Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º.
Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop,
2009. ISBN: 978-85-288-0061-6
Medo de bruxa: A feitiçaria no Brasil a partir da Visitação do Santo Ofício
no século XVI
Marcus Vinicius Reis*
Em 9 de junho de 1591 desembarcaria em terras brasileiras, ainda sem um
século de colonização, a comitiva que trazia o então visitador Heitor Furtado de
Mendonça. Seria, então, a primeira vez que a Colônia receberia de fato a presença do
Tribunal do Santo Ofício, sendo representado pelo visitador, por alguns auxiliares da
inquisição, pelo notário Manoel Francisco e o meirinho Francisco de Gouveia, como
nos conta Capistrano de Abreu1. E por que a escolha de Heitor Furtado como visitador?
De acordo com autores que trataram do assunto, o que se percebe é que existia um zelo
grande por parte do Santo Ofício em fazer com que os seus cargos fossem preenchidos
por homens “de boa consciência, prudentes e constantes”. Ou seja, esses três critérios
apontados por Sônia Siqueira traziam implícitas as determinações do Conselho Geral
em se fazer membros do Santo Ofício com um status de pureza de sangue, e dignos de
representarem a santidade da Inquisição(SIQUEIRA,1978:26). É interessante pensar
também que alguns anos depois, no tempo em que Filipe IV reinava Espanha e Portugal
devido à União Ibérica, Ronaldo Vainfas aponta o interesse que havia por parte do
monarca em se estabelecer um tribunal do Santo Ofício em terras brasileiras. Apesar de
que tal desejo não tenha se realizado, é pertinente que tenhamos em mente que a
preocupação da Coroa portuguesa ai mais além de que uma exploração econômica de
sua colônia(VAINFAS,1997:221). Em menos de meio século teríamos a presença do
Santo Ofício no Brasil por duas vezes, entre fins do XVI e início do século XVII.
Mas devemos ir mais além. Em vez de termos como ponto de partida a chegada
do então visitador Heitor Furtado de Mendonça, é aconselhável que tenhamos em
mentes as motivações por trás de uma visitação do Santo Ofício ao Brasil – fato ainda
inédito até então -, torna-se importante resgatar até que ponto os contextos no qual o
século XVI vivia foram decisivos na ação do visitador em terras brasileiras, é essencial
também perceber como se deu a percepção do português diante de uma cultura
heterodoxa à sua. Enfim, são questões que se tornam pertinentes a partir do momento
1
* Universidade Federal de Viçosa, graduando do 6º período do curso de História.
Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça
capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da
Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3 vols.
1
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em que percebemos que a visitação do Santo Ofício do século XVI foi um
acontecimento que não pode ser restrito a uma análise de quatro anos, 1591 a 1595. Da
mesma forma, cremos que nosso objeto de estudo permitirá entender como esta
presença e influência inquisitorial, causou transformações nas relações sociais, com
reflexos no quadro econômico e nas relações de poder vividos na América portuguesa.
Outro fator de importância é o de perceber o processo de religiosidade e práticas
religiosas no Brasil colonial ao longo dos séculos de colonização portuguesa,
percebendo suas especificidades temporais e espaciais, tendo o primeiro século de
colonização como espaço privilegiado para análise, por reunir indivíduos das mais
variadas regiões do Império Português, concentrando experiências de religiosidades
distintas no espaço colonial.
Em síntese, a temática proposta neste trabalho tem por objetivo o de analisar a 1ª
visitação promovida pelo Santo Ofício em terras brasileiras, que ocorreu durante os
anos de 1591 a 1595 nas regiões da Bahia e de Pernambuco. Partindo desse recorte
histórico e temporal, a intenção mais específica é a de pensar a religiosidade brasileira e
suas conseqüentes, tendo como enfoque principal as práticas de bruxaria e feitiçaria
denunciadas na mesa do visitador Heitor Furtado de Mendonça.
Mas, começar tal análise partindo de 1591 e terminando em 1595, seria, a nosso
ver, correr alguns riscos durante o estudo. Como se verá ao longo desse trabalho, tornarse-á inviável pensar a visitação do Santo Ofício no Brasil, isolando tal acontecimento
num período de quatro anos. Tal problemática aumentará a partir do momento em que
se for percebendo através da documentação que inúmeras práticas, gestos, saberes
denunciados ou confessados, remontam a períodos muito mais anteriores do que a
visitação abrangeu. Em se tratando de religiosidade brasileira, tais questões se tornam
mais complexas ainda, como poderemos perceber. Dessa forma, é de suma importância
ir tecendo uma serie de acontecimentos que ao longo da pesquisa irão remontar
diretamente com a visitação ocorrida nos anos de 1591 a 1595. Pensar a primeira
Visitação, a partir do nosso enfoque, é ir mais além do que os quatro anos que a
visitação de Heitor Furtado de Mendonça produziu em documentação.
Não se pode pensar a feitiçaria no Brasil sem reconstruirmos o século XVI e
suas vivências sociais e culturais. É o que cita Laura de Melo e Souza na sua introdução
de O diabo e a terra de santa cruz(SOUZA,1986:17). O mesmo argumento é colocado
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por Carlo Ginzburg ao ter proposto um método de análise acerca dos processos de
feitiçaria na Itália. Por mais que sejam realidades diferentes, tanto os casos italianos
como os que estão sendo trabalhados nessa pesquisa relacionam-se quanto à
metodologia que deve ser empregada diante dos processos de feitiçaria existente. Não
significa transportar uma realidade vivente nos processos italianos para a realidade
colonial do século XVI, mas procurar analisar tais fenômenos recorrendo a métodos de
investigação diferentes dos usuais, e ao mesmo tempo buscar uma temporalidade ampla
capaz de reconstruir a temática pesquisada – com a ressalva de que o objeto principal da
pesquisa não seja negligenciado(GINZBURG,1989:10-11).
Nossa análise visa um estudo que não adote apenas a percepção do inquisidor
diante da bruxaria presente no Brasil, de uma análise de ‘fora pra dentro’, mas que
também busque percebe a religiosidade por detrás de um emaranhado de denuncias
acerca das praticantes de feitiçaria. Como o próprio Carlo Ginzburg menciona, o que
predomina em diversos estudos acerca da perseguição do Santo Ofício são análises que
privilegiam esse caráter da perseguição promovida pelos inquisidores, esquecendo-se
das temáticas das crenças das populações que foram perseguidas. Tal fato, como aponta
o autor, se dá por tal análise exigir muito mais cuidado do historiador, já que se trata de
um terreno escorregadio (GINZBURG,1989:206). É nesse sentido que a proposta do
presente trabalho se insere não apenas na analisar da ação do inquisidor, mas
principalmente o de perceber a religiosidade brasileira por detrás das denúncias de
feitiçaria existentes.
. Entretanto, não significa que iremos nos ater a uma pesquisa que busque
reconstruir a religiosidade brasileira partindo exclusivamente da própria colônia. Na
documentação no qual analisamos acerca das feitiçarias, percebemos que tais relatos, se
analisados mais profundamente, vão além da temporalidade presente na visitação, mas
que apresentam especificidades que as tornam distintas da religiosidade européia. Dessa
forma, temos que levar em conta o que Ginzburg menciona acerca da documentação de
feitiçaria,
“Não é minha intenção afirmar que estes documentos são neutros ou
transmitem informação objetiva. Devem ser lidos como o produto de uma interrelação especial, em que há um desequilíbrio total das partes nela envolvidas.
Para decifrá-la, temos de aprender a captar, para lá da superfície aveludada do
texto, a interação sutil de ameaças e medos, de ataques e recuos. Temos, por
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assim dizer, que aprender a desembaraçar o emaranhado de fios que formam a
malha textual destes diálogos”(GINZBURG,1989:209)
O porquê de se pensar a feitiçaria como um dos exemplos da religiosidade
brasileira se dá pelo fato de que tais práticas não se restringiram a um grupo específico,
e muito menos possuiu um padrão como em algumas das diversas regiões da Europa,
como veremos a seguir. E como mesmo cita Ginzburg, “uma leitura atenta de um
número relativamente pequeno de textos respeitantes a uma crença determinada por, a
meu
ver,
dar
mais
frutos
do
que
um
amontoado
de
documentação
repetitiva”(GINZBURG,1989:214). A feitiçaria pode ter vindo com as caravelas, mas
ela não seria a mesma prática quando embarcasse em terras brasílicas.
A proposta do presente trabalho não é apenas de enumerar ou citar as feitiçarias
tanto de caráter europeu como as que se desenvolveram de acordo com os relados
presentes na Visitação. O interesse vai além de uma exposição documental. Pelo fato de
considerarmos que a feitiçaria, enquanto pacto demoníaco veio com as caravelas dos
descobridores, temos que ter em mente que essa mesma feitiçaria acabou ganhando
novos caracteres ao “chegar” em terras brasílicas. E tais caracteres já podem ser vistos
ainda na primeira visitação da Inquisição, apesar do Brasil ainda ter pouco tempo de
colonização. Desse modo, o que propomos são estudos e análises que busquem
confrontar a feitiçaria de ordem européia com a feitiçaria encontrada na documentação
estudada. Definir as práticas mágicas referidas na documentação da primeira visitação
inquisitorial como simples desdobramento da feitiçaria perseguida e defendida na
Europa dos séculos anteriores será um tanto equivocado, visto que é preciso analisar as
especificidades presentes na religiosidade brasileira colonial. E é nessa premissa que o
presente trabalho se baseará.
Baseando nos principais teóricos da época acerca das feitiçarias podemos
concluir que, para que aja uma feitiçaria é necessário o pacto com o demônio. Dessa
forma, se quisermos pensar de que modo a feitiçaria se fez presente no Brasil do XVI, é
necessário que tenhamos em mente que para os teólogos, para a Igreja e, a nosso ver,
para a própria população, o Diabo estava presente em cada prática de bruxaria existente.
Assim, para tentar compreender a feitiçaria é necessário também que analisemos a
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atuação do Diabo como o grande responsável pelos males do mundo; e será nessa
análise que situaremos a que medo de bruxa o trabalho se refere.
Os séculos que precederam às reformas pretendidas pela Igreja Católica –
principalmente com o Concilio de Trento – podem ser considerados de total importância
para que se possam entender as ações que foram se inserindo na estrutura interna do
Catolicismo(VAINFAS,1997:19-22). Num mundo onde a figura diabólica tomou
proporções assustadoras - capazes de guiar até os mais estudiosos da religião a um
pensamento finalista acerca da humanidade - o pensamento europeu tornou-se vítima do
mal no cotidiano da sociedade, tendo em Satã o principal causador dos malefícios
terrenos(DELUMEAU,1989:240-242). De um lado, a Europa, eivada de Medos, do
outro o Brasil, palco da concretização de inúmeros medos europeus. Dessa forma,
pensamos a atuação repressora da Igreja católica contra as diversas heresias tanto na
Europa, como também no Brasil, partindo da premissa de que o Medo generalizado
estava impregnado nas ações da Santa Sé e da própria sociedade. E o Medo a que nos
referimos é definido por Jean Delumeau como sendo definido por um Medo
Espontâneo, freqüentemente compartilhado por diferentes indivíduos de grupos sociais.
Tal Medo teria sido responsável por introduzir uma dose excessiva de negatividade, de
desespero, iniciado na Idade Média, prevalecendo nos séculos modernos. Como vítima
desse desespero, a Igreja agiu no sentido de apontar e perseguir os verdadeiros culpados
pelas calamidades presentes na Europa. Dessa forma, Delumeau considera que a
Inquisição foi o principal instrumento no qual a Igreja Católica se utilizou para
combater o seu único e grande inimigo: Satã (DELUMEAU,1989).
Mas, não se trata apenas de Medo relacionado ao pânico puro e simplesmente.
Em síntese, tais medos se difundiram de inúmeras formas, sendo que os que nos
interessam estão relacionados com o Novo Mundo diante dos olhos do europeu. Num
lugar inóspito, diferente de tudo aquilo que o homem europeu estava habituado a
conviver, não tardariam existir posicionamentos a favor de uma Demonização da
Colônia. A Colônia era o “braço” da Metrópole. E, conseqüentemente, o Diabo
“imigraria” também para as regiões desconhecidas pelo português. Uma demonização
que, para Laura de Mello e Souza, seria fruto de uma necessidade do europeu em se
definir o que lhe era desconhecido, seja nos aspectos da própria natureza ainda inédita
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para o europeu, seja nas culturas encontradas pelo próprio.(SOUZA,1986:49-51). Tratase de um Novo mundo entre Deus e o Diabo.
Entretanto, a mesma autora de Inferno Atlântico acaba por apontar um dos
principais fatores para a difusão da figura diabólica em terras coloniais o fato de que na
Europa tal ameaça encontrava obstáculos devido à homogeneidade do catolicismo. E,
como o Novo Mundo ainda estava começando a ser cristianizado, seria o espaço
perfeito para a difusão da figura de Satã(SOUZA,1993:30). Consideramos sim o fato de
que o Brasil foi um espaço amplo e considerável para que os temores acerca do
desconhecido ganhassem à personificação do Diabo. No entanto, como mesmo aponta
Jean Delumeau, o catolicismo europeu estava muito distante de se tornar uma religião
homogênea. Pelo contrário, de acordo com Delumeau o catolicismo na Europa pode ser
considerado como sendo uma religiosidade resultante de um intenso sincretismo,
definido pelo autor como sendo uma sobreposição de crenças camponesas da Idade
Média com a religião cristã defendida pela Igreja Católica. O que ocorreu, segundo
Delumeau, foi uma tentativa da Igreja Católica de difundir a fé cristã de forma única e
homogênea, mas que se deparou com tradições e costumes diversos de cada
região(DELUMEAU,1989:370-376). É o que explica, por exemplo, a feitiçaria presente
em Portugal e que muito se diferiu das possessões diabólicas presentes na Alemanha de
Kramer e Sprenger, autores do Malleus Maleficarum(KRAMER;SPRENGER,1991).
Dessa forma, pensar a vinda do Diabo para terras ameríndias como resultante de uma
homogeneidade católica na Europa seria esquecer de que a própria figura do Diabo foi
alvo ao longo dos séculos de variadas interpretações principalmente dos católicos
europeus, e também é esquecer que as feitiçarias muitas das vezes condenadas pela
Igreja estavam diretamente relacionadas com o uso de símbolos cristãos pelas ditas
feiticeiras.
Será na figura do índio que o uso de termos como “pacto demoníaco” e
“feitiçaria” começarão a serem difundidos em terras coloniais pela Igreja.. Antes mesmo
da visitação do santo oficio em 1591, podemos perceber que a ação da Igreja Católica
muitas vezes se viu como uma ação que procurara definir como sendo feitiçaria os
diversos atos que eram considerados heterodoxos à fé cristã. Conforma cita Souza, a
lista de pecados dos índios não tardaria a serem difundidas por toda a colônia, tendo nos
missionários os seus principais responsáveis por tal difusão. Os principais seriam os
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“vícios da carne – o incesto com lugar de destaque, além da poligamia e dos
concubinatos – nudez, preguiça, cobiça, paganismo, canibalismo”(SOUZA,1986:61). E
tal discurso não seria um ato isolado. Pelo contrário, o que ocorreu foi uma diversidade
de relatos por parte dos jesuítas acerca das práticas heterodoxas que os indígenas
praticavam. Como bem cinta Vainfas, o jesuíta Nóbrega foi um dos que em seus relatos
associavam as práticas indígenas à feitiçaria como pacto demoníaco. Reflexo de uma
frágil fronteira existente na colônia entre Deus e Diabo(VAINFAS,1995:51;63). Assim,
o que predominava no discurso jesuítico era a plena convicção de que o Diabo estava
presente na Colônia, e que era necessária uma batalha contra o principal inimigo da fé
cristã que também ameaçava não só os católicos, mas também aqueles que necessitavam
ser convertidos, os indígenas – propensos às práticas de feitiçaria.
“O demônio era o inimigo pessoal de cada um desses evangelizadores, de cada
extirpador que o perseguia e combatia por toda parte onde se encontrava, nos
ídolos que se fazia preciso quebrar e na alma dos índios, de onde deveriam ser
expulsos.”(SOUZA,1993:36)
Dessa forma, a feitiçaria enquanto pacto com o Diabo veio antes mesmo da
visitação, e já começara se delinear em terras coloniais, mas ainda sem alguns caracteres
que a tornara o estereótipo da feitiçaria legítima para a Igreja Católica como um todo. E,
a nosso ver, será na visitação do Santo Ofício em 1591 que tais caracteres começarão a
surgir na Colônia, justamente em denúncias contra mulheres degredadas do Reino. Em
vez de apenas citarmos os principais componentes, nosso objetivo como já mencionado
será o de confrontar tais caracteres com as denúncias presentes na visitação de Heitor
Furtado de Mendonça.
O estereótipo da Feitiçaria possuía alguns elementos para os teólogos. Em ordem
de importância: o Diabo, a presença da mulher na maioria dos casos, e o sabbat. Vive-se
num período de transição, de certo modo obscuro, no qual a modernidade está sendo
implementada aos poucos no continente europeu. Explica-se tal obscuridade devido ao
fato de também se inserir nesse período o temível medo do Diabo, de suas inúmeras
formas e maldades, do Inferno e do que se encontra nele. O fim do mundo, o governo
do príncipe das trevas na terra: foi o que a Igreja, a partir do século XIII principalmente,
procurou difundir na sua teologia e também no pensamento dos fiéis. Como citam os
monges Kramer e Sprenger, a presença do Diabo é de total importância pelo fato de que
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é através dele que os males pelo mundo serão difundidos. Entretanto, o Diabo necessita
de agentes no mundo, e é por isso que os pactos, os encontros noturnos denominados de
sabbat, tornam-se importantes para que os desejos do maligno sejam atendidos
(KRAMER;SPRENGER,1991). Instruídos de poderes sobre-humanos, os demônios
defendidos pelo cristianismo passaram a ganhar poderosos agentes do mal presente na
terra: as mulheres, ditas como feiticeiras. Como se percebe através da leitura de muitos
estudiosos acerca da demonização na Europa, Satã se serve da mulher como
instrumento para atrair o sexo oposto ao inferno. A mulher se utiliza de sua beleza para
fazer que o homem entre em queda novamente, como já tinha feito Eva com Adão
(DELUMEAU,1989:200).
As práticas de magia e feitiçaria envolviam um grande leque de possibilidades,
desde atividades noturnas, eivadas de oferendas de sangue, envolvendo a encomenda da
morte de animais e mesmo de pessoas, o comprometimento da própria alma aos diabos,
para que se alcance o objetivo desejado, seja um propósito amoroso, para conseguir o
amor de alguém ou prender a atenção do cônjuge. E seriam as mulheres as mais
propensas, de acordo com inúmeros teólogos, demonólogos da Igreja, às praticas de
feitiçaria e ao pacto demoníaco, conseqüentemente. Os autores do Malleus Maleficarum
resumem bem a explicação dada por essa propensão das mulheres às feitiçarias,
“Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal que o homem, o que se
evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que
houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir
de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por
assim dizer, contrária à retidão do homem.”(KRAMER;SPRENGER,1991:116)
Duas feiticeiras chamaram a nossa atenção pelo fato de que em suas denúncias
alguns caracteres mencionados acima se tornaram recorrentes. No dia 12 de outubro de
1591, iria à mesa de Heitor Furtado de Mendonça uma cristã velha de origem
espanhola, de idade de 33 anos,. Caterina Vasquez, casada com Guaspar Pires iria
denunciar naquele dia que há um ano e meio aproximadamente, em Pernambuco, uma
mulher portuguesa, solteira, com o nome de Borges, e possuidora da fama de que fazia
pacto com os diabos, teria numa certa noite encontrado com um carpinteiro para que
pudesse tirar o sangue dele de modo a oferecer aos Diabos; sendo que a própria Borges
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teria dito que fizera tal prática sem qualquer ressentimento. Alguns meses atrás, ainda
em 1591, viria à mesa de Heitor Furtado uma outro cristã velha de nome Violante
Carneira, natural da cidade da Bahia, de idade de 35 anos aproximadamente, e viúva de
Antonio Roiz Villa Real. E de acordo com a denunciante, provavelmente no anos de
1589, teria aparecido na em sua casa uma mulher vagabunda – adjetivo descrito pela
própria Violante – de nome Maria Gonçalves, ou “Arde-lhe-rabo”,. O conteúdo da
conversa entre as duas é bastante explicitado por Violante em sua denúncia. De acordo
com o relato de Violante, a dita Maria Gonçalves teria vindo a falar com ela sobre
alguns feitiços que a denunciada fazia, além de promover pactos com os demônios.
Além disso, teria dito Violante Carneira que a “Arde-lhe-o-rabo” possui algumas chagas
em um dos seus pés, no qual os diabos lhe tiravam daquela chaga um pedaço de carne.
A denúncia é concluída com Violante “dizendo”2 que a Maria Gonçalves teria ido ao
mar no objetivo de pegar alguns, digamos, ingredientes para que seus feitiços fossem
promovidos, já que como mesmo relata Violante, Maria Gonçalves “com feitiços sabia
e fazia o que queria”.
Denúncias como estas, ou que fazem menção a pactos diabólicos, encontros com
os diabos ou mesmo que se diz haver fama pública desses atos, não são esparsas como
se imagina. Entretanto, deixamos claro que a questão da feitiçaria pouco apareceu na
mesa da visitação, mas por outro lado as denúncias que foram apresentadas na mesa da
visitação, apesar de poucas, trouxeram algumas considerações acerca da religiosidade
colonial que podem ser levadas em consideração, se promovida uma análise mais
profunda acerca da temática proposta.
Se nos basearmos por completo às duas denúncias acima relatadas, poderemos
cair na armadilha de pensar as feiticeiras no Brasil como representantes de uma
continuidade da feitiçaria existente na Europa. Encontro com os demônios, a aparição
de chagas que, em alguns casos a Igreja considerava como sinal de pacto diabólico, o
uso de sangue para ofertas ao demônio. Tais elementos se fizeram presentes no
cotidiano dessas mulheres feiticeiras. Uma hipótese é o próprio fato de que eram
mulheres degredadas do Reino, tendo uma maior proximidade com a feitiçaria que tanto
2
Por se tratar de uma denúncia em terceira pessoa, ou seja, o documento é resultante de uma transcrição
de uma denunciante, que denuncia uma outra pessoa. As aspas colocadas são no intuito de termos em
mente que tal denúncia, antes de ser analisada ipsis literis, é necessário que aja alguns cuidados, como já
mencionados anteriormente.
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assombrou a Europa na modernidade. Por outro lado, ser degredada do reino não
explica muita coisa, já que em Portugal a questão da feitiçaria se fazia presente de forma
distinta dos outros países, como França e Espanha, onde a tradição de se perseguir
bruxarias era mais iminente. O que seria, então, essa feitiçaria? Podemos tentar entender
que ainda no século XVI os elementos de continuidade de uma religiosidade européia se
tornaram mais presentes na colônia do que em outros séculos posteriores. E no campo
da feitiçaria não seria diferente, como cita Laura de Mello e Souza. Esta, também
percebe no período quinhentista do Brasil uma feitiçaria muito mais propensa à
elementos europeus, portugueses, do que um sincretismo de fato(SOUZA,1986:17).
Entretanto, tal sincretismo ocorreu sim durante o século XVI em tais práticas. Pensar a
feitiçaria de Maria Gonçalves ou mesmo da denunciada Borges, fora de todo um
contexto colonial, é pensar que tais feiticeiras eram praticantes do sabatt, ou que suas
práticas apenas mudaram de um espaço territorial, mas que continuaram com a mesma
essência presente em Portugal.
Se para Geraldo Pieroni a feitiçaria portuguesa não deixou de lado os aspectos
demoníacos, já que tais aspectos eram considerados essenciais para a detecção do crime
de heresia pelo Santo Ofício, por outro lado o que designou ser feiticeira em Portugal, e
que não fugiu muito à regra no Brasil, foram indivíduos que buscavam uma forma de
feitiçaria, a feitiçaria simpáttica - eram atos muito ligados tanto com o mundo religioso
como de tradições culturais, onde as práticas de feitiçaria muitas vezes utilizavam
símbolos
presentes
tanto
na
religião
católica
como
em
crenças
pessoais
(PIERONI,2000:169-173). Dessa forma, a feitiçaria se utilizava de tais símbolos no
objetivo de conseguir proveitos amorosos, sortilégios contra algum suposto inimigo ou
mesmo para enriquecimento.
Entretanto, mesmo já possuindo uma tentativa de nos distanciarmos de uma
perspectiva que interprete as praticas das feiticeiras coloniais como pura e simples
continuidade do sabbat europeu, ainda nos resta uma ultima consideração a fazer. Se por
um lado a “feitiçaria simpática” portuguesa muito se fez presente no Brasil3 através dos
sortilégios amorosos, feitiços por vingança, entre outros. Devemos considerar que o
Brasil, mesmo recém colonizado, já possuía uma vivência própria, capaz de oferecer aos
novos habitantes contextos dos mais variados possíveis, e distintos mesmo dos de
3
E não apenas Geraldo Pieroni considera tal presença, mas também outros autores como Laura de Mello
e Souza, Ronaldo Vainfas, James Sweet.
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Portugal. E é nesse sentido que começam a se desenvolver novas formas de relação com
as magias, com os feitiços. Não apenas a feiticeira será procurada pra resolver as
dificuldades de uma pessoa, mas os índios, os escravos serão vistos como possíveis
“colaboradores” para que os desejos individuais possam ser atendidos. Mas isso não
ocorreu do dia pra noite, pelo contrário, os séculos de colonização serão palcos de um
verdadeiro desenvolvimento de uma feitiçaria que aos poucos vai se tornando
genuinamente brasileira.
Referências Bibliográficas
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sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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degredo para o Brasil Colônia. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São
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Maleficarum.Tradução de Paulo Fróes.Rio de Janeiro: Editora Rosa dos
Tempos,1991
5. SIQUEIRA, Sonia Aparecida. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial.
São Paulo: Ática, 1978.
6. SOUZA, Laura de Mello e.O Diabo e a Terra de Santa Cruz.São
Paulo:Companhia das Letras, 1986
7. _______________________. Inferno Atlântico: demonologia e colonização:
séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
8. VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
9. _________________.Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no
Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997
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Em 9 de junho de 1591 desembarcaria em terras brasileiras, ainda