1 MATERNIDADE E MORAL CRISTÃ NO ROMANCE “PALHA DE ARROZ” ÂNGELA MARIA SOARES DE OLIVEIRA1 No presente trabalho elegemos como foco central a análise da construção da maternidade como categoria histórica, a partir do romance “Palha de Arroz” de Fontes Ibiapina, ambientado na cidade de Teresina dos anos quarenta. Com o advento da nova História Cultural, a partir do século XX, abriu-nos um leque de possibilidades de análises de fontes, com perspectiva interdisciplinar. A disciplina História dialoga com outras áreas do saber, desde a antropologia, a sociologia, dentre outras. Uma delas vem se destacando, estamos falando da literatura enquanto fonte de pesquisa. Os métodos de análises históricas estão em constante transformação, pois não existem métodos fixos, dado o seu caráter cultural. A interdisciplinaridade faz parte das construções historiográficas contemporâneas, utilizando-se constantemente conceitos de outras áreas, como fenômeno histórico, uma delas, por exemplo, é a literatura, que nesse ensaio é utilizada como fonte de pesquisa. Antes da análise do romance, traçaremos alguns pontos, primeiro, consiste na diferença entre história e literatura, a primeira refere-se ao real, ao acontecido, a segunda funciona como um “[...] registro de alternativas históricas colocadas a determinada sociedade2”, constituem os devires, os possíveis em uma sociedade, portanto, a literatura, [...] mais do que o testemunho da sociedade [...] fornece uma expectativa do seu vir-a-ser [...] A leitura dos textos literários nos levou a perscrutar o seu cotidiano, familiarizando-se com o meio social em que conviviam [...] serviram como guias de referência para compreendermos e analisarmos as suas tendências mais marcantes, seus níveis de enquadramento sociais e sua escala de valores3. A literatura utilizada enquanto fonte histórica revela-nos questões singulares acerca das características de uma sociedade. O romance Palha de arroz, de Fontes Ibiapina, foi escrito em 1968, “obra reconhecida como documento urbano-social realista, cujo cenário é Teresina da década de 1940, [...] tem como tema central os incêndios4. A obra permiti-nos exemplificar a relação entre Literatura e História “[...] uma vez que aparecem acontecimentos históricos demarcados em sua composição. O romance centra-se no fato histórico, refletindo 1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Piauí – UFPI QUEIROZ, Teresinha. História e literatura: um olhar sobre as fontes. In: Cadernos de Teresina, Ano X, n.º 24, dezembro de 1996. p.76 3 SEVCENKO, Nicolau. Introdução. In: Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras SEVCVENKO, op. cit, p.31. 4 SILVA, Raimunda Celestina Mendes da. A cidade incendiada: uma visão histórica e literária dos incêndios de Teresina. In: Scientia et spes: Revista do Instituto Camillo Filho, volume 1, n.º 2. Teresina: ICF, 2002, p.315 2 2 o comportamento e a transformação do homem piauiense5. Dessa forma, o romance permitenos acessarmos algumas informações da sociedade teresinense durante a ditadura varguista, pois, Ibiapina denuncia a estrutura social e tradicional da cidade. Para a escrita deste texto não utilizaremos como pretexto os incêndios que assolaram a capital do Piauí nos anos quarenta do século XX, cujo ímpeto foi o caráter autoritário da modernização nessa cidade6, mas a moral cristã acerca das prescrições para a sexualidade, exemplificada na personagem Serafina, secundária na trama no romance, mas imprescindível para compreendermos a normalização prescrita ao corpo, a sexualidade feminina e a maternidade enquanto construção histórica e não algo inato as mulheres. A Igreja Católica desde o século XII, quando instituiu o casamento enquanto sacramento, enfatizando suas doutrinas no Concílio de Trento (século XVI), e se consolidando no Brasil no século XIX, com a política ultramontana, vem definindo os papéis de gênero, fixando identidades no sentido da valoração da mulher como recatada, submissa, reservada ao espaço, em contraposição ao homem, este reservado ao espaço público. Dessa forma, com maior intensidade no século XIX, os discursos prescritivos passam a construir a identidade feminina a partir da concepção de corpo, voltada a sua natureza biológica, ou seja, ser mãe, tendo como espaço naturalizado o privado, o lar. Enquanto que o homem voltado para a cultura, ou seja, espaço público. Segundo Azzi, Desde a Idade Média havia penetrado na instituição católica uma mentalidade de fortes restrições à sexualidade, sob influência predominante de Santo Agostinho, antigo adepto do neoplatonismo e do maniqueísmo. Na tradição monástica, principalmente essa concepção negativa com relação à sexualidade foi muito fortalecida. [...] essa visão negativa do sexo era reforçada nesse período pela ênfase dada à salvação da alma. Nos retiros e nas missões populares era comum a apresentação dos novíssimos do homem: morte, juízo, inferno e paraíso. Na descrição da morte os pregadores acentuavam o aspecto da corrupção do corpo, como forma de incutir a recusa aos prazeres e vaidades a vida. Por seu turno, os pecados contra a castidade eram julgados merecedores de penas severíssimas ao inferno, enquanto uma vida espiritual de pureza garantia para as pessoas o prêmio celeste, onde viveriam como anjos7. O cristianismo enquanto estratégia de poder normalizou a família, em especial as mulheres deu uma grande ênfase ao “[...] valor moral e espiritual [...] teria atribuído à 5 SILVA, op cit, p.333-4 Sobre modernização autoritária durante a ditadura varguista em Teresina, ver NASCIMENTO, Francisco Alcides do. Cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina (19371945). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2002. 7 AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964). In: MARCILIO, Maria Luiza (org). Família, mulher, sexualidade e igreja na história do Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p.124. 6 3 abstinência rigorosa à castidade permanente e à virgindade8”. A Igreja traz para si o discurso de verdade, antes com os filósofos e depois com os padres, caracterizando a sociedade como agnóstica, através da noção de culpa, originada no pecado original de Adão e Eva. O sexo, enquanto, desejo passa a ser impuro, é prescrito, então, que a mulher chegue ao casamento virgem, a partir do modelo de virtude e pureza de Maria, mãe de Jesus. Alguns discursos que são veiculados durante muito tempo, às vezes passam a figurar na sociedade como “verdades”, exemplificada no trecho abaixo, Na mora cristã do comportamento sexual a substância ética não será definida pelos aphrodisia, mas por um campo dos desejos que se escondem [...] por um conjunto de atos cuidadosamente definidos em sua forma e em suas condições; a sujeição não tomará a forma de um savoir-faire, mas de um reconhecimento da lei e de uma obediência à autoridade pastoral; portanto, não é tanto a dominação perfeita de si por si [...], mas sim a renuncia de si e uma pureza, cujo modelo deve ser buscado ao lado da virgindade9. Procurando através das prescrições transformar a imagem associativa da mulher a Eva pecadora, para a virgem Maria, honrada, pura. A moral cristã marcadamente conservadora prescreverá modelos de comportamento rígidos as mulheres, através da fuga aos desejos e estímulos da sexualidade humana. Em Teresina dos anos de 1940, é veiculado o Jornal O Dominical, de orientação católica para instrução e normalização da vida as mulheres, através da economia de prática escriturística, que tinham como objetivo descrever como deveriam ser as práticas cotidianas das mulheres, tentando moldar o que deve ser seguido (a ordem, o ideal), segundo seus preceitos, e deixando claro o que não deve ser seguido, ou seja, a margem. Portanto, tentando fazer com que essas novas práticas interfiram no meio para transformá-lo. Observada, em trecho a seguir, Aos noivos: é preciso passar honestamente o tempo do noivado. É uma época perigosíssima – não há mais temor de Deus outrora havia uma coisa bela e encantadora, chamada pudor. Certas modas e danças acabaram com estas virtudes. Quando moças trazem, no dia do casamento, debaixo do véu branco, símbolo da pureza, um coração culpado, um corpo maculado [...] Quanto mais ofenderem a Deus antes do casamento, mais serão infelizes. Que os noivos evitem tudo quanto pode ofender a Deus, as entrevistas em horas e lugares indébitos, as liberdades. Procuraram na oração e na freqüência dos 8 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guillhon Albuquerque. 11. ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006, p.17 9 FOUCAULT, op. cit, 2006, p.84-5. 4 sacramentos a força para vencer as inúmeras tentações que o noivado pode ser ocasião10. Nessa prática escriturística eclesiástica há uma tentativa de controle e disciplina do corpo social, tentando ordená-lo e modelá-lo aos valores cristãos, como se esses discursos representassem a única de “verdade”, mas sabemos que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída11. Fontes Ibiapina, em sua obra literária, ao analisar as circunstâncias em que uma moça de família de elite se comportava, mostra-nos admiração ao afirmar que: À margem do rio o povo se aglomerava [...] quando morria gente afogada [...] Ali não era o lugar próprio de moça bonita e branca tomar banho [...] Naquele cais nojento de canoeiros, estivadores, carroceiros, lavadeiras e outras pessoas da raia miúda [...] E o povo dizia – “morreu de propósito. Não estava nem tomando banho. Suicídio no duro!” [...] A moça era D. Serafina, moça bonita [...] Dona Margarida se acabando em lamentos. O marido se fora (há um ano e pouco). Agora, a única filha, [...] Antonino pesca a defunta: uma moça branca, rica, bonita e fina. [...] Começam os boatos: “pedra no pescoço coisa nenhuma!, [...] apenas um cordão de ouro [...] a barriga era que estava amarrada, com um pano e um prato esmaltado para baixo. Mesmo assim ninguém nunca morreu no Parnaíba com barriga tão grande12. Neste trecho de seu livro Palha de Arroz, Fontes Ibiapina narra um fato nada comum às moças de famílias de elite em Teresina. Aquele ocorre na beira do cais do Rio Parnaíba, e isso chama a atenção de toda a população que vivia ali próxima. Este era o local de trabalho das lavadeiras, e onde também as moças de origem pobre tomavam banho. Esta obra, embora literária, é muito reveladora sobre a sociedade piauiense da primeira década do século XX. Podemos supor que a “defunta” estava grávida e para a sociedade da época, isso era um escândalo, pois a mulher tinha que se “guardar”, enfim casar virgem. Tendo como função primordial ser uma mãe cristã e ensinar seus filhos esses mesmos valores cristãos. Mas, a moça da ficção não era casada, e, portanto, não tinha um “pai” para seu filho, para instituir uma família, modelo no qual a sociedade e pastoral cristã respeitava moralmente e normalizava, era uma família constituída a partir do casamento cristão. 10 Pe. VERSSEM, Guilherme. Aos noivos. In: O Dominical. Teresina, 30 de dezembro de 1951. p.3. FOUCAULT, 1996, p.18. 12 IBIAPINA, Fontes. Palha de arroz. 4. ed., Teresina: Corisco, 2004, p.138-9. 11 5 Pode-se supor que a moça descrita nesta fonte literária, não teve em nenhum momento um sentimento maternal e sim o sentimento de honra. Isso se devia, talvez a ela estar grávida sendo solteira. Isso significava uma desonra, vergonha para a sua família, em primeiro lugar, e em segundo, para ela própria. A partir daquele momento, a sociedade não iria mais respeitá-la. Parece que ao pular no rio, tenta purificar sua alma. Esse exemplo, embora literário, é uma das representações da época sobre comportamento sexual, valores, códigos religiosos, de honra, e maternidade como uma construção histórica, e não algo inato às mulheres. Neste contexto, ficção e realidade se confundem, pois a personagem Serafina mostra-nos a complexa vida no cotidiano teresinense. Badinter13 mostra-nos que o amor materno não é inato, é na verdade um mito, não é natural, é construção cultural, é “conquistado”. Dessa forma, explica-se porque nem todas as mulheres o possuem, desmistificando-o como algo instintivo, incondicional, como a pastoral cristã prescrevia. O amor é semeado é conquistado historicamente e não um dado biológico, ou seja, não é partilhado por todas as mulheres. E que segundo Ariès14 é somente a família moderna que consegue estabelecer o sentimento de infância, “[...] esse sentimento não significa amor por crianças, gostar ou detestar. O sentimento da infância significa a consciência da particularidade dessa idade15. Conforme a prescrição da pastoral cristã, toda mulher nasceu para ser mãe, desde seja em uma relação legitima, ou seja, sacramentado no casamento monogâmico cristã, a respeito dessa afirmação Badinter reitera, [...] a maternidade e o amor que a acompanha estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. Desse ponto de vista, uma mulher é feita para ser mãe, e mais, uma boa mãe. Toda exceção à norma será necessariamente analisada em temos de exceções patológicas. A mãe indiferente é um desafio lançado à natureza, a anormal por excelência16” De acordo com os valores cristãos, a personagem Serafina cometeu dois erros gravíssimos, primeiro a corrupção do corpo, numa relação ilegítima, e que gerou uma criança. O segundo erro foi o duplo “suicídio”, dela e conseqüentemente da criança que estava em seu ventre. A formação moral normalizada pela Igreja Católica tinha como principais traços a educação rígida com valores marcadamente tradicionais impostos as mulheres, a imagem honrada, honesta e digna, associada a Maria, símbolo de pureza e afastada da imagem de Eva pecadora. Para a pastoral cristã, uma família só poderia ser constituída pelo matrimônio, a 13 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 14 ARIÈS, Philipe. História social da criança e da família. Tradução Dora Flaksman, 2. ed., Rio de Janeiro: LTC, 1981. 15 QUEIROZ, Teresinha de J. M. O nascimento da infância. In: Cadernos de Teresina, agosto de 1995, ano IX, n.º 20, Teresina, p.19. 16 BADINTER, op. cit, 1985, p.15. 6 mulher deveria casar em estado virginal, portanto, a maternidade só poderia ser valorizada dentro desta instância. Portanto, analisando o romance Palha de Arroz, a partir da personagem Serafina, percebemos que seu cenário era ambientado em uma cidade permeada por valores tradicionais, no tocante a constituição de um ideário de família cristã, que como tal não representava o real, mas possibilidades desse real, e que entanto, nos remete as análises de Perrot17, no qual, o dizível fabrica o indizível, quer dizer as normas prescritas pelo discurso da Igreja Católica não condizem com as práticas cotidianas, que são culturais e plurais, portanto, multifacetado. As normas fabricam os usos cotidianos, que não são nada homogêneos. REFERÊNCIAS 1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Piauí – UFPI QUEIROZ, Teresinha. História e literatura: um olhar sobre as fontes. In: Cadernos de Teresina, Ano X, n.º 24, dezembro de 1996. p.76 2 3 SEVCENKO, Nicolau. Introdução. In: Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras SEVCVENKO, op. cit, p.31. 4 SILVA, Raimunda Celestina Mendes da. A cidade incendiada: uma visão histórica e literária dos incêndios de Teresina. In: Scientia et spes: Revista do Instituto Camillo Filho, volume 1, n.º 2. Teresina: ICF, 2002, p.315 5 SILVA, op cit, p.333-4 6 Sobre modernização autoritária durante a ditadura varguista em Teresina, ver NASCIMENTO, Francisco Alcides do. Cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina (1937-1945). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2002. 7 AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930-1964). In: MARCILIO, Maria Luiza (org). Família, mulher, sexualidade e igreja na história do Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p.124. 8 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e José Augusto Guillhon Albuquerque. 11. ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006, p.17 9 FOUCAULT, op. cit, 2006, p.84-5. 10 Pe. VERSSEM, Guilherme. Aos noivos. In: O Dominical. Teresina, 30 de dezembro de 1951. p.3. 11 FOUCAULT, 1996, p.18. 12 IBIAPINA, Fontes. Palha de arroz. 4. ed., Teresina: Corisco, 2004, p.138-9. 13 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 14 ARIÈS, Philipe. História social da criança e da família. Tradução Dora Flaksman, 2. ed., Rio de Janeiro: LTC, 1981. 15 QUEIROZ, Teresinha de J. M. O nascimento da infância. In: Cadernos de Teresina, agosto de 1995, ano IX, n.º 20, Teresina, p.19. 16 BADINTER, op. cit, 1985, p.15. 17 PERROT, Michelle et al (org). História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.13. 17 PERROT, Michelle et al (org). História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.13.