nas notícias da guerra, os colonos de Marte lançaram
novo ataque às bases aéreas lunares, quebrando assim a breve
trégua de uma semana decretada pelos governos da Terra e de
Marte. O Embaixador da Terra chegou em segurança em casa
após ter que fugir do planeta vermelho durante o período de
trégua. As negociações para um novo período de paz foram
descartadas pelo governo em vista aos novos ataques
marcianos, e a frota terrestre já partiu da Estação Espacial
Internacional para reparar as bases lunares e lançarem novos
ataques à frota marciana. Em outras notícias...”.
Estou cansado da guerra. Sério, não agüento mais ouvir falar
sobre isso. Tive um dia horrível, e quando ligo o rádio para
tentar ouvir alguma música e relaxar, me deparo com a porra do
DJ falando sobre a porra da guerra. Droga, porque estou tão
surpreso? Todos sabiam que essa “trégua” não iria durar muito.
Aliás, antigamente, todos sabiam que colonizar Marte não seria
uma boa idéia.
Meu avô, que Deus o tenha, me dizia que no tempo de
juventude dele, o povo em geral era contra a colonização de
Marte. Quando eu perguntava o porquê disse, vovô sempre
respondia:
- Bem Dézinho, não parecia certo, só isso.
Por anos eu lutei para entender o que ele queria dizer com
isso.
205
Hoje eu entendo.
Sendo um taxista, a primeira impressão que passo às
pessoas em geral é a de ser ignorante, simplório (apesar de eu
duvidar que a maioria das pessoas conseguisse decorar tantos
nomes de ruas e caminhos alternativos quanto nós), porém o
que elas não sabem, e nem teriam como saber só de olhar para
mim, é que sou formado em História, ou seja, não sou tão idiota.
O último que me tomou por idiota foi um engravatado que eu
levei para um escritório no Centro, hoje de manhã. O cara
entrou no meu táxi falando muito alto em um telefone coclear,
daqueles que se enfiam no ouvido e é ativado por pensamento.
Nunca entendi um negócio desses. Parece que você tem que
tomar umas injeções de alguma coisa para ativar alguma outra
coisa. É confuso. Bem, o cara falava com alguém sobre como a
guerra era boa para a moral do planeta, principalmente após a
destruição deixada pela guerra Católica-Muçulmana de 2087. A
pessoa do outro lado da linha disse alguma coisa e engravatado
respondeu que bem feito para eles, os filhos de putas.
Depois que desligou, o cara olhou para mim. Eu o estava
encarando pelo retrovisor, esperando ele me dar o endereço. O
olhar dele me intrigou: Era um misto de raiva, surpresa, e
pressa.
- O que você tá olhando, porra? -, disse ele, encontrando
meus olhos no espelho.
Eu não respondi. Já tive muitos problemas com raiva no
passado, ironicamente envolvendo passageiros como esse que
ali se encontrava.
206
- Bem, por que não estamos nos movendo? – perguntou ele,
no mesmo tom agressivo.
Respondi calmamente: - O endereço, senhor.
- Ora, como você não sabe? Já peguei esse táxi três vezes
semana passada, indo para o mesmo lugar!
Pensei no ponto no qual tinha chegado a arrogância
humana. O malandro devia achar que ele era o meu único
cliente. Claro que meu carro não era nenhuma limusine, mas eu
ganhava mais do que necessário para sobreviver. Somente um
pouco mais, é claro.
Esperem um pouco, vou me demorar apenas um pouquinho
mais nesse assunto, somente por este ser tão absurdo. Ainda
não consigo acreditar naquele cara. O olhar dele foi tão sincero,
tão espantado pelo fato de eu não lembrar dele, que tive de rir.
Não, não apenas ri: gargalhei.
O terno me olhava, seus olhos se arregalavam. Ele parecia
não entender nada, e isso o consternava ao extremo. Para mim,
aquele homem era o tipo de homem que não está acostumado a
ficar no escuro em relação a assunto nenhum.
- Porra, o que há de tão engraçado, hein, seu merda? Vai se
foder!
Comecei a rir mais ainda. Ri tanto que acabei acionando a
buzina várias vezes.
O homem fez um movimento de se levantar. Rapidamente
tentei me recompor (com pouco sucesso, para falar a verdade) e
207
lhe pedi incessantes desculpas. Humilhei-me perante tal figura
proeminente de nosso rápido e importante mundo de negócios.
Depois que se acalmou, o homem me disse o endereço – um
prédio na Franklin Roosevelt -, abriu um jornal-eletrônico e se
calou. E eu parti.
No meio do trajeto vimos um cafetão matar uma prostituta
com uma faca. Como sempre, a polícia nada fez. Mortes de
prostitutas são fatos comuns na cidade. Fiquei triste, pois
conhecia a mulher. Tinha pegado-a de madrugada.
O homem murmurou alguma coisa. Supôs ter sido para mim.
- Perdão, senhor? – disse eu.
- O que você quer? – perguntou ele, rispidamente, sem tirar
os olhos da tela eletrônica que passava as notícias em tempo
real.
- Nada senhor, desculpe. Pensava que tinha me dito alguma
coisa.
- Eu não lhe disse nada. Falava comigo mesmo, sobre esses
malditos marcianos.
Todos estavam chamando os colonos de Marte de marcianos
hoje em dia. Acho que não queriam lembrar de que aqueles
homens e mulheres eram humanos como nós.
- Ah, desculpe então.
O homem não disse nada. Então, tentei iniciar uma
conversa, em nome da paz.
208
- Quer dizer então que o senhor é contra os colonos?
Agora sim o homem baixou a tábua negra dobrável que lhe
dizia as notícias. Olhou-me com um olhar quase chocado.
- Claro que sou! Quem não é contra esses marcianos é
contra o governo!
Desviei o olhar do espelho retrovisor e sorri.
- Então o senhor acha isso? Certo.
O terno continuou me encarando.
- Quer dizer que você discorda? Típico de um ignorante de
classe baixa que se deixa levar por sentimentalismos baratos de
revolucionários. Suponho que você tenha ouvido como a vida
em Marte é difícil, como o governo da Terra não faz nada para
melhorar as condições das habitações, como eles tem razão em
se rebelar.
Pois o senhor saiba que nada disso é verdade. Eu estive
pessoalmente em Marte e posso dizer que os alojamentos feitos
pela Agência Espacial Terrestre são mais do que adequados para
a vida daquelas pessoas.
Meu sorriso aumentou e o terno percebeu.
- O que há de engraçado, homem?
- Eu não sabia dos motivos que o governo inventara para
encobrir a verdade sobre essa guerra.
- Encobrir? Faz-me rir, o senhor. Por favor, cale-se e dirija, e
não me incomode mais com besteiras.
209
Não posso dizer que fiquei com raiva do sujeito naquele
momento. Fiquei apenas curioso. Curioso em ver a reação dele
depois que eu dissesse o que tinha de dizer.
- Encobrir sim senhor. Caso o senhor não saiba, a empresa
que fornece o novo tipo de ar artificial usado pelos colonos por
ser mais barato, faliu há seis anos. Desde então, o ar nas bases
marcianas é de má qualidade. Várias pessoas morreram. O pior
foi o fato de que o governo continuou a utilizar o ar inferior,
causando mais mortes e aumentando a incidência de doenças.
Para tentar remendar a besteira que havia feito, o nosso
brilhante governo, unido a HABSPAC, a empresa que constrói as
bases espaciais, tentaram recriar o ar sintético especial, cuja
fórmula era particular e que os detentores de tal fórmula
barraram sua utilização pelo governo, até que esse lhes
pagassem a enorme quantia de dinheiro que deviam,
remontando assim a fábrica. O resultado: o ar sintético da
HABSPAC foi enviado a Marte e provou ser mais letal do que o
anterior, além de causar loucura. Os colonos, irados, atacaram
fábricas desse ar. Foram ataques meramente políticos, que não
causaram nenhuma morte.
Porém, a resposta do governo a tal ato foi a destruição de
um posto avançado de Marte, em órbita do planeta. Essa base
era tripulada por cientistas e suas famílias que estudavam
movimentos de corpos celestes. Foram mais de mil mortes civis.
Os colonos então passaram a atacar bases terrestres. E a guerra
foi iniciada.
O engravatado estava atônito. Olhava-me de tal maneira que
eu pensava que seus olhos saltariam de suas órbitas. De
repente, ele riu. E alto.
210
- Nunca ouvi tamanha besteira! -, disse ele. – Não sei de que
latrina saíram essas idéias absurdas de que nosso governo
poderia fazer tamanho mal a pessoas antes leais a esse planeta.
Suas ideias são incoerentes, sem fundamentos e perturbadoras.
Deveria alertar as autoridades quanto ao senhor. E acho que o
farei.
Nesse momento chegávamos ao destino. O homem saltou,
não me pagou, e entrou no prédio. Foi quando eu li a placa na
frente do mesmo.
Agência de Propaganda e Inteligência – Divisão América do
Sul
Agora meu caixão está praticamente selado. O terno
entregaria meu número de registro do táxi ao governo, alguns
homens viriam de noite e me levariam embora. Nunca mais
ouviriam falar de mim.
Agora, sentado aqui em meu táxi, à noite, esperando os
homens me levarem, eu penso no mundo em que vivemos. Um
mundo no qual o governo mão-de-vaca fornece ar de má
qualidade para seu povo. Ar, pelo amor de Deus! Um mundo no
qual uma empresa privada se torna a causa da morte de
milhares, pois se recusa a entregar uma fórmula química! Tudo
isso por dinheiro! Também um mundo no qual pessoas são
“removidas” apenas por tentarem provar que não são tão
ignorantes quanto parecem. Mesmo pessoas insignificantes
como um taxista, ex-professor, ex-marido, ex-pai, ex-pessoa.
Agora não sou mais ninguém. Sou um espaço vazio. Sou um
ponto cego. Sou um buraco negro, que não atrai nem repele,
apenas é. Sou como a prostituta que vi sendo morta na rua. Seu
nome era Maria. Já a tinha pegado várias vezes. Dela eu
211
lembrava, diferentemente do terno. Ela me falava de seu
cafetão, como ele era violento, como ele batia nela, como ele
não a pagava direito. Porém, da última vez que a peguei, hoje
bem mais cedo, ela me disse que estava de bem com ele.
- André, ele vem me tratando muito bem nesses últimos
dias.
Estamos conversando mais, ele está sendo gentil. Acho até
que hoje vou falar pra ele da escola.
O sonho de Maria era voltar a estudar, se formar na escola e
quem sabe tentar uma faculdade. Ela nunca tinha falado sobre
isso com seu cafetão, pois sabia como ele era violento. O que
me deixa mais triste é o fato de que ele provavelmente a matara
por isso. Ela deve ter mencionado a escola, ele ficou irritado,
eles discutiram, ela ficou perplexa com a nova mudança de
humor dele, e ele a matou em sua ira.
Ah, estou vendo os homens se aproximando pelo retrovisor.
Talvez eu seja a única pessoa que ficara triste com a morte
de Maria.
Pois bem. Acho que todos merecem ser lembrados, mesmo
que brevemente, após sua morte. Agora derramo uma lágrima
inesperada.
Por Maria. Pelos colonos de Marte que morreram, e
morreriam durante o curso da guerra. Pelos soldados da Terra,
que lutavam uma guerra fomentada por interesses monetários,
e que morreriam em vão. Sei que sou um historiador, e sei como
era antigamente, porém eu gostaria de acreditar que nem
sempre fora assim. Que cem anos atrás, em 1999, o mundo era
212
mais pacífico, os povos eram mais unidos, o dinheiro não trazia
tantos problemas e tantas disputas quanto hoje.
Sei que não era assim, e é por isso que eu choro. Talvez em
2199 seja diferente.
Tenho fé que sim. Mas muita certeza que não.
213
214
Terra de ninguém
Henry Alfred Bugalho
Imagine que você faz parte duma experiência de viagem no
tempo, o voluntário escolhido entre centenas de candidatos. O
destino é o futuro, final do século XXI, ano 2099.
Você está nervoso, tamanha responsabilidade a suas costas.
Treina durante meses, aprendendo a operar os equipamentos
do módulo temporal, tendo sempre em mente que não se deve
alterar nada no futuro.
“O tempo é um plano muito instável”, eles lhe dizem,
“qualquer alteração das partes pode significar grandes
revoluções no todo”.
Ninguém sabe quais as conseqüências da viagem, por isto,
sua missão é ainda mais aterradora. Nem todos estão prontos
para cruzarem o limiar do desconhecido.
A data do lançamento é agendada, seu coração palpita de
emoção, os dias que se seguem são repletos de ansiedade, você
vira alvo da imprensa, entrevistas e fotógrafos.
Você veste o macacão e adentra o módulo, aciona os
mecanismos, a ordem de lançamento é dada, o portal de luz, já
descrito pelos cientistas, se abre e o módulo é arremessado para
dentro dele. Se você já voou num avião durante uma
turbulência, então saberá qual é a sensação de se viajar no
tempo — uma turbulência sem serviço de bordo. Seu corpo
sacoleja, quase se soltando da poltrona, você vomita duas ou
três vezes durante a viagem, resultado do medo e dos
215
chacoalhões. Por fim, tudo se acalma, as luzes da cabine se
apagam, a porta se abre.
Você está no futuro!
A primeira visão sua é uma mescla de deslumbramento e
decepção. O mundo não mudou muito, a arquitetura é quase a
mesma, não há carros voando, apenas automóveis nas ruas,
ainda existem árvores, ainda se pode respirar. Porém, algo está
errado, apesar de todas as estruturas estarem intactas, não há
uma única pessoa nas ruas. Tudo permanece estático, como se o
tempo houvesse parado, como se a população houvesse sido
varrida do mapa.
Você vaga pelas avenidas aleatoriamente, as portas das lojas
estão abertas, os carros estão parados nos cruzamentos, os
semáforos prosseguem em silêncio alternando vermelho, verde
e amarelo. Numa banca de jornal, você lê a notícia:
“Eles chegaram!”
E, numa foto colorida, centenas de luzes surgindo num céu
crepuscular. O jornal foi publicado uns cinco ou seis dias antes
de sua chegada neste tempo. Por menos de uma semana, você
perdeu o que pode ter sido o maior, e possivelmente o último,
grande evento da Humanidade.
Você se interroga sobre o que ocorreu neste período: houve
uma guerra? Mas a tranqüilidade do cenário inviabiliza esta
hipótese. O que quer que tenha ocorrido, foi de maneira
inadvertida, inesperada e súbita. Os humanos haviam
desaparecido, não fugiram ou foram dizimados, apenas
desapareceram.
216
Sua viagem parece ter sido em vão; sua missão fracassara.
Mas você não desiste, perambula pela cidade, numa outra
tentativa para encontrar vida e obter informações sobre esta
civilização.
As sombras dos edifícios se alongam, anoitece. Você ouve
sussurros e passos, uma ponta de esperança surge em sua
mente, talvez sejam os habitantes desta cidade-fantasma. Mas
toda vez que você corre em direção aos sons, adentrando uma
casa ou loja, nada encontra, ninguém, somente o silêncio.
O sol se esconde no poente, as luzes dos postes não se
acendem, a única claridade para você é a da lua cheia. Os
sussurros e passos aumentam, circundam-no, contornam-no,
estão à sua espreita; você está cercado e não tem idéia do que
tais seres querem ou pretendem.
Você corre, corre até suas forças o abandonarem, mas eles
estão atrás de você, cuidando-no. Sabendo-se encurralado, você
abre a tampa do esgoto e se embrenha nas galerias
subterrâneas, por entre as artérias da cidade morta. Porém, os
passos continuam no seu encalço, passos, sussurros e, agora,
rosnados e grunhidos. Você faz curvas e contornos, perde-se nas
trevas dos canais, ora parece que seus perseguidores estão na
sua cola, ora parece que eles o emboscam na dianteira.
Pela primeira vez, você se lembra da pistola no coldre. Mal
sabe manejá-la, era o pior na classe de tiro; escolheram-no por
sua inteligência e não por sua habilidade em combate,
certamente, nenhum dos cientistas contava com o mundo que
você encontrou. No pente há nove balas. Durante o
treinamento, a instrução era enigmática: “Em caso de combate,
217
oito disparos são para os inimigos, o nono será para você”. Mas
ninguém esperava esta situação.
De relance, você vislumbra uma das criaturas, toda negra,
braços (quatro, até onde conseguiu contá-los) compridos e
tentaculares, olhos dum vermelho cintilante.
Você adentra uma câmara, a água suja bate-lhe na altura do
peito, sua respiração é ofegante, suas mãos tremem. Você sabe
que morrerá, tais criaturas devem ser inclementes, pois, pelo
que tudo indica, devastaram toda uma civilização. Seus
pensamentos vagam, lembra-se de sua esposa, de seus pais, do
mundo e da época no qual viveu, pensa na missão que lhe foi
designada. Naquele instante, há cem anos no passado, um grupo
enorme de pesquisadores e cientistas aguarda seu retorno, à
espera das informações e dados que você trará. Num derradeiro
gesto de altruísmo, você armazena sua história num gravador de
voz. Foi tomado por aquela sensação humana de sobreviver a
sua própria morte, de que sua mensagem prevaleça. Você não
sabe se um dia alguém encontrará seu registro, mas o faz
mesmo assim.
Agora é hora de encerrar a gravação, os passos estão pertos,
a pistola está destravada, os cientistas continuarão esperando
seu retorno, sua mulher não terá um corpo para chorar.
E não se esqueça: o nono disparo é para você.
218
Tema 8 – O toque
219
220
O sino
Ana Cristina Rodrigues
Parada no meio da praça central da vila em que sempre
morei, contemplo o sino de bronze da igreja. Lembro da tarde
de verão quando foi trazido para substituir o velho sino, já
rachado, com um som tão tétrico que afastava as pessoas da
igreja e portanto de Deus.
Meu pai ajudara a colocá-lo ali. Fora homem respeitador dos
mandamentos, sério, sempre auxiliando a igreja. Sua morte
deixara um buraco muito grande naquele pequeno lugar.
O zumbido das vozes me cerca, mas ignoro. Prefiro ficar
perdida nos meus pensamentos, contemplando o sino, sinal
daquele passado que está cada vez mais distante, a participar da
pequenez da vida cotidiana da aldeia, cheia daquelas pequenas
mesquinharias e intrigas. Eram todos iguais, capazes de vir
chorando pedir um favor e no outro dia sussurrar mentiras nos
ouvidos dos vizinhos, envenenando almas.
Eu nunca fizera isso, até porque as vidas dos moradores
pouco me interessavam. Jamais me furtei a ajudar quem
precisasse, claro está. Porém, não os procurava para nada,
deixava que eles viessem a mim. Minha companhia eram os
livros em que meu pai, com muito esforço, me ensinara a ler; os
bordados que aprendi com minha mãe, falecida meses antes
dele, e a gata, já bem velhinha, herança que viera com a casa
que herdei. Vivia minhas horas pelo soar do sino.
221
O sol esquenta. O meio-dia aproxima-se, hora em que o sino
irá badalar com toda a sua força. O ruído do povo ao meu redor
cessa para que uma única voz comece a ressoar. Voz conhecida
de muitos anos. Por muitas vezes, ouvira-a conversando com
meu pai, discutindo os problemas daquela pequena paróquia.
Não poderia imaginar que aquela voz tão grave e serena se
voltaria com toda a força contra mim.
- Por todos os crimes de feitiçaria relatados pelos habitantes
desta aldeia, eu a sentencio à morrer na fogueira quando o sino
terminar de bater o meio-dia.
Algo a dizer?
Não respondo. Já argumentei, negando as acusações.
Cansada da discussão, aleguei que deveria ser julgada por um
tribunal. Mas não fui ouvida.
Estão convencidos que usei de artes da feitiçaria para matar
meus pais, auxiliada por um demônio que habitaria a velha
gata...
O sino toca. O som é límpido como da primeira vez em que
soou nessa praça. Um toque que me lembra a infância e tempos
mais felizes. A multidão aproxima-se, tochas em punho. Sequer
tento me soltar da estaca em que estou amarrada há dois dias.
No meu íntimo, peço que se realmente existir magia que ela me
auxilie e me deixe fugir. Se me for permitido viver, naquele
momento eu juro me tornar aquilo de que me acusam: uma
feiticeira.
Mas quando escuto o toque final do sino de bronze, sinto as
primeiras labaredas encostarem nos meus pés nus.
222
A mão
Henry Alfred Bugalho
O som da chuva me dava vontade de fazer xixi. Eu estava
rolando na cama desde a meia-noite, inquieta após haver
assistido a um filme de terror. Maldita sexta-feira treze e estas
sessões intermináveis de monstros e cadáveres na TV!
Mal me segurando, desenrolei-me dos lençóis e pousei os
pés nus no carpete do quarto.
Foi quando o inusitado ocorreu. Não foi como se me
segurassem, ou como se me apertassem, foi apenas um toque,
um resvalo no meu calcanhar, vindo de sob a cama. Tenho
certeza de que não era fruto da minha imaginação, a sensação
foi clara o suficiente para evitar qualquer dúvida: uma mão, de
sob minha cama, havia tocado meu pé.
Gritei, saltando assim como quando, na praia, ondas geladas
deslizam na altura das nossas canelas, e instintivamente olhei
para a fonte do meu desespero.
Nada havia.
Corri para o banheiro, pois o susto aumentou ainda mais
meu apuro.
Ao voltar para o quarto, entrei sem muita coragem. Acendi a
luz e, a uns dois metros de distância da cama, ajoelhei-me,
encostei lateralmente a cabeça no chão e tentei divisar algo.
Tinha bastante entulho embaixo, mas nada que se assemelhasse
223
a uma mão, ou a algum dono de mão querendo me dar um
susto. A hipótese de ser meu irmão estava descartada.
Rastejei até lá e, no caminho, apanhei um tênis, para dar uns
safanões, caso fosse algum bicho (rato?!) desgarrado. Encontrei
caixas de Barbie (bonecas aposentadas há uns três anos), uma
dúzia de caixas de sapatos, às quais afastei com o bico do tênis,
uma meia suja recoberta de cabelos e poeira, até uma calcinha
velha havia lá em baixo.
Respirei aliviada, afinal de contas, poderia ter sido minha
imaginação — era mais fácil me agarrar a uma mentira —, um
vento encanado, sei lá, qualquer coisa, menos uma mão.
Apaguei a luz e, no mesmo instante em que o quarto foi
tomado pelo breu, um relâmpago brilhou pela cortina, lançando
uma claridade azulada, e vislumbrei talvez um rosto, cabelos
brancos desgrenhados, sorriso mórbido fitando-me por debaixo
da cama. Acendi mais uma vez a luz, e ri sozinha, meio
apavorada, mas também me convencendo de que a visão se
devia a alguma configuração bizarra de luminosidade no entulho
acumulado abaixo do estrado. Quando estamos com medo é isto
mesmo que acontece: quantas vezes não vemos pessoas e
fantasmas nas roupas dependuradas no cabide estando as luzes
apagadas, ou garras ameaçadoras nas silhuetas de galhos de
árvore por entre o tecido da cortina, ou o ruído do armário, dos
móveis, do vento, de passos, de sussurros?
Pura obra de nossa imaginação, pois não há nada, apenas
nosso medo.
Para não ficar na completa escuridão, deixei acesa a luz dum
abajur. Depois, mais confiante, apaguei-a também e tentei
224
dormir. Mas eu estava muito nervosa, coração batendo forte,
pés gelados (temia que alguém viesse puxá-los), trêmula.
Encolhi-me como um feto, a chuva havia engrossado, repicando
na vidraça. Tive a impressão de ouvir sons debaixo de mim,
alguém se arrastando, movendo a bagunça lá em baixo.
Pensei em me levantar e acender a luz, mas não tive
coragem. Preferi ficar quietinha, crente de que, se eu me
acalmasse, uma hora isto passaria.
Mas não foi o que aconteceu, o som aumentou, adicionado a
um ranger de dentes e a um estertorar idêntico ao que ouvi de
meu avô agonizando, pouco antes de morrer. E realmente, assim
como tive certeza de que uma mão tocara meu calcanhar, não
havia do que duvidar: alguém estava lá em baixo!
A situação era tão aterradora que se tornou insuportável,
insustentável, ou eu ficava lá e morria de medo, ou fugia. Num
pulo, voei para fora da cama e fui bater à porta de meus pais.
— O que foi, Silvana? — minha mãe a abriu, remelas nos
olhos e cabelos despenteados.
— Mãe, estou com medo... — resmunguei.
— O que foi que aconteceu? — meu pai perguntou, também
despertando.
— É a Sil... Acho que aconteceu alguma coisa.
— Estou com medo, pai.
— Porra, Silvana, até o Júnior já passou desta fase! Deixa a
gente dormir porque amanhã eu acordo cedo!
225
Uma expressão de condescendência e compaixão surgiu no
rosto de minha mãe, mas a ordem de papai era lei.
— Vai domir, Sil, vai — ela acariciou meus cabelos.
Mas como?!
Eu não entraria naquele quarto novamente, por isto, fui para
a sala assistir TV. Estava tarde, e os únicos programas sendo
transmitidos eram de compras por telefone, pastores tirando o
diabo do corpo de crentes e um ou outro filme de terror, pois,
apesar da sexta-feira treze ter oficialmente terminado, ainda
estavam aproveitando o clima.
Meus olhos começaram a pesar e, em pouco tempo,
adormeci no sofá.
Fui acordada por meu pai, na manhã de sábado, ele se
preparando para ir ao trabalho.
— Dormiu aqui, Silvana? — ele me perguntou.
— Eu estava sem sono, pai. Vim assistir TV.
— E o que aconteceu ontem para você bater na nossa porta?
— Nada, bobeira, achei ter visto um rato.
Ele riu.
— Mulheres mesmo!
Passei o dia na casa da Camila; dançamos funk, rimos com
uns vídeos na net, falamos dos gatinhos que estávamos ficando.
Cheguei em casa tarde, apenas para comer um lanche e ir
226
dormir, mas não consegui entrar no meu quarto, a simples
memória de ontem à noite bastava para me impedir.
Voltei para sala e repeti o serão da noite anterior: TV e
dormir no sofá.
E isto se repetiu por uns dez dias, para estranhamento de
meus pais e irmão.
No entanto, numa das noites, adormecida na sala, tive a
vaga impressão de que meu pai havia se levantado, apanhadome nos braços e me conduzido à cama; lembro-me até de ter
murmurado, sonolenta, algo como “Não, pai! Por favor, não!”
Eu entendo a atitude dele, devia pensar que meu medo era
mero capricho, e que uma noite no meu quarto e na minha
cama quentinha já seria suficiente para espantar os fantasmas
da minha alma.
Realmente, ao ser coberta pelo edredom e pelos lençóis
cheirosos, caí num sono profundo e devo até ter roncado, após
tantas noites dormindo desconfortavelmente.
Mas fui acordada por ruídos e grunhidos. Não havia chuva
para que eu me confundisse, além disto, havia um ligeiro tremor
na cama. Alguém se arrastava lá embaixo, e parecia que as
costas desta pessoa se chocavam contra o estrado. Eu estava
meio lenta, com sono, mas não estava tendo pesadelo nem
delírio, alguém tentava sair de sob a cama.
O medo fez com que o sono desaparecesse, mas, quando
considerei a possibilidade de saltar para fora e me refugiar na
sala, a visão duma mão, esquálida e branca, se erguendo pela
227
borda do colchão, agarrando o edredom, dando suporte ao
resto do corpo que haveria de aparecer, me fez mudar de idéia.
Encolhi-me contra a parede, abraçando minhas próprias
pernas, tremendo, pêlos todos eriçados.
A segunda mão apareceu, também agarrando as cobertas e,
entre o espaço das mãos, uma cabeça começou a surgir, cabelos
brancos, os olhos vazios, fundos, perdidos nas órbitas, repletos
de angústia e cólera, a pele desta velha criatura era ressecada e
apegada aos ossos duros da face, os dentes podres e
enegrecidos. A criatura erigiu a parte superior do tórax, vestia
uma camisola amarelecida e ensangüentada, podia-se ver as
vértebras e os ossos dos ombros saltando por entre o tecido.
Ela se arrastou até mim e, quase encostando a boca no meu
nariz, exalando aquele hálito pútrido, a criatura sibilou a
questão:
— Onde você estava, Silvana? Eu estava apenas te
esperando.
O colchão, os lençóis, as cobertas estavam todas espalhadas
pelo quarto de Silvana quando seus pais foram até lá de manhã.
A mãe de Silvana se desesperou, certa de que algum estuprador
a tinha levado. O pai foi mais coerente, ligou para a polícia para
dar queixa de desaparecimento, supunha que a filha
adolescente devia ter conhecido algum rapaz na Internet e agora
estava se aventurando pelo mundo, pensando que o amor lhes
bastaria (havia assistido a uma notícia semelhante no telejornal
durante a semana).
No entanto, apesar das suposições, dos cartazes espalhados
pela vizinhança, da foto de Silvana na TV, do detetive particular
228
contratado, das investigações policiais, nada foi descoberto. A
moça havia simplesmente desaparecido sem deixar vestígios.
Anos se passaram e a família manteve o quarto da Silvana
como um santuário intocado, para caso ela um dia retornasse.
No entanto, Júnior cresceu e sugeriram que ele ocupasse o
quarto maior, que havia sido de Silvana; as coisas dela foram
entulhadas na garagem.
A mudança de cômodo foi acompanhada de pesadelos nas
noites subseqüentes. Júnior acordava suado, ofegante, com a
sensação de que algo se movia sob a cama. Mas ele era
corajoso, sabia que tais coisas estavam em sua imaginação.
Até a noite de sexta-feira, dia treze, quando mãos surgiram
pela borda do colchão, magras, secas, e uma jovem,
irreconhecível, loira, pele e osso, olhos profundos, fétida, se
ergueu.
Estendeu a mão e acariciou o rosto de Júnior, paralisado
pelo medo:
— Achei que você nunca se mudaria para cá, meu irmão.
Agora pode vir comigo.
E o tragou para as profundezas das sombras, entre chinelos
e meias.
229
230
Duas caras
Denis Clebson da Cruz
Tobias passou o papel áspero na testa. Suava igual a um
porco na fila de abate. Seu corpo roliço mal cabia no cubículo
fedorento do banheiro do bar. Suava de calor; as dobras de
banha roçando umas nas outras, esfregando em feridas de
assaduras.
Passou o mesmo papel na bunda, jogou no lixo e tirou um
outro naco, enxugando novamente a testa e o pescoço.
Repetiu o ritual umas três vezes: papel, testa, pescoço,
bunda.
Suava de medo. Aliás, estava sentado naquele vaso imundo,
pois o pavor fez seus intestinos revirarem.
Havia roubado A Firma. Tobias era o contador, mexia com
milhões e milhões, lavando o dinheiro “daqueles putos”, como
sempre dizia. Surrupiou-lhes uma fortuna.
Agora o diabo batia à sua porta, cobrando a dívida. Há
alguns minutos atrás estava sentado em uma das mesas do bar;
tinha vindo até esta imundície de lugar a pedido de Maila, uma
dos chefes da Organização. Pensou em várias hipóteses para o
encontro furtivo, mas não imaginou que receberia apenas um
bilhete encardido de um garoto ainda mais encardido.
Abriu o papel e viu uma cifra. Era o exato valor que havia
desviado da Firma. Eles descobriram. Não tinha como escapar da
morte.
231
Enxugando novamente a testa, sorriu. “Metade do dinheiro
foi pras putas”, pensou e limpou a bunda mais uma vez.
A porta escancarou num estrondo violento, raspando em
suas pernas, batendo-lhe na cara. Fred colocou um pé dentro do
cubículo e enfiou-lhe o cano niquelado de uma magnum 357
dentro da boca.
- Tenho um milhão guardado... é todo seu se poupar minha
vida. – disse mastigando o cano da arma.
- Onde? – perguntou o mercenário.
- No meu escritório. Levo você até ele.
- Vou puxar o gatilho – disse Fred com frieza.
- Está escondido, eu te mostro.
- Vou puxar o gatilho – puxou o cão.
- Está na terceira coluna, na da estátua da Vênus.
Tobias suava ainda mais, o ventre mexendo como uma
serpente se enrolando. Sentiu o gelo do metal na língua, mas
não teve tempo de sentir ele esquentar. O pistoleiro puxou o
gatilho.
- Da merda viestes, à merda voltarás – disse Fred
contemplando os miolos do contador espalhados na parede
bolorenta e o corpo que desabou no vaso.
Pessoas se afunilaram na porta do banheiro por causa do
estrondo do disparo. O pistoleiro ainda limpava o cano da arma
232
na camisa de Tobias. Olhou para os curiosos e, passando por
eles, disse:
- Se alguém me viu, eu também o vi. E isto quer dizer que
tornaremos a nos ver.
Saiu daquela pocilga, caminhando pelo beco escuro. O
celular tocou um jingle dos Beatles “Lucy in the sky”. Era um
toque programado para uma pessoa específica, Maila.
- Está feito – disse no aparelho.
- Vá para casa e esconda a arma. Te ligo em uma hora – disse
a voz feminina do outro lado.
Assim que subiu as escadarias de seu prédio e entrou no
apartamento, escondeu a arma num compartimento em baixo
da poltrona. Sentou-se, como se esperasse uma nova ordem.
O celular soou novamente, os olhos de Fred reviraram e suas
feições mudaram, dando lugar a Daniel que despertou com
aquele toque que conhecia bem. Era um som normal, escolhido
– pelo que ele se lembrava – entre qualquer um da memória de
seu velho Nokia 3520. Leu “Engano” no visor e sorriu. Gostava
de ouvir a voz daquela moça que sempre parecia ligar quando
estava cochilando.
- Alô – disse Daniel arrumando-se na poltrona.
- Quem fala? – perguntou a voz suave do outro lado.
- Daniel.
- Desculpe-me, Daniel, foi engano – fez uma breve pausa. –
Não se esqueça de manter seu celular por perto.
233
Daniel meneou a cabeça. Ela – seja lá quem fosse – sempre
fazia isto.
Ligava, dizia que era engano e pedia para manter o celular
ao seu lado. Estranho ou não, Daniel fazia o máximo para ficar
com aquele velho Nokia sempre ali por perto, como se
esperasse pelo jingle da misteriosa mulher.
No dia seguinte, pegou a maleta e foi para o Edifício Nordon,
seu local de trabalho. Passou pela lateral dos dois detectores de
metais e os seguranças o cumprimentaram. Sabiam que ele
tinha uma placa de metal em algum lugar do corpo (só não
sabiam ser na cabeça).
Subiu até o oitavo andar, onde era seu consultório
odontológico. A maioria de seus pacientes era do próprio
edifício, um dos inúmeros arranha-céus do centro da metrópole.
Daniel atendia o terceiro de seus pacientes, trabalhando
com dificuldade num canal. O celular em cima da mesa soou
“Lucy in the sky” e antes que ele desse conta, Fred havia
assumido o comando de sua mente.
O paciente, de olhos fechados, não notou as expressões no
rosto do dentista tornarem-se mais profundas.
- Um segundo – disse o pistoleiro ao paciente. Não sabia
como mexer naquela boca escancarada.
Pegou o telefone e foi para a sala ao lado, não sem antes
munir-se de um pequeno pedaço de papel e caneta.
- O outro está com um paciente na cadeira, não é uma boa
hora – disse o mercenário.
234
- Quero saber se o contador lhe disse algo antes de morrer –
disse Maila sem rodeios.
Fred curvou-se apertando o ventre. Parecia que ia vomitar e
sentia a cabeça quase explodindo.
- Não – disse enfaticamente, agradeceu por Maila não poder
ver suas reações.
- Diga-me, Fred, não me esconda nada – havia um tom de
ordem na voz – Tobias disse algo para você antes de morrer,
revelou onde pode estar o dinheiro?
Novamente a dor lacerante na cabeça, mas o pistoleiro
conseguiu negar.
- Por que a demora em me responder, Fred?
- Escute aqui, sua vadia – disse chiando entre os dentes –
vocês chafurdam em minha cabeça como porcos chafurdam o
cocho e ainda quer que eu seja rápido em me lembrar o que
lanchei ontem à tarde. Vá à merda.
Fez-se uma pausa, e finalmente Maila perguntou:
- Você continua rápido no gatilho?
- Rápido como um herói; Letal como um vilão.
- Está certo. Eu acredito em você.
- Me ligue em dois minutos. Estarei com a broca na boca
daquele diabo.
235
Maila desligou e Fred escreveu algo no papel que havia
pegado, enfiando o no bolso da camisa. Deixou o celular sobre a
mesa e sentou-se ao lado do paciente.
- Tudo bem doutor? – perguntou-lhe o homem com a boca
cheia de algodão.
O celular tocou o jingle que Daniel conhecia. Ele olhou para
trás, despertando assustado.
- Doutor? – perguntou o paciente.
- Não se preocupe – sorriu-lhe Daniel. – É engano – e voltou
ao trabalhoso canal.
À noite, em seu apartamento, sentiu um papel no bolso da
camisa. Leu uma letra que lembrava a sua, mas não era; ou era?
“Pegue seu celular e, nas configurações de toques, ouça “Lucy in
the sky”.
“Estranho”, pensou enquanto pegava o celular. Fred
despertou segurando o aparelho na mão. A curiosidade vencera
o outro.
Era o momento de se livrar daquilo tudo; não queria mais ser
escravo, movido por ordens hipnóticas. Mas não podia fazer
tudo sozinho, precisava de ajuda. Ajuda de Daniel, a outra
metade que sequer sabia de sua existência.
Precisava trazer à tona sua outra consciência, mas como?
Não sabia qual música o despertava, mas sabia qual toque trazia
à tona esta personalidade assassina; um pistoleiro mercenário
que trabalhava para A Firma. Soube então, o que deveria fazer.
236
Daniel despertou olhando o visor do celular, mas sem soar o
jingle que havia escolhido há poucos segundos – sequer
percebeu ter decorrido quase uma hora completa. Soava o
toque daquela estranha mulher que às vezes ligava para dizer
que era engano.
Percebeu então que na sua mão esquerda havia outro
bilhete. Leu naquela familiar letra: “Daniel, por mais estranho
que lhe pareça, faça o que estou pedindo.
Há um CD no aparelho da sala. Sente-se no sofá e relaxe.
Ligue o som e coloque no menor volume. Escolha a música
número três e, muito lentamente, vá aumentando o som. Assim
que você fizer isto, talvez eu poderei falar com você.”
- Que merda é essa? – murmurou o dentista.
Olhou para o papel, o celular e o aparelho de som. Pegou o
controle e sentou-se na poltrona. Não custava entrar na
brincadeira.
Obedeceu à risca. O som aumentando, aumentando. Sentiuse primeiramente entrando num sono leve, depois uma pontada
na fonte, como uma pequena agulha. Franziu o cenho enquanto
a luz indicadora do volume girava mais um ponto; mais um; e
outro e mais um.
Levantou-se assustado, como se outra pessoa houvesse
invadido o ambiente.
- Quem está ai? – gritou Daniel para as paredes.
- Eu – respondeu sua própria voz, um pouco mais rouca.
- Quem é você?
237
- Eu sou você. Ou melhor, sou outro de você. Ou outro que
vive em você.
Sei lá. Qualquer coisa assim.
Daniel girava, olhando para todos os lados. Jogou o controle
no chão e desabou na poltrona, colocando as mãos na fronte.
- Eu estou ficando louco.
- Sim – disse o mercenário – você é um doido varrido. Os
psiquiatras chamam isto de dupla personalidade. Ah, eu sou
Fred, seu outro.
- Impossível – resmungou Daniel.
- Preste atenção, não foi fácil trazer minha consciência ao
lado da sua.
Custou muito para eu sair do fundo da sua mente. Vou te
explicar o que está acontecendo.
“Eu, você, enfim, nós, somos um assassino. Trabalhamos
para uma empresa, que é chamada de A Firma. Nosso pai
trabalhava para ela e buscou socorro nela quando sofremos o
acidente. Os médicos salvaram nossa vida, mas depois
descobriram uma seqüela: dupla personalidade e fizeram bom
proveito da sua outra metade, eu.
“Contigo correu sempre tudo normal, mas eu fui treinado
para ser um assassino comandado por hipnose, despertado pelo
toque de uma música. Por isso você tem alguns apagões de
memória. Isto acontece quando assumo para fazer o serviço
podre da Firma. Faz tempo que tenho tentado me livrar das
238
ordens hipnóticas e acho que estou pronto para enfrentar os
comandos deles. Daniel, temos que nos livrar destes malditos.”
- Isto é loucura.
- Eu já disse, você é doido de pedra.
A pedido de Fred, Daniel levantou a poltrona e puxou uma
espécie de gaveta. Duas pistolas Magnum 357 e várias caixas de
munição. Empunhou e sentiu o peso das armas.
Em sua mente, Fred disse tudo o que ele precisava saber.
Não havia dúvida, precisava se livrar daquilo tudo. O outro que
existia dentro dele era, no fim das contas, ele mesmo. Uma
versão piorada, mas ele mesmo. Iria fazer o que fosse
necessário.
Não dormiu naquela noite. Fred sumiu. “Deve estar
dormindo”, chegou a pensar. Assim que amanheceu o dia,
cumpriu o ritual. Entrou no Edifício Nordon e os guardas
sorriram em cumprimento quando ele passou pela lateral do
detector de metais, com as duas armas socadas na cintura,
disfarçadas no paletó branco.
Entrou no consultório e avisou a secretária que não estava
passando bem.
No fundo da gaveta de sua sala, retirou um cartão de acesso
aos andares mais altos do edifício.
- Então é ai que você escondia essa merda? – perguntou
Fred. – Agora vá ao andar 38.
Saiu no hall que dava acesso às salas do andar e passou o
cartão ao lado de umas das portas, acendendo uma luz verde.
239
Teve acesso a um corredor com quatro elevadores. Entrou em
um deles e acionou o 38° andar.
- Preciso falar com o Sr. Tobias – disse Daniel à recepcionista
no grande hall do andar, cercado por várias portas.
A moça olhou por cima dos óculos e deu um sorriso.
- Isso vai ser impossível, pois ele morreu – parecia haver
prazer na notícia.
- Não importa – disse Fred assumindo o controle – ele tem
um conjunto de próteses dentárias que deixei com ele. Preciso
pegar de volta.
- O senhor deu sorte. A secretária dele está recolhendo
algumas coisas na sala, talvez ela possa ajudar.
Pelo telefone, a recepcionista fez contato com a sala do excontador.
- Ela vai recebê-lo – anunciou apontando a sala.
Daniel seguiu a direção indicada e assim que abriu a porta
sentiu Fred tomando conta. Mal a secretária sorriu e ele
retribuiu com um soco no rosto; a mulher despencou
desmaiada.
A mão direita de Daniel ardia; Fred parecia nem notar.
Entraram na sala; mesa limpa, coisas colocadas em caixas. Viu a
terceira coluna de mármore branco
com a Vênus em cima. Tirou a deusa, virou a coluna e não
viu nada. Com outra coluna a quebrou, vendo que no meio dela
havia um cinturão negro. Abriu o zíper e vislumbrou inúmeras
240
notas de mil. Seu sorriso sumiu quando viu pelo vão da porta
que a secretária havia despertado e estava pendurada no
telefone.
- Vadia – disse Fred passando por ela e colocando-a para
dormir com outro soco.
Vestiu a cinta abarrotada de dinheiro e empunhou as duas
pistolas.
- Você não vai matar alguém, vai? – perguntou Daniel
olhando para a porta à sua frente.
- Eu não – chutou a porta que se abriu para o hall. – Nós
vamos – disparou com ambidestria, atingindo o peito de dois
guardas que corriam em sua direção.
Daniel estaria tremendo se o corpo não pertencesse
totalmente à sua outra parte. Andou calmamente pelo hall, a
recepcionista encolhida atrás do balcão, e parou em frente ao
elevador fechado que indicava estar chegando no andar.
Quatro disparos. Quatro guardas mortos assim que as portas
começaram a abrir. Fred chutou um dos cadáveres que estava
impedindo a porta e acionou o 13° andar.
- Por que não vamos para o térreo? – disse Daniel olhando
no espelho.
- Como você acha que vai ser a recepção lá?
A porta do elevador abriu e entraram num grande salão.
Uma exposição de motos, vários modelos. Assim que subiu em
uma Honda CBX400, Fred fez um disparo para o alto.
241
Os presentes alvoroçaram no recinto entupido de gente e os
guardas não encontravam o alvo. O som do giro do motor da
moto não sobrepujava os gritos.
- Segure-se – Disse o mercenário olhando para a parede de
vidro que parecia sustentar o andar.
- Você não vai...
Antes que Daniel terminasse a frase, a moto estava em
movimento, rumo à janela, pessoas desviando dela. Subiu numa
rampa de exposição, estilhaçando os vidros, ultrapassando o
abismo de treze andares e irrompendo dentro do edifício ao
lado, deslizando pelo chão.
- PUTA QUE O PARIU! – Daniel conseguiu gritar enquanto
Douglas os colocava de pé e corria para a escada. As pessoas
daquele andar aturdidas com o estrondo das vidraças
estilhaçando e uma moto derrapando por entre as mesas do
escritório.
Desceu dois andares e tomou o elevador de serviços,
parando na lavanderia onde vestiu um jaleco azul com o símbolo
do edifício e começou a carregar caixas até sair por uma das
laterais e se misturar nos incontáveis pedestres.
Alguns dias depois, estava em algum país tropical, olhando
para a imensidão do mar azul.
Estranhamente, Daniel sentia-se livre, ainda que Fred
martelasse com freqüência sua mente. Sentia uma certa
inquietude em sua vida anterior e dela só herdara o antigo Nokia
3250, que trouxera desligado.
242
Naquela manhã, carregara a bateria e o deixara ligado ali ao
lado. Daniel queria ouvir a voz de Maila; Fred queria apenas
xingá-la.
Finalmente um toque diferente, mas nem uma das duas
personalidades conseguiu ouvi-la até o fim.
Douglas acordou de repente naquela praia. Havia um copo
com wiski em sua mão o toque de seu celular, soando “Garota
de Ipanema” anunciava sua esposa ao telefone:
- Maila?
- Sim querido.
- Aconteceu de novo. Estou perdido. Me ajuda a voltar pra
casa?
- Claro, meu amor. Logo, logo estaremos juntos.
243
244
O toque
José Espírito Santo
A vida é uma sequência de toques. Fortes e fracos, evidentes
e subtis, de pessoas e de coisas, no corpo e no coração. Nela,
muito do que existe passa ao lado, não interessa. Não sendo
“bom” nem “mau”, não nos toca verdadeiramente. É efémero e,
embora percebido nunca fará parte de nossa vivência.
Madrid. Um camisolão da “Pull and Bear”, “jeans” e sapatos
de “vela” conferem ao homem um aspecto prático e informal.
Junto ao fontanário e um pouco alheado dos transeuntes que
passam, cabelo e barba compridos onde aparecem algumas
“brancas”, os olhos observando, a mente comandando uma mão
que escreve no pequeno dispositivo, ele está, actua e espera.
Tem algum tempo ainda – três quartos de hora - antes de se
colocar a caminho para estar no sítio certo à hora marcada.
Talvez vá de metro, talvez de autocarro – não sabe, não decidiu.
As crianças, essas vão ficar felizes (como sempre) por ver chegar
o tio de barba branca e atitudes pouco convencionais.
“Hei, pode indicar-me o caminho para a Plaza Maior?”
A frase da mulher, atirada assim, de chofre, aturdiu,
projectando-o para dentro de si mesmo, fazendo recuar quinze
anos atrás. Neste espaço de tempo ele vê-se na pele do jovem
físico promissor e inexperiente que era então.
“Posso sim”, disse, solícito. “Desculpe, pareço atrevido ao
dizer isto mas você, você faz-me lembrar alguém. Uma pessoa
que encontrei aqui neste mesmo lugar vinte anos atrás”.
245
“Como é? E foi importante esse encontro?” disse a cara
morena, espantada.
Filipe riu com um riso franco e gentil, removendo todos os
receios da estranha. “Foi sim. Muito. Tem uns minutos? Eu
conto-lhe como tudo se passou”. Não necessitou esperar
resposta porque entretanto ela sentara-se a seu lado e era “toda
ouvidos”. Começou a relatar o que tinha sucedido.
Sabe, eu era muito jovem, tinha terminado o curso de física
no Instituto Superior Técnico em Lisboa. Estava de chegada à
capital espanhola para visitar a minha irmã, Rita, a qual estudava
informática na “Universidad Complutense”. A minha cabeça
zunia com o “stress” - era um rol de preocupações. Não sabia o
que fazer, o que escolher. Se por um lado, o professor Ribeiro
me oferecia a oportunidade de continuar na Universidade e
iniciar carreira como investigador, por outro, a proposta de uma
empresa importante perseguia-me. Estava confuso. Com a
pequena mochila, tinha-me sentado junto a este fontanário este mesmo onde estamos agora. Quando a vi, fui igualmente
visto.
Ela estava de ténis e fato de treino, o lenço colorido quase
ocultando por completo os cabelos pintados de vermelho claro.
Segurava na mão direita a trela extensível na extremidade da
qual surgiam quatro patas e a cabeça irrequieta de um caniche.
O bicho deve ter antipatizado comigo e arremeteu, mijando nas
calças sem qualquer pudor. A dona disse, toda sorrisos
“Desculpe, ele é mesmo assim, atrevido. Anda cá Miguel
Angelo.”
246
Estava pensando no que iria fazer em seguida - ainda não
tinha esboçado reacção, quando ela voltou à carga
“Deixe cá ver, você, essa cara… deve chamar-se António.
Não, talvez Manuel. Sempre tão práticos esses… Acertei?”
Sabe… fiquei um pouco embaraçado, confesso. Como bom
tímido que era, estranhava sempre investidas repentinas.
Consegui no entanto atirar o “Hum… não, Filipe. Filipe Oliveira”.
A resposta veio pronta, juntamente com a careta
“Filipe? Ah… não tenho experiência em Filipes. Quer dizer,
ainda não. Ajuda-me aqui, querido.”
Agora sentara-se a meu lado e tinha largado a trela,
deixando o bicho desaustinado, dando voltas e voltas, tentando
morder aquele apêndice que saía do pescoço e se arrastava pelo
chão. E como se não bastasse ainda pedia ajuda para descalçar
os ténis.
Não sei porque não virei as costas e deixei o personagem
estranho falando sozinho. Na verdade, nos momentos que se
seguiram, foram várias as vezes em que pensei faze-lo. Mas ela
parecia adivinhar e de alguma forma antecipava-se sempre às
minhas intenções juntando este ou aquele motivo de interesse
ao diálogo. Era tão diferente de todos os amigos e amigas que
conhecia, cujos planos e objectivos pessoais secavam
rapidamente a conversa. Que falavam e falavam, bombardeando
com perspectivas e metas pessoais, deixando-me praticamente
só com o papel de ouvir. Ao fim de um pouco já era eu quem
mais falava. Louco não é? Confidenciei a uma estranha as
minhas conquistas, receios e preocupações. E ela ouvindo tudo
com paciência e atenção pouco opinou, quase não se
247
pronunciava. Por fim, encostou-se a mim e senti a mão entrar
pelo bolso do casaco colocando lá algo. Disse:
“Depois, só depois, olha para isso que coloquei no teu bolso
e decide o que fazer”.
Piscou-me o olho, atirou-me o beijo e eu, parvo, não disse
nada. Não saberia encontrar reacção, resposta apropriada.
Assim, fiquei parado observando os dois vultos que se afastavam
rapidamente, unidos por aquele fio de trela, irrequietos e
imprevisíveis. Diminuindo, tornaram-se pequenos ao meu olhar,
a distância transformando-os em não mais que pontos
minúsculos. Desapareceram.
Como que acordando de um sono letárgico, voltei a mim e às
preocupações mundanas. Era tarde. Rita devia estar
preocupada. Pensei: “Que raio, que irresponsabilidade a minha”.
Levei a mão ao bolso para encontrar a falta dela. Da carteira.
Olhe, se a mente falasse, todos teriam ouvido o chorilho de
impropérios que me veio à cabeça. Depois de lhe ter chamado
mentalmente todos os nomes excepto santa, lembrei-me do que
a tipa tinha dito. Afundei a mão e retirei das calças o papel. Nele
estava escrito
“Sei que estarás com raiva de mim, que me terás chamado
todos os nomes excepto santa, que pensas não passar de uma
ladra, uma vagabunda. Deves estar confuso pois tal não
corresponde à imagem que fizeste, à impressão deixada pelo
nosso contacto mas… afinal que sabes sobre imagens não é?
Tenho algo que te faz falta e a vida será talvez feita de faltas.
Proponho-te o seguinte: Vem tomar um copo comigo esta noite
e devolvo todos os teus pertences. Ah… e ainda pago eu a
despesa! Mas terás de fazer uma escolha…”
248
“Escolha? Quer dizer que ela ainda teve o desplante de lhe
propor um jogo?” disse a mulher, que até essa altura se tinha
limitado a escutar.
“Pois é” continuou Filipe. “E olhe, ainda pensei ir à polícia
mas depois acabei por aceitar entrar no joguinho”. Olhou para
ela notando a curiosidade e prosseguiu a narrativa.
O desafio que ela me colocava era simples. Entre dois
lugares que distavam vários quilómetros tinha de acertar aquele
onde ela estaria exactamente às onze da noite. Não disse à Rita
que tinha perdido a carteira mas pedi-lhe algum dinheiro
emprestado. Eram umas dez menos um quarto quando saí. Tive
de apanhar dois transportes, cheguei a julgar não conseguir
estar lá a tempo mas uns minutos e umas corridas depois
chegava – ofegante.
O “mezon” estava animado mostrando que em matéria de
vida nocturna, os “madrilenhos” não deixavam créditos por mão
alheia. Sobre as mesas toscas as caras deles fitavam, meio
zonzas, os copos de vinho tinto e queijos e fritadas. E bebiam e
comiam e dançavam ao som do acordeão. Tudo com muito
ruído, e forma bem animada. Ao fim de procurar por uns
segundos descobri-a; estava numa mesa, juntamente com os
dois tipos. Competiam com os outros convivas a ver quem falava
mais alto e ria mais.
Aquele momento foi difícil para mim. Sabe, sempre fui um
pouco tímido e senti-me atrapalhado com a situação. Mas, agora
que estava ali, não ia voltar para trás de mãos vazias. Abri
caminho por entre as mesas e encarei os três. Apontei e proferi
249
“Olá Marta. Pelos vistos não conseguiste ver-te livre aqui do
Português. Quero o que é meu”
Então aconteceu o que menos esperava. Olharam os três
para mim, apontaram-me com os dedos, entreolharam-se e
atiraram a cabeça para trás, rindo a bandeiras despregadas. Já
imaginou a situação? Confrangedor. Estava a afinar com aquilo
quando o gajo de bigode disse “Outro. A tua irmã anda
imparável. Este mês já vai no terceiro.” e prosseguiu “Olha
amigo, estou a ver que conheceste a irmã gémea dela. Meio
maluca não é? Ainda não viste nada. Senta-te aqui, bebe um
copo connosco e ficas logo a conhecer esta que é bem pior ”. Foi
tudo quanto disse antes de se comprimir na dor,
experimentando a pisadela do salto alto afiado, em bico.
Respondi com um “Não, obrigado” e voltei as costas. Pelos
vistos tinha tomado a opção errada. Considerei a hipótese de
ficar por ali mas abandonei-a rapidamente. Não estava com
grande disposição para festas. Preparava-me para voltar quando
ouvi
“Filipe, já vais embora? A noite ainda vai começar…”
Virei-me e vi-a. O aspecto era cuidado, o ar sofisticado nada
tinha a ver com a Marta do encontro da tarde. Mais uma vez ela
adiantava-se e surpreendia.
Bem… poupando-a a detalhes, ela puxou-me dali para fora e
fomos os dois pela noite dentro, aqui e ali. Em cada nova
paragem, amigos e amigas dela introduziam conversa fiada. Às
tantas cansámo-nos daquilo e fomos os dois ficar sozinhos. Ah…
não! Não lhe conto os pormenores…. (riso). Foi diferente, muito
250
bom. Um toque inesperado, subversor na minha vida. E
recuperei a carteira.
“E depois? Deram seguimento a essa relação?” disse a cara,
vivamente interessada em saber o desfecho.
“Não. Nunca mais a vi.”
“Hum… deixe-me adivinhar. Esqueceu-a e depois de uns dias
com a sua irmã, decidiu-se pela carreira de universitário.
Acertei?”
“Não. Não poderia estar mais enganada. Depois daquela
noite as coisas ficaram claras para mim. Decidi não ficar mais
vivendo a vida dos outros, fazendo apenas o que os eles queriam
ou o que era mais fácil, copiando ditado ao invés de escrever
meu próprio texto. Há um pormenor que não lhe contei. Um
pouco antes de fazer a viagem tinha iniciado um curso de
pintura e foi amor à primeira vista. Por falar nisso… ” disse,
soltando o sorriso franco, acolhedor.
Apesar de estar atrasado, estendeu-lhe a mão e o convite,
dizendo
“Tenho que ir buscar dois pestinhas. Venha daí. Tomamos
uns sorvetes todos juntos e depois, depois se ainda estiver a fim
passamos pela minha galeria e mostro-lhe algumas das últimas
criações”
Márcia considerou a proposta. Porque não? Afinal de contas
ainda tinha uma semana inteirinha antes de voltar para o seu
“atelier” no Rio de Janeiro. A “Plaza Maior” não ia mudar de
lugar. Sorriu sentindo-se tocada por aquele encontro
251
inesperado. Encostou suavemente a sua mão na dele, puxando-a
um pouco para si. E ouviu-se dizer (não sem alguma surpresa)
“Está bom. Então indica você o caminho. Agora… porque não
me fala um pouco mais dessa sua actividade de pintura?”
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Baixando - Recanto das Letras