EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA
Poeta, ensaísta, professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. Os poemas a
seguir foram extraídos do livro HOMELESS, Belo Horizonte: Mazza Edições/ SansChapeau, 2010.
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CENA DE PESCA DE TSOELIKE
a memória é
um curso em parte
navegável
somos os
que trocaram o rumo
pela sua voragem
nossa violência
cai
na órbita de um fisgo
o mundo
barriga e ponta
alucina
(erraram os deuses
a geometria?)
na escassez de um
centro
o que prendemos
nos excede
: sua
elipse não obedece
à nossa coluna
em quatro, porém,
tiraríamos
o pêlo às baleias
não fosse a rota
em si mesma
o desvio
*
: um de nós
pende à direita
como se escolhesse
o ínfimo
: outro
acima, como
se do azul
mirasse o abismo
: ao meio
quem se equilibra
há muito é um
entre os perdidos
: sob a linha
de esqueletos
outro alarga os braços
e ancora
quatro nós em pênis
alçados
prontos (talvez)
para a inumação
*
na pedra, apesar
do cárcere
fluímos
saltamos do peixe
ao cervo para cobrir
mulher e filhos
a escassa gordura
nos força a um estilo
esguio
graças ao animal
em fuga
e ao estrago
da armadilha
no desenho
não se mede a hora
em que o barco
afunda
e a vida – em pânico
se agarra às iscas
*
em quatro somos
contra
a aflição das escamas
nesse campo
ninguém
ousa – a luta nele
travada não
faz inimigos
: os sangues
que se esbarram
chegam a tal ponto
por conhecimeto
da regra
: o que à alma cabe
não perece
– de outro
modo ocupa
as escavações
: o que a alma pesca
multiplica no corpo
sua origem
*
aquele à direita
subverte a espinha
do destino
seu barco
impõe ao corpo
uma rotação
em guerra
o alvo é nada
ante sua argúcia
: o que persegue está
além do sustento?
esse nos inclina
a um norte
que não morre
na extensão da lança
seu arremesso
é um gesto de cavar
onde crescem
os tubérculos
: o que persegue
esse cujo sexo
se iguala aos pinos
do sol?
*
não vemos quem
nos espera
nem a orla
a que chamam terra
não distinguimos
durante a lida
marido
esposa filhos, forma
nenhuma que não
em vermelho
o braço tensionado
é o mesmo
que na vítima
serviu de esqueleto
o suor a carne
o que é nosso
se dilui e se recupera
no oceano
: herdeiros do bosque
protegidos
pelos mantídeos
certeiros na mira
como a ferida
que derruba
os chifres
é nas águas, todavia
que roemos
o tórax dos deuses
*
levamos os bens
e como a terra
nutrimos sua viragem
nós que entalhamos
o pote e arredondamos
os cadáveres
estamos atadas
aos flancos
onde os homens passam do lodo
à vertigem
incrustamos a pedra que os salva
do esquecimento
em caulim está pintada
a porosidade
– outro nome da pedra
nuvens ao revés
não prometem utilidade ao fogo
nem a noite
em que o arpão e a concha
enlouquecem
em caulim está pintado
o ventre
que imploramos seja acolhedor
e farto
qual dos nossos
sobressai à tempestade?
ao sangue
que rodeia a embarcação?
sorriem e gritam – ante
a fúria
de uma barbatana
: não nos dizem
que essa euforia
resvala
os cardumes da morte
sorriem ante o dedo
estirpado, não é por ele
que a testa
faz sombra no chão
: não nos dizem
sobre as moeduras
à sua volta
e a serpente azul
que não querem evitar
: nós que levamos o pote
e arredondamos os mortos
estamos atadas
pelos flancos
lá, onde há fendas
entre os ossos, quem garante
amizade aos pais
esfoladores?
nuvens não
prometem utilidade ao fogo
só a pedra
caiada de assombro
nos dirige
: os homens disparam
as rédeas
e exaustos
alçam os haveres ao redor
da palavra
pretendem convencer
os umbigos
de que a fronteira
não lhes interessa
*
os deuses
não esmorecem
se um fosso
nos devora
: por que dividiriam
as vísceras
de um animal
a galope?
entretanto, são
eles por trás da lava
a nomear
o que enfrentamos
: a bexiga esculpe
a pele
e nos assola a ideia
de um acidente
a ser descoberto
depois de muitos
nascimentos
(as fraturas
riscaram no corpo
a separação e os ritos
não garantiram
seu retorno à planície)
: os arpões atingem
menos a caça, escavam
em nós
a errância
como se não fôssemos
quatro,
mas tantos
em exílio
: cada um se equilibra
para dar aos erros
um sentido
– nada nos obriga
a ficar com o deus
do limo
ou o espírito da árvore
: cada um chama
mulher e filhos
para desafiar
a outra margem
: os cadáveres dão-se
vestir como agasalhos
sua ausência
nos incita a roer desde
o pólen
antes mesmo que a
forma
se pretendesse ponta
ou círculo
: essa é a tarefa
ainda que a memória
deslize
em direções
avessas – e as águas
torturem os ossos
e nós
a nós mesmos
PORTRAIT DE FAMILLE
1
pela escarificação no rosto
cada um se dá a ler
como um jornal diário
em verdade, os textos
nessa pocilga rascunham
um lugar em trânsito
uma sílaba traindo a outra
coloca no mesmo ringue
francisco e licutã
pelejam em nome do
ab al
to
em língua selada
esfolam-se francisco e licutã
para salvar o crânio
e seus dividendos
afiam a conversa no sangue
cada um de seu canto
não mede que está no outro
talvez, por isso,
se devorem
para ler-se desde dentro
2
sob a escarificação outra
miragem
esperando a mão
tocar-lhe as vértebras
outra que não a urina
e as fezes
nem a coleira do cão – outra
que sitiando os piolhos
escala os anônimos – outra
CAMPO GRANDE
brumado
guinda
careca
sapucaí
cabaça
ibituruna
inficionado
ambrósio
caraça
marcília
isidoro
diversa de si – todo-o-avesso
revés que se serve
do zero
para informar o mundo
3
das cáries nenhuma
escreve mais
que o esquecimento
raros os fatos
que dão origem a uma
nova dor
nem o tendão
exposto da mãe, nem
o rapto, a morte – sim,
em outra língua, sobra
no inventário
de hostilidades
apesar dela o rosto
ao se desfazer
inaugura uma promessa
os mortos que foram
perdas
dobram a página para
viver nos livros
pela escarificação
das heranças
pouco se decifra, mas
uma vértebra
(o que basta)
prenuncia o corpo
PRAIA DO NÃO RETORNO
1
o cuidado de ulisses
com seu cão se explica a quem
antevê
um braço
a mais no escorpião: parentesco
que tece
a aflição da mulher
porque está ocupado, ulisses
tateia o pulso
de outro corpo “disseram
que a sombra de achiles
deteria o inimigo”
mas o bicho de
estimação já se habituara
ao zero
como destino
2
estendem a olisseo um
abismo
e em recompensa
os farelos
– há-de ser um mergulho,
insistem,
para que nenhuma
cifra o recupere
há-de ser fortuna esquecer
os músculos
e a estatura da palmeira
3
olisseo escreve o selo
do pai
o selo que ao pai dispersa
o mater selo, em
circuito fechado, nas
trevas
o zelo de olisseo contra
o selo
: à sua volta se acumulam
fendas uivos
sombras que na praia
ardem
olisseo se instrui
no pó
contra a incisão no carpo
– o mater selo do pai
recua
ante a fricção do mar
olisseo se lança, aporta
ao som
dos búzios
à deriva se dá, entre
signos
a que não se pode amarrar
(os signos
não plantados e que, no
entanto,
vingam em matas
livros
mortos
vogais)
em rios
oeco olisseo, de si
inteirado,
apruma-se salta-se elide-se
: para ser não se imprime,
olisseo,
o osso navio
4
olisseo carda a palavra
okoenda
sob a usura do assalto
se despe
se veste
em outra pele: cuendá
ulisses d’oro
arvorado argonauta
o eco
onde vais
where are you
où est-il
o devolve à planície
onde o leopardo não caça
por ser malhado
na linguagem quem captura
o
l
i
s
s
e
o
filho do se?
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Edimilson de Almeida Pereira