nº 35 | julho de 2011 |
pi
Na estrada
Histórias da BR-116
primeira impressão
AO LEITOR
CLARA ALLYEGRA
A
inda que a ideia seja tentadora, não falaremos em metáforas neste número da Primeira Impressão. Falaremos de um caminho mesmo, uma estrada, dessas que nos
levam e trazem de volta. Vindos do Sul ou do Norte,
quase todos que trabalham, estudam e convivem na
Unisinos passam pela BR-116. Passagem que, por princípio, é tempo e deslocamento. É também vivência.
Mais que um espaço de trânsito, a estrada é espaço
de vida. Foram essas vidas, pelas quais simplesmente
passamos, que dessa vez tentamos enxergar. Afinal,
de quem são as roupas penduradas naqueles varais
embaixo da ponte? Quem vende e que produtos são
aqueles nas vendas pelas quais passamos velozmente?
Um jardim em plena brutalidade da rodovia? Quem
toma chimarrão naquela sacada? Quais as dores de
quem faz a manutenção desse caminho? Quem é chapa ou não?
Aprofundamos nossa percepção e contamos essas
histórias. A edição 35 da Primeira Impressão — pautada e produzida por alunos do final do curso de Jornalismo da Unisinos — tem esta marca, uma das marcas
que faz do jornalismo algo tão instigante: a possibilidade de ir atrás do que ainda não foi suficientemente
contado e de perceber como as experiências podem
ser narradas por quem as vive, longe do espaço confortável da redação. Para ser produzida, precisou que
todos nós, intuições ligadas, olhássemos um pouco
mais atentamente para o que se passa fora do carro,
do trem, da van, do ônibus. E, lá fora, descobrimos
um mundo cheio de histórias e de vida.
ANDRÉ ÁVILA
Eduardo Veras
Flávio Dutra
Thaís Furtado
Professores-orientadores
ÍNDICE
4 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
CLARA ALLYEGRA
8
Viagem no tempo: como se fez a BR
Remendo: borracharias contemporâneas
14
Rota: o Rio Grande de ponta a ponta
Hoje é festa na BR: bailes e bailões
20
Samu: socorro sobre quatro rodas
Bem passado, mal passado: churrascaria
24
Autoridade: quem vigia a estrada
Na lona: vou correndo ao encontro dela
28
Confusão: imagens que poluem
Acelerando: diários de motocicleta
32
Política visual: grafite e pichação
Meu chapa: quem ajuda o caminhoneiro
36
Religiosidade: “Só Jesus salva!”
À margem do caminho: vida de índio
40
Manutenção: homens trabalhando
Vem comigo: em busca do sexo
46
Andança: um quilômetro a pé
Sustento: uma tenda familiar
50
Rota Romântica: o lado bom da rodovia
Caos: morando ao lado de um viaduto
54
Afivele o cinto: na Praça do Avião
Habitação: oito debaixo da ponte
58
Entrevista: uma pista e dois mundos
Recortes urbanos: uma cidade dividida
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 5
62
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110
ATENÇÃO
CLARA ALLYEGRA
6 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 7
cartola
BR-116 chega ao extremo sul
do Brasil na década de 1950,
atravessando os campos dos
arredores de Pelotas
Uma história em li
8 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
nha longitudinal
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 9
Engenheiro civil e especialista em
pavimentação rodoviária, Mauri Panitz, 69
anos, fez carreira na BR-116 desde os 26
TEXTO DE TAÍS SEIBT | FOTOS REPRODUÇÕES E PEDRO BARBOSA
Q
uando era criança, Mauri
Adriano Panitz tornou-se
popular entre os colegas
de escola e vizinhos de
rua porque gostava de
desenhar. De família católica, ia à
igreja aos domingos, mas desviava
facilmente a atenção do sermão do
padre para os afrescos no teto do
templo. No centro de Porto Alegre,
parava para ver um desenhista rabiscar pinturas de prédios públicos na
Praça da Matriz. Mas o traçado que
marcou a vida de Panitz seria bem
mais simples de representar. Bastaria rabiscar uma linha longitudinal
cortando o mapa do Brasil de norte
a sul. De chinelo de dedo, na sala de
seu apartamento, o engenheiro aposentado rabisca na fotocópia de um
antigo croqui o ponto inicial e o final
de sua jurisdição como engenheiro
residente do Departamento Nacional
de Estradas de Rodagem (DNER), em
São Leopoldo. Aos 69 anos, Panitz
fala com saudosismo de seu trabalho
pela BR-116, no trecho de aproximadamente 300 quilômetros entre São
Marcos e Camaquã, numa época em
que as rodovias estavam em franca
expansão no Brasil.
Desde o Plano Rodoviário Nacional (PRN) criado em 1944, que pretendia ligar o país de ponta a ponta,
foram feitos vários investimentos na
construção de estradas. Especialista
em pavimentação rodoviária e formado em Engenharia Civil, Panitz foi
contratado em 1968 para ser assistente do então engenheiro residente
do DNER em São Leopoldo, Nei Nunes
Fortes de Oliveira. Um ano depois, o
titular deixou a vaga em aberto e Panitz assumiu o comando da residência. O DNER, atual Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes
(DNIT), chama de “residências” as
unidades do órgão distribuídas pelas
rodovias federais para monitorar os
trechos. Cabia àquele jovem de 26
anos comandar quase 500 empregados nas mais variadas funções: topógrafos, mecânicos, sobretudo operários. “Consegui me entrosar tão bem
que eu gozava da confiança dos meus
superiores e tinha a empatia dos subordinados”, diz Panitz.
Os operários viviam em acampamentos, chamados de capatazias, à
beira da estrada. “Era gente muito
Na década
de 1930, a
BR-116, ainda
chamada
de BR-2, era
apenas um
traçado
de chão
batido entre
áreas pouco
urbanizadas
10 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
simples, mas com grande espírito de
doação”, lembra. “Muitos vinham da
colônia, estavam acostumados a trabalhar na terra.” Daí o capricho que
tinham com os canteiros da rodovia.
Foi feita nesta época toda a arborização do trajeto entre Nova Petrópolis
e Novo Hamburgo, com os plátanos
amarelados no outono que estampam cartões-postais das cidades que
se divulgam como a Rota Romântica.
“Eu achava que plantar árvores na
beira da estrada era uma maravilha,
porque deixava o caminho mais bonito, mas com o tempo vi que causa
alguns transtornos, como quedas de
troncos e obstrução da sinalização”,
avalia hoje, com a visão sistêmica
que o tempo lhe deu.
Tratores, NÃO carroças
Cada capatazia tinha, além do
acampamento dos trabalhadores,
pedreira, usina de asfalto, depósito
de sucata e horto florestal. Quando
era preciso fazer um reparo, retirar
árvores caídas ou remover pedras
de quedas de barreiras, o material
vinha da capatazia mais próxima.
Na gestão de Panitz, já se dispunha
de facilidades como tratores, carregadeiras, serra elétrica e dinamite
Área central de Canoas
nos anos 1950, hoje
um dos trechos mais
movimentados da BR-116
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 11
para executar o trabalho, mas a BR116 começou a tomar forma no Rio
Grande do Sul em tempos bem mais
precários. A implantação do primeiro
trecho, entre a divisa com o estado
de Santa Catarina e a cidade gaúcha
de Caxias do Sul, na Serra, data de
1938, “aproveitando a mão-de-obra
abundante, com auxílio de transporte em carroças, obedecendo aos
padrões e possibilidades da época”,
conforme registros do DNIT. Como
“possibilidades da época”, entendase o uso de foices para afastar o mato
e picaretas para detonar pedras.
Até 1974, a rotina de Panitz foi
dividida entre a burocracia de dar
pareceres, despachar processos, fazer estudos técnicos, participar de
reuniões e a parte técnica de visitar
trechos, acompanhar obras, orientar
trabalhos de campo. Não tinha jornada definida nem horário fixo. Fim
de semana, feriado, madrugada. Era
preciso estar sempre pronto para
cair na estrada. O escritório, quase
sempre, era a própria rodovia.
Uma ocorrência no inverno de
1971 é representativa para Panitz.
Havia muitos buracos na pavimentação da ponte sobre o Rio Gravataí,
entre Porto Alegre e Canoas. A lenti-
dão no trecho, que já registrava um
fluxo de 50 mil veículos por dia na
época, obrigava os motoristas a enfrentar longos engarrafamentos todas as manhãs. “Mobilizei a equipe,
pedi o apoio da Polícia Rodoviária Federal e passamos a madrugada trabalhando, das 23h às 5h, para recuperar a pavimentação”, conta. “Era um
inverno rigoroso, fazia quase zero
grau, mas todos estavam lá. Tinham
um grande espírito de desafio”, completa. Na manhã seguinte, os usuários já podiam usufruir das melhorias
no trecho, que, 30 anos mais tarde,
continua sendo um dos grandes nós
do trânsito na Região Metropolitana
de Porto Alegre. “É um coração enfartado”, define Panitz, citando um
artigo seu publicado recentemente.
Ele compara a BR-116 à artéria principal de um coração que não suporta
mais o alto fluxo de veículos, superior a 100 mil por dia. “A 116 precisa
de safenas, estradas paralelas interligadas a ela, para desobstruir o entupimento”, ilustra.
Vencer os desafios que a rodovia
lhe oferecia a cada dia era a maior
realização para aquele jovem engenheiro – e hoje a grande lição
que ficou da BR-116 para sua vida.
Nos anos 1960, a rodovia
já estava pavimentada
e com duplicação em
alguns trechos
PEDRO BARBOSA
Panitz: “A BR-116 é um
coração enfartado”
“Nessa rodovia adquiri toda minha
experiência, pelo método mais eficiente do mundo: errando e acertando”, avalia.
Em 1974, Panitz deixou a residência do DNER em São Leopoldo,
mas não se afastou da BR-116. Assumiu a chefia do serviço de trânsito
da Polícia Rodoviária Federal. Segundo ele, 40% das ocorrências que
precisava atender se concentravam
na rodovia, por ter o maior tráfego
do Estado. Paralelamente, a BR-116
estava chegando ao seu quilômetro
final no Rio Grande do Sul. O quilômetro 654,2, em Jaguarão, na fronteira do Brasil com o Uruguai, foi
concluído em 27 de abril de 1974. O
Brasil enfim podia festejar a construção de sua “mais importante rodovia
radial”, como registram os arquivos
do Ministério dos Transportes.
“Ter trabalhado em uma obra importante como a da BR-116 é fantástico!”, sintetiza Panitz. A dificuldade
para encontrar as palavras certas
para definir a importância da rodovia em sua vida se compara ao silêncio que ele faz quando tenta achar
resposta para o que não gostava no
trabalho. “É difícil achar o que era
ruim”, dispara após alguns instantes.
“A falta de recursos sempre atrapalhava”, comenta depois de pensar
mais um pouco.
Na linha longitudinal da vida de
Mauri Panitz, houve tempo ainda
para trabalhar no setor de planeja-
Vista aérea do trecho CanoasPorto Alegre na década 1960
mostra o desenvolvimento da
região metropolitana da Capital
Em 1968, o traçado da rodovia
corta a cidade de Canoas, separada
de Porto Alegre pelo Rio Gravataí,
como mostra a imagem aérea
12 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
mento do DNIT, ser diretor técnico da
Secretaria de Transportes do Estado,
integrar conselhos de engenharia,
dar aulas na universidade, ministrar
palestras e cursos, participar de
debates e escrever artigos e livros.
Além de casar e ter filhos. O mais
velho, Carlos Eduardo, formou-se
em Engenharia Civil, como o pai, e
depois cursou Administração de Empresas. Luis Fernando, o mais novo,
estudou Direito.
Se é que a máxima consagrada
faz algum sentido, Panitz pode considerar que cumpriu sua missão na
vida: plantou árvores às margens da
BR-116, teve filhos e escreveu livros.
Uma das obras extrapola o conhecimento técnico que acumulou entre
um quilômetro e outro da estrada
mais importante do Brasil. Em A linguagem do silêncio, Panitz traça o
próprio perfil a partir de sua paixão
pelo desenho. De todos, o da fotocópia de um croqui amarelado resgatado dos arquivos do DNIT é a sua mais
significativa contribuição.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“R
odovias não são obras da criação divina. São frutos do
trabalho braçal de homens, quem sabe também de algumas
mulheres. Para podermos hoje atravessar o Brasil de Norte a Sul
pela BR-116, totalmente pavimentada, foi preciso que técnicos
projetassem a estrada e operários fornecessem sua mão-deobra. Não fazíamos ideia de quando a rodovia tinha começado
a ser construída, mas queríamos encontrar uma das pessoas que
trabalhou na sua construção. Foi preciso insistir em contatos com
Ministério dos Transportes, Instituto de Pesquisa Rodoviária, banco
de dados de Zero Hora, Museu da Comunicação e Câmara dos
Deputados, todos muito prestativos. Descobrimos que a BR-116
começou a ser construída na década de 1930. Seria muito difícil que
algum operário dessa época ainda estivesse vivo ou ao menos lúcido
até hoje. A última esperança era a memória de um engenheiro
aposentado do Departamento Nacional de Infraestrutura e
Transportes (DNIT), que nos levou à fonte desta reportagem. Ainda
foi possível ilustrar a matéria com a colaboração da historiadora
Danielle Heberle Viegas, que disponibilizou fotografias usadas em
sua dissertação de mestrado. A lição que fica é acreditar na pauta,
não desistir na primeira negativa.”
Imagem de 1983 mostra a
região metropolitana de Porto
Alegre amplamente urbanizada
às margens da BR-116
O tráfego no trecho Canoas-Porto
Alegre era intenso desde os anos
1970: cerca de 50 mil veículos por dia.
Na foto, imagem registrada em 1972
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 13
Seiscentos
e cinquenta
e nove
TEXTO DE ANDRÉ ÁVILA E EDUARDO HERRMANN | FOTOS DE ANDRÉ ÁVILA
A
maior rodovia pavimentada do Brasil percorre o Rio
Grande do Sul em 659 quilômetros. Começa em Vacaria, divisa com Santa Catarina, e termina em Jaguarão, na fronteira com
o Uruguai. Nesse percurso, a BR-116
cruza áreas urbanas de outros 23 municípios. Em alguns deles, a estrada
funciona da mesma maneira que uma
rua bastante movimentada, cortando
seu bairro central. Seja na selva de
pedras ou no meio dos pampas, muita gente tem o nome da rodovia em
seu endereço residencial, comercial,
ou em ambos. O asfalto da BR liga
pessoas tão distantes e tão diferentes, mas que garantem vida à via que
muitos, entediados pela rotina, deixam cair na indiferença.
Km 0 – No recuo da estrada, logo
após a primeira curva da BR-116
gaúcha, alguns carros param. Famílias tiram fotos junto à cuia gigante
que dá as boas vindas no canteiro
e depois seguem seu rumo. Poucos
param na lancheria de Izeu Otílio
Coelho da Silva, alguns metros acima. A pouca luz que entra pela janela ilumina mais que a lâmpada do
bar — a penumbra parece dar o tom.
Há mais de duas décadas no local,
o tranquilo e descansado senhor de
60 anos conta com a companhia de
gatos, cachorros, galinhas, do amigo
José e do tempo.
Depois de 25 anos no final daquela curva, a única história que o dono
da lancheria narra com emoção sobre a região onde sempre morou é
de quando a ponte que separa os
dois estados caiu, em 1964. Na época, o jovem Izeu trabalhava em uma
serraria de Vacaria, perto da divisa.
Foi com esse ofício que perdeu quatro dedos da mão esquerda (restou o
polegar), deficiência que ele afirma
não atrapalhar em nada o seu dia a
dia, antes de chamar o amigo pedindo ajuda para abrir um garrafão
de vinho: “Ô, José! Abre aqui, faz
favor”. Do vinho tinto do garrafão,
à temperatura ambiente, serve um
14 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 15
LOGO DEPOIS DE ENTRAR NO
ESTADO, A BR DESCREVE UMA
CURVA EM DIREÇÃO AO SUL
copo até a boca para outro senhor, morador das redondezas e cliente usual. No curto e desapressado diálogo dos
senhores, a pauta é o tempo. Tempo, nesse caso, meteorológico. O tempo cronológico espera na penumbra,
parece não importar muito para nenhum dos viventes.
Km 9 – Dois casais param com certa pressa para tomar um café, deixando os apetrechos apoiados no balcão.
“Não queremos chegar tarde”, avisa Hilário Herken Hoff.
O destino é a festa de aniversário de um amigo, na cidade
de Feliz, cerca de 180 quilômetros distante. No estacionamento do restaurante Bela Vista, na beira da estrada,
duas imponentes motocicletas Harley Davidson esperam
os quatro e destacam-se em meio aos demais veículos.
É esse o hobby dos dois casais. Sempre que arranjam um tempo, viajam com suas motos. O último grande
passeio teve origem em Daytona, nos Estados Unidos. Os
casais, moradores de Blumenau, voaram até lá e alugaram motocicletas idênticas às que possuem para viajar
por dois mil quilômetros pelo estado da Flórida em um
encontro de motociclistas.
Os funcionários já limpam o balcão enquanto os casais
se preparam para seguir caminho. “Vamos lá, estamos
atrasados”, insiste Hilário para sua mulher, Denise, enquanto acomoda o capacete na cabeça. Na outra moto,
ao mesmo tempo em que Marcelo Teixeira acerta os braços na jaqueta, sua mulher, Izabete, testa o microfone
que garante a comunicação entre o piloto e a carona.
A mão já protegida com luva veste a outra. Os motociclistas ligam o motor, despedem-se e pegam a estrada novamente.
Km 29 – “MAÇÃ 50MT” avisa a placa, fixada em uma
pedra à beira da BR. A grafia esquisita não é problema,
pois a placa é desnecessária, já que a pequena casa de
madeira pode ser vista de uma distância muito maior. Gelson Mikna e sua mulher, Daniela, vendem maçãs e cuias na
beira da estrada. Saíram de Iraí, 400 quilômetros distante,
buscando melhores condições de vida e de trabalho.
Com certa lástima, o vendedor conta que o local,
com pouco mais de 25 metros quadrados, serve também
de moradia ao casal — até mesmo no gelado inverno de
Vacaria. É difícil de adivinhar onde fica a cama e o banheiro, pois só o que se vê é a pequena televisão ligada,
presa à parede.
Por R$ 4, o casal vende dois quilos de maçã fuji. Por
R$ 1 a mais, o cliente leva 2,5 quilos. As frutas são compradas de um agricultor cujo pomar tem quatro hectares. Uma pequena parcela, se comparada aos milhares
de hectares das grandes empresas, onde trabalham milhares de homens. Essa abundância transforma o município no segundo maior produtor de maçãs do Brasil.
Com a voz mansa, Gelson conta que o movimento é
modesto, mas melhora no verão, quando o destino dos
carros é o litoral catarinense e os motoristas param na
única casa em uma distância que é
bem maior do que 50 metros.
Km 101 – A caricatura do gringo
italiano da serra gaúcha prevê uma
pessoa faladora e hospitaleira, que
vive contando sobre sua família. O
estereótipo é personificado atrás
do balcão, na figura de Teresinha
Mascarello Menegon. O estabelecimento que mantém com seu marido, Telipor Antônio Menegon, fica ao
lado de sua casa, no sinuoso trecho
da rodovia em São Marcos. Como a
casa está em um pequeno recuo entre a estrada e a montanha, grandes
caminhões — significativa parte do
trânsito da região — têm dificuldade em estacionar no local. Dessa
forma, famílias que viajam de carro
representam a maior parte de sua
clientela. Os produtos vão de guloseimas a souvenirs, incluindo toucas
e luvas para proteger os mais friorentos no rigoroso clima serrano. O
destaque fica para as comidas feitas
pela Agroindústria Menegon 0151
marca da família —, como mandolates, geleias e sucos.
Km 159 – O antigo casarão de
madeira chama a atenção de quem
passa pela estrada em Galópolis,
bairro do interior de Caxias do Sul.
Mesmo com sua beleza rústica e centenária, a habitação não é tombada
pelo patrimônio histórico do município. A explicação está no logradouro
1616
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| DEZEMBRO/2010
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onde se encontra. Por estar fixada
às margens de uma rodovia federal,
pode, futuramente, ser um empecilho para possíveis obras na via.
Ao mesmo tempo em que poderia
implicar em uma triste derrubada do
belo casarão, uma eventual duplicação da BR-116 no local resolveria um
recente problema. O trecho, que
antes garantia tranquilidade para
Otília Marchesini Stragliotto, de
85 anos, há meia década se transformou em um local movimentado,
com engarrafamentos diários.
Seu filho Geraldo, que passa alguns dias da semana na casa, está
até construindo um cômodo na parte de trás do terreno, para sua mãe
descansar melhor. Ele conta que o
barulho dos caminhões começa às
4h30min, e o movimento acalma
apenas depois das 7h30min.
No outro lado da estrada há uma
pousada. Maria Eliza, outra filha de
Otília, conta que frequentemente
flagra hóspedes registrando em fotografias a bela imagem da habitação,
que começou a ser construída há mais
de cem anos pela família Stragliotto
e foi finalizada em 1914. O casarão,
que já foi casa de comércio e restaurante, parece que, infelizmente, não
chegará nem perto de mais um século de história. E quem se interessa
em comprá-lo, diz Geraldo, ao invés
de adquirir parte da história de Caxias, vislumbra apenas uma enorme
quantidade de madeira.
PRIMEIRA
PRIMEIRA
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Km 609 – De março a setembro, a vida de Astrogildo Lemos Gonçalves — curiosamente conhecido como
Dudu — é pura tranquilidade. Com sua esposa e seus
cachorros, apenas espera o tempo passar. No restante do ano, o zelador do Aeroporto Municipal de Arroio
Grande, há seis anos na função, tem bastante trabalho. “O movimento começa às 5h30min e só para de
noite”, conta. O destino das máquinas que levantam
voo da pista de mais de um quilômetro são as grandes
plantações da região.
Km 610 – O Brasil é um dos maiores exportadores
de commodities do mundo. Entre as principais mercadorias de origem primária produzidas no país, estão o
arroz e soja. O sul do estado se destaca no plantio desses
produtos. Para ajudar no cultivo desses infinitos hectares, entra em campo aquele que é um vilão aos olhos
de muita gente: o agrotóxico. Utilizados no combate a
pragas que danificam as grandes plantações, os produtos
são mal vistos porque poluem o solo e são prejudiciais à
saúde humana. Como grandes símbolos dessas substâncias, estão os aviões para pulverização da lavoura, que
despejam enormes quantidades de pesticidas, herbicidas
e fungicidas nas plantações.
Vogler Fernandes e sua família, proprietária da Aero
Agrícola Quatroas, sofrem com essa ideia. “Agrotóxico
não é veneno, é defensivo agrícola. A aviação agrícola
é vista como mau troço, mas não é. É uma ferramenta
para o produtor rural”, afirma Vogler. Fundada em 1980
por Ariel Fernandes, a empresa respeita todas as exigências ambientais legais para funcionar, segundo Vogler.
Por conta disso, enfrenta uma concorrência desleal de
quem aplica agrotóxicos com tratores e não tem os mesmos cuidados com o meio ambiente. Além desse fator, a
manutenção dos aviões custa caro, tendo em vista que
as peças vêm do exterior. Sendo assim, apesar dos cerca
de 30 clientes fixos da empresa, o negócio não é tão bom
quanto antigamente, admite Vogler.
Izeu (À ESQUERDA)
PERDEU OS DEDOS
AINDA JOVEM, QUANDO
TRABALHAVA EM UMA
SERRARIA. HOJE, DONO
DE LANCHERIA, TEM
A companhiA DOS
BICHOS NO combate
à solidão. Gelson
(ACIMA) aguarda
clientes nA PORTA DE
CASA, NO KM 29 DA
BR, enfrentando A
concorrência dOS
grandes produtores
de maçã
O casarão da
família Stragliotto
chama a atenção de
quem passa por seu
quintal: a BR-116
è
Km 657 – Nas últimas décadas, a humanidade evoluiu incrivelmente em termos tecnológicos. O leque de
eletrônicos e máquinas que facilitam nossa vida apenas
aumenta. No meio de tudo isso, porém, parece que algumas coisas nunca mudarão. A vida no campo, por exemplo, não deixará de ter a simplicidade e pureza da natureza. O cavalo será sempre, ao lado do cão perdigueiro,
o grande companheiro dos peões. Ou será possível uma
máquina substituí-lo?
Winston Batalla revende, há seis meses, quadriciclos motorizados da marca argentina Zanella, fabricados na China. O castelhano confirma que os veículos de
maior porte estão sendo usados no campo para, entre
outros afazeres, recolher o gado. Os quadriciclos, vendidos a um preço de R$ 4 mil a R$ 9 mil, são tão econômicos — no consumo de gasolina — quanto uma moto.
A vantagem para seu uso no campo é a estabilidade
em terrenos mais difíceis. Os de menor porte são mais
procurados para trilhas.
Grande parte dos clientes mora na serra gaúcha,
mas já saíram vendas até para Santa Catarina. Segundo
o vendedor, são pessoas que viajam a Jaguarão e, ao
percorrer os últimos quilômetros da BR-116, interessam-se pelos quadriciclos, que chegam ao seu destino
via frete.
Km 659 – Após ser reconhecida pelo Brasil como nação independente, a República Oriental do Uruguai permaneceu com uma dívida de mais de cinco milhões de
pesos-ouro com os vizinhos do leste. O pagamento aconteceu entre 1927 e 1930, não em dinheiro, mas com a
construção da Ponte Internacional Barão de Mauá. A imponente construção, erguida sobre o Rio Jaguarão, liga a
cidade gaúcha de Jaguarão a Rio Branco, no Uruguai.
A ponte é um belo cartão de visitas, com intenso
trânsito de turistas em finais de semana – especialmente
quando há um feriado colado. A maioria se hospeda em
Jaguarão, mas o motivo de sua passagem fica no outro
lado do rio. Na zona franca de Rio Branco estão os adorados free-shops, lojas com isenção ou redução de impostos que, em razão disso, oferecem produtos mais baratos
e atraem viajantes de muito longe que buscam economia
na compra de, principalmente, bebidas e perfumes.
O extremo sul da BR-116 no Brasil termina exatamente na Ponte Mauá, e os viajantes que vão e voltam, carregados de mercadorias, mal sabem que ali é a ponta de
uma rodovia repleta de histórias. Novas estradas surgem
no horizonte e novas vidas, novas histórias, novas rotinas
e novos sentimentos se apresentam ao viajante que, de
fronteira em fronteira, tem sempre a estrada como inseparável companheira.
18 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
Novas histórias surgem
a partir da bela ponte
sobre o Rio Jaguarão,
destino final da BR no
sul do Brasil
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“D
epois da primeira entrevista, o silêncio
tomou conta do carro. O entrevistado
era a personificação da melancolia, da tristeza,
da vida tortuosa. ‘A BR-116 vai ser assim?’, vai,
também. A nossa pauta teve de tudo. Vimos
e ouvimos muitas histórias distintas, mas
sempre interessantes. A única coisa em comum
entre os protagonistas é a rodovia, aspecto
fundamental em seus cotidianos. Pessoas, só
pessoas interessavam. Cruzar o estado ao longo
de 659 quilômetros nos permitiu ver que a vida
também está na curva, no acostamento, quase
dentro da estrada. O movimento de todos os
personagens que moram, trabalham, atravessam
ou simplesmente estão ali, nos mostra que,
para a história ser interessante, basta haver
alguém interessado em ouvi-la. E se tivéssemos
parado em todos os lugares que nos chamavam
minimamente a atenção durante o trajeto, as
histórias caberiam apenas em um livro. A estrada
que, antes, representava para nós apenas uma via
de locomoção, ganhou outro significado. Virou,
na nossa percepção, uma estrada cheia de vida.”
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 19
A aflição da
demora
TEXTO E FOTOS DE LIEGE FREITAS
QUASE METADE
DOS CHAMADOS
PARA A SAMU DE
SÃO LEOPOLDO
É PARA A BR-116
S
ete médicos, seis enfermeiros, 12 técnicos de enfermagem e 21 motoristas revezam em turnos de
24 horas no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) na unidade da cidade de São Leopoldo, Região Metropolitana de Porto Alegre. A base recebe
por dia mais de 24 chamados, são mais de 600 pedidos de
ajuda por mês pelo telefone 192. Três ambulâncias - duas
de atendimento básico e uma de atendimento avançado -,
um carro e uma moto, para o deslocamento rápido, fazem
a cobertura do trecho da BR-116 que corta a cidade ao
meio. Quarenta e cinco por cento dos chamados mensais
são para atendimentos na rodovia no trecho de São Leopoldo. Muitas pessoas dizem que trabalhar com urgência
é algo para quem tem sangue frio. Nas horas que passei
naquela unidade, percebi que, além de sangue frio, o importante é ter amor pela vida. Não digo amor pela própria
vida, mas sim pela vida do próximo.
A unidade está localizada em uma casa nos fundos do
Hospital Centenário, o único da cidade. Lá a equipe tem
dois quartos com camas, banheiro com chuveiro, uma
sala de estar, cozinha, escritório, expurgo, farmácia e
almoxarifado. O lugar de troca da equipe é a sala da
frente, com um sofá de dois lugares doado e banquinhos
para sentar. É ali que eles ficam entre um chamado e
outro. A equipe faz uma caixinha para comprar móveis ou
eletrodomésticos, e o dinheiro é arrecadado dos funcionários todos os meses. Quando dá, eles próprios fazem
alguma manutenção nos veículos, tudo para evitar que
uma ambulância fique parada na oficina esperando que o
Governo Estadual libere a verba para o conserto, o que
pode demorar até dois meses. Júlio de Oliveira Espineli,
chefe médico da unidade, conta que, em outra cidade da
região, fazia o mesmo tipo de trabalho. Faltavam ambulâncias para o atendimento devido à demora na liberação
da verba de manutenção das mesmas. “A gente usava as
ambulâncias do município, sempre acompanhados de um
carro de resposta rápida. E, quando não tínhamos mais o
carro, continuamos com os atendimentos mesmo assim.
O importante era o serviço não parar.”
Com a BR-116 cortando São Leopoldo ao meio, existem
cinco jeitos de se ir de um lado para o outro: a entrada da
Unisinos, pela Avenida João Correa, pelo viaduto do Centro, pela Avenida Caxias do Sul e pela entrada da RS-240.
São cinco bairros de um lado e 19 de outro. A base fica
no lado com maior número de bairros, mas um dos grandes problemas é a locomoção até o outro lado. Devido ao
congestionamento da BR-116, o deslocamento da base até
um dos cinco bairros é mais demorada que nos outros 19.
Dependendo de onde é o local do chamado, a ambulância
fica parada na estrada. “Não podemos passar por cima dos
outros carros. Quando é possível, andamos pela lateral da
rodovia, ou pelo meio da pista, obrigando os carros a irem
para o lado, senão, é esperar pela boa vontade dos motoristas”, relata o coordenador da unidade, o enfermeiro
Roberto Tiska. Quanto à quantidade de acidentes graves
que tem na rodovia, a resposta é otimista: “Antes havia
bem mais. Como vão ter acidentes graves se o motorista
não pode mais correr? A BR está simplesmente parada”.
Uma das alternativas é a utilização de duas motos de resposta imediata para a locomoção mais rápida, mas São
Leopoldo só tem uma moto e aguarda a segunda.
ADRENALINA E INCERTEZA
Toda a vez que uma equipe entra numa das ambulâncias, a adrenalina sobe juntamente com a vontade de
atender o paciente o mais rapidamente possível. Com
as dificuldades de locomoção por causa do congestionamento, aumenta a tensão com a incerteza de que o
tempo perdido no trânsito, durante o trajeto, pode ser
crucial para salvar uma vida. Quando ocorre um acidente
na BR-116 na divisa da cidade de São Leopoldo com Sapucaia do Sul, no sentido norte, a equipe percorre mais
de cinco quilômetros no sentido sul para conseguir voltar
20 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 21
para o sentido norte, através do viaduto da RS-118. Existe um principio
no atendimento pré-hospitalar que
é preservar a segurança da equipe
durante o deslocamento das ambulâncias. Por mais importante que
seja a vontade de atender o paciente, a equipe não pode se expor a
riscos. Andar na contramão e fazer
um retorno no meio da rodovia só
quando for muito seguro, e mesmo
assim não é aconselhado.
O chefe médico da equipe, Dr.
Espineli, explica que, de acordo
com a gravidade da ocorrência, os
profissionais que se deslocam para
atender utilizam códigos. “Para
cada gravidade o motorista deve
empregar uma maneira diferente
de conduzir a ambulância de forma
segura. Assim como deve ser o tom
emitido pela sirene. O código vermelho, por exemplo, é usado em
casos de vida ou morte. O motorista emprega uma velocidade maior
e o aviso sonoro é intenso, com pequenos espaços de tempo”.
Engana-se quem pensa que o
deslocamento para o hospital, após
o atendimento, deve ser igualmente rápido. Júlio explica que existem procedimentos médicos de
salvamento que exigem que a ambulância esteja a uma determinada
velocidade e ângulo para a estabilização do enfermo. “Cabe em uma
mão as vezes em que tive que pedir
para o motorista pisar no acelerador e chegar o mais rápido possível
ao hospital, porque a vida do ferido
dependia disso. O movimento dentro da ambulância em alta velocidade pode dificultar a estabilização
do paciente. Se há necessidade,
peço para o motorista parar, esperar até eu estabilizar o paciente e
depois continuar com o trajeto”,
conta Espinelli.
Durante o deslocamento de um
chamado, ou até uma ida ao posto
para abastecer, as atividades podem
ser interrompidas para um atendimento, e ele nem precisa vir da central
de regulamentação. Uma normativa
internacional diz que nenhuma equipe
de salvamento pode negar atendimento a um paciente em via pública.
Todos conferem o material e reabastecem as ambulâncias depois
de cada atendimento. “Tratamos
todo paciente como se fosse nossa
mãe, pai ou algum irmão. O paciente deve ser tratado como nós queríamos que um familiar nosso fosse,
com todo o empenho e dedicação
possível”. Segundo Roberto Tiska,
todo o dia acontece alguma coisa
para marcar a memória desses profissionais da saúde.
O SAMU NÃO
PODE NEGAR
ATENDIMENTO,
MESMO DURANTE
UMA IDA AO POSTO
DE GASOLINA
22 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
ANTES DE QUALQUER SAÍDA,
A EQUIPE CONFERE O MAPA
MANUTENÇÕES SIMPLES, COMO TROCAR
A BATERIA, SÃO FEITAS NA PRÓPRIA BASE
NA AMBULÃNCIA, O SOCORRISTA
CONFERE OS SINAIS VITAIS DO PACIENTE
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
uando escolhi fazer o curso de jornalismo,
minha mãe achou que eu iria passar fome
no futuro, então me obrigou a fazer o curso Técnico
de Enfermagem. Assim, eu teria outra opção se no
jornalismo não desse certo. Por isso tive autorização
para fazer esta reportagem e acompanhar alguns
deslocamentos da Unidade do Samu de São Leopoldo.
Por ser, também, profissional da área de enfermagem,
durante duas sextas-feiras, por três horas, fiquei lá na
unidade conversando, perguntando, fotografando,
absorvendo e observando tudo. Vi o cuidado e a
dedicação que as equipes de socorro empregam nas
suas atividades diárias. Desde limpar, abastecer e checar
tudo nas ambulâncias após cada atendimento, até gritar
e gesticular para que os outros carros saiam da frente
durante um trânsito pesado na BR-116. Agradeço a
todas as equipes que me deixaram acompanhar nos
deslocamentos, a paciência que o enfermeiro Tiska teve
comigo e ao Dr. Júlio, por sempre explicar tudo nos
mínimos detalhes, mesmo quando não precisava.”
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 23
TROTE
Quando alguém liga para o 192, a ligação cai na
central de regulamentação do Samu, localizada em
Porto Alegre. A central faz perguntas importantes para
determinar se é trote e depois avalia o caso. Em seguida, entra em contato com a unidade mais próxima
do chamado. O Rio Grande do Sul é líder em trotes
passados para o 192, 60% dos chamados.
Os homens DA
O POSTO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL
NO TRECHO ENTRE DOIS IRMÃOS E PORTO
ALEGRE É RESPONSÁVEL POR ATENDER 30% DAS
OCORRÊNCIAS NA BR-116 NO RIO GRANDE DO SUL
TEXTO DE GUILHERME MÖLLER
FOTOS DE GABRIEL GABARDO
LEI
U
ma brincadeira que virou profissão. Assim Luciano Lawisch começou a carreira na Policia
Rodoviária Federal. Ele era empresário no
ramo de Instalações Elétricas quando apostou
com o sócio para ver quem ficava em melhor colocação na prova da PRF. Se inscreveu no último dia e teve
ajuda apenas de um polígrafo. Sorte, destino, não se
sabe ao certo. O que Luciano tem certeza é sobre sua
profissão. Sempre foi sua vocação ajudar os outros e
esse é seu principal objetivo no trabalho diário.
A rotina dos policiais rodoviários federais é observar o que acontece na BR-116, atentos aos problemas
do trânsito na rodovia. Eles trabalham na prevenção
de acidentes e buscam evitar a criminalidade. O posto da PRF em São Leopoldo presta atendimento na
rodovia no trecho de Dois Irmãos até Porto Alegre,
sendo responsável por atender 30% das ocorrências na
BR-116 no Rio Grande do Sul.
O principal posto do Estado, que fiscaliza a Região
Metropolitana, calcula um fluxo de mais de 100 mil
veículos diariamente. Para os policiais Luciano Lawisch e Alberto Magnani, a quantidade grande de veículos é um problema na maioria das rodovias do Brasil.
“Houve um aumento significativo no número de veículos nas autoestradas nos últimos anos, sendo que
a tecnologia e a potência dos automóveis evoluíram.
Porém as estradas seguem iguais”, explica Lawisch.
A BR-116 sofre com problemas em sua infraestrutura, sendo que a maior parte do percurso fica localizada
em áreas urbanas, o que dificulta a trafegabilidade e aumenta o número de ocorrências. O fluxo de pedestres é
intenso na rodovia que corta cidades da região metropolitana como Novo Hamburgo, São Leopoldo, Sapucaia do
Sul, Esteio, Canoas e Porto Alegre. Conforme estatísticas
da PRF, 90% das ocorrências na rodovia acontecem no
perímetro urbano, onde o fluxo de pedestres é maior.
MAIS DE 100 MIL
VEÍCULOS PASSAM
DIARIAMENTE PELO
POSTO DA PRF
Para os policiais, a melhor
maneira de evitar transtornos é
a educação do motorista. “Precisamos educar adultos e crianças,
futuros usuários. Assim teremos
condutores mais conscientes,
e o número de acidentes tende
a diminuir”, ressalta Magnani.
Hoje as ocorrências mais frequentes acontecem devido à falta de atenção dos condutores. “A
maioria dos problemas ocorre por
falta de preparo. É o caso das colisões traseiras e infrações como
alta velocidade e desrespeito às
leis de trânsito. Essas situações
ocupam a maior parte do tempo
dos policiais”, explica Lawisch.
A BR-116 é usada como rota da
criminalidade, servindo de ligação
entre Brasil e Paraguai. “Hoje temos um grau de alerta maior contra a criminalidade na rodovia,
sendo que o trecho é rota para o
Paraguai”, conta Lawisch. Apreensões de drogas e contrabandos
são comuns no trecho. “Abordamos muitos usuários de drogas,
principalmente porque a rodovia
é passagem para diversas festas
na região. O consumo de álcool
é o mais comum, mas também há
usuários de maconha e cocaína”,
cita Magnani.
O consumo de bebidas alcoólicas é outra situação que agrava os
problemas no trânsito da rodovia.
Depois da entrada em vigor da lei
seca, a fiscalização aumentou e
o número de autuações também.
Mesmo assim, fica impossível fiscalizar todo mundo. “É difícil
conter todos os condutores que
trafegam sob o efeito do álcool.
Como há muitas casas noturnas no
trecho da BR, é impossível cuidar
o deslocamento que ocorre todas
as noites. Os motoristas precisam
se conscientizar que bebida alcoólica e direção não combinam”,
diz Lawisch.
O trabalho da PRF não se limita apenas ao trânsito, são diversas ocorrências. “Atendemos tudo
que é tipo de caso, muitas vezes
somos mais que policiais. Somos
um pouco psicólogos, conselheiros, amigos... É muito bom poder
26 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
ajudar a sociedade, ficamos felizes
com nosso trabalho”, DIZ Lawisch.
Ele cita casos de pessoas que procuram o posto da PRF solicitando
auxílio em situações que não são
de sua competência. “Teve um homem aqui no posto pedindo ajuda,
pois ele estava sendo traído pela
esposa. Ele nós procurou para ser
escutado, queria conselhos, atenção. Nesses casos, conversamos,
aconselhamos e procuramos encaminhar o caso para o órgão responsável”, conta Magnani.
uma tarde, duas infrações
Numa tarde de trabalho, os
policiais se depararam com dois
casos de infração na rodovia. O
primeiro foi a abordagem de um
caminhão parado em local impróprio e com problemas de documentação. “O caminhão estava
estacionado num acesso da rodovia, o que não pode acontecer.
Mesmo com o caminhoneiro alegando que o veículo tinha problema, ele deveria ter parado no
acostamento ou em algum local
que não atrapalhasse o trânsito.
Além disso, o tacógrafo (equipamento que monitora o tempo de
uso, velocidade e a distância percorrida pelo veículo) não estava
funcionando”, explica Magnani.
A segunda infração é comum de
ver no trecho, o tráfego de motos
e veículos pelo acostamento. Em
hipótese alguma o motorista pode
dirigir pelo acostamento, sendo
que está infração é considerada
gravíssima, com a perda de sete
pontos na carteira de motorista e
multa no valor de R$ 574. Em Sapucaia do Sul, Lawisch e Magnani
abordaram um motociclista trafegando pelo acostamento. Este foi
imediatamente parado e a multa
foi aplicada. “Não estamos aqui
para tirar dinheiro do motorista.
Não recebemos nada ao dar multas. Queremos que os condutores
entendam que o trânsito tem leis
e elas precisam ser seguidas. Nossa função é fiscalizar para que as
leis sejam cumpridas e os acidentes evitados”, ressalta Lawisch.
Mesmo com problemas, como
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 27
a falta de efetivo e equipamentos em boas condições, a Policia Rodoviária Federal atende a demanda
de mais de 100 mil veículos por dia. “Nem sempre
temos à disposição equipamentos e efetivo para
combater todos os problemas da rodovia. Porém,
com muito trabalho, conseguimos atender o grande
número de ocorrências todos os dias. É um trabalho
gratificante, mas gostaríamos de poder fazer mais
pela rodovia e pela sociedade que depende dela”,
concluí Lawisch.
MUITAS VEZES OS
POLICIAIS ACABAM
AUXILIANDO PESSOAS
EM SITUAÇÕES QUE
NÃO SÃO DE SUA
COMPETÊNCIA
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
uando a BR-116 foi o tema escolhido para a Primeira
Impressão, minha preferência foi acompanhar o trabalho da
Polícia Rodoviária Federal . Sempre achei fundamental e interessante
as ações desenvolvidas pela PRF. Tinha curiosidade sobre a rotina
e os problemas enfrentados diariamente pelos policiais com o
trânsito caótico da rodovia. Naquela tarde de sol, aprendi que o
trabalho de policial não se limita apenas às ocorrências. Na rodovia
não há uma rotina, um dia sempre é diferente do outro. Assim, ser
apenas policial não basta, é necessário ser humano para lidar com
todos os transtornos. Entendi como é importante a educação e o
cumprimento das leis para termos uma trafegabilidade mais segura.
Como motorista, a matéria desenvolvida para revista, mostrou-me
as reais dificuldades enfrentadas no trânsito. Foi gratificante esta
tarefa, pois passar um dia acompanhando os policiais me trouxe
lições de vida, como, por exemplo, respeitar as leis. As pessoas
precisam saber que as regras foram criadas para serem seguidas,
principalmente no trânsito.”
O crescimento da
publicidade ao ar
livre às margens
da BR-116 desperta
diversas sensações
e opiniões ENTRE
os motoristas
TEXTO DE ARLETE ROUSSELET
E ELLEN MATTIELLO
FOTOS DE DÉBORA SOYLO
VIA MULTIMÍ
28 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
DIA
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 29
Q
uarta-feira, 22h. Uma noite de outono, com o céu
reluzente de estrelas cintilantes: cenário escolhido
para um passeio rumo
à região metropolitana, saindo de
Porto Alegre em direção a Canoas.
Trafegamos em uma estrada iluminada, não pelas estrelas do céu, mas
pelo contraste das luzes coloridas e
ofuscantes em toda a parte. Lá estão
eles: frutos da mídia visual, num verdadeiro show pirotécnico, outdoors,
frontlights, painéis, logos e paredões pintados, cada um dividindo e
querendo roubar o cenário das estrelas que brilham no céu. Espalhados
pelas laterais da via, num verdadeiro
descompasso visual e desencontrados, são captados por nossas mentes
ao longo do percurso. Desordenados,
confundem grifes de roupas femininas com casas de massagem, carros
com anúncio de sapatos, postos de
combustíveis com fast-foods... E
tudo passa a fazer parte de um universo de informações caóticas.
Passando a Estação Niterói do
metrô, há um anúncio de sapatos
que duas semanas antes era de uma
concessionária. Em seguida, avistamos um enorme letreiro luminoso
com a marca de um combustível, sinalizando se tratar de um posto com
loja de conveniência. Perfilado, segue um gigantesco e desproporcional painel em formato de retrato,
espelhando uma atriz de novela que
cede sua imagem à campanha publicitária de uma marca de cozinha
da indústria moveleira. Tudo isso vai
sendo registrado, silenciosamente,
pelo nosso cérebro, despertando a
atenção de milhares de pessoas que
trafegam, diariamente, às margens
dessa via multimídia.
O cenário descrito acima é familiar àqueles que percorrem a
BR-116 com frequência, no trecho
Porto Alegre–Canoas e vice-versa.
O excesso das mídias visuais, além
de chamar a atenção do público,
modifica a paisagem urbana e pode
ser prejudicial à saúde. Sendo assim, surge o conceito de poluição
visual, que se tornou muito comum,
sobretudo nas rodovias das grandes
cidades. De acordo com o coordena-
dor do curso de Publicidade e Propaganda da Unisinos, Sérgio Roberto
Trein, nos últimos anos, tem crescido muito a publicidade externa em
geral: “Quanto mais surgem novas
tecnologias, surgem novos espaços,
e maior acaba sendo a poluição visual nas estradas e nas ruas. Como o
texto, por si só, não é tão atraente,
começa o uso de imagens, cada vez
maiores e mais coloridas. E, evidentemente, elas acabam sujando um
pouco a paisagem”.
Para Cristiano Peraço, usuário da
BR-116 e motorista de van há dez
anos, qualquer tipo de publicidade
é válida, desde que não atrapalhe
os motoristas. “Já presenciei muitos
acidentes provocados pela distração
causada pelo acúmulo de anúncios.
Nunca aconteceu algo semelhante
comigo. Geralmente, esse tipo de
situação ocorre com pessoas mais
inexperientes no trânsito”, afirma.
De acordo com o secretário municipal do Meio Ambiente de Canoas,
Celso Baroni, a Polícia Rodoviária Federal estima que 40% dos acidentes
acontecem justamente pelo excesso
de mídias visuais.
Considerando esse fator e pensando na revitalização da rodovia,
o prefeito de Canoas, Jairo Jorge da
Silva, desenvolveu um projeto que
prevê a diminuição dos anúncios na
BR-116. A minuta do projeto está
sob a análise técnica do Diretor de
Relações Governamentais do município, Ernani Daniel, para que uma
nova lei possa ser sancionada e pro-
30 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
mulgada pelo prefeito, após ser votada e aprovada pela Câmara Municipal de Vereadores.
A iniciativa visa a padronização
dos painéis, limitando a distância,
o tamanho e a quantidade de texto. Baroni explica que as mídias
indicativas, utilizadas para sinalizar que há um estabelecimento no
local, também terão de se adequar
às normas estabelecidas. “Com esse
regramento, temos como pretensão
reduzir pelo menos 50% da mídia
existente”, projeta.
Atualmente, aqueles que desejam anunciar às margens da rodovia necessitam ter a autorização
da Secretaria Municipal do Meio
Ambiente. No entanto, a presença
de anúncios clandestinos é grande, pois muitos donos de terrenos
baldios vendem o espaço para diferentes empresas, sem a licença da
secretaria do Meio Ambiente. Na visão do secretário, essa atitude compromete a segurança, pois se trata
de algo feito de maneira irregular,
além de aumentar a poluição visual.
Outra questão muito presente, em
se falando de publicidade ao ar livre, são os anúncios de motéis e casas de massagem. “A ideia é impor
a utilização de chamamentos mais
discretos nesse desse tipo de anúncio, pois, desse modo, sem elementos apelativos na estrada, podemos
evitar acidentes”, frisa Baroni.
João Pedro Nunes da Silveira,
diretor geral da Hmídia, empresa
desenvolvedora de publicidade ao
ar livre e presidente da Associação
Gaúcha das Empresas de Propaganda ao Ar Livre (Agepal), acredita que
os anúncios irregulares prejudicam
o conceito de mídia exterior. “A
empresa possui um engenheiro responsável pela estrutura dos painéis,
além de trabalhar com designers e
agências de publicidade no desenvolvimento do conteúdo dos anúncios. Tudo é planejado para oferecer
um bom serviço”, garante.
Além disso, crê que o projeto de
lei só trará benefícios para as empresas e seus clientes. “A fiscalização vai aumentar, e os espaços para
a publicidade serão restritos, fazendo com que os anúncios fiquem mais
destacados. O conceito de mídia visual vai melhorar muito”, prevê. A
publicidade externa é uma das mais
acessíveis, juntamente com a publicidade feita no rádio. Pequenas e
médias empresas veem nela a possibilidade de fornecer maior visibilidade ao seu produto, principalmente nas estradas mais movimentadas,
como a BR-116, que já carece de vagas para anúncios. O custo varia de
R$ 800 a R$1.500 reais, dependendo
do tipo de mídia utilizada.
Usuária da BR-116, a presidente
da OAB, Subseção de Canoas, Neusa
Maria Rolim Bastos, acredita que o
projeto irá melhorar o aspecto visual da cidade: “As propagandas chamam a atenção de uma forma indevida. Com a padronização, teremos
maior possibilidade de perceber
a nossa cidade”. Para o motorista
Jacques Cardoso, que há sete anos
realiza o transporte universitário de
Porto Alegre até a Unisinos, a publicidade na rodovia é indiferente.
“Até percebo que o anúncio mudou,
mas como sou responsável por outras vidas, procuro não prestar muita atenção nisso. Já vi um anúncio
caindo dentro de um pátio, durante
uma ventania”, relata.
De acordo com o coordenador Trein, a sanção do projeto não
prejudicará a comunicação: “Os
anunciantes podem perder o espaço, mas vão achar outras formas de
anunciar seus produtos”. As mídias
visuais abrangem um universo composto por desejo, economia, produtos, cores, formas e polêmicas que
transmitem diferentes sensações
aos espectadores.
Diante do universo das mídias visuais, que contracenam com o brilho
das estrelas, não podemos negar que
esse desordenado mundo midiático
protagoniza nossa viagem. Centenas
de apelos publicitários roubam o cenário da natureza, a fim de compor o
desejo do ser humano, seja ele qual
for. Cabe a cada um de nós refletir
até onde queremos ser abduzidos
pelos apelos publicitários e conviver
em harmonia com essa imensidade
de tecnologias desenfreadas e largadas ao léu, sem que haja prejuízo
para a nossa saúde. Quiçá que as estrelas permaneçam protagonizando
o cenário de nossas rodovias e possamos andar livres das amarras da
poluição visual.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
uando o tema BR-116 foi escolhido,
a primeira impressão que nos veio à
mente foi a da poluição visual que ladeia a
rodovia. Lembranças dos mais variados tipos
de frontlights, outdoors e painéis nos fizeram
refletir sobre o contexto que está inserido
em uma propaganda externa. Além disso, o
município lembrado como o mais “poluído”
pelas mídias foi Canoas. Tínhamos a ideia
de que essa poluição visual era bem aceita
por todos que desfrutavam dos anúncios
publicitários espalhados ao longo da rodovia.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 31
Entendíamos, ainda, que a iniciativa do
projeto legalizando e limitando o número
dessas mídias traria impactos negativos à
população em geral. A partir do momento
em que começamos a ouvir nossas fontes,
constatamos que a nossa primeira impressão
era contrária à realidade investigada. Foi muito
gratificante realizar esta pauta. Corremos
contra o tempo e passamos vários dias em
Canoas, ouvindo diferentes fontes, que
geraram as opiniões e nos ajudaram a refletir
sobre o tema.”
GUILHERME BARCELOS
Na ponta
do spray
Três coisas não mudam
na BR-116: o constante
fluxo, o stress e a
informação gráfica.
Em um emaranhado
de cores e formas, o
grafite e a pichação dão
um toque artístico à
paisagem urbana
TEXTO DE CAROLINA TREMARIN E CRISTINA ARIKAWA
FOTOS DE CLARA ALLYEGRA E GUILHERME BARCELOS
N
o trecho da BR-116 que compreende as cidades
da Região Metropolitana de Porto Alegre (RS), um
misto de arte e manifestação política converge
com a desordem urbana. A paisagem, ladeada por
edificações cinzentas, ganha um toque de cor a partir do
grafite e da pichação, que adornam os prédios que a compõe. Como em uma gigantesca tela em branco, imagens
e frases de diferentes temáticas permitem uma reflexão
nada óbvia: seria a BR-116 um palco da arte de rua?
Por definição, o grafite é caracterizado pela intenção artística e estética extremamente comunicacional.
A pichação tende ao apelo político-social. Na prática,
porém, essa diferenciação é dificilmente aplicada e
reconhecida, como explica Fabrício Silveira, professor
de Comunicação da Unisinos e autor do livro O parque
dos objetos mortos — E outros ensaios da comunicação
urbana: “O grafite tem uma intenção que é estética,
expressiva, de embelezamento. De certa forma, pode
ser considerado político por popularizar essa poética
Intervenções
gráficas renovam
o visual de espaços
mal aproveitados
na BR, como pontes
e viadutos
visual. A pichação vai explorar, sobretudo, a tipografia,
as letras. É uma fala para iniciados, eu falo para quem
me conhece, quem é da minha crew [grupo] ou rival. Eu
falo para alguém do meu meio ”.
Em São Leopoldo, no bairro Scharlau, a extinta fábrica de artefatos de borrachas Franca optou por enfeitar suas paredes externas justamente com o grafite.
A imagem, composta por desenhos gigantescos, coloriu
o edifício de cima a baixo. Orgulhosamente, a frase
“Espaço reservado para os artistas do grafite” passou
a estampar a empresa. A ousadia, porém, ainda é bastante incomum na rodovia.
Por estar à margem de diversas cidades, a BR-116
poderia ser ainda mais explorada pelo uso do grafite
devido à sua intrínseca visibilidade. Segundo Fabrício,
a comercialização dessa arte tem se mostrado muito
mais presente do que a pura arte-manifesto. Também
é o que diz o grafiteiro Jonathan Peres, o Jotapê, do
grupo Núcleo Urbanóide, de Porto Alegre. Segundo
32 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
ele, a ideia e o propósito do grafite
vão além das formas que enfeitam
as fachadas de estabelecimentos
comerciais. “Na verdade, o grafite
tem uma característica muito mais
street, mais marginal, que é o
spray, a latinha. É pegar uma parede suja e pintar. Grafite em si não
é comercial. Grafite é apropriar-se
do lugar que está sendo mal utilizado e fazer o que você quiser.
No momento em que alguém pede
pra você fazer uma arte, te dá um
briefing para isso, se perde o sentido do grafite original.”
Em contraposição, a pichação
pode ser associada a dois grandes
problemas enfrentados na estrada: o trânsito e a poluição. “A pi-
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 33
CLARA ALLYEGRA
Os traços do grafite
e da pichação se
fundem nas criações
estampadas na BR-116
chação é uma resistência em relação a isso. Mas só
aumenta a experiência de uma coisa tensa, carregada
e suja que temos quando atravessamos aquele trecho”, explica Fabrício.
Até onde isso pode se tornar um problema, considerando o aspecto funcional da BR-116? Fabrício explica
que alguns estudos analisam os riscos que as manifestações poderiam causar à atenção do motorista. “Houve uma intervenção urbana em Porto Alegre em que
um grupo de pessoas limpou o túnel da Conceição e
escreveu a frase ‘Por uma Porto Alegre mais limpa’. O
órgão encarregado da prefeitura apagou a manifestação sob a alegação de que estava chamando atenção
demais e atrapalhando o trânsito. Talvez isso tenha um
fundo de verdade.”
É de se pensar, portanto, que o ato de livrar o motorista das distrações deveria se estender a uma das estradas gaúchas que mais registra acidentes. Em 2010, a
BR-116 ficou em primeiro lugar no ranking que elegeu as
cinco rodovias mais violentas do Rio Grande do Sul, com
117 mortes. Porém, uma pausa no excesso de informação
existente na BR causaria, na opinião de Fabrício, ainda
mais estranhamento, já que a população que faz uso da
estrada convive diariamente com a aparência carregada
do local. “O que muitas vezes me chama atenção são os
outdoors em branco. Existem espaços que não têm nada
anunciado. Essa não-ocupação é que seria curiosa, quando o ‘normal’ é a sujeira. Não consigo imaginar aquilo
branco, milimetricamente organizado”, afirma.
Pelo lado do artista, Jotapê
não diminui nem nega a distração
que as manifestações podem causar, mas não acredita ser essa a
razão para tantos transtornos na
rodovia. Para ele, deveria haver
uma mudança no modo como cada
cidade lida com a ação. “Acho que
falta uma parceria com as prefeituras para apoiar um pouco mais o
grafite em lugares como pontes e
viadutos, espaços mal utilizados.
Para que, quando se pare no sinal,
se possa ter uma arte para apreciar, prestigiar”, completa. Ou
seja, fazer grafite, em meio ao
caos que toma grandes centros urbanos, pode representar um lugar
de escape para a correria frenética e – por que não? – democratizar uma arte urbana que tem no
grafite uma das suas formas mais
antigas de manifestações, presente desde a década de 1980 e vinda
de lugares como Filadélfia e Nova
Iorque para o mundo.
FOTOS GUILHERME BARCELOS
3434
| PRIMEIRA
| PRIMEIRA
IMPRESSÃO
IMPRESSÃO
| DEZEMBRO/2010
| JULHO/2011
Assim como o material, a forma
e o público para o qual se dirigem
definem o que é pichação e o que é
grafite. O espaço onde a intervenção
é feita também merece atenção especial. Pensar grafite para uma cidade é bem diferente de sair por uma
rodovia, como é a BR-116, com uma
lata de spray na mão: apesar de ambas apresentarem um tráfego constante — seja de motoristas, seja de
pedestres — o desenho em um muro
dentro de um bairro qualquer permite
uma apreciação muito mais atenta do
trabalho. Segundo Jotapê, o grafite já
é algo grande, pensado para ser visto
e compreendido rapidamente.
Na BR-116, essas mesmas dimensões teriam de ser retrabalhadas e
outros elementos ainda seriam adicionados: a estrutura da parede, sua
forma e sua textura, por exemplo. “O
grafite em si é feito para ser visto de
longe. Não se preocupa muito com detalhes”. O artista explica que o spray
tem como característica o escorrido,
uma linha mais esfumaçada, diferente
do que se pinta em uma tela. “No caso
de uma rodovia, o grafite precisa apresentar uma leitura mais rápida, mais
simplificada, porque a pessoa deve
entender se estiver passando de carro,
de ônibus. É uma coisa que ninguém
vai parar para perceber detalhes.”
A pichação
na BR-116, ao
mesmo tempo
que contrasta,
pode contribuir
com a poluição
urbana
COMUNICAÇÃO ESTÉTICA
Apesar de não serem poucos aqueles que veem a pichação como um ato
de vandalismo, essa manifestação
consiste em uma forma de comunicação estética muito reconhecida
fora do Brasil. Em 2009, a Fundação
Cartier, em Paris, realizou uma retrospectiva mundial do grafite. O destaque ficou por conta de Djan Ivson,
paulista, convidado a realizar uma
intervenção no muro do museu com
os traços brasileiros da pichação — a
linha preta, vertical, geralmente explorando a caligrafia.
Portanto, para você que acha que
perde muito tempo parado na BR-116,
em vez de ficar só bufando, dê uma
olhada em volta. Se o que você vê é
arte ou não, pode ser assunto para outro engarrafamento. Mas o fato é que à
sua frente está, literalmente, um traço da arte urbana brasileira.
PRIMEIRA
PRIMEIRA
IMPRESSÃO
IMPRESSÃO
| DEZEMBRO/2010
| JULHO/2011 | 35
| 35
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
uando a pauta BR-116 foi escolhida, ficamos muito desanimadas.
Como tornar a estrada, nosso elemento diário de tortura, um assunto
interessante e que fugisse da obviedade? Certamente não queríamos abordar
a bagunça do trânsito, já que é justamente isso que nos tira do sério logo
pela manhã. Foi assim que surgiu a idéia de enxergarmos a BR-116 a partir
da expressão gráfica impressa em muros e viadutos das suas margens. Não
podíamos ter feito aposta melhor: quebramos um tabu interno e aprendemos
que até mesmo a pichação tem sua função informativa no cenário da estrada.
Amparadas pelo registro de imagens, pudemos casar as informações textuais
com as fotografias, o que facilitou a análise artística dos elementos do grafite
e da pichação. Mas nem tudo são flores. Uma de nossas intenções de fonte
havia falecido no último ano, informação que não tínhamos até tentar o
contato com o finado. Já que a contratação de um médium não seria a melhor
solução, resolvemos procurar outra pessoa com propriedade para falar sobre
o assunto. Muitos e-mails e um feriado depois, pudemos orgulhosamente
finalizar esses 7.000 caracteres, escritos com muito entusiasmo.”
A
Palavra
no
Caminho
PLACAS E PICHAÇÕES AO LONGO DA RODOVIA
INCLUEM FRASES QUE ANUNCIAM A FÉ EM
CRISTO E OUTROS AFORISMOS RELIGIOSOS
TEXTO DE BRUNA ELIDA CONFORTE E MARCO ANTONIO FILHO
FOTOS DE MARCO ANTONIO FILHO
36 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 37
A
placa apoiada na árvore ao lado da estrada está pintada de branco, mas, olhando de perto, percebe-se
o que ela trazia anteriormente: um anúncio publicitário de certa agência imobiliária. Era a forma
que o dono do negócio utilizava para se comunicar com seus
possíveis clientes. Agora há outra mensagem nela. Sobre a
tinta branca – com aspecto de que foi pintada às pressas, sem
muito cuidado –, vemos letras tortas que parecem ter sido escritas por um analfabeto, que as desenhou em um exercício
de caligrafia. O texto, um tanto quanto surreal, apresenta
um alerta: “Não saia de casa sem convidar Jesus”. Ao lado,
em letras menores, completa: “Ele te ama”.
Logo em seguida, se avista um viaduto. Inúmeros carros
cruzam-no, por cima e por baixo; de um lado e de outro;
zunindo como moscas, soltando fumaça, deixando o ar de
fim de tarde tão cinza quanto o cimento do viaduto. Eis que
em um canto de difícil acesso, na parte de baixo do viaduto,
sobre o cinza, surgem as letras brancas que formam outra
mensagem. Tão surreal quanto a primeira, o texto parece
suplicar: “Deixa Jesus agir na tua vida”. E completa, como
na placa escorada na árvore: “Ele te ama”.
Jesus Cristo – aquele que, afirmam, morreu na cruz
para nos salvar, ressuscitou no terceiro dia e depois subiu aos céus – é o assunto de inúmeras intervenções encontradas ao longo da BR-116. Assim como seu pai – o
onipresente Deus –, o nome de Jesus aparece em várias
marquises, viadutos, placas e pedras, nas quais podemos
ler, em linhas tortas, mensagens que afirmam que ele
voltará, que nos ama, e que, como
sugere a placa escorada na árvore, nunca devemos sair de casa
sem convidá-lo.
São mensagens anônimas, que
não buscam vender nada (como os
anúncios publicitários), marcar território (como as pichações comuns)
ou informar (como os sinais de trânsito). Buscam, talvez com certo desespero, levar uma mensagem que possa ajudar os desamparados, ou simplesmente tentar salvar suas almas. Por trás
dessas mensagens estão personagens invisíveis, cuja motivação e a forma de agir são um mistério para as milhares de
pessoas que, diariamente, cruzam com elas na BR-116.
Fantasmas
As inscrições, sem identidade, ou qualquer tipo de assinatura que possibilite rastrear os responsáveis pela sua
produção, tornam os autores fantasmas. Fantasmas pairados em suas próprias mensagens. Sua aparição é dada sem
que estejam no local, são autores flutuantes expondo uma
verdade pessoal sem a preocupação de se fazer entender.
É um estado de presença/ausência, como afirma o doutor em Comunicação Fabrício Silveira. A mensagem não
deve ser entendida literalmente, mas analisada em paralelo ao gesto utilizado na produção. A importância está na
ação. Autor de artigos sobre o espaço da cidade, Fabrício
volta sua pesquisa para o que é conhecido como “fantasmagoria urbana”, conceito que pode ser definido, em bre-
ves palavras, como um lugar conceitual no limite do real
e da imaginação, uma indefinição sobre a veracidade de
algo encontrado no espaço urbano.
Segundo Fabrício, os personagens por trás das intervenções religiosas – e as próprias inscrições – se enquadrariam
nesse conceito de “fantasmagoria”, por estarem nesse estado limite entre presença e ausência: “É alguém que fala,
mas quem é esse alguém? É alguém que está ali presente,
mas que presença é essa?”, questiona-se Fabrício.
Apesar da dificuldade em localizar e identificar essas
pessoas, é possível ir atrás de seus rastros na tentativa de
traçar um perfil. Esse perfil também está ligado à ação e
à forma que esses autores utilizam. “O que motiva o cara
a escrever lá no muro, subir em cima de uma ponte, é fazer aquilo. Ele poderia escrever ‘Inter’ lá, mas escreveu
‘Jesus voltará’. O que motiva ele, o que dá a adrenalina
não é escrever ‘Inter’ ou ‘Jesus’, é escrever lá, naquele
lugar.”, reflete Fabrício. Seguindo sua linha de raciocínio, Fabrício afirma que, em contrapartida, o autor que
pinta suas inscrições em placas e pedras assume sim um
caráter de pregação: “Isso não é pichação. Isso é anunciabilidade. Tosca, informal. Eu acredito que quem fez
tinha um propósito religioso”, afirma Fabrício.
Já o autor das placas “Jesus breve voltará” – fixadas em
inúmeros postes ao longo da região metropolitana de Porto
Alegre e também da BR-116 – utiliza o caráter de bordão,
e isso também revela algo em relação a seu perfil. Para
Fabrício, a ação praticada por esse autor é a de esvaziar
o seu sentido ao torná-lo reprodutível, atribuindo à frase um caráter
de slogan, assim ela deixa de ter o
caráter da pregação. Esse jargão
vai ser encontrado onde as pessoas menos esperam, e nesse sentido
ele é fantasmagórico.
Para Adriana Daccache, artista plástica e pesquisadora, que
há 11 anos desenvolve ações inspiradas em José Datrino, o Profeta Gentileza (conhecido
a partir de 1980 por fazer inscrições sob um viaduto
do Rio de Janeiro), esses autores anônimos se utilizam
das palavras para, de alguma maneira, levar as pessoas
a Deus. “A diferença entre eles é a intenção da palavra. Talvez um acredite na palavra de Deus, como ‘Cristo salva’, e o outro na ação da palavra gentileza, por
exemplo, no efeito de sua ação”, afirma ela.
Assim como Fabrício, Adriana também pensa que a importância está na ação. Ao ser questionada se encontra
alguma relação entre as inscrições dessas pessoas e as do
profeta Gentileza, ela responde enfaticamente que não.
“Na verdade, ambos usam a palavra como veículo, mas são
ações diferentes. Basta saber sobre o Gentileza: ele tinha
contato direto com as pessoas, ele distribuía flores e palavras de gentileza, de ajuda ao próximo, largou sua vida
em função do outro”, explica. “Acredito que façamos, a
princípio, o que conhecemos. Escrever, grafitar ou pintar
em um muro é mais fácil que qualquer outra coisa.”
Adriana já perdeu a conta de quantos mil adesivos
38 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
com a frase “Gentileza gera gentileza” ela produziu ao
longo de 11 anos. Para ela, estar em uma via de acesso
não garante que o passante, seja pedestre ou condutor,
lerá o escrito, a mensagem. “Portanto, não garante também um seguidor”, conclui.
O vendedor de sucos e o profeta
Airton Valenti, está parado no canteiro central da
Avenida dos Estados – ligação direta entre Porto Alegre e
a BR-116 – com seus olhos de um brilho úmido fitando o
movimento de carros que vêm e vão. Não é ele o homem
que pinta mensagens religiosas nas placas brancas, mas
diz conhecê-lo. “Somos amigos, é uma pessoa muito querida”, afirma com um sorriso largo, de poucos dentes. O
amigo – do qual não sabe o nome – vende suco de laranja
no local, rodeado pelas placas com mensagens religiosas que ele próprio pinta. É conhecido de quem costuma
entrar ou sair de Porto Alegre pela avenida como uma
espécie de profeta.
Airton é um grande admirador do trabalho de seu amigo: “É comovente, dá um astral para quem está chegando
a Porto Alegre. É como chegar na casa de Deus”. Se autodenominando “crente”, conta que muitas vezes a prefeitura recolhe as placas que ficam dispostas em diversos
pontos ao longo da avenida, que vai do Viaduto Leonel
Brizola à divisa com a cidade de Canoas. Mas isso não desmotiva o vendedor de sucos a produzir novas mensagens.
“Ele procura viver em um mundo melhor, ele é bom para
humanidade. Hoje em dia, com tanta violência é importante lembrar de Deus”, finaliza Airton.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 39
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“N
osso maior desafio nessa pauta era o fato de nossas
principais fontes serem praticamente inacessíveis.
Verdadeiros ‘fantasmas’, como destacamos na matéria.
Fomos então, primeiramente, investigar os locais, buscando
rastros e evidências – se não das identidades, pelo menos
da personalidade desses homens invisíveis. Na saída de
Porto Alegre, na divisa entre a Avenida dos Estados e a BR116, encontramos placas e pedras pintadas de branco com
inscrições religiosas pintadas em preto, em um padrão que não
deixava dúvida de que se tratava do mesmo autor. Por perto
residia ainda o pote de tinta, mas nenhum pincel. Algumas
pessoas afirmaram ter visto em um cruzamento um senhor
que seria o autor das placas brancas, mas não conseguimos
localizá-lo nas tentativas que fizemos. Dizem que se chama
Paulo – assim como o apóstolo que se converteu cristão após
ter uma visão de Cristo na cruz – e que, entre uma pregação
e outra, vende sucos. Porém, para nós, Paulo continua sendo
apenas um fantasma.
Engenharia a s
ENGENHEIROS, TÉCNICOS E
OPERÁRIOS PRECISAM MANTER
A RODOVIA EM CONDIÇÕES
TRAFEGÁVEIS PARA OS 120
MIL VEÍCULOS QUE POR ELA
PASSAM DIARIAMENTE
40 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
eu serviço
JANKIEL AZEVEDO
ESTUDO,
PLANEJAMENTO
E EXECUÇÃO
GARANTEM A
SEGURANÇA
DAQUELES QUE
TRAFEGAM PELA VIA
TEXTO DE Tárlis Schneider
FOTOS DE CLARA ALLYEGRA
E JANKIEL AZEVEDO
D
eixando o engarrafamento
de lado, a BR-116 se mantém
em excelente forma, silhuetada e com uma “textura de
pele” de dar inveja às “coroas” como
ela. Impressiona quando se pensa
na relação entre volume de fluxo de
veículos e estado de conservação. A
difícil tarefa de manutenção dessa
que é uma das principais vias do Rio
Grande do Sul fica a cargo de dezenas
de profissionais, entre engenheiros,
técnicos e operários. São eles os encarregados da recuperação asfáltica
contínua, com a importante missão
de manter a rodovia em condições
trafegáveis para os 120 mil veículos
que por ela passam diariamente.
Há mais de 30 anos, o Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (DNIT) não mantém funcionários próprios com as atribuições
de realizar obras ou reformas em
vias federais. Desde a década de 70,
a principal função do órgão é fiscalizar as obras realizadas por empresas licitadas. Os contratos limitam o
tempo necessário para realização do
projeto e ditam quais recursos materiais serão utilizados, segundo informa o engenheiro civil e analista em
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 41
CLARA ALLYEGRA
A MANUTENÇÃO
CONSTANTE É
FUNDAMENTAL
PARA O
ANDAMENTO
DA ESTRADA
JANKIEL AZEVEDO
infraestrutura de transportes Luciano Santarém. Além dele, outros 24
engenheiros são os responsáveis por
analisar e fiscalizar cada operação
nas estradas federais do Rio Grande
do Sul. Cada projeto licitado tem
a supervisão de dois engenheiros,
sendo um titular e outro reserva.
“Temos uma função muito importante, pois trabalhamos para
melhorar as condições das estradas”, comenta o engenheiro. Ele
enfatiza que a segurança dos motoristas aparece como um dos objetivos de seu trabalho. Santarém
salienta que o serviço prestado
pelos profissionais responsáveis
pela fiscalização poderia ser melhor. “Temos boas condições materiais, carros para locomoção e
uma situação predial boa, mas o
ideal seria duplicar a quantidade
de fiscais”, comenta.
O trabalho de fiscalização de
Santarém também conta com o
auxilio de técnicos como Eloir Sehnem, 60 anos, 23 deles passados
dentro do DNIT. “Sou da época em
que calculávamos tudo a mão. Hoje
a tecnologia nos ajuda muito para
a realização do trabalho. Vai tudo
para um chip!”, diz o técnico que
carrega na genética a profissão.
Seu pai foi funcionário do DNIT por
décadas e exercia praticamente a
mesma função de Eloir.
Por ser um trabalho que envolve alto risco, o técnico relembra
fatos que marcaram sua trajetória
no órgão, como um deslizamento de
encosta que atingiu operadores de
máquinas durante uma intervenção
em Galópolis, ou a explosão de um
caminhão de combustível durante a
duplicação da BR-116 entre São Leopoldo e Estância Velha. Na mesma
época, um acontecimento que ainda arranca sorrisos do técnico foi o
pouso de um pequeno avião em uma
cancha de brita que serviria de base
para a atual rodovia. “Estávamos
trabalhando na via lateral, perto do
antigo aeroporto de Novo Hamburgo, quando vi o teco-teco pousando na estrada de brita. Paramos o
trabalho e fomos ver se estava tudo
bem. O piloto saiu caminhando,
como se nada tivesse acontecido”.
42 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
Santarém e Sehnem afirmam
que, mesmo com o intenso fluxo de
veículos que trafegam diariamente
pelo trecho da BR-116 entre Porto
Alegre e Nova Petrópolis, as condições físicas da via são excelentes
devido à forma como a rodovia foi
construída. Eles comentam que o
tipo de construção e o solo no qual a
rodovia foi concebida propicia uma
manutenção de qualidade, dotando-a de grande durabilidade.
Quem executa?
Se a principal finalidade do DNIT
é fiscalizar, então, quem executa as
operações de manutenção? Atualmente, o trecho entre Porto Alegre e
Nova Petrópolis é atendido pela empresa Sultepa sob regime de contrato através de licitação federal. Nos
últimos dois anos, quem esteve e
permanece à frente da árdua incumbência de manter em boas condições
físicas a BR-116 é o engenheiro Marco Túlio Britto Macedo. Formado em
1987, comandou no auge das obras
de recuperação efetiva da via, cerca
de 100 operários, divididos em equipes pré-definidas de acordo com as
funções a serem desempenhadas.
“Hoje contamos com um efetivo
de cerca de 40 operários, responsáveis pela roçagem e operações emergenciais, como conserto de fissuras
ou buracos”, relata o engenheiro.
Ele diz que se sente gratificado ao finalizar os serviços de reparo sem que
acidentes de trabalho graves aconteçam com algum de seus subordinados. “A segurança é fundamental em
nosso trabalho”.
No trecho da região metropolitana, em julho de 2010, as equipes
de engenharia da BR-116 enfrentaram um desafio inédito na via: a
substituição de um viaduto de 50
metros, localizado próximo à Refinaria Alberto Pasqualini, em Esteio.
Com ajuda de um guindaste de 500
toneladas, o uso de explosivos e da
força de trabalho de uma equipe de
50 homens, foi possível retirar a antiga estrutura de concreto, dando
lugar ao novo viaduto de aço. Após
56 horas de operação sob o tempo chuvoso do inverno gaúcho, os
quatro módulos de metal, pesando
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 43
60 toneladas cada, foram içados e
montados no mesmo local. Esse tipo
de ação nunca havia sido realizado
no Rio Grande do Sul, e pela primeira vez na história do trecho gaúcho
da BR-116 houve o fechamento total
da via, obrigando o tráfego de veículos a ser desviado pelas vias laterais. Mas o rápido transtorno valeu
a pena. A nova estrutura de R$ 6,8
milhões tem previsão de durabilidade de 80 anos, sendo dez vezes mais
resistente que sua predecessora.
Uma simples roçagem, ou a pintura rápida de um trecho, até a substituição de todo um pavimento...
se for preciso, move-se pontes! A
necessidade em qualificar a problemática BR-116 é o desafio que move
esses profissionais. A luta constante
contra o tempo, que urge em se fazer de tudo um pouco; intempéries
que variam temperaturas e níveis de
umidade que desmotivam até o mais
afinco trabalhador; em amenizar
congestionamentos causados por reparos e conseqüências sofridas pelos
usuários já cansados com a falta de
alternativa em mobilidade urbana;
e na busca constante em adequar os
recursos à realidade pela qual passa a BR-116. Aos serviços da rodovia
mais movimentada do Rio Grande do
Sul, estão todos esses profissionais:
engenheiros e suas equipes, diariamente em planejamento, executando e finalizando obras.
O ciclo não se encerra, apenas
é repassado para a próxima equipe.
Os escultores de rodovia fazem a
sua parte. Os milhares de motoristas
que penam ao tomar a estrada como
caminho, também têm a sua participação, quando no final das contas
segregam uma porção dos seus ganhos aos impostos, confiando-os aos
administradores desse pais. Quantas
horas perdidas no caos do trânsito,
nesta e em outras BRs, serão necessárias para que se deixe de apenas
amenizar os problemas de locomoção
urbana, e sim, investir massivamente em alternativas que modifiquem o
perfil do transporte brasileiro? Nem
engenheiros, nem matemáticos,
nem ninguém é capaz de responder
essa questão.
A mudança é bem-vinda, e, quem
sabe, as próximas histórias a serem
contadas serão a de outros engenheiros civis, responsáveis por trens
que não poluam, por aeromóveis
silenciosos ou pela simples integração entre bicicletas e veículos. O
que mais precisamos para qualificar
nossa logística?
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“P
or questões acadêmicas e pessoais, trafego quase
que diariamente pela BR-116. Todos sabemos
dos problemas causados pelo intenso fluxo de veículos,
como bem conhecemos os transtornos decorrentes das
obras de recuperação. Ao fazer a reportagem sobre a
manutenção da rodovia, conheci o outro lado: o lado dos
engenheiros. Descobri as dificuldades e as preocupações
pelas quais passam esses profissionais, que diariamente
trabalham para melhorar (e amenizar) os obstáculos
que enfrentamos ao pegar a estrada. Os cuidados com
a segurança dos usuários estão entre os principais
pontos citados por eles. São conscientes de que suas
ações atrapalham o trânsito, mas o fazem da maneira
mais otimizada possível, afim de não interromper ou
prejudicar o fluxo da BR-116. Sentem-se satisfeitos com
seu trabalho, pois sabem da importância em manter a via
nas melhores condições. Tudo para transformar o trajeto
numa via mais agradável e segura para todos àqueles que
por ela se deslocam, seja a trabalho, estudo, passeio...”
ATENÇÃO
CLARA ALLYEGRA
Um quilômetro
P
PASSO A PASSO, passa um
quilômetro. e a cada passo,
curiosidades e personagens
aparecem sutilmente. sob os
nossos olhares, o espaço entre os
km 264 e 265 da br se torna mais
humanO, ganha vida, ou melhor,
as vidas e histórias se apresentam
TEXTO DE ANA PAULA FIGUEIREDO E TAMIRES GOMES
FOTOS DE ATHOS BEUREN E ROBERTA REIS
assos curtos e olhos atentos, debaixo de uma
sombrinha, observamos o que havia ao redor. Era
difícil andar por entre os obstáculos: lixo, pedras,
poças de água, garrafas e até mesmo roupas jogadas pelo caminho. Depois de alguns metros de andança, uma surpresa. Uma casinha, perdida em meio à paisagem de concreto, asfalto e prédios monocromáticos,
chama a atenção por manter um pátio florido de hibiscos
e parreiras. Ali mora há mais de 50 anos o aposentado Vitalino Angelo Frá. O senhor de 62 anos gasta pouca saliva
para contar as lembranças do seu tempo de piá. “Lembro
quando era menino, eu e meu irmão jogávamos bola aqui
na faixa, agora está muito perigoso. Naquela época ficávamos até tarde na rua e era bem iluminado”, compara
Vitalino, que se refere à BR-116 como faixa, assim chamada popularmente.
O trecho da rodovia entre os quilômetros 264 e 265,
um local inóspito, com calçadas irregulares e prédios depredados, foi definido como roteiro da nossa caminhada,
em uma manhã fria e chuvosa de sábado. Ao explorar
46 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
de histórias
esse percurso, acompanhadas pelos colegas fotógrafos,
encontramos essa e outras histórias, que talvez nunca
fossem contadas.
Vitalino preserva o legado dos pais, mas informa que o
pátio já esteve mais bem cuidado, hoje o tempo escasso
impede que a jardinagem esteja em dia. O aposentado
dedica seu tempo para plantar alguns pés de alface, cuidar dos três cachorros e dos afazeres domésticos. Mesmo
assim, a residência se destaca pela grande quantidade
de verde avistada de longe, e assim o contraste da natureza com o urbano é inevitável. Localizada entre
um hotel e um motel, onde as pessoas costumam permanecer por poucas horas, ou no
máximo por alguns dias, a casa de Vitalino resiste ao tempo e ultrapassa
gerações. “O hotel existe há muitos anos, mas era bem diferente.
No lugar do motel havia um ferro
velho, com sucata de caminhão.
Tinha poucas casas e a estrada
era uma única pista larga de paralelepípedos.”
A família veio da cidade de Farroupilha no início dos
anos 60 para tentar uma vida melhor em Canoas, conta
Vitalino. Depois de perder a esposa, ele assumiu os cuidados da residência onde cresceu e passou a dividir o
espaço com o irmão mais novo, Luiz. No pátio, estão duas
casas, uma onde a família morou, e onde ele ainda reside, e a outra que serviu de estabelecimento comercial.
Ambas foram construídas pelo seu pai na época em que
o trânsito e o barulho não eram constantes. Hoje, o som
ATHOS BEUREN
CANOAS CRESCEU, E A
CASA DE VITALINO
CONTINUA LÁ, DO MESMO
JEITO QUE FOI CONSTRUÍDA,
HÁ MAIS DE 50 ANOS
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 47
FOTOS ATHOS BEUREN
dos veículos torna impossível imaginar a cena presente
somente na memória de Vitalino.
Até uma hora da manhã o tráfego é intenso, e, mesmo sendo difícil de se acostumar, ele já tira de letra e
dorme bem à noite. “Entre uma e três da madrugada, o
barulho diminui um pouco, mas sempre tem movimento.
Caminhões e motos passam a toda hora.”
Mesmo habituado aos incômodos provenientes do fluxo dos carros, Vitalino sonha com o dia em que poderá
retornar para a terra natal. “Tenho vontade de voltar
para Farroupilha, mas falta coragem para a mudança,
pois vivo aqui há 50 anos”, confessa.
Chega a hora da despedida, a caminhada segue no
ritmo anterior, frio e cinza. Não há mais flores e jardins.
O sustento à beira da estrada
Cerca de 400 metros à frente, há o comércio do casal
Magda Isabel Pizzi Rodrigues e José Carlos Rodrigues. Estabelecidos no ponto comercial há dez anos, trabalham
com a venda de kits para identificação de cargas perigosas, via telefone. A renda obtida com o trabalho financiou
a formação em ensino superior de seus três filhos.
O casal conta o que já presenciou nessa década
de ofício, descrevendo com detalhes os acidentes e
atropelamentos ocorridos no local. Magda chama a
atenção para outro ponto crítico, o transporte público. “Os ônibus aqui são precários. Não ando de ônibus, mas a minha secretária precisa usar o transporte
e passa muito trabalho. Diminuíram a quantidade de
veículos, e alguns nem param, passam reto ou ficam
cheios de gente”, avalia. Magda e José apenas utilizam o ônibus quando é estritamente necessário, como
no caso de algum serviço a ser realizado fora do município. “Quando vamos a Porto Alegre, procuramos
cuidar para não sair em horários de pico, pois, caso
contrário, já sabemos, será preciso ter paciência, ligar o radinho”, brinca Magda.
As paradas lotadas são alvo para assaltantes, o que
mostra a insegurança presente às margens da rodovia. O
estabelecimento de Magda e José Carlos também já foi
vítima de roubos. “Arrombaram aqui quatro vezes, mas
sempre à noite, quando já tínhamos ido embora”, afirma
Magda.
Andança solitária
O que mais se encontra no trecho são concessionárias
de carros, postos de gasolina, motéis, casas noturnas,
mas gente pouco se vê pelos arredores. Andamos um pouco desconfiados com a falta de vida aparente nas imediações, receio típico provocado por lugares desertos. Volta
e meia surge um vivente apressado, principalmente nas
proximidades do supermercado Zaffari Bourbon, que emprega muitos funcionários.
Allane Rodrigues Pereira trabalha no local e está acostumada com o percurso. Moradora de Esteio, ela vai ao
hipermercado pelo menos seis dias por semana para trabalhar em uma loja de roupas. “Seguro não é, mas medo
não tenho”, conta. A segurança vem da experiência. Com
apenas 20 anos, Allane já teve outros empregos e precisava andar sozinha até o serviço. “Trabalhei em Esteio,
também na BR.”
Mais alguns metros à frente, surge um ponto interessante do percurso: uma estreita e alta passarela de madeira, cujos vãos permitem enxergar os carros passando
48 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
VITALINO SE ACOSTUMOU COM O
BARULHO DO TRÂNSITO INTENSO
DA BR. UM DIA, ELE PRETENDE
PERCORRÊ-LA PARA VOLTAR A
SUA TERRA NATAL, FARROUPILHA
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
Finda a jornada
Um trecho curto, de carro, é atravessado em apenas dois minutos. Porém, as histórias interessantes que
descobrimos pelo caminho fizeram com que a caminhada
durasse mais de uma hora. O trajeto compreende uma
das passagens da BR-116 mais movimentadas da Região
Metropolitana. Mesmo com tanta gente indo e vindo, nitidamente é um lugar não planejado para o passeio, por
isso a caminhada por ali é solitária.
A placa que marca o quilômetro 265 indica que chegou a hora de ir embora. Vamos. Todos cansados, molhados e com coisas para contar em forma de texto e
fotografias. As histórias que ficaram por ser contadas
são muitas. A cada esquina, com um pouco mais de tempo e atenção, seria possível extrair um caso merecedor
das páginas da revista.
A correria do dia a dia torna as milhares de pessoas que
passam pelo local indiferentes às peculiaridades do caminho, que, como comprovado pela jornada descrita, escondem casos interessantes em meio à paisagem embrutecida
e envelhecida pela fumaça dos carros e caminhões.
Cada colega leva para casa suas impressões sobre
a tarefa e uma conclusão em comum: possuímos visão
seletiva.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 49
ROBERTA BECKER
por baixo dos pés. Reza a lenda que a Passarela da Cabeça, como é conhecida, recebeu este nome por causa de
uma briga, em que um dos inimigos jurou que mataria o
outro e colocaria a cabeça dele exposta na passarela. O
homem jurado de morte, sabendo da ameaça, adiantouse e reverteu a situação, expondo a cabeça daquele que
desejava ser seu algoz.
uantas vezes andamos por aí sem olhar para
os lados, concentrados no destino e não no
percurso. Depois de caminhar com esse objetivo pela
BR-116, os lugares comuns se apresentaram sob
nova forma, quase sempre negativa. Entre as fontes,
sem desmerecer ninguém, o senhor Vitalino ganhou
destaque, não só pelas histórias de infância, mas por
manter vivo o ambiente em que cresceu, mesmo que
tudo na volta tenha mudado. Todos os sentidos foram
explorados. A visão não foi a mais privilegiada, pois
o cenário incomoda, perturba no início. Foi difícil
acreditar que boas histórias poderiam surgir daquele
espaço aparentemente desabitado. A audição não teve
paz, solicitada a todo instante pelo barulho dos carros,
que abafam a maioria dos sons ao redor. Os cheiros se
misturavam, o nariz não diferenciava mais o odor de
lixo, combustível e fumaça dos carros. O tato foi sentido
pelos pés, que pisavam o chão irregular e as poças de
água. O único que escapou foi o paladar, mas por pouco.
No caminho, o aroma de carne assada vindo de uma
churrascaria atiçou as papilas gustativas. O percurso foi
igual, os sentidos é que ficaram mais aguçados.”
encantos da
O ANTIGO MOINHO FAZ
PARTE DAS ATRAÇÕES
DO PARQUE HISTÓRICO
MUNICIPAL JORGE KUHN
50 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
subida da Serra
TEXTO DE FERNANDA BRANDT E RENATA PARISOTTO
FOTOS DE ROGERIO BERNARDES
A Rota Romântica, que ATRAVESSA
13 cidades entre São Leopoldo e
São Francisco de Paula, é um dos
caminhos mais visitados pelos
turistas no Rio Grande DO SUL
N
ão são em paisagens verdes, riachos despoluídos,
obras de arte e em calmaria que você pensa quando
falamos da BR-116. O trânsito lento,
acidentes, as horas perdidas dentro
de um automóvel, a poluição sonora e visual parecem combinar bem
mais com ela. No entanto, um trecho da estrada que passa pelo caminho turístico conhecido como Rota
Romântica, no Rio Grande do Sul,
tem grandes chances de isentá-la,
pelo menos por alguns quilômetros,
de tantas reclamações.
Localizada entre as cidades de
São Leopoldo e São Francisco de
Paula, a Rota tem diversos pontos
bem conhecidos, como a Cascata
do Caracol, em Canela, e o Labirinto Verde, em Nova Petrópolis.
Anualmente milhares de turistas
movimentam a economia dos municípios, especialmente no inverno. O
charme do roteiro não está somente nesses lugares já tão badalados,
mas também em pequenas raridades
cortadas pela BR-116. Entre Dois Irmãos e Picada Café, respectivamente quinta e nona cidades do roteiro,
é possível se surpreender.
A primeira parada, no sentido
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 51
Capital-Interior, é ponto de encontro de motociclistas
e turistas de passagem. Não somente pela roda de conversa que pode se formar, mas pela vista panorâmica de
Dois Irmãos e outras cidades do Vale do Sinos. O Belvedere fica no quilômetro 218, na entrada de Morro Reuter, ex-distrito da cidade, emancipado em 1992. Com
extensão de cerca de 60 metros, o Belvedere oferece
um espaço para estacionamento e é rodeado por plátanos, árvores que estão por boa parte do caminho e
que, no outono, trocam o verde das folhas pelo amarelo
queimado e pelos tons avermelhados. São os plátanos,
aliás, que em vários trechos da BR-116 formam túneis
naturais que encantam.
Um quilômetro após, está o ateliê da artista plástica
Anelise Bredow. Visitado por turistas do mundo todo que
passam pela região do Vale do Sinos e sobem a Serra
através da Rota Romântica, o ateliê representa bem o
que os turistas podem encontrar pelo caminho. A beleza
e originalidade do trabalho da artista ganharam destaque ainda maior em 2010, quando suas peças foram parar na decoração de cenários das novelas Passione e Ti Ti
Ti, da Rede Globo.
A casa antiga, com traços da colonização alemã,
transformada em ambiente de trabalho, chama a atenção. No entanto, de acordo com a artista, o vermelho
das paredes não é suficiente para atrair um maior número de pessoas que seguem pela rodovia. “Os turistas
chegam aqui por acaso. A gastronomia ou a indicação de
alguém que já conhece meu trabalho ajudam.” O fato
se justifica pelo ponto comercial, que fica alguns metros
antes do trevo de acesso à cidade de Morro Reuter, por
isso tem pouca visibilidade, além da falta de espaço para
o estacionamento de veículos. No entanto, a artista não
pensa em sair do local. “Não existem pontos comerciais
na BR-116, desde Ivoti até São Francisco de Paula. Esse
é um grande problema que enfrentamos. Certamente, se
houvesse novas opções e maior divulgação do turismo na
BR, o movimento de turistas poderia ser muito maior”,
destaca a artista.
A falta de imóveis para locação pode ser verificada
durante todo o trajeto entre as duas cidades. A geografia
do local, composta por paredões, penhascos e vegetação fechada, impede que novos estabelecimentos sejam
construídos. Além disso, aponta Anelise, a estrada sem
acostamentos em alguns pontos e a neblina prejudicam
a visitação: “A maior parte da divulgação para subir a
Serra é através da RS-122. Em dias nublados, a BR-116 se
torna mais perigosa, e acabamos perdendo grande parte
do movimento. No entanto, em dias de sol, os turistas
podem apreciar uma paisagem muito mais bonita através
dos caminhos da Rota. Para se ter uma ideia, nos finais
de semana com tempo bom, são cerca de 100 a 150 pessoas que vêm visitar o ateliê. Nos dias com neblina, o
número cai para 20 a 25.”
Apesar dos problemas de divulgação e infraestrutura
da BR-116, as obras de arte encantam visitantes brasileiros e estrangeiros. São vasos em cerâmica, quadros,
pequenas lembranças, como chaveiros, expostos por
todo o ateliê, com estilo próprio. Uma geladeira antiga
vermelha, mesas de madeira, móveis brancos, estantes e
até um velho baleiro transformam um simples ambiente
de casa em obra de arte. Anelise reforça: “Eu não me
inspirei no estilo de ninguém, tenho minha linguagem
própria”. É por isso que o ateliê se torna um dos pontos
atraentes do caminho.
A parada obrigatória da BR
Seguindo viagem, a Tenda do Umbu, em Picada Café,
chama a atenção pelo número de motociclistas que ali param para descansar, realizar suas refeições, conversar. Há
possibilidade também de fazer compras. Afinal, são inúmeros itens à venda, que vão desde casacos de couro e lã, artigos femininos, peças decorativas, até pequenas lembranças, como enfeites para o chimarrão, cuias e chaveiros.
De acordo com uma das proprietárias da Tenda do Umbu,
Miriam Rückert Maurer, aos finais de semana cerca de mil
pessoas se reúnem no local. Os turistas são de todo país, e,
no período de férias, chegam por ali até estrangeiros.
A tenda teve início em 1963, antes da emancipação
do município, em 1992, quando o pai de Miriam comercializava frutas à sombra de um umbuzeiro, à beira da
BR, atividade que ainda pode ser vista em trechos da
Rota Romântica. O negócio da família foi aumentando
com o tempo, e atrás da árvore foram construídas as primeiras instalações. Hoje, o local abriga loja, restaurante
e área com churrasqueiras para quem prefere preparar o
almoço. “O nosso objetivo é oportunizar lazer para todos
nossos clientes, por isso a diversidade”, diz Miriam.
Ainda na cidade de 5.182 habitantes, o Parque Histórico
Municipal Jorge Kuhn integra os pontos que valem a pena vi-
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sitar na rodovia. Com um acervo histórico que inclui construções centenárias,
como moinho, armazém, residência,
cozinha com sala de refeições, açougue,
galpões, estrebarias, chiqueiros e matadouro. No local, encontra-se também a
Biblioteca Municipal José Lutzemberger
e o prédio de uma antiga funilaria.
Arte na beira da estrada
Em meio às árvores, é possível
avistar uma pequena casa de madeira e teto baixo. No alto, do lado direito, um distintivo do tricolor gaúcho, Grêmio, e do lado esquerdo, o
do time rival, Internacional. Feitos
em madeira maciça, pintados cuidadosamente, os escudos são amostras do que pode ser encontrado no
local. Outros pequenos e enormes
quadros, esculpidos artesanalmente, retratam cenas como a da Santa
Ceia, cidades pacatas, pais e filhos,
animais e até um pôr do sol. José
Dércio Knorst e Ilaine Schnorenberger são os responsáveis por encantar
turistas dos Estados Unidos, Alemanha e também brasileiros, que pagam até R$ 3.200 por uma peça com
dois metros de largura. Para quem
não pode pagar esse valor, mas quer
ter a exclusividade em casa, a opção
é o número de residência, que sai
por cerca de R$ 180.
Há 15 anos no local, Ilaine atribui
à BR-116 o sucesso das vendas, mas
admite que a Rota Romântica ainda é
pouco divulgada. Mesmo assim, o casal
não pretende sair do local onde nasceu. Do negócio, vem a principal renda
da família, mas não a única. Durante
a semana, Ilaine trabalha em uma fábrica de calçados de Dois Irmãos para
complementar o orçamento. Na pequena casa de beira de estrada, além
dos quadros, são comercializadas ainda
flores e mel, uma opção para turistas e
também para os vizinhos da localidade
de Picada São Paulo.
Paisagens, centros culturais, esculturas, produções locais. As atrações encontradas entre as cidades
de Dois Irmãos e Picada Café remetem a uma vida simples de cidade do
interior. A calmaria encontrada no
trecho pode amenizar as impressões
ruins de quem enfrenta diariamente
o lado exaustivo da rodovia.
PRIMEIRA
PRIMEIRA
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um pedacinho da
alemanha no brasil
A inspiração para a criação da Rota Romântica
brasileira veio do norte da Alemanha. Engana-se quem
pensa que é apenas a beleza dos plátanos ao longo da
BR-116 que impõe o ar europeu.
A região que abriga as cidades da Rota Romântica
foi colonizada pelos imigrantes alemães que povoaram
a região em meados do século XIX. Vindos de regiões do
Norte da Alemanha, 5.350 alemães chegaram à encosta
do Vale do Sinos, à Serra Gaúcha e ao Nordeste do Rio
Grande do Sul entre 1824 e 1830, uma região desabitada
até então.
A influência germânica pode ser vista hoje nas casas
em estilo bávaro e enxaimel, no dialeto deixado pelos
imigrantes e nas festas populares com bandas típicas,
regadas a muito chope e alegria. A culinária local
também é repleta de iguarias da típica culinária alemã,
com um bom schmier colonial, o delicioso apfelstrudel
(torta de maçã) ou uma cuca bem caseira.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
uando o assunto em pauta é a BR-116, a
primeira lembrança que a grande maioria das
pessoas tem é da poluição, dos engarrafamentos e do
estresse causado pelos grandes congestionamentos,
principalmente no trecho que liga a Grande Porto Alegre
ao Vale do Sinos. E essa também era a nossa ideia. Foi
nessa hora que a colega e amiga Gabriela Silva sugeriu
mostrar que nem só de fumaça vive a 116. E aceitamos
o desafio. Escolhemos uma manhã de sábado para
subir a Serra e, mesmo com chuva, a cada quilômetro
era possível apreciar belas paisagens, conversar com
moradores e descobrir pequenos detalhes que fazem
da região um dos berços da colonização alemã. A saída
foi da cidade de Dois Irmãos, e, conforme percorríamos
a Rota Romântica, a reportagem se construía em
pensamento. Seria impossível não falar dos plátanos, que,
em alguns pontos, chegam a formar túneis verdes. Como
não se encantar com a beleza natural e ainda pouco
explorada pelos pontos comerciais? Aliás, a maioria dos
entrevistados reclamou da falta deles. Mas seria tão
prazeroso andar por ali se o trecho fosse igual ou muito
parecido com o restante da BR-116?”
Quando éramos
crianças
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JOANNA GIL
CECÍLIA MEDEIROS
CECÍLIA MEDEIROS
JOANNA GIL
QUEM PASSA PELA PRAÇA SANTOS
DUMONT, JUNTO À BR-116, NA ALTURA
DE CANOAS, NORMALMENTE DÁ UMA
ESPIADINHA NO MONUMENTO DO
AVIÃO. MAS COMO ELE FOI PARAR ALI?
AS CRIANÇAS TÊM ALGUMAS VERSÕES
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TEXTO DE HECTOR MORAES
FOTOS DE CECÍLIA MEDEIROS,
CLARA ALLYEGRA E JOANNA GIL
A
Praça Santos Dumont, em
Canoas, popularmente conhecida como “Praça do
Avião”, desperta a atenção
de qualquer um que trafegue pela BR116. Seja durante o dia, sob um céu
de brigadeiro, ou então à noite, quando é iluminada pelas luzes que destacam a aeronave, não há quem passe
pela rodovia sem dar uma conferida
no monumento.
Visitei a Praça em um domingo à
tarde e pude ver o modelo F-8 Gloster Meteor de perto. Bem maior do
que parece quando visto da BR-116,
ele é sustentado por um suporte de
concreto e fica levemente inclinado, passando uma sensação de movimento e voo infinitos.
O desgaste do tempo é perceptível, principalmente nas asas e na cauda, partes que estão um pouco descascadas. Pudera, como monumento,
foi inaugurado em 1968, como uma
homenagem da Força Aérea Brasileira
(FAB) para a comunidade canoense,
que tem o desenvolvimento municipal diretamente ligado à Aeronáutica.
Trazido para o Brasil em 1953, o F-8
Gloster Meteor foi o primeiro modelo
à jato do país, e podia atingir a velocidade máxima de 960Km/h.
Todas essas informações perdem
o sentido quando perguntamos a
uma criança se ela saberia responder por que aquele avião está ali. É
na imaginação delas que a homenagem da FAB ganha contornos mágicos, com histórias de guerra, salvação e combates ingênuos. Histórias
sempre contadas rapidamente, com
palavras curtas e em volume baixo.
Quase um contraste com as mais de
21 mil horas de voo e o ruído dos
motores do hoje aposentado Gloster
Meteor. São contos que atravessam
a tênue linha entre o sonho e a realidade, sem se preocupar com as
barreiras possível. E foi isso o que
fizeram alguns ilustres visitantes da
Praça do Avião, com idades entre
cinco e 10 anos, quando perguntados: “De onde veio este avião?”
A IMAGINAÇÃO VOA
De calça laranja e moletom azul,
com cabelo cortado no melhor estilo
tigelinha, Lucas Azevedo, de apenas
cinco anos, conta que viu o avião caindo do céu até aterrissar ali: “Eu estava aqui com meu pai e aí BUUUUM! ele
veio descendo... descendo... e parou
aí.” O que aconteceu depois? A resposta do pequeno foi um envergonhado
sorriso que se escondeu nos braços da
mãe. Mas essa não é a mesma história
que o Jonatas Barcelos, de camiseta
do Grêmio e oito anos, conta: “Acho
que teve uma guerra, lá em cima derrubaram ele, e ele caiu aqui.” Mas e
por que não explodiu? “Meu avô disse
que tinha acabado a gasolina.” Avô?
“É, meu avô era o piloto. Ele que me
contou essa história”, disse ele.
Janaína Pereira, de 10 anos, conta uma versão bem mais tranquila
que a dos meninos: “Ahh, esse avião
aí meu pai falou que o quartel não
queria mais, que ele estava velho.
Daí colocaram ele aí. No colégio
também contaram algo tipo isso, que
foi o quartel que deu ele pra cidade.” Mas antes de saber a verdadeira
história, ela conta que achava que
ele não era de verdade, que era só
imitação. Sara Silveira, de sete anos,
tem certeza que o avião é de verdade
porque a mãe dela contou que esse
avião caiu. “Daí colocaram ele aqui”.
Mas ela vai mais além: “Eu queria entrar lá. Pode?”, pergunta apontando
para o cockpit da aeronave.
Mesmo sem ligar as turbinas e alçar
voo há 43 anos, o velho Gloster Meteor ainda mexe com a imaginação das
pessoas. Mantém a mesma magia que
faz com que tanto os que freqüentam
a Praça Santos Dumont quanto os que
passam pelo Km 256 da BR-116 voltem
a ser criança por alguns instantes.
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JOANNA GIL
CLARA ALLYEGRA
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“T
ive sorte e azar quando visitei a Praça Santos
Dumont, mais conhecida como Praça do
Avião, em Canoas. Sorte porque fazia um dia bonito
e ensolarado nas duas vezes em que estive lá, o que
tornou minha viagem de trem uma espécie de relaxante
passeio de domingo. Azar porque, apesar do clima
agradável, não encontrei tantas crianças quanto
imaginava que poderia encontrar. É que a idEia era
conversar apenas com os pequenos para tentar entender
como a imaginação deles explicaria o fato de um avião
estar no meio de uma praça localizada justamente ao
lado de uma estrada. Convenhamos, algo bastante
inusitado. No início, apenas observava a movimentação
deles, tentando entender do que estavam brincando e
o que poderiam estar imaginando. Depois, localizava
os pais, me aproximava e explicava o motivo de querer
entrevistar o filho deles. Não ouvi nenhuma negativa
por parte dos adultos, mas não posso dizer o mesmo
dos meus entrevistados mirins. Mas eu os compreendia,
afinal, quem nunca se sentiu envergonhado? Em
outros casos, eles apresentarem aquela bonita falta de
articulação e conexão textual natural da idade, o que
me deixava ainda mais curioso pra saber o que será
que eles me contariam, caso pudessem fazer isso. E
ainda teve aqueles que seguiram brincando ainda mais
entusiasmados, porque finalmente podiam fazer aquilo
que mais gostam: utilizar superpoderes mágicos para
impressionar estranhos como eu.”
DOIS A
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CLARA ALLYEGRA
RODAR
Na principal rodovia do Brasil,
ela cansa da rotina conforme
desbrava caminhos, enquanto ele
procura um teto para sobreviver
e agradece pelo dia de hoje
TEXTO DE EDUARDO PEDROSO
FOTOS DE ANDRÉ ÁVILA E CLARA ALLYEGRA
U
m trecho da BR-116 que corta São Leopoldo serve de fronteira
para o bairro mais rico da cidade. Neste local, a estrada muda
um pouco sua configuração convencional, pois há um viaduto,
usado para que o intenso fluxo não seja interrompido pelos cruzamentos, retornos e sinaleiras. No bairro, entre outros estabelecimentos
menos representativos, há uma universidade, um grupo de artilharia
do exército brasileiro, um clube de futebol e até um cemitério. Com
tanta estrutura, o bairro Cristo Rei é quase como uma cidade dentro
de outra, e fica fácil entender sua valorização. Difícil é entender
como alguém consegue morar de graça nele.
Números de distâncias que separam mundos normalmente são
estratosféricos, mas neste caso mal ultrapassam os 1500 m,
distância percorrida em pouco mais de três segundos pelos
melhores competidores do atletismo. Estranho é que se ele
fosse até ela, seriam ao menos 20 minutos, mas se ela fosse até ele, não seriam nem cinco. Nenhum dos dois quis
dizer o nome. Ela iria sozinha, dirigindo o terceiro carro
da família, que lhe fora presenteado há pouco mais de
um ano. Os dois dizem ter 21 anos. Morador de rua,
ele iria caminhando, acompanhado de Belo, Sextafeira e Pipo. A seguir, ambos caminham sobre
um muro entre dualidade e dueto enquanto
respondem as mesmas perguntas de
perspectivas opostas, mas conectadas pelo asfalto da principal rodovia do Brasil.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 59
“Já vi carro bater em
caminhão, carro bater
em carro e um carro
pegando fogo sozinho”
Quem mora contigo?
Ela: Minha mãe, meu pai e meu irmão. Meu irmão tem duas
cadelas, uma labradora e uma border collie.
Ele: Só eu. Aqui eu fico mais na minha. Gosto de ficar na minha. Meu parceiro que me trouxe pra São Leopoldo já morreu,
e foi por causa de cabeça fraca, indo pelas ideias dos outros.
Gosto daqui. Tem só três cachorros que ficam por aqui. Mas
só o Belo é meu, os outros são do Belo, ele que cuida deles e
divide comida, eu não sou assim. Sempre fui mais sozinho.
O que é a BR-116 para você?
Ela: Uma estrada que é para ser de fluxo rápido, mas que
acaba se tornando um pesadelo devido ao movimento e aos
engarrafamentos.
Ele: Um cantinho. Tem muita paz das pessoas e abrigo da chuva, mas o barulho é chato mesmo.
Há quanto tempo você usa a via?
Ela: Desde que tirei a carteira, há três anos. Foi bem diferente, essa foi a primeira estrada de fluxo mais intenso que
encarei. No início, lembro que achava 80 km/h muita coisa,
hoje é normal.
Ele: Não sei. Mas já tem mais de ano.
Quanto tempo por dia fica nela?
Ela: Em média uma hora e meia, mas cheguei a ficar quase
três horas, quando peguei tranqueira. Agora evito ao máximo
trafegar entre 7h30min e 9h e entre 17h30min e 19h. Só ando
nesses horários quando preciso.
Ele: Mais é na noite. De dia eu fico no centro, ou perto da
rodoviária.
De onde sai e para onde vai?
Ela: Saio de São Leopoldo, vou até a Feevale, em Novo Hamburgo, ou até Porto Alegre para trabalhar. Fazendo uma média
semanal, ando cerca de 50 quilômetros diariamente.
Ele: Nasci em Sapucaia, já tive casa lá, mas já morei na rua
lá e depois vim para São Leopoldo. Um amigo disse que aqui
era melhor, mas não viemos para esse viaduto direto, fomos
no palco do metrô.
O “palco” citado por ele é uma área da Estação São
Leopoldo que tem apenas dois degraus de elevação e é
usada de entrada pelos funcionários do local. Protegida
da chuva pela pista elevada do metrô, nunca está vaga,
sempre serve de lar para algum desabrigado. De fato, é um
palco, menor do que a menor das peças da casa dela, onde
se desenrola uma peça sobre descaso e abandono. Males
que também circulam pela BR-116.
O que deveria ser melhorado na BR-116?
Ela: O fluxo de veículos nos horários de pico, com mais organização ou mais pista. A estrada não é ruim, não tem muito buraco e anda bem nos horários normais, mas está mais largada
de uns tempos para cá.
Ele: Não sei. Era bom ter um fogãozinho. Na real, só não gosto
de pessoas que passam aqui por baixo e ficam com medo de
mim. Não sou ladrão nem nada.
Ela
Qual o acontecimento mais inusitado que já viu na via?
Ela: Uma vez estava engarrafado no viaduto e havia um carro
voltando de ré pelo acostamento. Muita imprudência, algo que
não vi em nenhum outro local.
Ele: Uma briga de skatistas com uma torcida organizada. Foi
uma barbaridade, ver uma gurizada da minha idade, mas com
condição, se matando. E tem o perigo dos carros ainda, por
pouco não atropelaram uns.
O que mais te preocupa ao estar na BR-116?
Ela: Os motoqueiros e pedestres que atravessam. E os engarrafamentos repentinos, com paradas bruscas.
Ele: Não tenho medo de ser abordado pelos homens (policiais), sou homem também. Tenho medo é de dormir e ser
pego de surpresa. Tem que dormir de olho aberto, mas aqui
é mais tranquilo que o metrô. Se passa menos pessoa, corro
menos risco.
Costuma ver muitos acidentes?
Ela: Não muitos. Mas já vi carro bater em caminhão, carro
bater em carro e um carro pegando fogo sozinho.
Ele: Vi alguns, mas é mais é buzinaço e pneu cantando, só,
mas isso é normal. Acho que posso dizer que eu sou um acidente da BR-116. Não era para eu estar aqui, né?
Não se sabe como ele chegou até a BR-116, assim como não
se sabe como ela decidiu fazer duas faculdades e trabalhar.
Essas questões, ainda que de cenários antagônicos, são
muito semelhantes na origem. Surgem, não são escolhidas.
São moldadas mais pelas negativas do que pelos desejos
e aspirações. Eu poderia exigir uma explicação, mas ela
surgiria mutilada, obscura ou límpida demais. Voltar os
olhos para um passado distante ou conturbado é como
tentar iluminar uma paisagem imersa na neblina com uma
lanterna. Não se vê muito mais do que fumaça.
É uma via limpa ou não?
Ela: A principal poluição é a fumaceira dos carros e fábricas.
No geral é limpa. É mais poluída nos acostamentos, nos canteiros. Cai muita sujeira de outdoor. Há também mau cheiro
de caminhões, normalmente em péssimas condições. Esses caminhões carregam entulho que cai na estrada, então procuro
ficar longe deles.
Ele: Eu mesmo tento manter limpa a minha área, ninguém
gosta de morar na sujeira. Mas cai muito lixo dos carros. Cai
não, os caras jogam mesmo, não estão nem aí. Sei que eu
moro na rua, mas é minha casa. Eu não jogo lixo na casa de
ninguém.
O que muda quando chove e você está na BR?
Ela: Fico muito mais atenta, a visibilidade piora e eu diminuo a velocidade. Dependendo da intensidade, forma poças
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Ele
nas faixas periféricas. Aliás, tem muitas poças na parte de
Esteio, até a Unisinos.
Ele: O melhor daqui é isso, não chove, tenho um teto, bem
grosso até. O bom é que posso caminhar aqui sem me molhar também, mas sair já fica complicado. Me sinto meio preso
quando chove, mas é bom estar seco.
Durante a noite, a BR muda muito?
Quando o assunto é ajuda, ambos se apoiam de alguma forma
na fé. Quando o assunto é obras, quem tem algo para falar é
quem vai passar pelos futuros viadutos, não quem adormece
diariamente sob os blocos de concreto de um que já existe.
Quando as perguntas recorrem mais ao imaginário do que à
realidade, as mentes viajam em velocidades semelhantes.
Quando acredita que vai deixar de usar a BR-116?
Ela: Não vislumbro este dia. Enquanto morar no Rio Grande do
Sul, tenho que usar, mas acredito que vou morar no exterior
dentro de alguns anos.
Ele: Não tem como dizer. Gosto daqui e não tenho outro lugar.
Só se eu mudar de cidade.
Ela: Depois das 20h é mais tranquilo de andar, mas muitos
trechos não têm iluminação, Acredito que vai mudar em vista
das câmeras que serão instaladas. Fico mais tensa em relação
a assaltos em sinaleiras. No trecho de Sapucaia, no pórtico,
principalmente.
Ele: Passa menos carro, tem menos barulho, e isso engana,
mas tem que ficar ligado igual. Tudo é menos, só aumenta o
frio, tem muito vento aqui.
O que pensa sobre a outra pessoa que entrevistei?
Como é a iluminação da BR?
Ela: Deve ser bem complicada. Qualquer pessoa que mora na
rua vai estar numa situação ruim, mas ele ainda vai ter o negócio da poluição. Ainda tem muita gente voltando da balada,
que dirige bêbada e pode atropelar até quem toma cuidado.
Ele: Comer, beber e dormir todo mundo faz. Não deve ser
muito diferente da minha. Também tenho uns parceiros, uns
trocados e uns problemas, sabe? Rico e pobre é assim, não
adianta. É ser humano. Mas deve ser uma vida bacana.
Ela: É boa, mas no trecho do Zoológico é muito escura. Na
chegada de Esteio também.
Ele: Onde eu fico até que é ruim, mas gosto assim. Eu vejo
eles e ninguém me vê.
Já precisou de ajuda em alguma ocasião na BR?
Ela: Não. Graças a Deus.
Ele: A gente sempre precisa de ajuda, né? De fé também. Fazem muita barbaridade com quem mora na rua.
Eu já escapei de ser esfaqueado, gritei por socorro e
algumas pessoas gritaram também. Mas na rua tu não
pode precisar da ajuda de ninguém. Aquilo foi sorte,
por acaso. Ninguém vai se meter em nada com morador
de rua no meio.
Ela: Só pode estar com grandes dificuldades, morar na faixa
deve ser pior do que nas ruas da cidade.
Ele: Deve ser legal ter um carro e tal, eu queria um. Acho que
dá dignidade e tu ainda te diverte. Mas não ia correr tanto eu
acho, não sei. Trabalhar também, se ela gosta e é feliz. Estudar tanto que não deve ser bom.
Como deve ser a rotina dessa pessoa?
Se pudesse fazer uma pergunta para a outra pessoa, qual
seria?
Ela: Como ela foi parar ali?
Ele: Sei lá. Se ela já me viu aqui?
E o policiamento na BR?
Ela: Não há, só em momentos de acidente.
Ele: É difícil virem aqui, mas não devo nada. Podem vir.
Se sentir fome, consegue comida na BR?
Ela: Sim, em posto de gasolina, tem vários postos. Ou no Bourbon de Canoas.
Ele: Tem uma moradora daqui de perto que seguido me dá
alguma coisa. Ela me ajuda, mas não é sempre. Às vezes peço
nos restaurantes aqui perto, outras fico no McDonald’s, mas
não é bom. Prefiro ganhar dinheiro e comprar comida do que
ganhar comida direto.
Costuma ver muitas obras na BR?
Ela: Ultimamente não, mas há uns anos, estavam recapando.
Agora acredito que estão focando o viaduto da Unisinos e perto da Feevale. O da Feevale está demorando demais, mas o da
Unisinos até que está bem rápido.
Ele: Não. Aqui nunca fizeram nada.
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IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“M
eu principal receio foi
como expor de maneira
compreensível minha proposta
ao leitor. Não é uma matéria
convencional, por isso a opção de
lidar com um jornalismo mais literário.
Abordei cada um deles de diferentes
maneiras, mas ambos me trataram
da mesma forma, foram abertos e se
mostraram interessados em contar o
que pensam sobre a rodovia. Creio que
o anonimato dos envolvidos contribuiu
para que a história fosse narrada de
maneira direta e mais focada apenas
no convívio com a rua em si.”
ANDRÉ ÁVILA
“Sei que eu moro na rua,
mas é minha casa. Eu
não jogo lixo na casa de
ninguém”
Consertam-se pneus
Estabelecimentos
agregam histórias que
misturam asfalto e
borracha à BR-116
TEXTO DE FELIPE NABINGER E RICARDO SANTOS
FOTOS DE LISIANE AGUIAR
S
er um dos maiores inventos criados pelo homem
não coloca a roda como item de colecionador
e sim como um objeto constantemente em dia
com as necessidades culturais e tecnológicas
das diversas sociedades. Desde as origens, atribuídas
às civilizações suméria e egípcia, na Idade Antiga, às
eras seguintes, o deslizar sob esse tão famoso círculo
propicia menos esforços, mais celeridade e a sucessão de criações que revolucionam as práticas humanas de modo intenso.
Artesanato, tecelagem, carro de boi, bicicleta,
relógio, máquinas à vapor e trem são alguns itens
cujo desenvolvimento está ligado à roda. Mas o veículo automotor é talvez o primeiro que vem à mente, pela disponibilidade em número de unidades e o
acesso a praticamente todos os bolsos. Essa liberdade para atingir distâncias movimenta uma indústria
variada que abrange a siderúrgica, têxtil, química,
eletrônica, publicitária, e, claro, a pneumática. Todo
o aparato automobilístico gera cifras astronômicas,
porém, nada seguiria adiante, literalmente, de pneus
vazios! Os motores que locomovem cidadãos e riquezas não iriam longe, portanto, sem as borracharias.
A BR-116, no trajeto de Porto Alegre a Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, pode ser considerada uma síntese do exposto. Detentor do maior tráfego do Estado e
o quarto em nível nacional, o trecho metropolitano apresenta o índice de aproximadamente 1,5 milhões de veículos por mês ou 120 mil por dia, segundo dados de 2008
da Polícia Rodoviária Federal. Afinal, da capital gaúcha
ao seu destino final constam mais quatro municípios que,
junto a outras 28 cidades da região, respondem por 4
milhões de pessoas. Trânsito é o que não falta.
Viajar desde Porto Alegre, passando por Canoas, Sapucaia, Esteio, São Leopoldo e Novo Hamburgo, revela a
conurbação que mais se assemelha a um só logradouro,
ou uma sucessão de vários com poucos espaços de densidade populacional e comercial. Todo o aparato de suporte mercadológico encontra-se às margens da rodovia nas
ruas laterais, além de algumas residências.
Apesar da importância das borracharias, não significa
que os melhores pontos de venda do trajeto, tanto em
localização quanto em construção vistosa, sejam delas.
Lembrados basicamente quando o sinal de pisca-alerta
e o acostamento fazem companhia
aos motoristas, os borracheiros ocupam espaços em forte disputa com
a especulação imobiliária, fato que
nem os 100 quilômetros de ida e volta conseguem amenizar. Se a quebra
de braço fosse literal, a turma que
cuida dos calibradores de pneus ficaria com os melhores locais, mas
na economia nem sempre é a imprescindibilidade que voga. Ainda
mais ante a diversidade de ramos
que margeiam uma pista de rolagem
com as características da BR-116.
A alma do negócio
É verdade que erros de Português são recorrentes no universo das
borracharias, mas nunca fizeram tão
bem como para Marcos e Luiz Collor.
A placa “Borraxaria” é familiar para
os condutores da BR-116 que passam
por Sapucaia do Sul. E o letreiro não
está em carcaças de pneus ou madeiras, mas num vistoso fundo branco de letras azuis bem escritas.
Desde 1994 em funcionamento,
sem atender veículos de grande
porte, reclamações, até mesmo por
e-mail, não calibram uma eventual alteração do “erro”. Sagazes, os
proprietários da borracharia próxi-
ma ao Zoológico têm até pasta com
recortes da mídia espontânea que
a brincadeira proporciona. Como se
fossem poucas as curiosidades, eles
contam com dois carros em serviço
de táxi... com “x”.
o grande E o pequeno
Juarez Melo, no bairro Campina,
em endereço limítrofe com o bairro
Scharlau, em São Leopoldo, é a antítese da maioria dos borracheiros,
que preferem trabalhar com veículos de pequeno e médio porte. “O
que faz o pesado faz o leve, o que
faz o grande faz o pequeno, o pessoal já não quer mais fazer força”,
afirma enquanto troca os pneus de
uma carreta. Sem escolher o tipo de
veículo, não é à toa que Melo construiu junto com o pai a estrutura de
um comércio que pelo nome deve
acalmar muita gente à deriva – Borracharia do Salvador! Salvador era o
seu pai, falecido recentemente.
Hoje, a vistosa oficina está envolta no barulho da maré de máquinas com a pressa contemporânea
de chegar, própria da rodovia. Para
não perder clientes, o local conta
com teleatendimento, mas, por
questões de (in)segurança, subme-
te a antiga Blazer e o saudoso Fusca
apenas para a clientela assídua.
Local e dono sem nomeS
No bairro Rio Branco, em Canoas,
há 20 anos no ramo das marretas e
macacos hidráulicos – e há sete neste
local –, um borracheiro sorve seu chimarrão em uma tarde fria. Tímido,
assustado, ele é o contraponto do
cachorro que, alegre, salta sobre os
clientes. O profissional aceita contar
sua história, porém não quer dizer
seu nome completo. Júnior, como
pede para ser chamado, personifica
o receio e a desconfiança que parece
ser regra nos profissionais do ramo.
Na empresa de pequeno porte,
ele trabalha com venda e reparos de
câmaras de ar e pneus, quase sempre
usados: “Aqui é um negocinho pequeno, só pra mim, têm muitos que
são maiores. Vendem escapamentos,
material para suspensão... A diferença entre a minha e essas outras é o
caixa, o dinheiro. Estar na BR facilita, mas depende do ponto”.
A placa que indica seu estabelecimento diz apenas “Borracharia” e
traz uma seta apontando para a pequena oficina. Assim como ele, sem
nome. “Graças a Deus, tenho o nome
O GIRO DOS
PNEUS SE
CONFUNDE COM
O MOVIMENTO
EVOLUTIVO: OS
DOIS CADA VEZ
MAIS VELOZES E
DESGASTANTES
limpo. Mas a gente ouve tanta coisa
que fica com medo”, conclui ao voltar para seu chimarrão.
Calendários e Sex Appeal
Apesar da correria, houve momento para descontrair e sanar
dúvidas do imaginário popular atribuído aos borracheiros. Do riso,
inevitável para Juarez e Luiz, logo
veio a negativa de um estereótipo
do borracheiro: não há uma provocante modelo sequer em calendários nas paredes. Juarez garante
que as marcas de pneus ainda produzem os impressos com fotos de
mulheres nuas, mas a coisa mudou
devido à alteração de tática publicitária dos donos dos recintos. Borracharias são agora um “ambiente
familiar”. Quanto ao fetichismo em
torno da categoria, garante que
tanto ele quanto a rapaziada com
quem trabalha não recebem propostas indecentes das clientes.
No caso do Luiz, além de não
constar qualquer garota sexy em
versão impressa, vê-se um violão
pendurado e, ao lado, uma sanfona!
A metrópole exige discrição nessas
paredes onde a música dá lugar à
frenética sinfonia dos carros.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“C
omo nenhum de nós, repórteres, tem
carro, a familiaridade com borracharias era
quase nula. Assim, pudemos observar com olhos
totalmente desprovidos de preconceitos esse tipo de
estabelecimento. O problema foi o tempo. Do mesmo
modo que os pneus rodam pela BR-116, os ponteiros
dos nossos relógios pareciam não se sincronizar.
Problemas com trabalho, estudos e até a forte gripe
de um dos componentes do grupo tiveram que ser
superados. Impressionou a forma tímida e até mesmo
desconfiada com que fomos recebidos em algumas
visitas. O estereótipo do borracheiro bonachão, com
fotos de mulheres nuas nas paredes, ruiu ante nossos
olhos. A fotógrafa Lisiane, única motorizada, teve
uma curiosa relação com a pauta: calibrou os pneus
de seu carro com nitrogênio na “Borraxaria”. Por fim,
conseguimos cases que valem ouro, pois encontrar
borracharias e, principalmente, profissionais que
aceitassem falar com a reportagem foi mais difícil que
o esperado! A BR-116, diferente do automóvel da Lisi,
anda com pneus murchos.“
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 65
PREPARADAS PARA
ARRASAR NA
PISTA, AS AMIGAS
LUCIANA E VERA
LÚCIA ESPERAM A
FESTA COMEÇAR
ATÉ A MEIA-NOITE,
ELAS NÃO PAGAM
TEXTO DE GABRIELA DA SILVA E PATRÍCIA CARVALHO | FOTOS DE MAURÍCIO WOLF
S
exta-feira à noite é dia de
casa cheia no clube de dança
Gigante do Vale, às margens
da BR-116, em São Leopoldo.
Falta meia hora para a festa começar e os músicos fazem uma última
passagem de som no palco secundário. A pista de madeira, marcada por
sinais de bailados e rodopios, espera
por novos passos.
Do lado de fora, já há dezenas de pessoas na fila. Iluminadas
pelos holofotes voltados para o
nome da casa, as amigas Luciana
Marcante, 29 anos, e Vera Lúcia
Flores, 24, também esperam sua
vez. Há poucas horas, as duas estavam cada uma em sua casa, em
Portão, sem grandes planos para
a noite. “Liguei pra ela e disse:
bota uma roupa que eu estou subindo”, conta Vera.
Depois de encontrar com um
conhecido no caminho, as amigas
acabaram indo para o Gigante do
Vale. “Sempre ficamos sozinhas,
viemos para curtir uma festa mesmo, beber, dançar”, conta Vera.
Entusiasmada com a música que
está por vir, ela já começa a cantar e ensaiar uns passos para arrasar na pista. Timidamente, Luciana
apenas comenta: “O pessoal é bem
festeiro por aqui”.
O público começa a chegar aos
poucos, entrando quase em coreografia, à procura daquilo que todos foram ali encontrar: diversão.
E pode entrar todo mundo. O jeito de vestir e o tamanho da conta
bancária é o que menos importa.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 67
Não há pré-requisito para
entrar na festa do clube de
dança Gigante do Vale, EM
sÃO LEOPOLDO. basta querer
diversão A NOITE INTEIRA
Alguns começam a se ajeitar às mesas, cadeiras
e camarotes ao redor do salão. O centro fica para a
penumbra que acoberta os casais dançarinos. Mal começou a música, e uma jovem loira de cabelos até
a cintura já é conduzida com habilidade por seu par,
deixando o restante do público só a assistir.
O corredor lateral é iluminado por lâmpadas fluorescentes que indicam o caminho para a copa. É ali
que os encontros cara a cara acontecem. Um grupo de
amigas chega e uma a uma vão acendendo seus cigarros. São surpreendidas por um já empolgado dançarino, querendo um par para bailar. Diante da recusa
das moças, e segue o compasso com sua companheira
imaginária, sem perder o ritmo.
Próximo ao palco, o estudante de Direito Mateus da
Silva, 21 anos, de Novo Hamburgo, vai entrando no clima. Junto com os amigos e com o irmão, o estudante
de Engenharia Química Cássio da Silva, de 17, Mateus
já se sente em casa: “Conheço todo mundo. Aqui a
festa é certa”.
Com o gel bem aplicado no cabelo, para garantir
os topetes armados até o fim da noite, os dois irmãos
parecem ter combinado no modelito: camiseta colorida, calça jeans e tênis novinho. Visual caprichado.
è
UM TROUXE O
OUTRO, E AGORA
OS IRMÃOS
CÁSSIO E MATEUS
SÃO PRESENÇAS
CONFIRMADAS
NAS FESTAS DE
SEXTA-FEIRA
Afinal, segundo Mateus, a paquera
pode rolar e é sempre bom causar
uma ótima impressão.
Para ficar na história
Um senhor de cabelos brancos
bem penteados, camisa engomada
e jeito manso de falar, espera por
novos clientes sentado em uma das
mesas à beira do salão. O funcionário público aposentado Henrique
Sales Fagundes tem 74 anos, 32 deles trabalhando como fotógrafo do
Gigante do Vale.
Presença confirmada nas sextasfeiras, sábados e domingos, ele faz
o retrato em um final de semana
e entrega no seguinte. Todo o ma-
terial produzido com sua nova câmera digital é exposto em álbuns
que carrega para lá e para cá. As
imagens revelam casais, amigos e
também festeiros solitários. Todos
são só sorrisos.
“É bom para o bolso e bom para
a saúde”, comemora o morador de
Porto Alegre. Por isso, pegar a estrada todos os finais de semana a
caminho da festa não é problema
nenhum, mesmo que o número de
“modelos” tenha diminuído nos últimos anos, em função das câmeras
no celular, considera Fagundes.
Só quem não acha esse passatempo tão bom assim é a sua esposa,
Idalva. O aposentado conta que ela
não gosta muito do hobby que lhe
rende uns extras. “Fazer o quê?”
O dono da festa
NALDO GARANTE QUE COLOCA
EM PRIMEIRO LUGAR O
ATENDIMENTO AO PÚBLICO
A festa no Gigante do Vale só
começa com a autorização de Reginaldo Vitorino da Rosa ou Naldo,
como é chamado carinhosa e respeitosamente pelos funcionários e
frequentadores da casa noturna.
Aos 55 anos, ele chega poucos
minutos antes do baile começar
e logo é cercado por seguranças.
Antes de seguir para o escritório,
Naldo ainda recebe o pedido de
emprego de duas moças. Ambas
gostariam de uma oportunidade
para trabalhar na copa. O administrador pensa por alguns minutos,
avalia a situação e, no seu estilo
boa praça, aceita que as meninas
façam um teste naquela mesma
noite. Em seguida, as duas já estão ajudando a ajeitar garrafas nos
refrigeradores e limpando o balcão
à espera do público.
Há 23 anos, Naldo administra o
clube de dança junto com o sogro,
Dezidério Luiz Brusda, e o cunhado, Luiz Carlos Brusda. A posição
de gerente veio a convite do pai de
sua esposa, um dos fundadores do
local. Seu escritório fica instalado
em uma modesta sala aos fundos
do salão, praticamente escondido
atrás do palco principal. É dali, em
meio a papéis e em frente a uma
fotografia com a vista aérea do Gigante do Vale, devidamente emoldurada, que ele toma as decisões e
faz os negócios necessários para o
andamento do clube.
Com os três no comando, a casa
está sempre lotada, de sexta-feira
a domingo. “Fazemos reformas
para acompanhar o que o público gosta”, afirma Naldo. Diz que
o trabalho de sua equipe e o desempenho das bandas que se apresentam contribuíram para que o
local tenha chegado ao ponto que
chegou. “Aqui vem desde o grupo
Fama até o Tchê Barbaridade. Mas
os que mais lotam são San Marino,
Toque de Mágica e Passarela”, comenta Naldo.
Como bom empresário, ele acredita que a fórmula para fidelização
68 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
dos seus clientes é andar junto com
eles, acompanhar suas modificações, seus gostos, comportamentos, ir se modernizando e atendendo a todos como merecem.
Enquanto Naldo fica na retaguarda, atento à movimentação,
a festa segue no clube, cada vez
mais cheio. O público não para de
chegar ao longo da madrugada, e a
banda leva todos para o centro do
salão. Alguns casais fazem da pista
o seu palco. Com técnica, habilidade e coreografias que parecem
ter sido ensaiadas em casa. Dão
um show à parte.
Mas não ter par e não saber
dançar não significa estar de fora.
Dança-se de qualquer jeito, vale
mulher com mulher, amigo com
amigo e até sozinho. Só não pode
ficar parado. O importante mesmo
é se deixar levar pela música e
curtir a festa até o fim.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“D
ecidimos escrever sobre festas às margens da BR-116
e logo entramos em contato com as duas principais
casas noturnas de São Leopoldo instaladas próximo à
rodovia. A primeira nos disse não, mas a segunda aceitou e
nos recebeu muito bem. Era sexta-feira, chegamos ao clube
Gigante do Vale. Logo percebemos que o principal desafio
que encararíamos ao preparar esta reportagem seria deixar os
preconceitos de lado. Nem nós, repórteres, e nem o fotógrafo
que nos acompanhou, conhecíamos o lugar. Tínhamos uma
imagem pré-concebida do local, construída apenas em cima de
comentários alheios. Algumas expectativas foram confirmadas
e tantas outras derrubadas. Nos surpreendemos com pessoas
completamente diferentes de nós. De certa forma, conhecemos
um outro mundo, onde valores, sonhos, vidas são tão
diferentes e tão iguais às nossas. A grande lição que tivemos
ao escrever sobre um lugar que não conhecíamos foi a de
que ser ‘filho da pauta’ é absolutamente sem graça. Se
tivéssemos seguido exatamente aquilo que nos propomos
logo no início do semestre, não teríamos encontrado os
personagens fantásticos que encontramos e também não
teríamos nos divertido, mesmo concentradas na coleta de
informações, como nos divertimos.”
HÁ 32 ANOS FAGUNDES
REGISTRA OS MELHORES
MOMENTOS DA FESTA
ACEITA UMa PICANHA?
A CHURRASCARIA SAPATÃO
EXISTE HÁ MAIS DE 50 ANOS,
MAS A ORIGEM DE SEU NOME
É UM MISTÉRIO
TEXTO DE LUCIANO NUNES
FOTOS DE BRUNO BITTENCOURT
M
al o carro estaciona e um homem já vai em
direção aos clientes para recepcioná-los. Em
dias de chuva, o rapaz utiliza um enorme guarda-sol para conduzir os frequentadores até um
lugar coberto. Dali até a porta de entrada, são necessários apenas 20 passos. Percorrida a distância, os clientes
encontram-se dentro da Churrascaria Sapatão.
O restaurante existe há mais de 50 anos, sendo que há
sete foi comprado por três novos sócios: Atacir Ferreira,
Rosimeri Ongaratto e Amarildo Mello. Eles não sabem exatamente a origem do nome Sapatão, mas Amarildo acredita que o fato da região ser forte na indústria calçadista
possa ter alguma relação. A churrascaria está localizada
no quilômetro 234 da BR-116. Fica ao lado de um movimentado posto de gasolina, que possui loja de conveniência e até uma barbearia.
Quando se entra na Sapatão, o espaço interno surpreende. Por fora não parece, mas o restaurante pode acomodar até 330 pessoas. Com volume baixo, uma música
alegra o ambiente em alguns momentos. Pelas caixas de
som, ouve-se desde temas tradicionalistas até musicas
sertanejas. Em dias de semana, durante o almoço, as três
televisões espalhadas pelo local ficam passando noticiários locais e esportivos.
Existe uma divisão de lugares dentro da churrascaria,
o que facilita o atendimento. De preferência, clientes que
escolhem se servir somente do bufê se acomodam de um
lado, enquanto os que escolhem espeto corrido sentam-se
em outro lugar. Segundo o garçom Luciano Ongaratto, graças a esse estratagema, seus colegas não precisam ficar
caminhando muito pelo salão e também diminui o risco de
servir carnes frias.
O almoço é servido diariamente a partir das 11h15min,
porém o movimento começa mesmo pelo meio dia. O almoço segue até às 15h. De noite, a janta vai das 19h30min
às 23h30min.
Os garçons e demais funcionários preferem comer
antes de servir a comida. “É melhor assim, senão a gente acaba servindo a carne de olho nos espetos e nos pratos dos clientes, com fome não dá para trabalhar”, diz
Ongaratto. Todos os dias, os funcionários comem chur-
è
rasco. “Hoje fiz um franguinho para
mim, é bom dar uma variada, mas
não me importo em comer churrasco todos os dias.”
Ongaratto é um dos garçons mais
antigos da Sapatão. Está há seis anos
na empresa. Ele responde pela área
do bufê e se alegra quando a casa está
lotada. “É muito bom poder interagir
com as pessoas”, diz.
O pai e a mãe de Ongaratto trabalhavam em uma churrascaria quando
ele era pequeno. “A profissão está no
meu sangue. Meu pai era assador e
minha mãe servia, enquanto isso eu e
meu irmão ficávamos dormindo no escritório”, lembra. Depois, seu pai comprou um restaurante, e ele e o irmão
começaram a servir desde cedo. “Em
duas oportunidades trabalhei em São
Paulo, como garçom também. Voltei
ao Rio Grande do Sul e tentei trabalhar
com meu sogro em uma mercearia,
mas não deu certo. Daí comecei aqui
na Sapatão, onde estou até hoje.”
Ongaratto trabalha o dia inteiro na
churrascaria, pois precisa juntar dinheiro para arrumar seu carro. Folga
apenas às segundas-feiras, dia que a
churrascaria não abre. O garçom gosta muito de conversar e fazer brincadeiras com os clientes. “Ainda ontem
havia um corintiano aqui. Ele começou a pegar no meu pé por causa do
Grêmio. Depois eu lembrei que eles
não possuem nem mesmo um estádio
próprio”, recorda, dando risada.
NOS Bastidores
Nos bastidores, assim como durante o serviço, os garçons demonstram
muito bom humor, entre eles e também com os clientes. Internamente,
piadas, gozações e apelidos fazem
parte do dia a dia. Uns revelam os
apelidos dos outros. Luciano Ongaratto é conhecido como NH, pois, segundo os colegas, ele, assim como o
jornal NH, sempre tem informações
para dividir com os amigos. Só que as
dele, dizem, na maioria das vezes são
irrelevantes.
Ongaratto prefere se apresentar de
outra maneira: “Pode colocar aí que
estou solteiro, sou gremista e procuro
uma namorada de 18 a 25 anos, de preferência morena, e, se não for abusar,
que a mãe dela já esteja morta. Odeio
a ideia de ter uma sogra”, brinca.
Alexssandro da Silva Pinheiro
também é um dos garçons mais antigos, mas não possui apelido, como
Adriano Fecco. Adair Vieira é o Chocolote. Isaias dos Santos tem o apelido de Paulista. Eloir Jesus da Silva
é o Mixaria. A lista continua com Eliseu Sampaio dos Santos, conhecido
como Tatu; Joel Oliveiro, chamado de
Mostarda; e Erasmo Isaias de Senna,
conhecido como Ligeirinho. Os dois
assadores são Milton Graf e Arsenio
Renner. O apelido de Arsenio é muito
engraçado, mas impublicável.
O resultado de tanta irreverência
por parte dos atendentes reflete-se
72 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
O RESTAURANTE
ACOMODA ATÉ
330 PESSOAS E
OFERECE, ALÉM
DA COMIDA, O
BOM HUMOR
DOS GARÇONS
diretamente nos clientes. Para a frequentadora Vera Lúcia da Silva, que
trabalha perto do restaurante e vai na
Sapatão diariamente há mais de cinco anos, o atendimento é fantástico.
“Adoro a comida e o atendimento.
Infelizmente não posso mais almoçar
com toda a família em dias de semana, e o clima aqui, de uma certa
maneira, acaba preenchendo este
vazio para mim. O cardápio variado e
o tempero único também ajudam na
escolha da churrascaria”, elogia.
Cabe a cada garçom, se necessário, salgar a carne e recolocá–la no
fogo. O chão escorregadio, em frente
da churrasqueira, já proporcionou cenas engraçadas. “Uma vez um garçom
caiu na frente da churrasqueira. Eu
não sabia o que fazer, se ria ou ajudava. O tombo foi bonito de ver. Daí fui
ajudar e não é que eu acabei caindo
também! Por sorte, ninguém se machucou e logo voltamos a trabalhar”,
lembra Ongaratto.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 73
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“M
uitas vezes, ao pararmos para comer em um lugar,
pensamos na agilidade do atendimento. Raramente
percebemos a importância do árduo trabalho de pessoas que
se esforçam muito para oferecer, além de uma boa comida,
um atendimento diferenciado. No dia em que observei a
Churrascaria Sapatão, o empenho por parte dos garçons em
servir bem os clientes era notório. Enquanto havia clientes
dentro do salão, eles se esforçavam muito para satisfazê-los
da melhor maneira. O entrosamento entre todos os setores
do restaurante é fundamental. Presenciei o serviço deles
por quase seis horas. Mesmo sendo um lugar sério, o clima
muito descontraído entre os funcionários acaba ajudando
no atendimento. Eu me senti muito a vontade no lugar,
todos me trataram muito bem. Por estar com um fotógrafo
durante um determinado tempo, era engraçado ver os garçons
fazendo pose com espetos de carnes nas mãos. A experiência
certamente foi muito válida, pois valeu para mostrar os
bastidores de um grande restaurante.”
ATENÇÃO
aNDRÉ áVILA
è
De dentro da cab
76 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
bine
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 77
Para quem atravessa O PAÍS
acompanhado apenas por lembranças,
a vida na estrada é muito mais que
passagem – é construção
TEXTO DE Daniela Fanti e Lílian Stein | FOTOS DE RAMIRO FURQUIM
“Esse é o meu cantinho.
É a minha casa.”
É
recomendável tirar os sapatos para entrar. O carpete
vermelho mantém a mesma
aparência de quando passou
a revestir o espaço de 2,10m por
1,70m. Os bancos, de estofado preto confortável, transformam-se em
cama tão logo seja preciso descansar durante mais uma travessia pela
BR-116. À direita, dependurado no
para-brisa, um apanhado de amuletos: fitas do Senhor do Bonfim, pés
de coelho, um escapulário. Crenças
de quem vê a vida passar pelo asfalto. Ao centro, a foto de uma mulher
de 28 anos, abraçada a uma menina
de pouco mais de quatro, reacende o
desejo e a espera pelo retorno. Tudo
é diferente para quem sente a vida
passar de dentro da cabine.
O sol quente de um típico domingo de outono ilumina a carroceria
do caminhão da empresa de transportes de Garibaldi. Perto das 13h,
mala feita, chega a hora de partir. O
“cebolão”, como é chamada a carreta específica para o transporte de
cimento, está vazio, mas a ida até
o Paraná vai garantir, já no dia se-
guinte, a volta com o veículo completamente carregado – mais de 31
toneladas da matéria-prima estarão
sob responsabilidade do motorista. A
previsão é pegar a BR-116 em Caxias
do Sul, seguindo pelo caminho que
leva a Vacaria, na divisa com Santa
Catarina. A chegada a Curitiba ainda
no domingo à noite assegura a volta
para casa na segunda-feira. Ao longe, o horizonte escuro, prenúncio de
forte temporal, não parece assustar:
“Já passei por coisa muito pior.”
É diferente a vida de quem vê
a BR-116 de dentro da cabine. Luiz
Aurélio Chesini dirigiu um caminhão pela primeira vez aos 16 anos.
78 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
A curiosidade era aguçada pelo avô,
que havia anos embarcava em longas
viagens pelas estradas brasileiras. O
neto, aos 18, logo depois de conquistar a licença para dirigir, começou a
prestar serviços de entrega.
A cabine que o leva a tantos lugares pelo Brasil é a mesma que guarda
uma imensidão de histórias. As lembranças são capazes de transformar
o semblante do motorista com a mesma rapidez com que o cenário vai
mudando. Enquanto atravessa serra,
campo e planície, tal qual um baú de
histórias, ele relembra as diversas fases pelas quais passou durante os 20
anos dedicados à estrada.
ESTRADA SEM LIMITES
Antes mesmo de qualquer pergunta, despeja algumas de suas piores
lembranças: “Já estive em meio a tiroteio, soube de amigos que caíram
em golpe de mães que usavam as filhas, prostitutas menores de idade,
como isca para denunciar e prender
caminhoneiros. Fiquei dias ilhado pela
chuva, sem ter o que comer, precisei
cumprir prazos que me obrigavam a
colocar minha vida em risco.”
Com a mulher e a filha recém-nascida, de apenas 20 dias, Luiz presenciou um assalto a um supermercado
em uma favela de São Paulo. O carregamento de leite sob sua responsabilidade chegava ao destino no momento
em que o estabelecimento era saqueado. “Nesses casos, a sensação de
impotência é gigante. Simplesmente
não havia o que fazer”, recorda. “Em
muitas situações nós simplesmente
não temos opção.” A frase serve como
explicação para o restante do balaio
de más recordações: Luiz presenciou
a prisão de um conhecido que, em um
posto de gasolina, foi abordado por
uma mulher que oferecia a filha me-
POR INFLUÊNCIA
DO AVÔ, CHESINI
TORNOU-SE
CAMINHONEIRO
AOS 18 ANOS
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 79
80 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
nor de idade para uma das práticas
mais comuns na vida de muitos dos
que passam meses em longas viagens. O sexo fácil e barato, dentro
da cabine, também é atalho para detrás das grades, tal qual aconteceu
com o amigo do caminhoneiro. “Ele
caiu na conversa. Foi pego com a menina dentro do caminhão. Está preso
até hoje.” Chesini não sabe o que as
mães ganham com essa prática.
Ter recorrido ao rebite também
foi resultado da falta de opção.
“Precisava fazer uma entrega no
prazo”, justifica. As anfetaminas
são uma constante na vida de quem
trabalha com prazos bastante limitados. Estimulantes, se ingeridas
com café garantem que o motorista dirija por horas a fio ignorando
necessidades biológicas, como sono
e fome. “Cheguei a dirigir 13 horas
sem parar para ir ao banheiro e tomar água.” O uso do rebite não é
a única prática ilegal à qual grande
parte dos caminhoneiros se sujeita.
Nos postos de gasolina em que costumam passar a noite, aproveitamse da pouca fiscalização para fazer
uso explícito de drogas mais potentes. Luiz já perdeu a conta de quantas vezes traficantes bateram à sua
porta para oferecer-lhe papelotes
de cocaína: “Nem é preciso sair do
veículo para cair na perdição”.
Outra prática constante dos caminhoneiros nas noites solitárias na
estrada é a parada em boates e casas
noturnas, onde o consumo de drogas
e bebidas alcoólicas é ainda maior.
Depois das festas, seguem viagem
alcoolizados, sob efeito de entorpecentes e, sem tempo para descansar,
extrapolam na velocidade para não
perder prazos e, consequentemente,
o emprego. Luiz afirma estar longe
dessa realidade, mas confidencia,
em meio a um sorriso tímido, que
nos anos em que permaneceu solteiro não conseguiu resistir à tentação.
“Aí eu fiz de tudo”, confessa.
Quem vê a vida passar de dentro
da cabine é obrigado a aceitar as imposições do asfalto. Para Luiz, a primeira delas foi o fim do casamento.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 81
A namorada da época de escola, que
havia se tornado esposa tão logo a
gravidez foi descoberta, não aceitava a constante ausência do marido.
Entre amor e profissão, Luiz optou
pela segunda alternativa. “A gente sofre muito, mas sempre vale a
pena”, diz.
Relembrar os piores momentos de
suas passagens pela estrada faz com
que o caminhoneiro fale por diversas
vezes em sofrimento. O tom melancólico, no entanto, transforma-se
em risada ao avistar um caminhão
vindo em sentido contrário. Enquanto o companheiro buzina e anda em
ziguezague fazendo uma espécie
de cumprimento, Luiz recorre a um
aparelho de rádio que possibilita a
comunicação entre motoristas a distâncias. “E aí, Risadinha? Vais para
onde? Que tu faças ótima viagem,
tudo de bom para ti!”. Ao encerrar
a ligação, explica: “Sabe quando eu
digo que vale a pena? É disso que estou falando.”
Os laços criados no asfalto mostram-se realmente fortes. Os caminhoneiros adotam apelidos entre si e
frequentemente seguem viagem juntos. As histórias de estrada, além de
amizade, são marcadas também por
outros fins e recomeços. “Foi por
causa de uma mulher que conheci na
beira do asfalto que decidi largar de
novo a vida de solteiro. Me apaixonei
pela neta do dono de uma lancheria.
Um dia ela me convidou para ir a um
baile, e acabamos ficando juntos”,
relembra. “Hoje, temos uma filha.
Sempre levo as duas comigo, em uma
foto, na cabine do caminhão. Foram
dois amores que a estrada me deu.”
Luiz Aurélio Chesini simboliza
apenas um dos milhares de caminhos
traçados na BR-116. Sua trajetória é
uma das tantas marcadas – e construídas – no asfalto da maior estrada pavimentada do Brasil. Para quem vive
percorrendo curvas, retas, momentos
e pessoas, cada quilômetro reacende
uma lembrança e cada chegada é
sinônimo de um novo porto seguro.
Coisas de quem sente a vida de dentro da cabine.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“Q
ueríamos uma pauta que nos colocasse
diante de uma situação até então
desconhecida. A escolha do tema “BR-116”
impulsionou o desejo: decidimos partir em
uma viagem de caminhão que nos permitisse
conhecer um pouco mais da rotina de quem
passa grande parte do tempo sobre o asfalto.
No dia 17 de abril, perto das 13h, nos
encontramos com o personagem principal
da tarde. Luiz Aurélio Chesini estava na
sede da empresa de transportes para a qual
trabalha, em Garibaldi. Embarcamos rumo a
uma viagem de pouco mais de três horas, no
trecho entre Garibaldi e Vacaria – cerca de
200 km de BR-116. A dúvida quanto à possível
timidez de Chesini – acostumado à solidão da
cabine – caiu por terra tão logo pegamos a
estrada. Parecíamos grandes amigos. Enquanto
atravessávamos serra e campo, uma porção de
histórias nos mostrava que, muito mais que
perigos da estrada ou rotinas de caminhoneiro,
nossa pauta nos havia colocado em frente
a alguém que construiu a vida a partir de
uma cabine de caminhão. Chesini mostrou
para nós aquilo que, mesmo tão evidente,
fica escondido por detrás do senso comum:
a BR-116 vai muito além do calor do asfalto,
do cinza clichê, do barulho dos carros. Ela é,
antes de tudo, caminho de vida. É caminho de
construção.
Easy Riders GAÚ
Donos de um estilo highway, os Guardiões de Hades
compartilham uma única e adrenalinada paixão: o asfalto
TEXTO DE SIMONE NÚÑEZ REIS
FOTOS DE GUILHERME BARCELOS
CHOS
“(...) a motocicleta entra nas curvas sem esforço,
inclinando-se de modo que nosso peso exerça força sobre
a máquina, seja qual for o ângulo da inclinação (...).
Curvas e mais curvas e mais curvas fechadas, fazendo
com que o mundo inteiro gire, dê piruetas,
se eleve e caia em seguida (...)”
L
embro desse trecho do romance Zen
e a arte de manutenção de motocicletas, escrito por Robert M. Pirsig,
que narra, em estilo poético-literário, a ótica de um escritor-motociclista que
percorreu a América do Norte levando seu
filho na carona.
Assim como Pirsig, que dividiu com o
filho sua paixão pela velocidade sob duas
rodas, no município de Esteio, o casal de
motociclistas Pedro Oliveira dos Santos e
Cléier Salete Cezarino Severo também dividia a mesma paixão e sonhava em criar
um motoclube.
Foi numa noite quente de março de 2004
que o sonho do casal recebeu apoio dos filhos e de
mais cinco amigos motociclistas. Surgia então o Motoclube Guardiões de Hades. Inspirados em roads movies
norte-americanos, como Easy Rider (1969), eles escolheram o nome do grupo, o estilo de roupa e o brasão.
Por fim, um estatuto deu início ao motoclube.
O encontro para criar o clube durou cerca de nove
horas na Taverna de Hades — pub localizado em Esteio.
Os integrantes só saíram de lá para procurar um desenhista profissional que criaria o logotipo para o uniforme do grupo. Mais tarde, os fundadores do Guardiões
de Hades decidiram abrir sua própria sede nos fundos
da residência de Pedro e Cléier, no bairro Santo Inácio,
em Esteio. Em pouco tempo tornou-se um ponto muito
visitado por aficionados por motociclismo.
Quando entrei na sede dos Hades, parecia que eu
estava ouvindo a trilha sonora Born to be wild, de Steppenwolf, principalmente quando visualizei um imenso
painel da marca de motocicletas Harley Davison pendurado na parede.
Jaquet & Mythology
Escolhido para batizar o motoclube, o nome Hades
homenageia o deus mitológico grego de segunda geração – em grego clássico, Άδης; em grego contemporâneo, Hádēs – que é uma espécie de guardião do mundo
inferior dos mortos. Um croqui rascunhado transformou-se no brasão bordado nas jaquetas dos Hades, que
elegeram três símbolos para compô-lo: um cérbero (cão
trícefalo), posicionado sobre o segundo símbolo, um
motor de dois cilindros em forma de “V”, envolvido por
uma chama de fogo, que é o terceiro símbolo e representa a paixão pelas pistas.
Atualmente o motoclube tem 18 integrantes, incluindo pilotos e caronas, com 11 motocicletas e é fi-
liado à Associação dos Motociclistas do Rio Grande do Sul (Amors),
instituição que promove eventos
voltados à conscientização e educação no trânsito. Esse é o caso
da campanha “Zoeira, estou fora”,
evento realizado em várias capitais
brasileiras com o objetivo de reunir
motociclistas para integração saudável e em clima de segurança das
irmandades motociclísticas.
O motoclube organiza ações solidárias como a realizada em 2009 no
Hospital da Criança Santo Antônio
em Porto Alegre, voltada a crianças portadoras de câncer. Na ocasião, os Hades passearam de moto
levando pacientes com bom quadro
clínico como caronas pelo pátio do
hospital, depois de visitarem os leitos de quadros mais agudos.
Numa segunda oportunidade, organizaram um galeto em prol do Asilo
Esperança, de Sapucaia do Sul, onde
arrecadaram a quantia de R$ 2 mil.
Noutra ocasião, em parceria com
o motoclube Tchucos, de Sapucaia
do Sul, apoiaram uma ação natalina
na Vila Palmira, arrecadando brinquedos e alimentos para crianças e
adolescentes carentes.
BR-116 afora
Militar da reserva, Pedro destaca a importância do planejamento
prévio antes de criar um roteiro de
viagem. Frequentemente os Hades
circulam pela BR-116, considerada um portal de belezas naturais a
partir do município de Novo Hamburgo. Nos últimos cinco anos, os
integrantes viajaram ao Rio de
Janeiro, Santa Catarina, Uruguai
e Argentina pilotando suas motocicletas, entrando em contato com
vários motoclubes nacionais e internacionais e conhecendo inúmeros eventos motociclísticos.
Um dos locais de encontro é
a Tenda do Umbu, considerada o
principal ponto mototurístico do
Estado. A tenda fica localizada no
quilômetro 203 da BR-116, no município de Picada Café. “É um point
destinado aos motociclistas em fi-
nais de semana que existe há 46
anos. Ali pessoas de vários municípios, se reúnem para lanchar e
trocar informações sobre o mesmo
assunto: motos”, comenta Pedro.
Segundo os Hades, mototurismo é uma das modalidades exercidas no motociclismo. Ela exige um
certo grau de conhecimento sobre
uso de navegadores GPS, roteiros,
mapas, planejamento financeiro,
pesquisa em sites especializados
sobre mototurismo, manutenção
do veículo, primeiros socorros na
estrada e aplicativos móveis como
os Google Maps e Google Street
View, acessados através de smarthphones.
Sobre o vestuário dos motociclistas, Pedro explica que são confeccionados em materiais como couro ou
cordura — tecido com textura similar
à lona — que, sob forma de calças e
jaquetas, recebem reforços nas articulações e aplicações de fluorescências para visualização noturna.
Pedro destaca que os motociclistas devem ficar atentos ao
adquirir um capacete com a certificação do Instituto Nacional de
Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), que prevê durabilidade de até três anos.
Quando estão vianjando, os Hades consomem alimentos energéticos como chocolates, barrinhas
de cereais, água, chimarrão, que
os deixam mais dispostos e atentos
na estrada. Quanto aos cuidados
com o corpo, não dispensam o uso
de filtro, adesivos analgésicos para
dores musculares e repelentes contra picadas de insetos que entram
por baixo do capacete.
O Hades Egon Marques recorda
de um episódio em que um Hades
foi atingido por um voo rasante de
coruja em plena BR-116. “Foi tão
forte o impacto do pássaro no capacete que poderia ter gerado um
acidente”, recorda. Outro episódio
aconteceu com o próprio Egon. “Um
guaxinim se atravessou na frente
da minha moto e eu tive de parar
até o bicho atravessar a pista.”
Motoqueiros e Motociclistas
Pedro, também conhecido com
Amigão Hades, explica que a expressão
“motoqueiro” é usada para mencionar
maus pilotos que andam em altíssima
velocidade, não usam capacete e conduzem o veículo sem habilitação ou
com licença vencida.
A participação em rachas e arruaças, prática de manobras arriscadas
como aceleraço, zerinho, wheeling
amador — provas de habilidade em que
o piloto ergue a roda traseira —, tiros
de escapamentos, cavalo-de-pau ou andar deitado sobre a moto (aviãozinho),
são o que há de pior quando se trata do
comportamento dos condutores.
Por outro lado, a expressão motociclista designa o piloto que respeita o
código de trânsito, a vida humana, a
vida dos animais e o meio ambiente.
Uma das competições mais importantes é o Iron Button. A tradução
literal da expressão é “bunda de ferro”. A competição surgiu nos Estados
Unidos e virou febre no Brasil, com
motociclistas que percorrem 1.000
84 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
MOTOCICLETAS
OSTENTAM COM
ORGULHO ADESIVO DOS
GUARDIÕES DE HADES
PEGUE CARONA
O motoclube gerencia duas comunidades
na rede social Orkut, ambas lotadas de
recados quando o assunto é modelos de
motocicletas. Respondendo os internautas,
os integrantes dos Guardiões de Hades
dizem preferir as de estilo Custom,
também conhecidas como Estradeiras
Esportivas, ou Big Traillers, das marcas
Kasinski, Suzuki, Yamaha e Honda, que
chegam a atingir potências de 250 a 1.000
cilindradas. Interessados em contatar o
motoclube podem fazê-lo através do e-mail
[email protected] ou pelos
telefones (51) 8144- 8462 ou (51) 3459-4175.
milhas em 24 horas. Os Guardiões de
Hades participaram da prova em 2010,
sem atingir pontuação suficiente segundo as normas da Iron Butt Association (IBA). Tentaram percorrer seis
estados pela BR-116, mas um acidente nas imediações da Rodovia Ayrton
Senna impediu que continuassem.
Cut Interview
Ao desligar o gravador, recebo um
convite para ir até o quilômetro 230 da
BR-116 e lanchar na Tenda do Umbu. O
local me surpreendeu, e naquele instante novamente recordei Pirsig:
“(...) Esta estrada continua descendo, coleante, através do desfiladeiro.
O sol matinal matiza a paisagem ao
nosso redor. A motocicleta zune, através do ar frio e dos pinheiros da montanha (...). Diminuímos a velocidade,
fazemos a conversão e seguimos uma
estrada de terra (...). Estacionamos a
moto sob uma das árvores, desligamos
o motor, fechamos a gasolina (...).”
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 85
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“P
arecia tudo tranquilo durante os primeiros
encontros da turma, quando sugerimos temas até
elegermos a BR-116. Comecei a apurar uma deteminada
pauta, não deu certo e acabei mudando. Encontrei uma
colega motociclista integrante de um motoclube de
Esteio. Ainda estava estressada e em dúvida sobre
a pauta. Após devorar uma barrona de chocolate e
trocar ideias com os professores, recebi a indicação da
leitura de um romance de Robert M. Pirsig, um autor
norte-americano, para que eu fosse entrando no clima
da nova matéria. Isso foi decisivo. Acompanhada
de uma colega da disciplina de fotografia, cheguei
até o motoclube, onde fui hiperbem recebida. Na
sede do Motoclube Guardiões de Hades, tudo deu
certo. Após desligar o gravador, tive a certeza que
poderia emitir um Ômmmm, aliviada. Minha primeira
impressão aconteceu em meio a um tsunami
chamado TPM, misturada com um pouco de azar. Foi
uma Primeira Impressão literalmente kármica... Só
me resta desejar Amém, Shalom, Saravá!”
À ESPERA DO
TRABALHO
PROFISSIONAL EM VIAS DE EXTINÇÃO, O CHAPA
É CONTRATADO ÀS MARGENS DA RODOVIA PARA
AUXILIAR O CAMINHONEIRO NA ENTREGA DA CARGA
TEXTO DE DANIELA VILLAR E PAOLA MADEIRA
FOTOS DE CECÍLIA MEDEIROS
M
anhã fria com transito agitado, crianças tentando atravessar a BR-116 para chegarem até
a escola, homens parados conversando entusiasmados ao lado do de um posto de gasolina.
Esse é o cenário encontrado em diversos trechos dessa
movimentada rodovia. Januário Oliveira, 54 anos, é um
dos trabalhadores que se aventuram todos os dias em um
dos trechos mais tumultuados da cidade de São Leopoldo.
Casado e pai de oito filhos, conta que acordar às 5h da
manhã não é mais novidade, já faz 20 anos que ele trabalha como chapa.
Chapa é sinônimo de camarada, amigo, mano e, como
neste caso, ajudante. São profissionais que auxiliam os
caminhoneiros a se locomoverem em uma cidade des-
conhecida. E principalmente a carregar e descarregar a
carga que o caminhão leva. Esses trabalhadores são facilmente identificáveis por quem interessa: os caminhoneiros. Placas escritas à mão com a palavra “chapa” são
a porta de entrada para o motorista de caminhão pisar
no freio. E como se estivesse em um supermercado, o
caminhoneiro escolhe a sua mercadoria. Não se engane
pensando que os mais jovens são a prioridade. Nessa profissão é preferível optar por homens que pareçam mais
experientes do que moços fortes que podem se revelar
ociosos durante o trabalho.
Há quem diga que pode ser perigoso convidar um homem para entrar em seu caminhão, alguém que o motorista não conhece e que é forte. No entanto, isto não é
problema nem para os chapas, nem para os caminhoneiros. Juarez Maciel, 72 anos, conta que passou 40 anos
como caminhoneiro e que nunca teve problemas com os
chapas: “Eles estão ali para ajudar”, enfatiza. “É mais
fácil o chapa entrar numa de pegar uma carga roubada
para descarregar”, conta Januário, explicando os perigos
que existem na profissão. Apenas um dos oito filhos de
Januário optou por seguir a mesma profissão do pai. Marciário, de 18 anos, que já trabalha há três como chapa.
Pai e filho têm clientes fixos. Hoje é mais fácil o caminhoneiro encontrar um bom chapa, pegar o numero de
celular e, sempre que precisar do serviço naquele ponto
do mapa, ligar antes e agendar.
Januário é facilmente encontrado ao lado do Posto
Ipiranga na divisa entre São Leopoldo e Novo Hamburgo.
E assim como ele, é possível também encontrar, diariamente, pelo menos 10 chapas fixos neste local. Ele repara a hora “São 6h45min faltam 15 minutos para o horário
combinado”. O encontro será com Machado, o cliente
que virou amigo e, que sempre que tem carga na cidade
liga e agenda com Januário o serviço. Dessa vez o chapa
vai descarregar bobinas de ferro em Estância Velha, o valor pelo serviço é R$ 130. “Hoje ganho uns trocos a mais
porque é pesado o negócio”, conta Januário. A diária de
um chapa varia. João Francisco Lima, 59 anos, conta que
na BR-116 uma saída custa R$80,00. Nesse valor, está incluído auxílio o motorista a chegar a seu destino e descarregar o caminhão. Se o que o caminhoneiro precisa é
apenas um auxilio para chegar ao local, o custo cai para
R$ 30. “Mas aí não vale a pena, a gente tem que voltar
de ônibus”, explica João.
Januário e Francisco aguardam um tanto quanto desanimados pelo futuro de sua profissão, afinal o trabalho como chapa está cada vez mais escasso. Percebe-se
que esse serviço está perdendo o seu lugar para uma
nova configuração nos modelos de prestação de movimentação de carga. Titulo que rendeu o nome para
a profissão: movimentadores de carga. Hoje já existe
uma regulamentação e o serviço é oferecido dentro de
associações e cooperativas. Algumas, entretanto, um
tanto duvidosas, é preciso ficar atento às promessas
de 13º, indenizações e aposentadoria. Afinal, mesmo
legalizado, este profissional estará atuando como autônomo, com a diferença de fazer parte de uma cooperativa ou associação.
Ao se tornar sócio ou cooperativado, quem passa a
agenciar a contratação é a cooperativa que cobrará um
valor em cima do serviço prestado pelo movimentador de
carga. Em uma cooperativa na cidade de São Leopoldo a
diária do movimentador é de R$ 33, esse é o valor pago
ao profissional, a vantagem encontra-se no fato de que,
se a cooperativa fizer bem o seu trabalho, o movimentador estará contribuindo para o INSS e poderá garantir
a sua aposentadoria. No entanto, a realidade afasta os
chapas da legalidade. Não há como prover uma família
com R$ 33 diários sabendo que é só andar algumas quadras, para aguardar os caminhoneiros que estão dispostos
a pagar até R$ 130 por trabalho.
As associações e cooperativas possibilitaram a inserção de mulheres neste mercado de trabalho. Outrora
era inimaginável uma mulher querendo trabalhar como
chapa. No entanto, hoje, a empresa que precisa do movimentador de carga solicita diretamente à associação
ou cooperativa que encaminhe a pessoa com o perfil desejado. As mulheres têm se mostrado tão capazes quanto
os homens na hora de pegar no pesado e algumas empresas já preferem o trabalho das meninas ao dos rapazes.
Contudo, será muito difícil ver uma mulher na beira da
BR-116 procurando trabalho como chapa.
As inovações tecnológicas
Um dos principais inimigos dos chapas é a tecnologia.
Com a popularização do GPS (sistema de posicionamento
global), os caminhoneiros passaram a utilizar o aparelho, reduzindo a necessidade de alguém que lhe mostre
como chegar a determinado local. Outro fator que induz
os chapas a crer que a profissão está em risco é o fato
das empresas adotarem como forma de trabalho as empilhadeiras e os paletes. O palete é uma tábua de ma-
88 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
ANÚNCIOS PINTADOS
A MÃO OFERECEM
MÃO-DE-OBRA
PARA DESCARREGAR
CAMINHÕES
deira, estrategicamente posicionada em baixo da carga.
Assim a empilhadeira é encaixada nos paletes e não é
preciso nenhum tipo de força humana para descarregar
a mercadoria. “Eu acho que a profissão vai durar mais
uns três, quatro anos” afirma João Francisco. Januário
discorda. “Acho que só vai reduzir o trabalho.”
O chapa é mais um representante do vasto mercado de trabalho informal que ainda existe no Brasil, um
prestador de serviços, um freelancer. Não tem carteira
assinada, não paga INSS, não tem direito a aposentadoria, e em caso de acidente, terá que ficar em casa,
sem trabalhar e sem receber. È o risco que esses pais de
família têm corrido dia após dia. Enfrentar o mercado
clandestino de trabalho, não precisar declarar ganhos,
não pagar aposentadoria. Tudo para ter um poucos reais a mais mensais. Os chapas vão continuar trabalhando
em um ambiente fragilizado e perigoso, além de disputar
espaço com as novas tecnologias. Entrar para o mercado
legal de trabalho representaria um custo muito alto no
orçamento desses profissionais que já possuem ganhos
tão baixos.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 89
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“A
escolha da pauta foi influenciada por nossa infância.
Somos duas estudantes de jornalismo que contaram
com caminhoneiros dentro da família. Ver uma pessoa querida
ir e vir durante toda a vida nos remetia a correr o mundo
sem rumo. Um pouco de Jack Kerouac com uma forte pitada
de responsabilidade. A ideia seria ver como se comportam
aquelas pessoas que ajudam os caminhoneiros. Queríamos
saber como se sustentavam os chapas e suas famílias. E se
vale à pena madrugar e passar horas a fio na beira de uma
estrada, esperando que alguém precise de ajuda. No dia em
que fomos encontrar os “nossos chapas”, passamos frio e
sentimos o gosto amargo do café ruim de beira de estrada.
Não conseguimos acompanha-los em um dos seus trabalhos,
nem conseguimos sentir o peso de puxar uma pilha de caixas
de dentro de um caminhão. Como jornalistas, conseguimos
captar a dura vida que eles levam e transparecer isso em um
texto. No entanto, para nós, o mais importante foi enxergar a
simplicidade na qual eles vivem e, vivenciar um pouco daquilo
que sempre ouvíamos falar em nossa infância.“
è
Tekoá Porã
TEXTO DE SÍLVIA DALMAS E VANESSA RAMOS | FOTOS DE EDER ZUCOLOTTO
90 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
B
alaios e cestas pendurados
nas tendas próximas à BR116 nos sinalizam o caminho
para o destino de nossa reportagem. A três quilômetros da rodovia, no quilômetro 335, encontramos uma escola, um pequeno posto
de saúde e diversas moradias simples. Ao longo da estrada de chão
batido, as crianças guaranis acenam
alegres para os visitantes que entram em seu território, mesmo sem
saber quem realmente são.
Com apenas 27 anos, Arnildo
Vera Moreira é o cacique da aldeia
Tekoá Porá de Barra do Ribeiro. Em
um primeiro contato, mostrou-se
receoso em conceder a entrevista
e, após uma rápida explicação sobre
nosso trabalho, partimos dali, para
que ele pudesse conversar com os
índios mais velhos, os conselheiros
da aldeia, e avaliar se era seguro
ou não repassar informações. Após
duas horas e meia, regressamos ao
local: “Olhando nos olhos das pessoas, a gente já sabe se é do bem
ou não”, diz o cacique, afirmando
que iria colaborar com a equipe de
reportagem.
Depois de algumas apresentações
para nos conhecermos melhor, Arnildo nos ofereceu um tronco de árvore na sombra para nos acomodarmos
e ouvirmos a história da aldeia, enquanto os conselheiros apenas o observavam. Ali compreendemos que
esse lado mais fechado é uma forma de proteção, já que cabe a ele
a responsabilidade de zelar pelas 35
famílias que vivem na região, totalizando cerca de 200 pessoas.
O começo
Atualmente, 35 famílias vivem na aldeia
localizada na cidade de Barra do Ribeiro.
sua principal fonte de renda vem do
artesanato COMERCIALIZADO NA BR
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 91
Conviver durante 24 horas por
dia com um trânsito intenso, barulhento e perigoso, sem água e saneamento básico, era a maior dificuldade das famílias indígenas que
moravam próximas à BR. Depois de
perder suas terras em questões judiciais e sem ter lugar para construir
suas moradias, os guaranis não tiveram outra opção a não ser ficar no
“espaço que sobrou”.
Como se a vida já não estivesse
bastante complicada dessa maneira,
O jovem
cacique
Arnildo conta
a história da
aldeia ao lado
do experiente
conselheiro
artur
por volta do ano 2000, as famílias
começaram a sofrer muita pressão
para que se retirassem do local e
fossem para o Amazonas. “O que o
governo não entende é que a gente
já era dessa região. Lugar de índio
é em todo lugar, não só no Amazonas”, defende o cacique. Esses fatos
foram os principais motivos que os
levaram a se mudar dali.
Foi a partir desse momento que
os irmãos guaranis Artur, 48 anos,
e Ricardo Souza, 43, começaram a
batalhar por um espaço digno e de
qualidade para poderem ter uma
vida de paz e sossego, pensando na
necessidade de todos.
“O sonho”, como eles chamam,
estava perto dali, em uma fazenda de 12 hectares, localizada em
Barra do Ribeiro. Depois de várias
negociações intermediadas pelo
governo federal, o fazendeiro que
ocupava as terras concordou em
cedê-las para sete famílias, para
que pudessem começar a construir
um futuro melhor.
Assim, em meados de 2001, a
pequena comunidade começava a
se formar. A aldeia faz jus ao nome
com o qual foi batizada: Tekoá Porã,
que na língua tupi significa “terra
bonita”, é considerada um exemplo
para as outras tribos.
Segundo o cacique, o que contribui para isso é o fato de que eles
mesmos escolheram o local, em vez
de serem obrigados a se alojar em
qualquer pedaço de terra. A boa
convivência que eles mantém com
os brancos e outras aldeias próximas dali também ajuda para esse
destaque. “Às vezes colocam índio em solo que não dá para produzir, aí não adianta, aqui a terra
é boa porque foi nossa gente que
escolheu, é um exemplo de aldeia
e tem espaço para criar os filhos,
pois construímos conforme a nossa
ideia”, diz Arnildo.
Estrada de chão batido e um amplo espaço para as crianças brincarem com cachorros, gatos e galinhas
soltos pelo local. Esses são os sinais
da tranquilidade que a tribo conquistou ao longo desses 11 anos.
A casa que o fazendeiro ocupava
tornou-se a escola da comunidade e
marcou o início da nova vida que os
indígenas passaram a ter. É lá que,
aos cinco anos, as crianças aprendem a falar o português, para poder
entender os dois mundos nos quais
convivem. Dois professores índios
ensinam as matérias de religião,
educação física, artes e língua guarani, as demais são repassadas por
um professor branco.
Apesar de não exibirem a mesma
vestimenta que os índios nativos, a
calça jeans e os sapatos não escondem o orgulho e a vontade de preservar a cultura de seus antepassados. Por isso, os guaranis evitam ao
máximo fazer uso de artefatos modernos como celular e, até mesmo,
energia elétrica.
O principal sustento dos índios
vem do artesanato e das plantações
e, nesse ponto, a BR-116 ainda é fundamental na vida das famílias. Eles
produzem seus objetos na aldeia e
se deslocam até a beira da estrada, todos os dias, para vendê-los:
“A caminhada até lá, se eu vou com
calma, olhando a paisagem, demora
mais ou menos uma hora”, calcula
o líder. A rodovia, que antes era um
local perigoso para morar, agora é
fundamental para a renda da tribo,
pois é graças a ela que conseguem
vender seus produtos. “A estrada
nunca traz coisas ruins, só depende
de saber usá-la. Se não tivéssemos
ela, teríamos que mendigar até o
centro das cidades, como muitos índios fazem”, diz Arnildo.
Há pouco tempo, a tribo construiu uma casa de artesanato na
beira da BR, onde as famílias passarão a vender seus produtos em
vez de comercializá-los nas tendas.
Porém, eles aguardam a duplicação
da rodovia para começar as atividades por lá.
O preconceito que ainda existe
contra os indígenas parte de quem
não conhece a sua realidade e sua
cultura: “Às vezes as pessoas pensam que índio que vende artesanato
é vagabundo, mas nosso trabalho é
esse, não é nosso papel trabalhar
em fábrica, é conhecimento do índio trabalhar na agricultura e com
artesanato, porque a gente não faz
isso pensando em comprar carro, só
faz pensando no alimento para os filhos”, argumenta Arnildo.
Como eles nos explicam, aprender o português é necessidade, pois
é a forma que encontram para poder
lutar por seus direitos: “É muito importante conhecer a escrita, antes
índio não sabia se defender no papel
e foi assim que acabou ficando sem
terra para viver e morando onde
ninguém incomodaria. Antes se lutava contra escravidão, e agora a luta
é por terra”.
Apesar de terem vencido grandes batalhas, a tribo ainda enfrenta muitos problemas, como falta
92 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
o recreio é também
a hora das crianças
se alimentarem
de atendimento e incentivo do governo. “Não é só dar as terras, tem
muita coisa que poderiam fazer pela
gente, e precisamos dessa ajuda.
Se fosse como antigamente, a gente não precisaria de branco, mas,
como é proibido caçar, temos que
entrar nas leis deles, porque nosso
jeito de viver muda conforme elas”,
diz o cacique.
Além da Funai e da Funasa, a
maior atenção que os índios recebem vem das ONGs, que fornecem
auxílios com as plantações e incentivos a diversos projetos. Mas a
maior ajuda parte de dentro da comunidade, que compartilha os alimentos entre os moradores e realiza
reuniões mensais para solucionar
os problemas. “As pessoas só vem
conversar com a gente quando precisam fazer trabalho, até mesmo os
antropólogos muitas vezes nos veem
como objeto de pesquisa, mas nós
somos gente como eles também.”
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 93
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“O
trabalho em uma redação de jornal é sempre uma
luta diária contra o tempo. Tudo é para ontem e
as informações para completar as matérias não chegam.
Acostumados com essa rotina, nos programamos
para ir até a aldeia indígena ainda pela manhã, para
conseguirmos explorar o máximo de informações
possíveis. Chegamos até a localidade e conversamos
com o cacique, perguntando se poderia nos contar a
história da aldeia e pedindo permissão para tirar fotos e
entrevistar famílias. Tudo já planejado nas nossas cabeças
e dentro do nosso tempo. Com poucas palavras, porém
diretas, o cacique nos fez entender como realmente
deveria fluir uma reportagem: ‘Sei que com branco a
conversa é nas pressas, mas aqui a gente procura se
conhecer e falar um pouco sobre nossa vida antes de
passar informação’. Um diálogo com calma, conhecendo
um pouco sobre a vida de cada um, foi fundamental
para descobrirmos a essência da nossa reportagem,
o que acabou mudando o foco dela também. A nós,
que trabalhamos e estudamos comunicação, o cacique
nos ensinou uma das maiores lições para nossa vida
jornalística: aproveitar cada instante da conversa sem se
importar com o relógio.”
è
Um ambiente com diferentes opções,
proporcionando prazer aos seus
clientes, é a marca da Sauna CoqueteL
9494
| PRIMEIRA
| PRIMEIRA
IMPRESSÃO
IMPRESSÃO
| DEZEMBRO/2010
| JULHO/2011
Sexo na
estrada
COMO VIVEM AS MENINAS
QUE TRABALHAM às
margens da BR-116
TEXTO DE CLARISSA FIGUEIRÓ E SUÉLEN DAL’AGNOL
FOTOS DE THAYNÁ CANDIDO
PRIMEIRA
PRIMEIRA
IMPRESSÃO
IMPRESSÃO
| DEZEMBRO/2010
| JULHO/2011 | 95
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N
oite de segunda-feira, 20h30min, pegamos o
carro com uma amiga disposta a dirigir e a participar de uma romaria noturna. Percorremos a
BR-116, em meio a becos, viadutos, passarelas,
sinaleiras, paradas de ônibus e postos de gasolinas para
encontrar prostitutas trabalhando.
Primeiro viaduto, escuridão, duas garotas e um susto,
uma delas jogou-se contra o carro. Estávamos andando
lentamente e prosseguimos, a menina estava exaltada e
fora de si, mas não foi dessa vez. Próxima parada, posto
de gasolina. Indicaram-nos uma moça loira que faz ponto
na Estação Rodoviária de Canoas, situada às margens da
BR-116, esquina com a Rua Sete Povos.
Pegamos o carro e, quando passamos pela rodoviária,
a loira surgiu. Imediatamente, descemos e pedimos para
conversar alguns minutos com ela. Até então ela achava que seria um programa, mas, no momento em que
falamos se ela aceitaria participar de uma reportagem,
instantaneamente recebemos como resposta um não.
Ao voltar para o carro, fomos chamadas pela mulher
e surpreendidas. Sem notarmos, tínhamos lhe chamado
de “senhora”, e ela nos corrigiu: “Só vou falar uma coisa
para vocês, gurias, se continuarem chamando as meninas
de ‘senhoras’, não vão conseguir nada”. Pedimos desculpas e conseguimos contornar a situação, e, para nosso
espanto, ela começou a conversar conosco.
Maria* é loira, cabelos longos, olhos azuis, lábios pequenos, com alguns dentes faltando, seios fartos e extremamente carismática. Dizendo ter mais de 40 anos e
menos de 50, não quis nos revelar a idade exata. Vestese como uma menina, calça e casaco de suplex e chinelos
de dedo. Ela faz ponto no mesmo local há 12 anos, diz
que não é apenas pelo dinheiro e, sim, também por gostar de fazer sexo. Não a encontramos mais cedo porque
ela trabalha das 22h às 3h da manhã, todos os dias. O
valor cobrado por programa é R$ 40. “Sem negar nada ao
cliente”, completa Maria.
O público que lhe procura varia, desde pessoas novas
e solteiras a homens velhos e casados. Não escolhe os
clientes, todos são bem atendidos, sua única restrição é
não atender casais. “As pessoas que me buscam querem
algo diferente, porque feijão com arroz todos os dias enjoa.’’ Na hora do programa, ela não se preocupa com
o horário e sim com o carinho e atenção aos clientes,
porque, segundo ela, qualquer atividade que é desempenhada com pressa nunca sai bem feita.
Maria foi casada e engravidou de seu marido, porém
preferiu criar o filho apenas com a ajuda de seus pais.
Hoje o menino tem 16 anos e já sabe sobre a profissão
da mãe. Ela sempre morou em Novo Hamburgo na casa
dos pais, mas, devido a alguns conflitos com o pai, saiu
de casa durante três anos, deixando o filho com os avós.
Acabou voltando, pois seus pais possuem muitos problemas de saúde e é ela quem os ajuda financeiramente.
Já trabalhou em eventos e como telefonista e vendedora. Acabou optando pela atual profissão porque estava desempregada e com o filho pequeno para criar. Não
pensa em largar a prostituição, mesmo já tendo sido as-
saltada e espancada. Devido a esse assalto e à agressão,
ela precisou realizar uma cirurgia, ficou três meses em
recuperação e passou a ter a impressão de que estava
sendo perseguida, mas voltou a trabalhar.
Estar na BR-116 pode parecer favorável devido ao
grande fluxo de pessoas e carros. Maria diz que o ponto é
bom, todos os dias tem clientes, mas que a BR não influencia no movimento. Conhecida pelos vizinhos e pessoas que
passam, ela acredita que não incomoda ninguém.
Da rua para as suítes
Maria optou por trabalhar às margens da estrada, mas,
outra alternativa são as casas noturnas. No decorrer da
rodovia, as pessoas passam por diversas boates, uma delas
é a Sauna Coquetel, que, por estar localizada na BR-116,
em Canoas, recebe muitos clientes de outras cidades e
pessoas que passam e acabam parando para conhecer.
A casa noturna funciona há 38 anos no mesmo local.
Sua infraestrutura é composta por três suítes, sete quartos simples, piscina, sauna a vapor, banheiros, bar e danceteria. Atualmente, conta com 70 garotas, com idades
acima de 18 anos. A entrada custa R$ 10, e o cliente
ganha uma cerveja. De acordo com Rafael Nunes Feijó,
filho do dono e responsável pelo local, o público varia de
milionários com carros importados a pessoas que economizam o mês inteiro para ir ali.
As garotas podem trabalhar fora da casa, nesse caso
a boate não ganha nada pelo programa. As formas pelas
quais a Sauna recebe Coquetel são pelo quarto utilizado
96 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“A
o escolhermos a pauta, sabíamos que
seria um assunto delicado para se tratar.
A procura por casas noturnas localizadas na
BR-116 começou através da internet, pois não
conhecíamos a região. Buscamos indicações e
pesquisamos em mapas e blogs, os contatos,
porém não obtivemos nenhum sucesso. Então,
o desespero prevaleceu. “O que vamos fazer?
Desistir da pauta? Não!” Partimos para a rodovia
aflitas, por não sabermos o que estava nos
esperando, afinal eram lugares desconhecidos
e pessoas estranhas, tudo poderia acontecer.
Conhecemos dois lados diferentes, a vida de uma
pessoa que faz programas nas ruas e a de garotas
que tem o local de trabalho pré estabelecido.
Entretanto, ambas estão na profissão por apenas
um motivo: o dinheiro. Contudo, entrevistá-las
nos mostrou que as garotas são mulheres como
nós, que trabalham, precisam de dinheiro, tem
seus sonhos e acreditam em um futuro melhor.
Conhecemos uma realidade diferente da que
imaginávamos, além de nos fazer refletir sobre a
nossa própria vida.”
(R$ 30 a cada 30 minutos), pela sauna (R$ 20 por garota
dentro do lugar), pela piscina (R$ 15 por garota), pela
entrada e pela bebida. Entretanto, dentro da piscina não
ocorre programa e, se na sauna houver, o cliente deve
pagar o valor correspondente para a garota.
Conversamos na boate com Letícia*. Com 27 anos,
há seis ela trabalha na noite. Loira, cabelos curtos,
alta, pernas grossas, piercing no umbigo e no nariz,
fumante, não bebe cerveja e está na noite pelo dinheiro. Odeia bêbados. Sua preferência é por homens mais
velhos. Natural de Porto Alegre, hoje reside no centro
de Canoas com a irmã.
Seus pais não sabem, porém desconfiam de sua profissão. A irmã que mora com ela já foi prostituta, e Letícia convenceu-a sair da vida noturna, mas, oito meses depois, ela própria foi quem ingressou. Estudava e
trabalhava, largou tudo a partir do momento em que
descobriu que poderia ganhar mais dinheiro em pouco
tempo. A Sauna Coquetel não foi a única boate em que
fez programas, já esteve na Carmen’s Club e no La Barca
na cidade de Porto Alegre, além de casas noturnas de
cidades do interior do Rio Grande Sul.
Letícia é homossexual, e sua namorada também é garota de programa. No entanto, conta ela que a partir do
momento em que entra para a boate esquece da vida privada. Um programa de 30 minutos com ela custa R$ 100,
mais R$ 30 pelo quarto ou R$ 50 pela suíte. Esse valor não
dá direito a tudo. Caso o cliente queira outro serviço, além
do sexo, o preço vai aumentando. O valor arrecadado em
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 97
uma noite de programa varia de R$ 400 a R$ 1.200.
Embora a quantidade de dinheiro seja alta, até o momento ela não adquiriu nenhum bem material. Existem
colegas de trabalho que possuem apartamentos e carros.
“Para uma menina obter algo com a grana é preciso ter
a cabeça boa”, diz. Letícia já usou drogas todos os dias
da semana, mas hoje ela consegue se controlar. Diz que
a única maneira de aguentar os clientes chatos é estando
“louca” e não apenas bêbada.
Brigas entre as garotas não há, mas muitas já foram
agredidas. A boate não interfere caso algo aconteça, cada
uma tem de ter o domínio da situação. Letícia, quando
esteve afastada da Sauna Coquetel, foi morar e trabalhar
em Bento Gonçalves e, por não querer transar com o
filho de um cliente, este acabou rasgando sua roupa na
frente de todos, virando-lhe bebida e, por fim, lhe dando
um tapa no rosto. “Homem que bate pode esquecer, mas
mulher que apanha nunca esquece”, diz ela.
Letícia conclui que, com a vida na noite, adquiriu conhecimento, experiência e dinheiro. Também acredita
que é impossível gostar de vender o corpo, ela e as outras
estão trabalhando dessa forma porque há um motivo.
Maria e Letícia, duas mulheres que vivem do dinheiro
que a prostituição possibilita. Fazem das ruas ou da boate seu local de trabalho. São felizes? Quem sabe... Entretanto, apesar das diferenças, vivem a mesma realidade,
o mundo da prostituição na BR-116.
* Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes.
UMA TENDA DE
HISTÓRIAS
Comércio
de produtos
coloniais, na
beira da rodovia,
é alternativa de
sustento para a
Família Weber
TEXTO DE RAFAELA KLEY
E STÉFANIE TELLES
FOTOS DE BRUNO BITTENCOURT
E
m um pequeno espaço na lateral do
quilômetro 215 da BR-116, em Morro
Reuter, uma simples casa de madeira foi construída há três anos. Nesse
lugar, encontram-se histórias de um casal
de descendência alemã que, junto com seus
três filhos, busca na beira da estrada o sustento diário através do comércio de produtos coloniais.
Mãe, esposa e responsável por administrar
a tenda, Milita Weber, sempre quis ter sua
própria lanchonete, mas viu seu objetivo se
distanciar ao ficar desempregada. Para recomeçar a busca pelos seus sonhos, contou com
a ajuda do cunhado, Fernando Weber, que incentivou e financiou a abertura do comércio.
Era preciso, entretanto, encontrar um local
próximo da casa da família para a construção
do estabelecimento. “Fomos conversar com
a dona do terreno para alugar o espaço, mas
ela nos disse que não seria preciso pagar. Ela
é uma senhora de mais idade, está sempre na
janela nos observando e diz ficar feliz quando
vê os carros parando aqui”, revela Milita, que
trabalha desde os oito anos.
Com a ideia formulada e o terreno acertado, restava apenas iniciar a construção da
tenda. “Meu cunhado fez tudo, comprou o
material, pagou e a construiu junto com meu
marido e alguns parentes. Foi ele quem comprou as primeiras mercadorias e ainda me
deu R$ 130 para começar”, conta.
Pães, compotas e geleias, produzidos a
dez mãos pela família Weber, de segunda a
AO FICAR
DESEMPREGADA,
MILITA TEVE A
OPORTUNIDADE DE
ABRIR O SEU PRÓPRIO
NEGÓCIO. NO DIA A
DIA, ELA CONTA COM A
AJUDA DA FAMÍLIA
segunda, dão o colorido de boas-vindas aos
clientes. “Pão, eu faço todos os dias de manhã cedo e os outros produtos geralmente
produzimos à noite, dia sim, dia não”, explica. Com 31 anos, Milita nunca fez aulas
de culinária, tampouco aprendeu truques
com suas avós. A vendedora aprendeu tudo
o que sabe sozinha. “Fui inventando, me virando. Com
o tempo, aprendi alguns truques, testando dicas das
clientes”, conta.
Além do que é produzido pela família, o local oferece
frutas e verduras, vinhos, cachaças, queijos, linguiças, mel,
bolos e biscoitos, expostos de maneira organizada e atrativa. A maioria dos produtos é da própria região, comprados
na Feira do Colono do município. Durante algum tempo, Milita produziu suas próprias frutas e verduras, mas hoje consegue encontrar tempo apenas para cultivar caqui e chuchu
em seu quintal. “A gente já plantou muita coisa, mas não
conseguimos dar conta. Por um tempo também fiz rapaduras e amendoins para vender. Tenho muitas ideias, mas não
tenho tempo para colocá-las em prática”, comenta.
Dia após dia, a família luta e conta com a sorte para
conquistar o seu sustento financeiro. “É um jogo diário.
Estou investindo muito nos doces e geleias. Quando percebo que vou perder alguma fruta, faço doce. O problema é
que preciso comprar os vidros, as tampas e o açúcar, que
está com o preço lá em cima”. O melhor dia de vendas
tem sido os domingos, mas muitas vezes a tenda fica sem
capital de giro. “Teve dias que eu vim com R$ 20 trabalhar.
Se alguém me desse uma nota de R$ 50 não teria como dar
o troco”, desabafa.
O fluxo de carros, caminhões e motos na BR-116 foi aos
poucos se tornando dependência e distração para Milita,
que abre a tenda às 11h nos dias de semana,
chegando mais cedo aos sábados e domingos, e
fechando sempre ao anoitecer, quando recolhe
todos os produtos para levá-los de volta para
casa. “Nosso maior problema é não ter água e
luz, o que nos impede de armazenar os produtos, trabalhar até mais tarde, cozinhar ou fazer
sucos naturais aqui”, explica.
Além dos desafios financeiros, a família ainda precisa
estar atenta com os clientes que visitam a tenda pela
primeira vez. Milita conta que já foi vítima do golpe da
nota falsa e do cheque sem fundo e, por isso, mantém
na fachada de estrutura rústica uma placa sinalizando:
“Não aceitamos cheques”. “Quando o cliente chega pegando várias coisas sem pedir o preço, a gente começa
a desconfiar”, conta. A família também já teve produtos
roubados. “Uma vez parou um ônibus de turismo, e uma
turma de senhoras entrou da tenda. Não consegui acompanhar o movimento e me roubaram. Você vai confiar
em quem? Não tive lucro algum naquele dia”, recorda. A
vendedora também precisa lidar diariamente com gritos
e buzinaços. “Tem que ter jogo de cintura. Entra num
ouvido e sai no outro, mas como não fico sozinha, nunca
aconteceu nada”, revela.
Mesmo com o barulho do trânsito que muitas vezes
impossibilita uma simples conversa na tenda, Milita ouve
músicas pelo celular e lê a Bíblia para passar o tempo.
“Sou católica, mas por causa do trabalho não consigo participar das missas. Rezo todo dia aqui, não falho nunca”,
explica. Além disso, Milita brinca com seus três filhos nos
momentos de tranquilidade nas vendas. Carlos Alexandre,
Carla Suelen e Lucas Mateus, de 14, 12 e 11 anos, respectivamente, frutos de 15 anos de casamento com o pintor
100 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
Carlos Roberto Weber, auxiliam seus pais no comércio no
contra turno da escola. “As crianças ajudam a organizar
uma ou outra coisa, mas estão aqui mais para me fazer
companhia e não ficarem sozinhas em casa”, conta.
Diferente dos filhos, que contam com todo o apoio e
incentivo dos pais para estudar, a comerciante não teve
a mesma sorte. “A gente era muito pobre, muito mesmo,
e no interior não tinha escola perto. Estudei só até a segunda série”, relembra emocionada. Milita conta que seus
pais não tinham emprego fixo, a mãe era dona de casa e
o pai fazia bicos como segurança. A falta de estabilidade
financeira induziu a família a mudar de cidade inúmeras
vezes, impossibilitando que ela e alguns dos dez irmãos
prosseguissem com os estudos.
Natural de Três Passos, Milita tinha oito anos quando
seus pais se separaram. Com o término do casamento,
sua mãe fugiu para Boa Saúde, levando Milita e outra
filha. “Um dia fomos visitar o pai e ele não deixou mais
a gente voltar. Passávamos fome e, como ele tinha mais
condições, nos convenceu a ficar com ele.” Hoje, o pai
de Milita mora em Portão, e a mãe, no interior de Canoas. Desde que abriu a tenda, Milita não possui mais
tempo para visitá-los, pouco tempo resta também para
os oito irmãos ainda vivos. “Teve apenas um Natal que eu
fechei a tenda para passar o dia 24 com meu pai e o dia
25 com minha mãe”, conta.
O quilômetro 215 da BR-116 é para muitos apenas parte
de um percurso diário, mas para a família de Milita representa a doação de boa parte de seu tempo na esperança
de dias melhores. As histórias tornam este lugar um “Encanto da Serra”, fazendo jus ao nome que Milita escolheu
para denominar a tenda quando seu sonho de reformá-la
tornar-se realidade.
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 101
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“O
sábado destinado a percorrer a Rota Romântica
em busca de fontes nos presenteou com um forte
temporal, mas nada que desanimasse. No malabarismo
de lidar com a chuva, o vento e o frio, encontramos
uma pequena casinha de madeira que abrigava toda
uma família. Ao parar o carro, guarda-chuvas foram
prontamente abertos para nos receber. Foi o que bastou
para sabermos que tínhamos encontrado o que tanto
procurávamos. Alguns dias depois, em uma visita
marcada, subimos a serra e fomos de encontro com a
família Weber. Com bloco de notas, cadeiras de praia,
gravadores e muitas expectativas, fomos recebidas
carinhosamente com um bom chimarrão. Horas voaram
como se fossem segundos. Este espaço é pequeno
para descrever tudo que esta pauta nos fez sentir e
vivenciar. Cabe-nos, sobretudo, agradecer à família por
toda a receptividade, pelo carinho e pelas confidências.
Impressões que ficarão marcadas, para sempre, em
nossas histórias.”
O BARULHO ATRAVESSA AS
PAREDES DO PRÉDIO 4449, EM
FRENTE AO VIADUTO, EM CANOAS
A estrada é o
102 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
quintal de casa
TEXTO DE ALESSANDRO OLIVEIRA E CAROLINA KAZUE | FOTOS DE KENIA FERRAZ
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 103
O
ruído dos veículos ecoa
no corredor de azulejos
desbotados e impregnados de sujeira. As
marcas de fuligem nas paredes
evidenciam os anos seguidos de
incessante fluxo de veículos. Ao
subir as escadas antigas do prédio
sem nome de nº 4449, localizado
na cidade de Canoas em frente ao
viaduto da Avenida Getúlio Vargas, o síndico e morador Paulo César Nix, 42 anos, fala sobre como
é viver ali, na encruzilhada de um
viaduto com a BR-116. Durante o
trajeto até o segundo andar, onde
mora com a família, mal era possível ouvir sua voz. Quando ele
abre a porta do seu apartamento,
o silêncio é interrompido apenas
pelo som da televisão que prende
a atenção de sua esposa e de dois
de seus quatro filhos.
Há 15 anos, a família Nix saiu
do sossego do Interior, na cidade de Santa Rosa, em busca de
oportunidades de trabalho na região metropolitana de Porto Alegre, e já faz 12 anos que reside
no prédio. Na casa de Paulo não
há sons da rua, buzinas, motores
de carro, nem a conversa dos pedestres. Na aconchegante sala de
estar, que fica ao lado da sacada,
em frente ao viaduto, se escuta
apenas o barulho da TV. Porém,
quando se abre a porta da sacada, a sensação é de estar no meio
do congestionamento.
Segundo Nix, a solução encontrada para obter uma vida mais silenciosa foi mudar do apartamento
nº17, no quarto andar, atualmente
ocupado por seu sobrinho, para o
de nº 11, localizado no segundo
andar, que recebe a proteção sonora do viaduto. “Como o viaduto
fica bem na frente da minha casa,
o som dos carros é bloqueado”,
explica. Para ele, o único empecilho é ter que manter as janelas
e portas que ficam na frente da
BR-116 fechados o dia inteiro. Se
o barulho dos carros não entra no
lar da família Nix, a poluição não
dá trégua. O ar carregado de fumaça não pode ser evitado com
janelas e portas fechadas. Paulo
conta que a fuligem nunca deixa
as roupas recém-lavadas continuarem limpas por muito tempo e
é preciso constantemente limpar
os móveis e o chão. Outra possibilidade é abrir as janelas para os
fundos e arejar a casa da fuligem,
que impregna os móveis, as roupas
e, principalmente, os pulmões.
volume máximo
No próximo andar, outra moradora, Janaína Velado, 28 anos,
fecha a porta do seu apartamento. Quando ela para, acende um
cigarro e atenciosamente começa
a contar um pouco sobre sua vida
no prédio nº 4449. Ela mora com
o marido Fabio Santos e as filhas
Maria e Gabriela, de dois e quatro
DA SACADA DE SEU APARTAMENTO, PAULO CÉSAR
NIX TEM UMA VISÃO COMPLETA DO VIADUTO
104 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011
anos, respectivamente. Contrastando com a família
Nix, que vive há mais de uma década no prédio, eles
se mudaram há um mês para o local e ainda não tiveram tempo de se acostumar.
A casa parece recém-ocupada e ainda se percebem
os restos da confusão que uma mudança traz. O apartamento do casal não fica em frente à rodovia, mas
nos fundos do prédio, bastante próximo a um posto de
gasolina, o que literalmente tira o sono da família. “É
um horror, muito barulho. É impossível dormir bem”,
conta Janaína. Segundo ela, os motoristas passam horas bebendo, com os rádios em volume máximo, além
de haver muita briga e gritaria.
O casal, que vive junto há cinco anos, também veio
do interior em busca de trabalho. Deixaram Pelotas em
2006 e foram morar na Vila Maria, em São Leopoldo, de
onde saíram devido ao alto valor do aluguel para morar
no centro da cidade de Canoas. Desde então, a família
vive no seu atual endereço, alugado da cunhada de Fabio, com a intenção de ficar temporariamente.
Durante o dia, o volume da televisão é extremamente alto para abafar o barulho vindo da rua, mas
a família nem percebe mais. Fabio fez uma cirurgia
recentemente e por isso fica mais tempo em casa do
que Janaína. Ele conta que tem a impressão de que no
último mês sua audição piorou, o que é improvável, já
que, apesar do incômodo, o som não parece chegar a
níveis insalubres. Ele já deve ter se acostumado com
mais decibéis do que a maioria das pessoas para conseguir amenizar o barulho do trânsito. Indiferentes ao
incômodo dos pais, as filhas dormem sossegadas entre
plimplins, vruuuns e beepbeeps.
Apesar de não ter a fachada do seu apartamento
de frente para a rodovia, a família sente também os
grandes transtornos causados pela poluição do ar e a
fumaça dos carros. Segundo Janaína, toda vez que sai
de casa com as filhas, as roupas precisam ser lavadas
devido ao cheiro ruim que fica impregnado. Por outro
lado, dentro da casa, eles não sentem nada fora do
normal. “Aqui não vem muita fumaça. Acho que fica
mais na parte da frente do prédio”, conta Janaína.
Morar na beira de uma estrada movimentada tem ou-
PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2011 | 105
tras peculiaridades. A segurança e a mobilidade são pontos delicados no cotidiano das famílias, especialmente
para os pequenos. Paulo Nix conta que as crianças precisam sair sempre acompanhadas, mas a principal preocupação é o trânsito, e não a criminalidade. A falta de áreas de lazer, o tráfego intenso e a estrutura precária para
pedestre põem em alerta o instinto protetor dos pais.
O mesmo acontece com Janaína e Fabio. Eles contam que a dificuldade para se locomover é imensa,
especialmente com os filhos. “É horrível atravessar a
estrada com as crianças, porque não tem faixa de segurança nem sinaleira. Precisa fazer uma volta imensa
para atravessar com segurança”, diz Janaína. A sensação é justamente essa: como se o mundo fosse dividido em dois pela BR-116 e atravessar a fronteira, uma
aventura heroica.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“S
aímos de Porto Alegre decididos em relação
ao prédio no qual entrevistaríamos famílias
que moram em frente a BR-116. Chegando ao local,
percebemos uma das dificuldades que essas pessoas
enfrentam. Não conseguimos fazer com que nenhum
dos moradores nos ouvisse, porque além de não haver
interfone, era inútil bater na barulhenta porta de metal
entre os corredores do prédio e a calçada, pois cada
tentativa era abafada pelos carros que passavam ao
lado da estreita calçada. Decidimos tentar outro lugar,
mas mesmo com muitos prédios, encontrar alguém
disposto a atender desconhecidos foi uma tarefa árdua.
Após algumas tentativas frustradas, encontramos um
casal entrando no prédio que tínhamos escolhidos
inicialmente, em frente ao viaduto, e de imediato saímos
correndo para então começar a entrevista. Os avistamos
há menos de 10 metros de distância, mas não importava
o quanto gritássemos, o coro dos motores superou
nossas vozes. Corremos e batemos na porta com força.
Alguns instantes depois, o casal deu meia volta e fomos
convidados a entrar. “
è
um lar em qual
106 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010
quer lugar
TEXTO DE DÉBORA SILVA
E SINDY LONGO
FOTOS DE JULIO BONORINO
E ANA LUÍZA TRINDADE
família encontra
EM um local público
a solução para a
falta de ABRIGO
PRIMEIRA IMPRESSÃO | DEZEMBRO/2010 | 107
Família que mora
embaixo da ponte
conta um pouco
sobre sua realidade
V
ocê passa por várias pontes no seu dia a dia e por
várias pessoas que fazem
desses locais o seu lar. Mas
você já se perguntou como essas
pessoas foram parar lá? O artigo
XXV da Declaração Universal dos
Direitos Humanos diz que “Toda
pessoa tem direito a um padrão de
vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à
segurança em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice
ou outros casos de perda dos meios
de subsistência fora de seu controle”. Porém, na prática, o que ocorre é totalmente o oposto.
José Leonir Pires, casado há 14
anos, 10 filhos, é um desses personagens anônimos que passam por
nossos olhos despercebidos. Há nove
anos, ele e sua família moravam em
Canoas, de aluguel, no bairro Mathias Velho. “Não conseguimos mais
pagar o aluguel, daí o dono nos botou para fora”, afirma. Desde então,
mora debaixo da ponte que liga Esteio a Canoas, entre a BR-116 e a
Avenida Guilherme Schell.
O acesso à morada é por meio
de uma escada esculpida na terra
e por uma espécie de pórtico, feito
de plantas verdes. O local simples
revela-se muito limpo e organizado.
A família usa um tanque elétrico para
lavar suas roupas, com energia procedente de fiações próximas. Depois
de lavadas, as roupas são estendidas
em um varal improvisado com arame
e madeira. Cada um ajuda no que
pode para melhorar o convívio e a
vida complicada.
Leonir luta diariamente para
que suas filhas tenham a oportunidade de estudar e alcancem
um futuro melhor. Para isso, além
do trabalho de reciclagem, José
bate de casa em casa oferecendo pequenos serviços como corte
de grama, pintura e capina. Seu
turno de trabalho, das 22h às 5h,
é longo e cansativo, pois percorre a cidade de Esteio em busca de
materiais para reciclagem. O que
consegue recolhe, leva para três
postos de coleta, conforme o tipo
de material. Para complementar o
sustento da família, eles mantêm
uma horta, onde plantam limão,
moranga, abacate e tomate, entre
outros. “O solo aqui é muito fértil e fácil de cultivar sementes”,
afirma Leonir. De “bicos” aqui e
ali, o morador do viaduto batalha
para ganhar seu pão.
Emocionado e com lágrimas
nos olhos, ele conta que teve de
largar a escola na terceira série,
pois perdeu o pai quando tinha
apenas nove anos, tendo que começar a trabalhar para ajudar a
mãe a criar os irmãos. Hoje, incentiva suas filhas a não desistir
de estudar, apesar de estarem
atrasadas em relação às crianças
da sua idade. “Boa educação é
conversa. Nunca bati em nenhum
filho, nem nunca precisei levantar
a mão para nenhum deles”, diz
Leonir. Sua esposa, Sandra Mara
Bampé Rodrigues, também acredita que bater não seja a garantia
de uma criação exemplar. Ela, que
disse ter apanhado muito quando
criança, observa que isso não preveniu que errasse e nem fez com
que crescesse na vida.
AS CRIANÇAS DE
JOSÉ, MEIO TÍMIDAS,
MOSTRAM SEU LAR
Junto de Leonir, embaixo dessa mesma ponte, moram quatro
de seus 10 filhos e sua esposa. Os
outros seis já são casados e moram na cidade de Venâncio Aires.
Recentemente abrigou mais dois
jovens, que tenta ajudar, mantendo-os fora da violência das ruas.
Ele, que se autodenomina “chefe
do clã”, diz que lá ninguém tenta invadir, nem vender drogas ou
roubar. A todo o momento, deixa
bem claro que moram embaixo da
ponte, mas que são uma família.
Como bichos de estimação, têm
um cachorro e dois gatos, seus xo-
108
108
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dós, que segundo ele, mantêm os
ratos longe do lar.
O clima de carinho, amor e respeito entre eles é evidente. Encontramos
apenas duas de suas filhas, que estudam em uma escola pública próxima
da ponte. Thainara, 10 anos, está na
primeira série, e Maiquelli, 13, está
na segunda série. Maiquelli confessa:
“Quero mudar de vida. Casar, ir embora daqui e arrumar um lugar para
os meus pais também”.
Leonir diz não ter religião, porém afirma várias vezes durante a
conversa que acredita muito em
Deus. Ele faz questão de garantir
que não rouba, nem pede nada para
ninguém, tem saúde para trabalhar.
“Essa mão aqui é de trabalhador”,
orgulha-se, e segue acreditando em
um futuro melhor.
PRIMEIRA
PRIMEIRA
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IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“É
interessante como é fácil julgar as pessoas dizendo que
elas vivem no seu próprio ‘mundinho’, porém, de repente,
fazemos uma matéria para uma disciplina e nos descobrimos
também vivendo no nosso ‘mundinho’ sem perceber. A
expectativa de fazer essa matéria era enorme, pois não sabíamos
se a família, que morava numa das pontes da BR-116, iria nos
receber ou não. Ao chegar lá e encontrar o ‘cacique’ da família,
percebemos que não seria fácil, pois em um primeiro momento
recusou-se a nos dar a entrevista e, inclusive, fez uma pergunta
que nos levou a pensar: ‘Todo mundo vem aqui, mostra na TV a
minha vida e a da minha família, mas e o que muda para mim?
Nada! Eu continuo aqui! Por que eu deveria dar entrevista para
vocês?’. O que nos fez repensar o nosso papel de jornalistas
na sociedade. Qual seria a função de apenas reportar os
acontecimentos, se vemos todos os dias coisas cada vez piores?
E o pior; nos acostumamos a vê-las, de forma que nem nos
surpreendemos mais. A única reação que temos é nos horrorizar
por alguns minutos, tecer alguns comentários e, quando o
telejornal acaba, voltamos ao nosso ‘seguro mundinho’.”
O homem de um
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quilômetros
milhão de
Para Adelino Ascari, a vida
não existe sem A BR-116 e
vice-versa. Atravessá-la
é como cumprir uma rotina,
sem a qual não há
histórias para contar
TEXTO DE ANDRESSA PAZZINI E LUAN IGLESIAS
FOTOS DE CARINA MERSONI
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S
ão cerca de 20 mil habitantes. Duas emissoras de
rádio. Um jornal quinzenal e 35 quilômetros de
BR-116 que cruzam toda a sua extensão. Assim
é São Marcos, localizado na Serra Gaúcha, a 160
quilômetros de Porto Alegre. A cidade, com 48 anos de
emancipação, foi colonizada no final do século XIX por
italianos e poloneses. Não se sabe ao certo como algumas
peculiaridades tomaram forma. São diferenças físicas e
geográficas dispostas aos curiosos motoristas e transeuntes de passagem. O lugar transparece simpatia, como a
maioria das pequenas cidades do interior.
Dividida pela BR-116, São Marcos apresenta duas realidades. De um lado, para quem segue em direção ao interior, após
o quilômetro que carrega o nome da BR, reina a calmaria de
um local onde as residências são maioria. De outro, uma agitação típica de cidade: praça central, mercados, farmácias,
bares, lojas, lanchonetes, hospital e igreja. Entre as duas realidades, está a vida de muitas pessoas, que diariamente atravessam a BR-116 para cumprir seus deveres ou, simplesmente,
acessar a outra metade da cidade.
Recostado no banco da praça central, com uma expressão
cansada e olhar baixo, Adelino João Ascari, ou apenas Ascari,
como é conhecido na pequena São Marcos, passa ali boa parte
do dia. Pela manhã, perto das 8h, sai de sua casa, no bairro
Francisco Doncatto e, a passos lentos, atravessa a rodovia. A
falta de paciência de alguns motoristas obrigam-no a caminhar mais depressa. “Se eu atravesso na faixa (de segurança)
alguns param, mas 50% não param”, calcula Adelino. Apesar
das dificuldades, ele conta que, em cerca de 40 anos que faz o
trajeto, nunca foi vítima de um acidente.
Caminhando mais algumas quadras, apoiado em sua velha
bengala, o simpático senhor acomoda-se no banco da praça.
Ao seu encontro, vêm apostadores do Jogo do Bicho, atividade desempenhada por ele há 24 anos. Além de uma forma de
garantir um sustento extra, é também um motivo para que
Adelino não se entregue ao ócio nem à acomodação. Aos 84
anos, gosta de estar entre as pessoas, estar na rua, conversar
e fazer amigos. “Estou vivo porque estou passando o tempo.
Tenho muitos amigos”, relata. Essa parece ser a força que leva
Adelino a atravessar a tão famosa rodovia. Todos os dias.
Mais do que permitir o acesso de Adelino ao outro lado da
cidade, a BR-116 faz parte de sua vida desde os tempos em
que garantia o sustento como borracheiro. Sua colocação às
margens da BR foi fundamental para que conquistasse uma
vasta clientela, que por muitas vezes esperava o conserto de
carros e caminhões de um dia para o outro. As filas de veículos
danificados faziam jus à qualidade dos serviços prestados por
ele que, no final da década de 80, ganhou o título de melhor
borracheiro da cidade, reconhecido pela prefeitura de São
Marcos: “Naquela época os materiais dos carros eram piores
do que agora, então tínhamos muito serviço”. Contando com
o auxílio de um único ajudante, Adelino relembra o esforço
que fazia para manter a borracharia: “Tinha dias em que eu
amanhecia trabalhando e anoitecia trabalhando”.
Tanto trabalho como borracheiro rendeu a Adelino um
dedo torto. “Esse dedo, antes não era torto assim, isso é de
segurar a marreta, de tanta pancada”. Ao que parece, Adelino abandonou a borracharia quando sentiu que seu corpo não
A CIDADE DE SÃO
MARCOS, COM 20
MIL HABITANTES, É
CORTADA PELA BR-116
dava mais conta do ofício que escolheu com a ajuda de um
cunhado. Em 1999, após 18 anos como borracheiro, trocou a
rotina de consertos por uma prancheta, anotações e cálculos.
Se ele chegara a São Marcos vindo de Flores da Cunha
na intenção de prosperar sua condição social, conseguiu. As
mesmas mãos que consertaram pneus de carros, ônibus e caminhões também cultivaram plantações no antigo distrito de
Criúva, hoje pertencente ao município de Caxias do Sul, onde
também morou. Pelo visto, as marcas do tempo não deixam de
cultivar, igualmente, sorrisos. É inevitável. A cidade muda, a
profissão muda, e os motivos que lhe convencem a atravessar
a BR diariamente mudam. Por ironia ou não, a cultura que se
formou em torno de Adelino é fiel. Muitos dos clientes da borracharia se tornaram adeptos do jogo da sorte.
Afetuoso e com sabedoria de um avó, o ex-agricultor, exborracheiro e agora bicheiro não conhece muito além dos limites que a própria vida lhe impôs. Seja onde e como for, a
BR conta a sua história e viceversa: “Para mim, a BR significa
muita coisa, foi onde comecei a ganhar meu dinheirinho com
os carros que passavam aí”.
Por fim, esta reportagem só poderia terminar com a seguinte cena, praticada por Adelino há décadas: com a bengala
amarrada ao cinto, apoia o braço. Alguns motoristas buzinam
amigavelmente. Outros apenas o fitam. Adelino completa a
passagem sobre a BR para não sair de São Marcos. E, como um
bom bicheiro, aposta nos números para definir alguma circunstância: “Nunca ninguém atravessou tantas vezes essa BR como
eu. Dá para botar bastante coisa. Dá para botar um milhão de
quilômetros. São 42 anos atravessando a BR, já pensou?”
Não Adelino. Nunca pensamos. E só por isso, nunca poderemos duvidar.
IMPRESSÕES DE REPÓRTER
“B
R-116. Uma pauta que, a princípio, nos preocupou. Não
sabíamos o que esperar dela, nem como chegaríamos
até nossas fontes. Recebemos uma lista de alguns possíveis
entrevistados, mas, justamente pelo “frio na barriga” que nos traz
o inesperado, optamos por encontrá-lo aleatoriamente, assim
que chegássemos à cidade de São Marcos. E assim foi. Sábado
de sol, 7h30min da manhã. Embarcamos no ônibus na rodoviária
de São Leopoldo e partimos rumo a Garibaldi, onde encontramos
nossa fotógrafa, Carina. De lá, seguimos de carro até São Marcos,
em uma viagem que rendeu boas risadas e algumas pérolas,
como a inversão dos nomes de duas cidades: “Dois Marcos” e
“São Irmãos”. Chegando ao destino, logo nos deparamos com
uma praça central, que parece ser unanimidade em pequenas
cidades do interior. Andamos um pouco e procuramos por um
restaurante. O relógio já marcava 12h. Saindo de um bom almoço,
avistamos um senhor solitário, recostado no banco da praça. Nos
aproximamos, trocamos algumas palavras e não tivemos dúvidas:
aquele seria o nosso entrevistado. Jeito simples, cativante e uma
vida construída a partir da BR-116. era o que precisávamos para
cruzar a sua história com a história de São Marcos e mostrar como
a divisão da cidade pela rodovia interferiu e continua a interferir
em suas rotinas.”
EXPEDIENTE
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
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