UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS Vanessa Rôla Aluna nº 7277 Mestrado Profissionalizante em Novos Media e Práticas Web Modos da Ficção – Ano Lectivo 2006/2007 A CLOCKWORK ORANGE E OS LIMITES DA LIBERDADE DE ESCOLHA Cerca de quarenta e cinco anos após a sua edição, em 1962, é impressionante e quase assustadora a forma como A Clockwork Orange, de Anthony Burgess, permanece actual ainda hoje e o modo como, apesar de em alguns aspectos ser de difícil catalogação, se tornou uma obra de referência da literatura de ficção científica. O relato na primeira pessoa das aventuras de um jovem adolescente inglês sem qualquer tipo de consciência moral, Alex, melómano admirador incondicional da música clássica, em especial de Beethoven, e praticante convicto do que ele apelida de ultra-violência, tem chocado e fascinado leitores ao longo de quase meio século e tornou-se conhecido à escala planetária em grande parte devido à sua adaptação para o grande ecrã pela mão de Stanley Kubrick, num filme tão polémico e genial quanto o livro. É, fundamentalmente, devido ao carácter provocador e à actualidade de ambas as obras que tomámos A Clockwork Orange – o livro e o filme – como objecto de análise do presente ensaio. I. A Clockwork Orange e a distopia – If this goes on... Ao lermos A Clockwork Orange facilmente constatamos que estamos perante uma narrativa tipicamente distópica, havendo uma série de elementos que comprovam esta afirmação. Um desses elementos é o recurso ao ponto de vista único do narrador. Como afirmado anteriormente, A Clockwork Orange é narrada na primeira pessoa pelo protagonista, Alex, e é através das suas palavras e da sua perspectiva que viajamos através da narrativa, e que Burgess veicula a sua crítica à sociedade do seu tempo. 1 Neste aspecto Burgess conta com uma grande mais-valia, o seu estilo pessoal de escrita e a forma como habilmente utiliza a linguagem como aquilo a que Walter E. Meyers chama de plot device - e muito poucos autores o conseguirão de forma tão eficaz quanto Burgess. Brilhantemente desenvolvido e linguisticamente inventivo, A Clockwork Orange resulta num genial exercício de escrita, cuja leitura é tão densa e desafiante, quanto envolvente, sendo aqui determinante o papel desempenhado pela introdução de um dialecto inventado pelo autor. De uma combinação do calão inglês (cockney), com elementos da língua russa (que fascinava o autor e pela qual demonstrou grande interesse), Burgess criou o nadsat, que numa tradução livre significaria qualquer coisa como “adolescente”. Este dialecto é utilizado por Alex, e grande parte dos jovens da narrativa, e povoa a obra do início ao fim, exigindo esforço redobrado por parte do leitor mas conferindo-lhe, em contrapartida, maior prazer na leitura 1 . O resultado é conferir à obra como que um carácter algo vago, que permite que permaneça actual (Burgess assumidamente não quis optar por um dialecto já existente para não datar A Clockwork Orange), garantir a fidelização do leitor e, em conjunto com o ponto de vista único do narrador, conquistar a sua empatia relativamente ao protagonista e às suas acções. Alex mata, viola, rouba, conta as suas experiências com orgulho mas, ainda assim, nem que seja por breves instantes, consegue conquistar a nossa simpatia enquanto leitores. Por outro lado, podemos ainda arriscar que a linguagem e o uso do nadsat funcionam na obra como a música funciona no filme, criando uma espécie de barreira, desenvolvendo como que uma distanciação que permite ao leitor/espectador ler/ver a violência com outros olhos, tornando-a quase suportável. 1 Em alguns países, incluindo Portugal, A Clockwork Orange chegou mesmo a ser editada acompanhada de um glosário dos termos nadsat, algo que provocou o descontentamento de Burgess, que considerava que assim a tarefa do leitor não só era facilitada e menos interessante, como acreditava que retirava à obra grande parte da sua especificidade ao nível linguístico. 2 Um outro elemento que atesta a ligação de A Clockwork Orange às narrativas distópicas é a relação existente entre a obra e o futuro em que se desenrola a acção. A Clockwork Orange é claramente uma narrativa cuja acção se situa num futuro muito próximo. Tão próximo que poderá confundir-se mesmo com o presente, como Burgess chegou a admitir afirmando que, quando escreveu A Clockwork Orange, escreveu sobre o presente, mistificando-o um pouco, fornecendo alguns elementos temporais e espaciais concretos mas simultaneamente vagos o suficiente de modo a não datar a obra. Neste sentido, A Clockwork Orange poderá ser caracterizada como futurista mas ligada ao presente, sendo uma obra mais realista que fantasista. Apesar de, num modo geral e como defendido por M. Keith Booker, as narrativas distópicas se distinguirem por recorrerem à técnica da desfamiliarização, Burgess optou aqui pelo caminho inverso e menos óbvio, decidindo fornecer alguns elementos bem familiares (como é o caso de alguns dos locais/ruas onde se passa a acção) e ancorar a sua narrativa ao presente de modo a, partindo dele, abrir uma janela para o futuro e tentar mostrar um horizonte que não estava então à vista de todos e que a maioria considerava impossível. Na década de 60 do séc. XX a mera ideia de uma juventude que se impunha aos mais velhos e o caos social provocado pela delinquência juvenil que viria a florescer era improvável, mas Burgess de certa forma previu esse cenário e alertou para as suas consequências. Esta sua capacidade de antecipar o que viria a concretizar-se anos mais tarde (nomeadamente, e no caso do Reino Unido, entre os finais dos anos 70 e os anos 90 do séc. XX durante o governo Thatcher) fez com que muitos catalogassem A Clockwork Orange de obra socialmente profética e louvassem Burgess pela sua clarividência. No entanto, poderá contra-argumentar-se que o autor simplesmente esteve mais atento aos sinais enviados pela emergência de novas culturas, pela escalada da violência e pelo aparecimento de novos gangs em Inglaterra, tendo tido uma maior capacidade de interpretar esses sinais e perceber as consequências que dali poderiam resultar, em parte devido também à sua própria experiência pessoal 3 – a primeira mulher de Burgess havia sido violada anos antes em circunstâncias semelhantes às de A Clockwork Orange. No entanto, seja de facto uma obra socialmente profética ou uma mera coincidência, a única certeza que temos e que prova inequivocamente que A Clockwork Orange se trata de uma narrativa distópica é o facto de ser uma obra que critica o presente, em que a preocupação dita mais óbvia da ficção científica relativamente ao uso da tecnologia e as suas implicações na sociedade é relegada para segundo plano, e em que o principal objectivo é a pura crítica social e política como forma de aviso, típica das narrativas distópicas. Por outras palavras, Burgess toma consciência das inadequações do sistema político e social da sua época, denunciando-as e incitando os leitores a construir um futuro melhor, de forma a evitar o pior. Burgess parte de um dos direitos basilares da democracia tido como garantido, a liberdade individual, e lança o alerta: “se o caminho escolhido pela sociedade for este, as consequências e o preço a pagar serão as seguintes...”. O autor mostra um indivíduo obrigado a conformar-se relativamente ao Estado e ao seu poder e apresenta, sem qualquer pudor, as consequências trágicas que daí poderão surgir (e aqui o exemplo perfeito será o da cena em que Alex, após ter sido submetido à Ludovico’s Technique, é obrigado, contra a sua vontade, a lamber a sola de um sapato pois se não o fizer será invadido por uma sensação de mal-estar físico incontrolável). Contudo, é de destacar que Burgess imprime algum optimismo na sua denúncia. Ou é talvez precisamente por acreditar que o pior caminho poderá ser contornável que Burgess apela contra ele. No aviso de A Clockwork Orange, para além da crítica distópica, há também o que Darko Suvin chama de “utopianismo”, isto é, há uma clara tendência para um horizonte substancialmente melhor, há o desejo de um futuro mais optimista e a necessidade de lutar por ele. Burgess indica o futuro para o qual se caminha, apresenta os motivos que conduzirão a esse destino, mostra as consequências que daí advirão mas revela também soluções. Apesar do inferno para o qual a sociedade caminha parecer inevitável há, no entanto, esperança. É aqui que 4 reside a grande diferença entre as metas de Burgess e Kubrick e o grande contraste entre o livro e o filme. II. A Clockwork Orange, o livro e o filme – Burgess vs. Kubrick Quando colocados frente a frente e comparados, A Clockwork Orange livro e filme são bastante semelhantes. Contrariamente às adaptações para cinema que Stanley Kubrick havia feito até então, chega mesmo a provocar uma certa estranheza a forma como o cineasta permaneceu fiel à obra de Burgess quando escreveu o guião do filme (quer em termos de narrativa, quer de estrutura, diálogos, cenários, etc.). Senão vejamos, terceiro filme de uma trilogia cuja acção se passa no futuro (antecedida por Dr. Strangelove, em 1964, e 2001: A Space Odyssey, em 1968) A Clockwork Orange é o menos futurista de todos, obedecendo deste modo à premissa estabelecida pelo livro e situando-se num futuro próximo (o que em certa medida desiludiu Burgess, admirador de 2001: A Space Odyssey, que esperava que Kubrick realizasse uma adaptação mais futurista da sua obra). Em segundo lugar, a grande maioria das personagens foram transpostas do livro para o guião, as situações foram mantidas (à excepção de uma ou outra cena/parte do enredo, talvez menos relevante em termos estruturais como é o caso do tempo passado por Alex na prisão) e os cenários construídos ao estilo de Kubrick, mas seguindo a ideia inicial de Burgess. É certo que podemos deparar-nos com algumas pequenas alterações (conscientemente feitas por Kubrick, em jeito de auto censura, de modo a evitar algumas polémicas - exemplo das crianças de 10 anos que Alex encontra numa loja de discos e acaba por violar que no filme são interpretadas por adolescentes, ou do próprio actor que interpreta Alex que no livro tem 15 anos e no filme aparenta ter mais idade), que a marca do formalismo quase clínico de Kubrick é uma presença constante no filme e que neste a banda sonora atinge uma dimensão inexistente no livro, tornando-se a música quase tão importante para a acção quanto as personagens, mas avaliando o seu todo podemos dizer que livro foi transportado quase na sua totalidade para o grande 5 ecrã. A grande e óbvia excepção feita é a da omissão do último capítulo da obra por parte de Kubrick, que assim mudou radical e inteiramente o final da narrativa. Burgess intencionalmente estruturou o seu livro em três partes, cada uma delas com sete capítulos, perfazendo um total de vinte e um que, simbolicamente, representam a idade em que um jovem atinge a maioridade em algumas sociedades. Kubrick fez a adaptação da obra a partir da sua edição americana, à qual havia sido cortado o último capítulo por ter sido considerado pelos editores inconsistente relativamente ao resto da obra e menos apelativo, e só quando havia terminado o guião teve acesso à versão original de A Clockwork Orange, composta pelos vinte e um capítulos. Ainda assim, Kubrick, tal como os editores americanos, preferiu eliminar o vigésimo primeiro capítulo. “This extra chapter depicts the rehabilitation of Alex. But it is, as far as I am concerned, unconvincing and inconsistent with the style and intent of the book. (…). I certainly never had any serious consideration to using it”. – Stanley Kubrick 2 . O resultado desta opção foi retirar a A Clockwork Orange qualquer tipo de horizonte de esperança que Burgess tinha tentado transmitir no livro e impedir a personagem principal, Alex, de crescer e atingir a sua maioridade. Desta forma, A Clockwork Orange aquando da sua passagem para o cinema deixa de pertencer ao grupo de narrativas distópicas que oferecem uma visão mais positiva do que poderá vir a ser o futuro no final. Kubrick acrescenta o seu pessimismo cínico ao moralismo católico de Burgess, retirando-lho por completo o tom optimista deixado no ar no livro. Segundo o cineasta este seria o único final possível para A Clockwork Orange. E o único desfecho coerente para Alex seria continuar a desejar praticar a ultraviolência sem qualquer tipo de problema moral. Só sendo um indivíduo genuinamente violento (ou que optou pela violência) e não condicionado a 2 CIMENT, Michael, Kubrick, London, Collins, 1983 6 regenerar-se (ou que não é obrigado a praticar o bem) é que o final de A Clockwork Orange seguiria o tema central da obra: o livre-arbítrio. III. A Clockwork Orange enquanto parábola da liberdade de escolha – Ludovico’s Technique Burgess nunca escondeu as suas convicções políticas 3 mas, mais do que acreditar em doutrinas políticas, o autor de A Clockwork Orange era um defensor extremo da liberdade do indivíduo e do livre-arbítrio. Segundo Burgess, nos regimes socialistas o Estado escolhia pelas pessoas e por mais nobres e justas que fossem estas escolhas privavam os cidadãos do seu direito a escolher e limitavam a sua liberdade pessoal e individual. É esta situação, considerada por Burgess alarmante e inaceitável, que o autor pretendeu denunciar em A Clockwork Orange e a forma mais eficaz ao seu alcance para o fazer foi recorrendo à hiperbolização que caracteriza a Ludovico’s Technique. Resumidamente, depois de um longo historial de violência, Alex é apanhado pela polícia e condenado à prisão. Apesar de aparentar um comportamento exemplar durante o cumprimento da pena, o seu desejo de praticar actos violentos, ainda assim, não esmorece e o modo mais rápido que Alex vê de ser de novo posto em liberdade e continuar a vida de ultra-violência que levava antes do encarceramento é submeter-se a uma técnica experimental praticada pelo Estado, a Ludovico’s Technique, cuja principal característica era a de, através de um método de lavagem cerebral de visionamento de imagens altamente violentas e chocantes, combinada com um conjunto de drogas administradas às cobaias, retirar ao indivíduo a vontade de sequer ter pensamentos violentos – a partir dali cada vez que as cobaias fossem violentas (ou meramente desejassem sê-lo), sentiriam uma dor física extrema, a qual 3 “My political views are mainly negative: I hate the state. I lean towards anarchy.”, Anthony Burgess In PRIESTLEY, Brenton, “Of Clockwork Apples and Oranges: Burgess and Kubrick”, http://www.brentonpriestley.com/writing/clockwork_orange.htm 7 não poderiam evitar ou controlar. Isto é, o indivíduo era forçado a praticar o bem, não tendo qualquer possibilidade de escolha. Na invenção da Ludovico’s Technique 4 Burgess ter-se-á inspirado nas teses do behaviourismo e nas experiências de B. F. Skinner, defensor da restrição da liberdade individual em prol de uma sociedade ideal. Skinner estudou o comportamento de grupos e a forma como reagiam a castigos e recompensas e como podiam associar a dor física a comportamentos indesejados – Burgess considerava estas experiências desumanas e atrozes e denunciou os seus perigos utilizando-as no protagonista de A Clockwork Orange. Nesta linha, torna-se claro o carácter da obra enquanto parábola da liberdade de escolha (retirada ao criminoso através da Ludovico’s Technique) em que o totalitarismo do Estado é levado a um extremo máximo, o do foro íntimo. Em última análise, é o próprio cérebro do indivíduo, representado por Alex em A Clockwork Orange, que passa a pertencer ao Estado - nesta medida A Clockwork Orange poderá ser comparável a 1984 de George Orwell e a Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, obras nas quais o poder de um Estado futurista é exercido sem qualquer tipo de controlo. Para Burgess um homem bom seria aquele capaz de praticar tanto o bem como o mal, aquele que fosse capaz de escolher entre um ou outro. A liberdade de escolha, nem que fosse de matar ou violar, era vital para a humanidade e a personagem de A Clockwork Orange que dá voz a esta convicção de Burgess é o capelão da prisão ao afirmar, referindo-se a Alex, “He has no real choice, as he? He ceases to be a wrongdoer. But he ceases also to be a creature capable of moral choice”. 5 Privar o homem do livre-arbítrio seria torná-lo numa criatura sub-humana, num autómato, no limite, numa laranja mecânica 6 . 4 Nome atribuído ao método científico experimental por Burgess em homenagem ao compositor alemão Ludwig van Beethoven. 5 BURGESS, Anthony, A Clockwork Orange, London, Penguin Books, 2000, p.94 6 Citando Burgess, “If he can only perform good or only perform evil, then he is a clockwork orange-meaning that he has the appearance of an organism lovely with colour and juice but is 8 IV. A Clockwork Orange e os Mass Media – Crise de identidade do sujeito Há um claro paralelismo existente entre a Ludovico’s Technique de A Clockwork Orange e os efeitos da cultura de massas, vistos por Burgess igualmente como uma forma de lavagem cerebral que pressionava as pessoas a serem passivas (o autor encontrou essa passividade e conformismo na juventude de diversos grupos emergentes, como os mods 7 e os rockers 8 , a título de exemplo, facto que justificará a escolha por parte do autor do leque de personagens da obra – Alex e os seus droogs 9 ). E qual o meio através do qual esta pressão é comumente exercida? Os mass media ditos tradicionais, com a televisão, o mais mediático dos media, à cabeça de todos. A utilização massiva da imagem, característica do dispositivo televisivo, fez com a sua especificidade estritamente representacional deixasse de existir e passasse a dominar uma nova finalidade estratégica da imagem, cujo objectivo é o de desprover a narrativa do papel central, por si detido até então. Tal como a sucessão de imagens de actos de violência em catadupa, acompanhada por uma banda sonora adequada (maioritariamente composta por música clássica e temas épicos), deixavam Alex rendido às projecções no ecrã (ainda que no seu caso não tivesse outra alternativa que não olhar para a tela pois estava amarrado a uma cadeira e com os olhos abertos, presos por in fact only a clockwork toy to be wound up by God or the Devil or (since this is increasingly replacing both) the Almighty State.”, in “A Clockwork Orange Resucked”, http://www.geocities.com/malcolmtribute/aco/acoresucked.html 7 Subcultura surgida na classe média londrina, na década de 60 do séc. XX, que se estendeu a diversas áreas como a música e a moda e cujos principais interesses eram, nomeadamente, a pop art, a nouvelle vague francesa e a filosofia existencialista . 8 Movimento nascido igualmente em Londres, nos finais da década de 50/início da década de 60 do séc. XX. Associado às motas e blusões de cabelal, era a antítese do movimento mod (tido como seu rival) e interessava-se, fundamentalmente, pela música e cultura rock n’ roll – entre os seu ídolos estavam Eddie Cochran, Chuck Berry e Elvis Presley. 9 Termo nadsat, cujo significado é “amigos” (do russo droog/amigo). 9 grampos metálicos), também a estética televisiva pós-moderna tende a deixarnos inertes e indiferentes, rendidos ao infinito de formas que nos chegam através da TV (e, metaforicamente, presos à cadeira). Mais do que dispositivos de integração social e de reprodução cultural, fornecedores de contextos que possibilitam ao indivíduo construir a sua própria identidade, os media na sua vertente mais dirigista e condicionante passaram a desenvolver um trabalho activo de imposição de uma identidade a um sujeito, identidade essa que entra numa evidente crise e que passa a funcionar como puro simulacro, imposto pelas indústrias da cultura e entretenimento. Assim, a televisão ao invés de meio através do qual circula uma mensagem, passa a ser um fim ela própria e, simultaneamente, um instrumento através do qual se instala um poder quase total e invisível, originador de uma profunda crise da cidadania. Os mass media começam por dar uma identidade ao sujeito, de seguida indicam-lhe o que desejar, depois dão-lhe a técnica, ou como atingir as suas aspirações e, por fim e não tendo o sujeito atingido o sucesso na etapa anterior, oferecem-lhe a fuga, a escapatória. Esta forma de imposição por parte dos mass media é talvez a mais difícil de detectar, ao ser a mais subtil, mas é certamente a mais orientadora das nossas experiências enquanto sujeitos – curiosa é também a forma como tende a desaparecer com o recente surgimento dos chamados novos media ou media participativos, caso da internet, comprovando que é a passividade do sujeito que alimenta o poder dos mass media. O unilateralismo imposto pelos mass media, ao contrário de estimular o confronto de ideias e a discussão de diferentes opiniões/teorias, funciona como uma barreira impeditiva da verdadeira comunicação, que em situações-limite chega mesmo a confundir-se com a estrutura vertical, também ela unidireccional, da propaganda e da manipulação, estrutura essa facilmente detectável na Ludovico’s Technique de A Clockwork Orange. A Ludovico’s Technique, através da imposição da imagem, priva Alex da sua liberdade de escolha, do seu livre-arbítrio. A utilização massiva, por vezes 10 abusiva, da imagem por parte dos mass media rouba ao sujeito a sua identidade (ou impede-o de a construir por si mesmo). Mas, em última instância, quer o método de lavagem cerebral de Burgess, quer a técnica manipuladora dos mass media transformam o sujeito em alguém incapaz de escolher ou de decidir, num autómato, numa laranja mecânica. Sendo a televisão o meio onde esta capacidade de manipulação e orientação de experiências é mais evidente, outros mass media cujo suporte é a imagem detém o mesmo tipo de poder e exercem-no frequentemente sobre os seus públicos. É o caso do cinema e de algumas obras cinematográficas, em particular e uma vez que falamos de A Clockwork Orange, o filme homónimo realizado por Stanley Kubrick em 1971 – responsável por dar a conhecer a um público mais alargado a obra de Burgess. V. A Clockwork Orange – A Estratégia de Kubrick A porta havia já sido aberta por Burgess. Kubrick apercebendo-se do potencial da obra e dos recursos técnicos próprios do cinema que estavam à sua disposição (e que o colocavam em vantagem perante o autor de A Clockwork Orange) seguiu com convicção esse caminho. A Clockwork Orange, o filme, possui uma certa retórica expressionista detectável no estilo de representação exagerado (sendo o desempenho do actor principal, Malcolm McDowell, o melhor dos exemplos), no uso da ironia em alguns dos cenários (como o cenário do Korova Milkbar), na iluminação ao estilo cinéma verité (de algumas imagens de exterior, como a cena em que o gang de Alex espanca um sem-abrigo num túnel), nos ângulos estranhos e grandes planos (grande-plano de Alex na sequência de abertura do filme e diálogo entre o protagonista e Deltoid), no uso da hand-camera (nomeadamente na perseguição de Miss Weathers, “mulher dos gatos”), na formalização da violência através da montagem (caso da luta entre gangs num casino abandonado), nos sons electronicamente criados (como as versões electrónicas de Beethoven, recriado por Walter Carlos) e na banda sonora, que transfigura por completo algumas das imagens, transformando-as em 11 determinadas ocasiões em verdadeiros ballets (de que é exemplo a sequência em que Alex ataca George e Dim). Não deixa de ser curiosa, e certamente não será inocente, a forma como o recurso a grande parte destes elementos é utilizado ao máximo na fase pré-Ludovico’s Technique de Alex, para se diluir progressivamente ao longo da película a partir do momento em que o protagonista é julgado e preso, tornando o filme mais estável e realista (por vezes num estilo mais documental). A linguagem cinematográfica oferecia a Kubrick aliados poderosos e através deles o cineasta conseguiu atingir um efeito algo semelhante à Ludovico’s Technique junto de quem vê o filme. Kubrick soube tirar proveito com mestria do facto de não existir qualquer barreira entre a imagem projectada na tela e o espectador indefeso e descuidado, conduzindo-o numa espécie de viagem de montanha russa, onde a liberdade de escolha acaba por não ser uma possibilidade. A partir do momento em que se começa a ver o filme não há retorno e o seu efeito hipnótico é de tal forma eficaz que percorremos todo o caminho quase sem pestanejar e sem nos darmos conta que uma visão nos está a ser imposta, habil e subtilmente, pelo realizador do filme e que este, ironicamente, ainda nos provoca e testa a nossa atenção introduzindo na película algo como a Ludovico’s Technique, que deste modo poderá ser lida como uma espécie de momento metaficcional que nos obriga a reflectir sobre nós mesmos enquanto espectadores. Tal como a vida de Alex podia ser dividida em duas partes, o pré-Ludovico’s Technique (em que a violência e a imoralidade imperavam) e o pós-Ludovico’s Technique (em que um simples pensamento violento se transforma num malestar físico terrível e castrador), também o espectador poderá dividir a sua experiência imagética em dois momentos, antes e depois de ter visto A Clockwork Orange. As palavras de Susan Rice descrevem o efeito do filme na perfeição: “(…) has it occurred to anyone that, after having our eyes metaphorically clamped open to witness the horrors that Kubrick parades 12 across the screen, like Alex and his 9th, none of us will ever again be able to hear ‘Singing in the rain’ without a vague feeling of nausea?”. 10 Desta forma, Kubrick priva-nos igualmente, ainda que indirectamente, da nossa liberdade de escolha e, para além disto, tal como impediu Alex de atingir a maioridade na conclusão do filme, cortando o vigésimo primeiro e último capítulo de A Clockwork Orange, impede-nos a nós próprios de atingirmos a nossa maioridade enquanto espectadores. Certamente serão mais aqueles que tomaram contacto com a obra através do filme de Kubrick do que através do livro da autoria de Burgess, mas isso só faz com que A Clockwork Orange se torne quase num segredo não muito bem guardado e com que a o seu carisma enquanto obra seja ainda maior – e para isto contribui certamente o facto de o filme ter sido retirado das salas de cinema em alguns países pelo seu conteúdo chocante, tornando-o numa espécie de fruto proibido. É a aparente linearidade de A Clockwork Orange, que desaparece assim que se toma um contacto mais directo com a obra, o seu carácter provocador que chega a causar quase incómodo a quem acompanha a história de Alex, a forma cativante como foi desenvolvida em termos narrativos, estruturais e estilísticos, prendendo-nos do início ao fim e deixando a sua marca na nossa experiência, e a forma como ao longo de décadas tem gerado discussões atrás discussões, sobre as mais variadas temáticas, em que quase nunca é encontrado um consenso mas em que inúmeras outras questões são levantadas, que fazem de A Clockwork Orange uma das obras maiores do séc. XX. Não só em termos do universo da ficção científica mas também de toda a literatura e do cinema de um modo mais generalizado. 10 AAVV, Stanley Kubrick’s: A Clockwork Orange, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 93 13 BIBLIOGRAFIA AAVV, British Science Fiction Cinema, I. Q. Hunter – Londres e Nova Iorque, Routledge, 1999 AAVV, Comunicação e Sociedade: os efeitos sociais dos meios de comunicação de massas, Lisboa, Livros do Horizonte, 2002 AAVV, Stanley Kubrick’s: A Clockwork Orange, Cambridge, Cambridge University Press, 2003 AAVV, Dark Horizons – Science Fiction and the Dystopian Imagination, New York, Routledge, 2003 AMIS, Kingsley, New Maps of Hell, London, The Science Fiction Book Club, 1962 BALLE, Francis, Médias et Societé, Paris, Montchrestien, 1984 Booker, M. Keith, The Dystopian Impulse in Modern Literature: Fiction as Social Criticism, Westport (CT) e Londres, Greenwood Press, 1994 BURGESS, Anthony, A Clockwork Orange, London, Penguin Books, 2000 BURGESS, Anthony, “A Clockwork Orange http://www.geocities.com/malcolmtribute/aco/acoresucked.html Resucked”, CIMENT, Michael, Kubrick, London, Collins, 1983 DARLYRUMPLE, Theodore, “A Prophetic and http://www.city-journal.org/html/16_1_oh_to_be.html Violent ESTEVES, João Pissarra, “Os media e a questão http://bocc.ubi.pt/_listas/tematica.php?codtema=13 da Masterpiece”, identidade“, MEYERS, Walter E., “The Future History and Development of the English Language”, http://www.depauw.edu/sfs/backissues/9/meyers9art.htm 14 PRIESTLEY, Brenton, “Of Clockwork Apples and Oranges: Burgess and Kubrick”, http://www.brentonpriestley.com/writing/clockwork_orange.htm SÁ, Alexandre, “Media, Mass Media, Novos Media e a crise da cidadania“, http://bocc.ubi.pt/_listas/tematica.php?codtema=13 STAIGER, Janet, Perverse Spectators: the practice of film reception; New York, University Press, 2000 WILLIAMS, Raymond, Utopia and Science fiction, in Science Fiction: A critical Guide, Londres e Nova Iorque, Longman, 1979 15 ÍNDICE I. A Clockwork Orange e a distopia – If this goes on... 1 II. A Clockwork Orange, o livro e o filme – Burgess vs. Kubrick 5 III. A Clockwork Orange enquanto parábola da liberdade de escolha – Ludovico’s Technique 7 IV. A Clockwork Orange e os Mass Media – Crise de identidade do sujeito 9 V. A Clockwork Orange – A Estratégia de Kubrick 11 Bibliografia 14 16