INÊS É MORTA!
A TRAGÉDIA DE INÊS PIRES DE CASTRO ENTRE A
NARRATIVA LITERÁRIA E A HISTÓRIA
Rodrigo Medina Zagni*
Universidade de São Paulo – USP
[email protected]
RESUMO: Apresentamos esse breve estudo sobre as representações da morte de Inês Pires de Castro na
crônica de Rui de Pina (c.1440 – c.1522), nas “Trovas que Garcia de Resende fez à morte de Dona Inês
de Castro, que El-Rei Dom Afonso, o Quatro de Portugal, matou em Coimbra, por o Príncipe Dom Pedro,
seu filho, a ter como mulher e pólo bem que lhe queria nam queria casar, endereçadas às damas”, de
Garcia de Resende (1470 – 1536), e finalmente do canto III da obra “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de
Camões (c.1525? – 1580), estabelecendo relações entre as narrativas literárias elencadas e a narrativa
histórica, por meio do cruzamento e análise das informações contidas nas obras.
PALAVRAS-CHAVE: Inês de Castro – Infante D. Pedro – D. Afonso IV
ABSTRACT: We present this briefing study about the representations of Ines Pires de Castro’s death in
the chronicle of Rui de Pina (c.1440 – c.1522), in the “Trovas que Garcia de Resende fez à morte de Dona
Inês de Castro, que El-Rei Dom Afonso, o Quatro de Portugal, matou em Coimbra, por o Príncipe Dom
Pedro, seu filho, a ter como mulher e pólo bem que lhe queria nam queria casar, endereçadas às damas”,
of Garcia de Resende (1470 – 1536), and finally of chant III of the piece “Os Lusíadas”, of Luis Vaz de
Camões (c.1525 – 1580), establishing relations between the literary narratives mentioned and historical
ones, by means of the crossing and analysis of the information contained in the pieces.
KEYWORDS: Inês de Castro – Infante D. Pedro – D. Afonso IV
Vidi dall’altra parte giunger quella – Che trae
l’uom del sepolcro, e ‘n vita il serba.
(Trionfo della Fama)∗
Petrarca
*
Doutorando em Práticas Políticas e Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo.
Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo.
∗
Segundo a tradução portuguesa: “Vi d’outra parte apparecer aquella – Que os mortos do sepulchro
torna á vida […] que he a fama, fazendo-os viver na memoria dos homens…”. Referida passagem de
Petrarca é apropriada pelo Prof. Otoniel Mota no exercício interpretativo dos vs. 933 e 934 do Canto
III de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões: “... da memória que do sepulchro os homens desenterra...”;
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo:
Melhoramentos, 1957, p. 126.
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Erro comum de historiadores, até mesmo em estudos recentes, consiste na
crítica a obras literárias que se apropriam de bases históricas para sua composição,
apontando eventuais contradições entre a romantização do fato e o fato em si, para
finalmente concluir que não se trata de um registro histórico; fato óbvio e já sabido
pelos literatos.
A essa questão propomos, em vez de corroborar com o divórcio entre a
literatura e a História, buscar relações nesses campos complementares, a fim de
empreendermos um estudo comparativo.
Acreditamos ser o tema relevante exatamente em função da necessidade de se
estabelecer que a obra literária não tem obrigações limítrofes com a História, mas a
História pode muito bem se servir dessas obras como fontes para estudos da época, não
só de que trata a obra, mas de sua composição.
Sua relevância se prende ainda ao fato de que esse mesmo tema tem sido
largamente utilizado tanto por historiadores como por escritores dos mais diversos
matizes, muitas vezes sem tomar emprestados os resultados alcançados, e dada a
atualidade com que o tema vem sendo suscitado e re-significado, achamos pertinente
retoma-lo sob esse viés.
A história do amor entre Inês de Castro e o Infante D. Pedro, o casamento
secreto, o assassinato de Inês e a vingança do infante continuam emocionando leitores
do mundo inteiro e estimulando a busca pelas raízes históricas dessas obras, tentando
determinar o que é lenda e o que é fato, quando esse tipo de distinção não é mais
possível.
O próprio Pedro de Maris, Escrivão da Torre do Tombo e responsável pela
impressão da “Chronica de ElRey Dom Afonso o Qvarto do nome e Settimo dos Reys
de Portvgal”, de Rui de Pina,1 chama a atenção para as tendências seguidas pela linha
historiográfica daquele período, evidenciando exatamente que não há como distinguir a
“verdade” dos eventos possíveis sob análise:
1
PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos,
1977. Convém citarmos aqui que, segundo Pedro de Maris, Escrivão da Torre do Tombo responsável
pela impressão da “Chronica de ElRey Dom Afonso o Qvarto do nome e Settimo dos Reys de
Portvgal” – em 1653, de Rui de Pina –, Damião de Góis teria se referido, ao tempo de D. Manoel IV,
que Rui de Pina (Cronista-mor do reino e Guardamór da Torre do Tombo no tempo dos reis D. João II
e de D. Manoel) teria se “aproveitado da honra e do trabalho alheio”, dizendo que teria re-escrito a
crônica de Fernão Lopes, igualmente Cronista-mór e Guardamór da Torre do Tombo) ao que
preferimos não entrar no mérito, sendo certo que há informações relevantes em ambas as crônicas, em
especial complementares na de Rui de Pina. (Ibid., p. 326).
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E pois confessa [Rui de Pina] que era costume daquelle tempo
admitirem os Autores nas historias cousas que hoje parecem
patranhas, dahi se mostra que o nosso Conde D. Pedro se alguas
admitio não foi leuado a isso de malicia, nem de querer fingir, ou
trocar a verdade, senão do costume daquelles tempos dar credito a
cousas a que hoje o não querem dar por difficultosas de crer, o que
muitas vezes he tambem causado da mudança dos tempos, pois muitas
temos visto que os antigos não crião, nem cuidauão, & outras poderiaõ
acõtecer então que nós hoje temos por quasi impossiueis...
Não pódem os Autores mortos fallar por si, & nem de todas as cousas
antigas se pòde dar rezão, auendo acontecido no mundo alguas muito
extraordinarias, pelo que se não pòdem reprouar os Autores antigos
senão com outros que o sejão mais que elles, ou com prouas
clarissimas, ou sendo as cousas de todo impossiveis.2
No drama de Inês de Castro encontramos todos os elementos de uma tragédia
onde a vida imitou a arte: o amor secreto e não aceito por interesses políticos, a
conspiração, o assassinato e a vingança proporcional à infâmia.
Esperamos com essa análise contribuir na articulação entre algumas das várias
versões existentes sobre o tema, da historiografia até as obras lendárias, que tratam o
assunto de forma maravilhosa, grandiloquente e epopéica. O faremos reportando-nos a
fontes de naturezas distintas, como já dissemos: uma historiográfica (Rui de Pina) e
duas literárias (Garcia de Resende e Luís Vaz de Camões).
Faremos uma trajetória cronológica, seguindo a ordem lógica dos eventos sob
estudo, procurando relacionar os diferentes pontos de vista e abordagens. Desta forma
os autores mencionados se sucederão e não faremos, portanto, um estudo apartado de
suas obras, mas tentaremos emaranhá-las a uma narrativa linear, na ordem natural em
que os fatos “possam” ter ocorrido.
O CONTEXTO POLÍTICO DO REINADO DE AFONSO IV
O reinado portucalense de Afonso IV (1325-1357) compreendeu um período de
conturbadas relações com Castela, reino vizinho, que tinha como rei D. Afonso X,
genro e ao mesmo tempo sobrinho do rei português – uma vez que se casara com D.
Maria, sua própria prima, filha de Afonso IV. A rivalidade existente entre os Afonsos
era acentuada pela perene idéia de união das duas coroas.3
2
PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos,
1977, p. 332.
3
Assim afirma SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá
da Costa Editora, s/d, p. 24-27.
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A tendência de união das coroas ibéricas se dava mais em razão do grau de
parentesco entre os próprios monarcas dos dois reinos, construída por meio de
casamentos decorrentes de uma rede de alianças desenhada por famílias nobiliárquicas e
ordens que pretendiam a mesma união. A própria esposa de Afonso IV, Rainha Dona
Briatis, era filha do Rei D. Sancho de Castela e irmã de D. Fernando, que sucederia seu
pai no trono castelhano, antes de Afonso X. Desta forma poderiam ser reivindicados
eventualmente direitos de sucessão no caso dos descendentes tanto de Castela como de
Portugal, em favor de uma eventual união das coroas.
Essa relação conturbada entre os dois Afonsos, o IV de Portugal e o X de
Castela, seria atenuada em 1340 com o auxílio enviado pelo rei português ao rei
castelhano, quando foram vencidos os muçulmanos: Miramamolim de Marrocos e os
exércitos liderados pelo Rei de Grada, na batalha de Salado.
Mas o fato que marcaria mais profundamente o reinado de Afonso IV para a
posteridade seria a morte de Inês de Castro, após seu envolvimento amoroso com D.
Pedro, filho varão e herdeiro direto na linhagem régia.
O CASAMENTO DE D. PEDRO COM D. CONSTANÇA MANOEL E OS AFETOS
COM A DAMA DE COMPANHIA
Nascido em Coimbra, aos 9 de abril de 1320, o infante D. Pedro é descrito por
Fernão Lopes como violento, colérico, de modos plebeus e até mesmo semilouco. Mas a
história que protagonizaria dar-lhe-ia a adjetivação de justo, fazendo-o cair nas graças
populares, segundo o mesmo cronista.
Inês Pires de Castro, de nobre linhagem4 e refinada beleza,5 era dama de
companhia da Infanta D. Constança Manoel – filha de D. João Manoel de Castela.
4
A respeito da linhagem nobiliárquica de Inês Pires de Castro, convém citarmos aqui: “E pera mais
declaração da geraçam desta Dona Ines de Castro, que despois de sua morte foy avida, & sepultada
por Raynha de Portugal. He de saber que Dom Fernão Rodrigues de Castro, vassallo de elRey de
Castella, gram senhor no Reyno, foy cazado com Dona Violante Sanches, filha bastarda de elRey
Dom Sancho de Castella, & irmãs da Raynha Dona Beatris molher que foy de elRey Dom Affonso de
Portugal, & della ouve hum filho Dom Pedro Fernandes de Castro, que disseraõ da Guerra, primo cõ
irmão do Infante Dom Pedro de Portugal, o qual era grande senhor em Galiza, & foy Camareyro mòr
deste Rey Dõ Affonso de Castella, & adiantado mòr da frontaria, & morreo de sua doença no cerquo
de Aliazira, quando este Rey a tomou aos Mouros [...] & foy cazado com Dona Izabel, filha de Dõ
Pedro Ponce, & de Dona Sanches Gil, que foy nesta de D. Pero Rodrigues de Pereyra, & ouve della
estes filhos legitimos, a saber Dõ Fernãdo de Castro, que desterrado de Castella, & Portugal, por
seguir a parte de elRey Dõ Pedro, cõtra elRey Dõ Anrique seu irmão morreo despois em Ingalaterra,
& D. Ioana de Castro, & ouve hu filho bastardo que disserão D. Alvaro Pires de Castro, que foy
Condestable de Portugal, & o primeyro Conde de Arrayolos, & Alcayde mòr de Lisboa, & com sua
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Mudou-se para Portugal quando esta se casara com D. Pedro, quando tinha o herdeiro
do trono português ainda 17 anos.
Foi, a pedido de sua ama, madrinha do primeiro filho do casal, D. Luis, que
morreria logo após o batismo.
Antonio Sérgio atribui o convite ao fato de D. Constança já ter percebido a
paixão entre D. Pedro e Inês, estabelecendo a partir daí um vínculo de parentesco
espiritual que inviabilizaria uma possível oficialização do amor entre ambos.6 O que
denuncia essa possibilidade é exatamente o relato de Rui de Pina, que faz menção à
resistência de Inês à sua participação no batismo, e que teria sido forçada a fazê-lo.7
O mesmo autor afirma que os afetos demonstrados por D. Pedro a Inês de
Castro resultariam em seu conseqüente envolvimento amoroso.8
O casamento entre D. Pedro e D. Constança agravaria ainda mais as relações
ibéricas, por conta de D. João Manoel (pai da infanta) ter negado o casamento de sua
filha com o Rei D. Afonso X de Castela, preferindo seu casamento com D. Pedro,
herdeiro do trono lusitano. Isso repercutiu negativamente também em Portugal, uma vez
que, como dissemos, Afonso X era casado com a filha de Afonso IV, D. Maria, e
manifestava desta forma claramente o desejo de enviá-la de volta a Portugal, com a
intenção de contrair novo matrimônio.
O casamento era ainda mal visto pela família real castelhana em virtude de ter
sido tentado matrimônio de D. Pedro com a Infanta D. Branca, filha de D. Pedro de
Castela, seu tio; que acabou não se concretizando pela negativa do herdeiro do trono
neta cazou Dom Fernando Marques de Villaviçosa, que despois foy Duque segundo de Bragança, &
segundo Cõde de Arrayollos, & desta causa creo que procede a diferença das armas dos de Castro em
Portugal acerqua do conto das arruellas, porque ainda que todos descende de Com Pedro de Castro
que disseram da guerra; porem os da parte de Dom Aluaro Pires seu irmão, eram bastardos, & pola
bastardia mingoàram do cõto, & traziam seis, porque este Dõ Aluaro Pires antes de ser feito
Cõdestable, & Conde de Arrayollos, non se chamaua de Som por ser bastardo, & seu irman Dom
Fernando, por ser legitimo sempre se chamou, & intitulou de Dom”. PINA, Rui de. Crônicas de Rui
de Pina. Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos, 1977, p. 460; 461.
5
Assim observa, segundo apontamentos de época, MOTA, Otoniel. Comentário. CAMÕES, Luis de.
Os Lusíadas. Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo: Melhoramentos, 1957,
p. 127 – nota de rodapé, 281.
6
SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, s/d, p. 25.
7
PINA, 1977, op. cit., p. 459.
8
Ibid.
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6
português, alegando incapacidade de matrimônio9 de sua pretendente, o que acabou por
frustrar uma expectativa de ambas as coroas pelos dotes, ou seja, vilas e terras
prometidas em contratos, tanto em Portugal como em Castela.
Como fruto do casamento de D. Pedro com D. Constança nasceram dois filhos
homens e uma mulher: o Infante D. Luis, que como dissemos faleceu logo ao tempo do
batismo; o futuro sucessor de D. Pedro, D. Fernando (n. 1345); e a Infante D. Maria,
que se casou com o Infante D. Fernando de Aragão, Marquês de Tortosa e senhor de
Albarazim, filho do Rei D. Afonso de Aragão e sobrinho do Rei Dom Afonso de
Castela.
Após o nascimento da Infanta D. Maria, D. Constança, mesmo muito jovem e
aparentemente saudável,10 morreu. Depois de sua morte teria sido imposto por Afonso
IV novo matrimônio a D. Pedro; contudo este negara para desgosto do pai, que temia
pelo fato de uma escolha mal engendrada acarretar em perda política de direito de
sucessão ao trono no futuro, sob pena de findar sua dinastia e propiciar desta forma
qualquer tipo de golpe de grupos rivais, principalmente castelhanos.
O CASAMENTO SECRETO
A negativa do Infante devia-se ao fato de ter contraído casamento secreto com
Inês de Castro, ao que se oporia certamente o rei português em virtude de não ser Inês
filha legítima de D. Pedro de Castro, fruto de seu amor com uma manceba, o que poria
em dúvida sua linhagem nobiliárquica. A esse tempo tinha D. Pedro 34 anos e o rei
ainda pretendia casá-lo com pretendentes nobres, atendendo a interesses políticos da
coroa.
9
A esse respeito, ver PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da Literatura e da História.
Porto: Lello & Irmãos, 1977, p. 351; 352.
10
Ibid., p. 459.
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O GOLPE, O JULGAMENTO E A SENTENÇA
Em 1355 seguiu-se uma tentativa de golpe, por parte de fidalgos castelhanos no
sentido de depor seu rei, no que teria tomado parte Inês de Castro e seus irmãos, D.
Fernando de Castro e D. Alvaro Pires de Castro – influentes em Castela –, com a
ambição de fazer subir ao trono o príncipe D. Pedro (filho de Afonso X) e enfim
unificar as coroas a partir da hegemonia castelhana, em prejuízo da soberania lusitana.
Por determinação de Afonso IV foi constituído um conselho de Estado e
submetida a julgamento Inês de Castro, acusada de atentar desta forma contra a
independência nacional portuguesa, pois haveria a intenção, segundo a acusação, de
tentar promover a união das coroas após o golpe em Castela.
O próprio rei se encarregou de acompanhar o cumprimento da sentença,
viajando de Montemor-o-Velho para Coimbra, com seu corpo de conselheiros.
A QUASE-PIEDADE E A EXECUÇÃO DE INÊS
Foram, em missão real, ao encontro de Inês de Castro nas casas do Mosteiro de
Santa Clara, sendo recebidos pela condenada junto de três crianças do sexo masculino,
infantes filhos de sua união secreta com D. Pedro. Inês soubera da vinda do rei e de sua
intenção de matá-la, mas em vão tentou persuadi-lo.
Pedro Coelho, Álvaro Gonçalves11 e Diogo Lopes Pacheco foram os
conselheiros responsáveis pela execução de Inês de Castro.
O rei ignorou suas súplicas; segundo a maior parte dos registros históricos
trabalhados nesse estudo, contradizendo sua decisão anterior, que concedia direito de
vida à condenada. Sua mudança de decisão seria decorrente das pressões exercidas pelo
conselho, desejoso pela execução de Inês.
Camões identifica a mesma piedade do rei em relação à Inês de Castro, pelo
fato de ser mãe de quatro filhos de D. Pedro, netos de D. Afonso; porém, atribui sua
execução às pressões exercidas por agentes externos, que acabaram por persuadi-lo:
Trazião-na os horrificos algozes
11
Antonio Sérgio (SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria
Sá da Costa Editora, s/d.), refere-se a esse conselheiro como Afonso Gonçalves; porém, Otoniel Mota,
(CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo:
Melhoramentos, 1957, p. 132 – nota de rodapé, 309) refere-se à mesma pessoa como Álvaro
Gonçalves, bem como o faz Rui Pina (PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da
Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos, 1977, p. 466).
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Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo com falsas e ferozes
Razões é morte crua o persuade.
Ella com tristes e piedosas vozes,
Saidas da magoa e saudade
Do seu Principe e filhos, que deixava,
Que mais que a propria morte a magoava.12
Ainda em relação ao julgamento de Inês de Castro, trabalhou o mesmo poeta
quatro estrofes atribuídas à condenada, argumentando contra sua sentença de morte em
tom de súplica, das quais transcrevemos parcialmente três:
O’ tu, que tens de humano o gesto e o peito
- Se de humano he matar hua donzella
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la –,
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens á morte escura d’ella;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
E se vencendo a Maura resistencia
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe tambem dar vida com clemencia
A quem para perdê-la não fez erro;
Mas se t’o assi merece esta innocencia,
Põe-me em perpetuo e misero desterro,
Na Scythia fria ou lá na Libya ardente,
Onde em lagrimas viva eternamente.
Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre liões e tigres, e verei
Se nelles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei...13
Vale ressaltar que, segundo Camões, Inês teria utilizado a maternidade, fruto
do amor vivido secretamente com D. Pedro, na tentativa de persuadir o rei, propondo o
desterro permanente em troca de sua vida, o que foi também em vão.
Garcia de Resende dá voz à Inês, em sua súplica ao Rei, da mesma forma
apelando para seu lado paternal e argumentando sobre a infelicidade que sua morte
traria a D. Pedro.
Olhe bem quanta crueza
faraa nisto Voss’Alteza
e também, Senhor, olhai
12
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo:
Melhoramentos, 1957, p. 128.
13
Ibid., p. 129.
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pois do Príncipe sois pai,
nam lhe deis tanta tristeza.14
Para o mesmo literato, Afonso IV teria sido persuadido pelos apelos de Inês de
Castro; porém, seus conselheiros fizeram-no mudar de idéia, deliberando o rei por sua
execução. O argumento utilizado pelos conselheiros seria a legitimidade do poder real,
se suscetível às súplicas de uma simples dama castelhana a ordem régia seria ineficaz
com qualquer súdito, conforme alegavam – provavelmente Pedro, Alvaro e Diogo,
apesar de Garcia de Resende não fazer menção a nomes.
U daqueles que trazia
consigo na companhia,
cavaleiro desalmado,
detrás dele mui irado
estas palavras dezia:
- Senhor, vossa piedade
é dina de repreender,
pois que sem necessidade
mudaram vossa vontade
lagrimas d’ua molher!
[...]
Se a logo nam matais,
nam sereis nunca temido
nem faram o que mandais,
pois tam cedo vos mudais
do conselho qu’era havido.15
O literato Antônio Ferreira, em sua obra “Castro”, descreve a execução de Inês
a golpes de espadas rasgando-lhe a garganta. Os golpes, segundo as crônicas aqui
trabalhadas, teriam sido desferidos por Pedro Coelho, Alvaro Gonçalves e Diogo Lopes
Pacheco, que desta forma teriam ceifado-lhe a vida de forma violenta e sangrenta.
Aquella alva garganta
De cristal, ou de prata,
Que sostém a cabeça
Tão alva e tão dourada,
Porque cortar a queres
Com golpe tão cruel?16
14
RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 304.
15
Ibid., p. 305-306.
16
FERREIRA, Antônio aput por MOTA, Otoniel. Comentário. CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas.
Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo: Melhoramentos, 1957, p. 130 – nota
de rodapé, 302. As obras, v. 1043.
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10
Garcia de Resende não menciona o corte na garganta de Inês. Afirma que seu
coração fora transpassado por duas espadas, empunhadas por dois cavaleiros.
Dous cavaleiros irosos,
que tais palavras lh’ouviram,
mui crus e nam piadosos, perversos, desamorosos, contra mim rijo se
viram.
Com as espadas na mam
m’atravessavam o coraçam...17
É provável que, novamente sem citar nomes, o literato tenha se referido à
Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves – meirinho mor –, efetivamente os conselheiros que
teriam sido capturados e submetidos à vingança de D. Pedro. Omite-se aqui,
provavelmente, Diogo Lopes Pacheco, na figura do terceiro conselheiro que teria
participado da execução de Inês e Castro, pelo fato de ter se esquivado à ira de Pedro,
fugindo quando soube de sua ordem de prisão. Segundo Rui de Pina18, o mesmo Diogo,
filho de Lopo Fernandes Pacheco – senhor de Ferreira –, havia sido o principal
responsável pela morte de Inês, e o que maior influência teria exercido sobre o rei.
AS EXÉQUIAS DE INÊS E A IRA DE D. PEDRO
O corpo de Inês de Castro foi enterrado no mosteiro de Santa Clara, de onde
sairia somente três anos depois, já com D. Pedro como rei de Portugal.
Antonio Ferreira atribui a D. Pedro, ao saber da morte de sua amada,
incomensurável desespero, dando-lhe voz em sua obra literária:
Arranquem-me a vontade dêste peito,
Arranquem-me do peito esta alma minha.19
Contudo, há registro de Rui de Pina20 dando conta de que D. Pedro já havia
sido avisado quanto aos riscos de morte que sofria Inês, não só pela existência de um
possível herdeiro para sua sucessão na linhagem de Inês de Castro – o primogênito do
casal –, mas pela possibilidade de seus irmãos poderem atentar contra a sucessão
17
RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 307.
18
PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos,
1977, p. 466.
19
FERREIRA, Antônio apud MOTA, Otoniel. Comentário. In: CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas.
Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo: Melhoramentos, 1957, p. 129 – nota
de rodapé, 297. Vontade, v. 1021.
20
PINA, 1957, op. cit., p. 465.
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11
hereditária e reivindicarem, pela força, direitos ao trono português, uma vez que
contavam com apoio de nobres castelhanos.
É importante sublinhar que Garcia de Resende não mencionou e ainda se
esquivou do debate sobre um possível golpe, engendrado por Inês de Castro e seus
irmãos, atentando contra a independência lusitana em desfavor do reinado de Afonso
IV. O mesmo aconteceu com Luís de Camões.
Não podemos associar esse silêncio à possibilidade de os fatos não terem
ocorrido, mas mais acertadamente a tendência literária do período, que preferia a
associação da tragédia às motivações de cunho pessoal, seguindo um modelo de
narrativa ultra-romântica e nada política.
Garcia de Resende, por exemplo, fez menção aos motivos da execução de Inês,
exclusivamente, à negativa de D. Pedro de se casar com a pretendente indicada por
Afonso IV, se referindo aos motivos políticos apenas na forma de que Inês “... nos quer
dar [aos conselheiros e ao Rei] / muita guerra com Castela.”21
Rui de Pina, ao se referir a outro momento da história do reinado portucalense,
quando D. Pedro negava casar-se com D. Branqua, deixou evidente a preocupação de
Afonso IV com o futuro de seu reino a partir das escolhas de matrimônio de seu filho
herdeiro, temendo “... couza que fosse contraria a sua honra, & estado em dano, & perda
do Reyno”.22 Se tido esse comportamento como característico de Afonso IV, explicaria
sua reação ao saber do casamento de D. Pedro com Inês de Castro, e o quanto isso
representaria uma ameaça ao seu reino, o que levaria a sua execução.
Inconformado com a morte de Inês, D. Pedro teria se aliado aos seus cunhados,
D. Fernando e D. Alvaro Pires, e com a união de suas tropas iniciaram sua vingança
pelo Douro, Minhos e Tralos Montes, onde pilharam, saquearam e mataram, com o
intuito claro de tomar o Porto, ao que foram persuadidos somente pelo Arcebispo de
Braga, D. Gonçalo Pereyra.
21
RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 306.
22
PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos,
1977, p. 356.
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PAI E FILHO RECONCILIADOS E O CÍNICO “PERDÃO TOTAL”
O mesmo arcebispo, a quem D. Pedro tinha grande afeição e respeito, junto da
rainha D. Beatris, aos 5 de agosto de 1355, no Burgo de Canavezes, promoveram a paz
entre D. Pedro e D. Afonso IV, entre filho e pai. Isso implicava não só na trégua das
forças de D. Pedro, Fernando e Álvaro, mas no perdão “total” do príncipe a todos os
envolvidos na morte de Inês de Castro, com o que surpreendentemente concordou o
herdeiro do trono português, aparentemente relegando sua vingança, ao que veremos
apenas adiada. Da mesma forma, Afonso IV perdoou oficialmente todos os envolvidos
na tentativa de tomada do trono português, inclusive os irmãos de Inês.
E estes concertos se fizeraõ eCanavezes onde o Infante jurou persi,
naõ sendo ahy elRey, o qual dispois as aprouou, & jurou em Sam
Francisco de Guimarães, & a Rainha tambem despois em Saõ
Domingos da Cidade do Porto, & todo no anno sobredito.23
A ASCENSÃO AO TRONO E A RAINHA-MORTA
Em 1357, apenas dois anos depois da morte de Inês de Castro, D. Pedro, com
37 anos, ascendeu ao trono, após a morte do pai.
Há registros que dão conta do anúncio de D. Pedro, em referência ao
casamento secreto com Inês de Castro, em duas oportunidades distintas, na presença de
tabeliães e nobres: em Coimbra e Cantanhede. Isso acontecia três anos depois de ter
subido ao trono, o que causou desconfiança por parte da nobreza lusitana, em função da
demora do anúncio.
Corroborado por testemunhas, declarou ter se casado com Inês, e que, mesmo
morta, seria ela a Rainha de Portugal e seus filhos infantes.
Quatro foram os filhos reconhecidos da união secreta: D. Afonso, o
primogênito e que muito jovem morreu ainda em Portugal; D. João e D. Dinis que
foram desterrados e viveram seus últimos dias em Castela; e a Infanta D. Beatris, que se
casou com D. Sancho, Conde de Albuquerque e filho bastardo do rei D. Afonso de
Castela.
23
PINA, Rui de. Crônicas de Rui de Pina. Tesouros da Literatura e da História. Porto: Lello & Irmãos,
1977, p. 468.
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ENFIM A VINGANÇA
A vingança de D. Pedro teria início com a entrega de dois dos assassinos de
Inês de Castro pelo rei de Castela, onde se escondiam Pedro Coelho, Afonso Gonçalves
e Diogo Lopes de Pacheco, sendo que este, como vimos, logrou fugir.
A captura de Pedro Coelho e Afonso Gonçalves deu-se graças ao apoio político
de outro Pedro: D. Pedro I, o Cru, Rei de Castela que com apenas 15 anos sucedera seu
pai, Afonso X, morto pela peste no cerco que empreendia a Gibraltar – em 1350.
A entrega dos assassinos foi concretizada somente com a troca por criminosos
de Castela exilados em Portugal e vice-versa. Isso foi visto com péssimos olhos pelos
fidalgos castelhanos, uma vez que os assassinos de Inês haviam recebido asilo naquele
reino, para então serem aprisionados e remetidos a Portugal para sua cabal execução por
parte de D. Pedro, de Portugal, o que contrariava os tratados de concessão de asilo
político em Castela.
Ponto polêmico e largamente explorado pela literatura que se seguiu a Fernão
Lopes e Rui de Pina diz respeito à vingança de D. Pedro, que dão conta de que o
coração de ambos teria sido arrancado de seus corpos. Segundo Antonio Sérgio, por
exemplo, D. Pedro
... obteve do rei de Castela a entrega dos assassinos, que andavam
fugidos naquele reino, e mandou mata-los na sua presença, tirando-se
a um o coração pelo peito, e ao outro, pelas costas.24
Para Fernão Lopes a punição dada por D. Pedro aos assassinos repercutiu por
toda Portugal como uma vendeta à altura da infâmia praticada pelos conselheiros.
Já na obra “Os Lusíadas” não há menção alguma a respeito da execução dos
assassinos de Inês.
No “Cancioneiro Geral de Garcia de Resende” temos a menção – não nominal
– de que um dos assassinos teria sido “espedaçado”, e de fato o outro teria tido o
coração arrancado pelas costas:
A u fez espedaçar
e à outro fez tirar
por detrás o coraçam.25
24
SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, s/d., p. 25.
25
RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 309.
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A DIFUSÃO DA NARRATIVA E O EFEITO POLÍTICO DA COROAÇÃO DE UM
CADÁVER
A admiração popular, pela difusão das muitas narrativas sobre o drama de Inês
de Castro, fez com que o reinado de D. Pedro tivesse um alto índice de aprovação
popular, ainda que apontado como “plebeu de modos” ou “galhofeiro” por Fernão
Lopes, pelo povo comum seu reinado era visto com admiração: “... diziam as gentes que
tais dez anos nunca houve em Portugal como estes que reinara el-rei D. Pedro”.26
Cinco anos depois da tragédia que vitimou sua esposa, D. Pedro ordenou, com
toda a pompa, que o corpo fosse transportado em solene procissão, de Coimbra até o
mosteiro de Alcobaça, onde se fez o mausoléu que abrigou o corpo de Inês de Castro.
A nave central da igreja destinada a receber os restos mortais de Inês passou a
ser cortada, próxima ao altar, pelo transepto, dando-lhe o formato de cruz. Exatamente
em um dos lados do transepto foi depositado o seu corpo no mausoléu, e logo a sua
frente, portanto do lado oposto da nave principal, um outro mausoléu, destinado a
receber o corpo de D. Pedro, foi construído, e de fato o recebeu após sua morte.
Os corpos teriam sido dispostos de forma que, acreditando-se na ressurreição
dos mortos para o juízo final (conforme preconiza o cristianismo), quando D. Pedro e
Inês de Castro se levantassem de seus túmulos, ficariam frente a frente mais uma vez.
Assim sendo, a primeira visão que teriam ao ressuscitar seria um do outro.
Há a difusão do mito de que D. Pedro teria feito do cadáver de Inês sua rainha,
coroando-a inclusive e postando-a em seu trono, mesmo em estado de putrefação. Esse
mito não encontra respaldo ou sequer menções bibliográficas, ao menos no que tange à
limitada atividade de pesquisa concernente ao presente estudo. Garcia de Resende tratou
de assunto similar e que pode ter dado margem à errôneas interpretações, quando
escreveu que:
... como o Príncipe foi rei,
sem tardar, mas muita asinha,
a fez alçar por rainha,
sendo morta o fez por lei.27
26
LOPES, Fernão apud SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa:
Livraria Sá da Costa Editora, s/d., p. 26.
27
RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 308.
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Contudo, entendemos no trecho acima que teria sido feita rainha, Inês de
Castro, por força de lei régia, emanada pela autoridade de D. Pedro, que desta forma
submeteu a nobreza à autoridade da morta; porém, essa imagem, via de regra, é
associada ao plano físico, como se de fato tivesse sido postado o cadáver de Inês sobre
um trono e submetida a nobreza do período à morta, que estaria certamente já em estado
de decomposição.
Da mesma forma há a célebre passagem de Luís de Camões, que segundo
consta teria bebido na fonte das obras de Fernão Lopes e de Rui de Pina, e que
igualmente pôde gerar a mesma natureza de interpretação:
O caso triste e dino da memoria
Que do sepulchro os homens desenterra
Aconteceo da misera e mezquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.28
A menção é clara, como vimos com a citação inicial de Petrarca, que a
memória do episódio é desenterrada e imortalizada pelos homens por meio das obras
literárias (adicionamos nós os processos de construção e re-elaboração de sentidos); e
stricto sensu pela ordenança a qual Garcia de Resende faz menção, e pelo fato de o
cadáver ter sido desenterrado efetivamente para a procissão que o levou ao mosteiro de
Alcobaça, onde foi encerrado no mausoléu, sua morada final.
Garcia de Resende parece desfazer o mal entendido ainda no “Cancioneiro
Geral”, atribuindo o fato de Inês ter-se tornado rainha, depois de morta, à declaração de
D. Pedro, em todos os seus testamentos, de que seria sua legítima esposa. Fica claro na
mesma passagem que o autor se referiu à coroação de D. Pedro e Inês de Castro, lado a
lado, no mosteiro de Alcobaça, onde depois de mortos, como vimos acima, foram
depositados em mausoléus no mesmo transepto do mosteiro.
Em todos seus testamentos
a declarou por molher
e por s’isto melhor crer
fez dous ricos moimentos
em qu’ambos vereis jazer:
rei, rainha, coroados,
mui juntos, nam apartados,
no cruzeiro d’Alcobaça.29
28
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição Escolar comentada pelo Prof. Otoniel Mota. São Paulo:
Melhoramentos, 1957, p. 126.
29
RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 309.
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O terceiro matrimônio de D. Pedro deu-se com Teresa Lourenço, que deu a luz
um outro D. João (n. 1357), que futuramente fundou a dinastia de Avis, como mestre da
mesma Ordem, sendo rei de Portugal ao suceder seu meio-irmão D. Fernando (filho do
casamento de D. Pedro com D. Constança).
CONCLUSÃO
Iniciamos nossa conclusão discordando de um dos autores que emprestaram
algumas das informações colhidas para este estudo. Referimo-nos à afirmação de
Antonio Sérgio, de que o episódio de Inês de Castro seria “... destituído de significado
histórico ...”;30 justificando sua análise:
“... vemo-nos obrigados a menciona-lo, pela sua muita celebridade, pelo interesse
humano da tragédia, e pelo lugar que tem na arte, na literatura e nas tradições de
Portugal.”31
Por outro lado, vimos que o drama de Inês de Castro não se restringiu somente
ao interesse humano em sua tragédia, ou pelas manifestações artísticas que se
apropriaram de toda a carga dramática que cerca a sangrenta história, ou ainda somente
pela literatura e tradições nacionais lusitanas.
Não só a saga de Inês de Castro por seu caráter trágico e como reflexo das
tendências de união das coroas ibéricas tem relevante importância na história lusitana,
mas lança também luzes sobre a história européia seguinte. Resta saber que de Inês
descendem os principais Reis da Espanha, de Portugal, Castela e o Imperador prussiano;
bem como o Rei de Nápoles e o Duque de Bregonha.32 Boa parte da História européia
seguinte descende da tragédia.
A partir dessa sucessão de eventos pudemos analisar politicamente o período e
perceber o quanto os interesses supra-nacionais acabam reduzindo-se a tragédias
pessoais, o quanto a macro-história incide na micro-história, o quanto a saga das nações
30
SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, s/d., p. 25.
31
Ibid.
32
Garcia Resende faz uma longa relação dos mandatários políticos descendentes da tragédia.
(RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1993, p. 308.)
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aniquila pessoas e destrói “shakespearianas” histórias de amor. E no percurso inverso, o
quanto as trajetórias singulares interferem na evolução política dos Estados nacionais.
Para sermos mais específicos: evidenciamos o quanto o ideal de união das
coroas castelhana e portuguesa, e os movimentos de resistência a essa tendência
provocaram em seus agentes (participantes diretos como no caso de Inês de Castro)
conseqüências catastróficas.
O próprio sucessor de D. Pedro, seu filho D. Fernando, é o primeiro a
evidenciar essa tendência ao retomar o projeto de união com Castela, apoiado pela
burguesia comercial, porém frustrado por infelizes guerras com o reino vizinho.
Desta forma concluímos que nenhum dos eventos que determinaram ou que
são decorrentes da morte de Inês de Castro são destituídos de significado histórico, pois
a história política não se restringe à história das nações dissociando-se dos indivíduos:
somos todos homens políticos.
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a tragédia de inês pires de castro entre a narrativa literária e a história