Bósnia: 15 anos após Dayton
Uma visita ao país balcânico evidencia que ainda há muito trabalho para curar as feridas
do conflito mais violento em solo europeu desde a Segunda Grande Guerra.
Edifícios bósnios contrastam marcas do passado recente da região com a tentativa de levar uma vida normal. O país ainda está em resconstrução e o turismo começa a reaparecer.
à Belgrado. De Srebrenica, naquele balhando por gerações para que
Fotos e texto: Thomás Selistre
dia 15 de junho de 1995, somente se tenha uma boa educação e uma
sobreviveram suas mulheres e os vida digna, e reconstruindo, assim,
Violência - No início dos anos 90, poucos que conseguiram fugir. Foi o tecido social destruído pela polauinze anos depois de assinaBósnia foi repentinamente atacada o maior extermínio genocida da Eu- rização da propaganda política - do
dos os acordos de Dayton,
“Nós contra Eles”.
pelo exército croata e por milícias ropa desde a Segunda Guerra.
que definiram o que muitos consi- e pelas forças armadas comandadaA população muçulmana, maioria
Sentado em um restaurante em
deram um ponto final à guerra entre das por genocidas como Slobodan até então, hoje se resume a menos Mostar, lembro-me de um senhor
muçulmanos e católicos na Bósnia, Milosevic ou o general Radovan de um terço do número de habitan- de uns cinquenta anos e feições
seria mais cômodo afirmar que o Karadzic, que durante meia década, tes da localidade; e vive com medo. abatidas, que fumava um cigarro e,
conflito nos Balcãs havia definitiva- tentaram limpar-lhes de seu territó- Daquelas famílias que fugiram, que, depois de um tempo, me permente terminado e que aquele país, rio para construir a Grande Sérvia. contudo, algumas já começam a guntou se eu era turista. O turismo
Bósnia Herzegovina viu, de um estabelecer-se outra vez por alí. Um na Bósnia começa a reaparecer e já
antes membro da federação ioguslava, agora vivia em paz. Embora lo- instante a outro, gente hipnotizada jovem, admirado com que algum se vêm grupos de europeus visitancalizadas na europa, cidades como por discursos nacionalistas matanSaraievo ou Srebrenica continuam do a vizinhos e a colegas de classe.
esquecidas numa região que outrora A violência sexual, as mortes em
foi essencial para ligar o ocidente massa da população e o cerco à caao oriente e que ainda sofre com as pital foram apenas algumas das formas dadas ao sofrimento causado à
sequelas de um passado recente.
“Nós podemos conviver normal- população civil, que, em muitos camente com eles, mas eu não con- sos, não desejava esta guerra.
Muçulmanas perdiam sua honra,
sigo confiar nos croatas”, comenta
um jovem chamado Luca, que se violadas. Algumas morriam, outras
comunica em espanhol e explica engravidavam ou, marginadas por
que aprendeu a língua vendo nove- sua família, prostituíam-se. Eram
las mexicanas legendadas na tele- atos de crueldade e barbárie: um cavisão. Ele nos aluga sua casa à beira minho a mais para a limpeza étnica.
do rio Neretva, a alguns minutos da Seus prados e algumas de suas mais
ponte símbolo de Mostar, cidade ao antigas construções foram destruísul do país. A estrutura histórica que dos, usados como refúgios ou ma- Ruínas da casa que um dia abrigou o príncipe austro-húngaro Francisco Ferdinando
foram refúgio durante o avance das tropas croatas pelas montanhas de Mostar.
liga os dois lados da cidade foi re- tadouros. Ainda não se pode caminconstruída entre 1995 e 2004 como har livremente pelas montanhas por estrangeiro venha a essa região re- do as cidades mais representativas.
símbolo de paz após haver sido de- medo de perder a vida ou ser muti- mota, nos conta sua história. Ele fu- Respondo ao velho homem que
lado por uma mina terrestre.
rrubada por investidas militares.
giu com sua mãe quando ainda era sim, elogiando a cidade e a bele“Aqui há dois times de futebol, o
bebê e hoje vive e estuda em Tuzla, za dos tons de azul e verde típicos
time católico (croata) e o time bósFeridas - Ao nordeste, do outro a algumas horas do povoado. Per- do Neretva. Ele não tarda em dizer
nio (muçulmano). Quando há derbi lado do país, a desconfiança tam- deu para a guera, entre outros pa- algo, intercalando palavras com tra(clássico local), o clima na cidade bém existe. vEm Srebrenica, um rentes, o avô e o pai - cujo corpo gadas de fumaça. “É, mas bonita
muda e muitas coisas más aconte- povoado hoje triste a três horas e ainda não foi encontrado. Com um era mesmo antes da guerra.” Nada
cem”, conta, depois de dar-nos as meia em ônibus de Saraievo, na pouco de frieza e sem sorrir uma mais disse. Foi uma frase curta, mas
chaves e de mostrar-nos os quartos. fronteira com a Sérvia, mais de oito só vez, nos leva um mais ao sul da cheia de significado.
Da sacada, ainda se vêem marcas de mil homens foram mortos, indiscri- cidade e nos mostra, entre alguns
Palavras como essas reforçam a
balas e casas destroçadas por bom- minadamente, por serem muçulma- monumentos, uma antiga fábrica, idéia de que a diplomacia e o bombardeios. A imagem de crianças nos, em uma zona neutra, diante dos explicando-nos que, há 15 anos, ela senso deveriam vir sempre antes de
jogando futebol na outra margem olhos de tropas da Nações Unidas. havia sido cenário de um dos tantos qualquer hostilidade. Isso é evodo rio, no entanto, lembra que os Era um presente, diziam eles, de massacres da guerra.
lução. E esse é o mundo onde devetempos não são mais os mesmos. É Karadzic e do general Ratko Mladic
E como curar tantas feridas? Tra- ríamos viver.
hora de corrigir os erros do passado
e pensar no futuro.
Q
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BÓSNIA: 15 ANOS APÓS DAYTON